andei sumido por uns dias. quarta-feira passada, no meio do expediente, recebi um telefonema dando conta de que meu avô tinha falecido. fui à rosário para velório e enterro (e volto lá amanhã para a missa de 7º. dia) e não foi fácil ver, dentro de um caixão, o homem que, faz nem tanto tempo assim, me levava de bicicleta ao jardim de infância, na mesma rosário que eu agora visitava por este motivo nada agradável.
desde seu último derrame, em 1992, antonio viana, meu avô materno, vivia com o lado esquerdo do corpo paralisado. lúcido, tinha excelente memória e seguia sua vida, que diariamente começava com o rádio ligado às 5h da manhã nalguma emissora am em programas de esportes e notícias, velha mania. de uns dias ao óbito, teve maiores dificuldades para se alimentar, se comunicar e chegou a não reconhecer pessoas próximas (uma filha, inclusive) em 8 de agosto, quando subiu, às vésperas de completar 48 anos de casado.
certamente, mortes sempre serão inexplicáveis e sempre serão grande perda e dor, mesmo quando a visita da “velha da foice” já é aguardada e/ou sentida (mas não desejada). talvez esses avisos (como seu último derrame) sirvam (talvez, repito) para tornar menor o sofrimento de parentes e amigos.
o que sinto (e maria lindoso, minha vó, sua viúva, seus filhos, netos e demais parentes e amigos) com a morte de vovô, possivelmente é sofrimento menor que o que sentem, por exemplo, as famílias de flávio pereira da silva e gerô, vítimas da violência, infelizmente banalizada.
colo, abaixo, texto de flávio reis publicado no estado do maranhão (opinião, 4) de hoje sobre o assassinato de seu xará flávio pereira. e mais abaixo, a carta-denúncia (que assino embaixo) que será entregue à secretaria de segurança cidadã. copie, repasse, endosse!
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Licença para matar
por Flávio Reis*
O ensaísta alemão Enzensberger cunhou o termo “guerra civil molecular” para caracterizar a situação de violência múltipla que se espalha nos centros urbanos. Em qualquer lugar e sob qualquer pretexto ela se manifesta. Pode ser fruto da ação de bandos ou de um indivíduo; de assaltantes, mas também de policiais; originar-se de uma intenção prévia ou resultar de uma reação desmedida. O motivo pouco importa, muitas vezes são coisas supérfluas, caprichos. Em todos os casos, entretanto, seu rastro é de destruição, medo e morte. O cotidiano das cidades vai se amoldando aos sinais desta nova guerra, sem exércitos e sem fronteira. Diante dela os governos pouco ou nada têm conseguido, ao contrário, suas truculentas, ineficazes e corruptas polícias têm contribuído enormemente para expandi-la.
As cenas foram nos cercando em pouco tempo. Primeiro eram as notícias algo distantes que se repetem indefinidamente nos meios de comunicação, depois as que nos chegavam através dos amigos e conhecidos, as que são ouvidas nos ônibus ou em qualquer lugar da cidade, até um dia sermos atingidos em cheio. Certa vez fiquei impressionado com a notícia de uma menina alvejada próximo a uma estação de metrô, caída sem movimentos e utilizando o celular para dizer “Mãe, levei um tiro”. Tempos depois, estava em um carro com amigos passando pela avenida Ferreira Gullar, por volta das 19h, e numa tentativa de assalto frustrada levamos um tiro e uma pedrada. Somente por pura sorte ninguém se feriu. No banco de trás uma criança de apenas dois anos perguntava espantada “Mãe, o que aconteceu?”. No último 31 de julho me veria diante de algo ainda mais brutal e infame. Um amigo muito próximo, xará, Flávio Pereira da Silva, ex-professor de sociologia da UFMA, onde fez graduação e mestrado, e atualmente professor do Ceuma, estava ao telefone e dizia num choro desesperado: “Flávio, avisa que eu levei um tiro e estou no Socorrão II”. Motivo? Briga de trânsito. Uma camionete L 200, de cor bem distinta, algo como azul metálico, modelo antigo, é conduzida por alguém que se acha com licença para matar.
Apressado e arrogante, a figura ainda incógnita não teve paciência numa situação comum no movimentado retorno da Forquilha, buzinou insistentemente e depois avançou o carro, batendo na traseira do Celta novo, comprado em meio a tanta dificuldade. Recebido com insultos, Flávio reagiu, mas terminou sendo covardemente atingido por um disparo efetuado de dentro da L 200. Era uma pistola com grande poder destrutivo, geralmente utilizada por policiais, sacada de um coldre sob a axila, acobertado pelo paletó. A caracterização leva imediatamente a pensar em alguém que trabalha na área de segurança – delegado, oficial, agente federal, os tipos são vários. A poucos metros, um trailler da PM, que mais parece peça de decoração, onde dois policiais com uma viatura assistem a tudo sem se mover, não tomam nenhuma providência, não buscam contato, nada, para deter o atirador em fuga. A bala que o atingiu, de tipo especial, entrou pelo ombro, bateu numa costela e desceu para se alojar na coluna, mas em seu trajeto perfurou o pulmão e fragmentos alcançaram uma vértebra, causando imediata paraplegia. A placa repassada pelos policiais militares é fria ou foi anotada errada.
Segundo a ironia amargurada de um amigo comum, enquanto a viatura “escoltava” o Celta rumo ao hospital, dirigido pelo transeunte que prestou socorro e onde Flávio se encontrava, colocado sentado na poltrona do carona, o motorista da L 200 escapava tranqüilamente do flagrante. Os policiais não tiveram sequer cuidado com a vítima, que perdeu os movimentos nos membros inferiores assim que levou o tiro e necessitava de cuidados na remoção. Agiram sempre da forma mais anti-profissional possível. A tragédia se completaria uma semana depois, quando complicações agravadas pela péssima estrutura médico-hospitalar do Aliança, para onde havia sido transferido ainda no dia da ocorrência, levaram à sua morte.
Na sucessão de casos em que vamos afundando, o medo se impõe como marca do cotidiano. Não importa mais se é dia ou noite, local aberto ou fechado, nas calçadas ou nos veículos, qualquer um se acha no direito de constranger, fazer o que quiser e resolver tudo à bala. O assassinato como forma de prevalecimento da vontade. A arma servindo de diferencial básico na relação social. O covarde que atirou em Flávio comunga dessa convicção, a de ser o infrator, criar a situação de conflito e resolvê-la com a eliminação do oponente. Ao apontar a pistola do alto da camionete, ele teve a opção de atirar ou não, e o fez friamente. Deve estar acostumado a matar. No caos que se aprofunda na segurança pública do estado, este é mais um caso explosivo, onde um possível agente da segurança torna-se agente da guerra. Pode ser apenas suposição. Mas esta é uma pergunta que a Secretaria de Segurança precisa responder rapidamente: Quem matou o professor Flávio Pereira?
*Professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA
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Carta denúncia
Vidas interrompidas. Até quando fecharemos os olhos?
Flávio Pereira da Silva, 37 anos, antropólogo, era professor de Sociologia do UNICEUMA. No início da graduação do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão trabalhou como operário da Alumar. Depois, dedicou-se apenas aos estudos, sendo bolsista de Iniciação Científica e envolvendo-se, precocemente, com as atividades de pesquisa. Já formado, foi professor substituto na UFMA mais de uma vez. Foi aluno do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais e participou de pesquisas e de trabalhos aplicados junto aos remanescentes de quilombos e às quebradeiras de coco babaçu do Maranhão.
Era um profissinal íntegro e sério, colocando seu conhecimento a serviço das instituições que atuam no combate à violência e em prol dos direitos humanos. Mas lamentavelmente no dia 1º de agosto teve sua trajetória interrompida e tornou-se mais uma vítima da violência no país.
Naquele dia, Flávio saiu de sua casa rumo à UFMA, aproximadamente às 8 horas da manhã. Parou em um semáforo, nas proximidades do Retorno da Forquilha. O motorista de uma L200 azul metálico buzinou forte, reclamando passagem, ainda que o sinal estivesse vermelho e obrigasse Flávio e parar o seu Corsa. No semáforo seguinte a cena se repetiu. Desta feita, o motorista da L200 bateu propositalmente na traseira do Corsa de Flávio, momento em que este saiu do seu carro e ambos discutiram. O motorista da L200, um homem que usava paletó, já de dentro de seu automóvel, sacou de um coldre uma pistola e atingiu Flávio no ombro direito. O projétil perfurou o pulmão e fez uma curva, penetrando na medula. Flávio sofreu no hospital durante sete dias, correu risco de ficar paraplégico, vindo a falecer na madrugada do dia 7 de agosto.
O incidente ocorreu em frente ao quiosque da Polícia Militar, no retorno da Forquilha. Os policiais assistiram a tudo, sem tomar nenhuma providência para prender o assassino em flagrante, o que poderia ter sido feito, já que o trânsito estava lento e testemunhas dão conta de que a L200 saiu normalmente pela avenida Jerônimo de Albuquerque, após o ocorrido. Os policiais socorreram Flávio, levando-o ao Socorrão, mas nada fizeram para tentar, de alguma forma, interceptar o carro e prender o atirador em flagrante.
Diante da violência que originou esta tragédia, nós, professores do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais e do Departamento de Sociologia e Antropologia, professores do UNICEUMA e demais signatários desta, vimos de público denunciar mais este ato de violência. Exigimos providências das autoridades responsáveis pela segurança pública deste Estado no sentido de investigar o caso, identificar o motorista da L 200, para que ele possa responder pelo crime praticado, evitando dessa forma mais um ato de impunidade que vem estimulando práticas violentas como essas.
Denunciamos a omissão da Polícia Militar que poderia ter sido mais competente, não apenas socorrendo a vítima, como também procedendo a diligências para capturar o motorista foragido. Omissões desse gênero só incentivam aqueles que se sentem com licença para matar. Qualquer um de nós poderia ser a vítima desse caso e é inadmissível que as autoridades fechem os olhos e banalizem atos como esses que a cada dia interrompem vidas inocentes.
São Luís, 12 de agosto de 2007
Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UFMA
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as missas de sétimo dia: a de flávio pereira da silva é hoje, às 17h30min, na igreja da sé (são luís/ma); a de antonio viana, amanhã, às 19h, na igreja da matriz (rosário/ma).

