Mercado de quadrinhos em debate

30 de janeiro é o Dia do Quadrinho Nacional. A data alude à publicação da primeira HQ brasileira, As aventuras de Nhô Quim ou Impressões de uma viagem à corte, de Angelo Agostini, em 1869.

Em São Luís, a comemoração da data será antecipada e acontece hoje, na Galeria Trapiche Santo Ângelo (Praia Grande, em frente ao Terminal de Integração), com uma Roda de quadrinhos, formada por gente que entende do riscado: Iramir Araújo e Beto Nicácio (da Dupla Criação, que organiza o evento), Ronilson Freire, Rom Freire, Zilson Costa e Bruno Azevêdo debaterão o “Mercado de quadrinhos: expectativas e perspectivas”.

O encontro é, também, uma oportunidade de comprar, direto da mão de autores e editores, quadrinhos autorais, além de conhecer um pouco melhor o trabalho de uma turma que rala bastante e nem sempre tem o devido reconhecimento.

Divulgação
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Rec-Beat busca alternativas para seguir acontecendo com qualidade – e de graça

Arte: Karina Buhr
Arte: Karina Buhr

 

Entre os próximos dias 6 a 9 de fevereiro, isto é, durante o carnaval, o Cais da Alfândega, no Recife, sedia a 21ª. edição do Rec-Beat, um dos mais longevos festivais de música do Brasil. Antonio “Gutie” Gutierrez sentiu a ameaça de, pela primeira vez em duas décadas, o festival não acontecer, e foi à luta: lançou uma campanha de financiamento coletivo, visando manter o nível das atrações – embora o festival seja um pouco menor em 2016 – e a gratuidade do evento.

“Vamos fazer juntos o festival” é o slogan da campanha, que pretende arrecadar 200 mil reais até o dia do início do Rec-Beat, que ao longo de duas décadas sempre primou por inovação e qualidade em sua programação. As recompensas pelas doações – clique aqui para colaborar –variam de brindes personalizados até ingressos para outros festivais brasileiros, além da coautoria da realização desta edição.

Pernambucana nascida na Bahia e radicada em São Paulo, com alguns Rec-Beat no currículo, entre bandas como Comadre Fulozinha e Eddie, além de em carreira solo, Karina Buhr assina a arte do pôster deste ano.

De acordo com Gutie, a crise financeira em que mergulhou o país gerou cortes de até 50% do patrocínio, de “um valor que já não era tão expressivo”, segundo o produtor. Para termos uma ideia, prefeituras de três municípios maranhenses já anunciaram a não realização de um circuito oficial (leia-se: estatal) do carnaval este ano – Coelho Neto, Pedreiras e Santa Inês –, de acordo com informações do jornal O Imparcial.

Gutie conversou com exclusividade com o Homem de vícios antigos.

"Esse aperto está nos levando a pensar em coisas novas", afirma Gutie. Foto: Diego Nigro/ JC Imagem
“Esse aperto está nos levando a pensar em coisas novas”, afirma Gutie. Foto: Diego Nigro/ JC Imagem

 

O que houve ao longo dos anos com o financiamento do Rec Beat?
No inicio, por três edições, o Rec-Beat foi realizado em Olinda, na área interna de um casarão, o Centro Luiz Freire. Aí havia cobrança de ingressos, um preço simbólico, suficiente para cobrir os custos, que não eram altos porque ainda era o início do projeto e tudo era feito mais como uma diversão, com uma estrutura bem simples. Em 1999 fomos convidados pela Secretaria de Cultura do Recife para levar o Rec-Beat para o Bairro do Recife, sítio histórico da cidade. O objetivo era o festival ser uma âncora para o público jovem de um projeto de fomento do carnaval no bairro, ainda muito incipiente. A partir daí o festival passou a receber patrocínio da Fundação de Cultura Cidade do Recife (FCCR) e também se tornou gratuito, como é até hoje. A gratuidade é um ponto chave do festival e tem o lado bom e o lado ruim. O bom é que dá uma grande liberdade para se fazer uma programação mais ousada, pautada em novidades, em coisas mais experimentais que ainda não estão inseridas no grande mercado, ou seja, não precisamos escalar nomes do mainstream para atrair público pagante, uma vez que a gente não vende ingresso. A gratuidade permite que o público tome contato com bandas desconhecidas, ou pouco conhecidas, que certamente ele não pagaria pra ver se não estivesse ali, na rua, sem custo para ele. O lado ruim é que o festival perde uma fonte de receita, ou seja, o festival não pode contar com recursos de venda de ingressos para cobrir seus custos, e passa a depender, dessa forma, exclusivamente de patrocinadores e apoiadores. O Rec-Beat cresceu muito, ao longo dos anos, mas o patrocínio oficial não acompanhou a evolução dos custos de realização do evento. Além disso, o Rec-Beat sofre uma limitação para captar recursos junto à iniciativa privada, tendo em vista que a Prefeitura já tem acordos com grandes patrocinadores que impedem o festival de captar recursos desses mesmos patrocinadores ou de concorrentes do patrocinador oficial, como cervejarias, por exemplo. Com o agravamento da crise financeira do país este ano e um corte do patrocínio da ordem de 50%, de um valor que já não era tão expressivo, fomos em busca de saídas para manter o festival no nível conquistado, principalmente no que se refere ao conteúdo artístico, conceitual, e a gratuidade. Foi aí que abrimos várias frentes, e uma delas foi a tentativa do financiamento coletivo.

Muitos artistas têm recorrido ao financiamento coletivo para a realização de trabalhos artísticos (filmes, livros, cds, dvds, exposições etc.). O Rec-Beat parece ser pioneiro para a realização de um festival. O crowdfunding é “o” caminho, hoje?
Creio que somos pioneiros nisso, até agora não vi nenhum festival independente recorrer a esse mecanismo para levantar recursos. Pra gente é uma incógnita, não sabemos onde vai dar. A gente vê vários projetos de CDs, livros, filmes alcançando êxito. Mas não temos uma referencia de projeto para festival. Certamente com esta experiência vamos poder aprimorar a estratégia, avaliar os acertos e erros, caso a gente venha a fazer no próximo ano. Nesse momento que estou respondendo a essa sua pergunta o que posso dizer é que o fluxo de adesão à campanha ainda não decolou, mas ainda faltam alguns dias para o encerramento. Mesmo assim eu acho que o crowdfunding pode vir a ser uma boa opção para o financiamento de festivais como o Rec-Beat.

O momento por que passa o já tradicional festival é reflexo da crise que atravessa o país?
Acho que reflete a crise econômica e também a falta de discernimento enfrenta-la. Quando você sofre restrição econômica, você tem que adotar um critério para reduzir seus custos de modo a manter o que é importante e vai te dar retorno e eliminar o que é supérfluo e só vai lhe trazer mais despesas. Eu não tenho dúvida de que o Rec-Beat traz um imenso retorno para o patrocinador, para o público, para a música independente, para a nova música brasileira, para a nova música latino-americana, para a tradição do carnaval pernambucano. O festival traz público. O festival contribui como destino turístico, para o fluxo de renda. Ano passado, e este ano também, o Rec-Beat entrou na agenda de três revistas de bordo de empresas aéreas colocando o evento como destino no carnaval, sem contar o destaque que recebe em vários veículos da imprensa nacional. A mídia espontânea gerada pelo festival, quando valorada, supera em três vezes o custo do festival. Ou seja, como é que você corta severamente o patrocínio destinado a um evento que traz tantos benefícios? Estamos passando por uma forte crise econômica, é fato. Eu já vivi momento pior que isso. O Rec-Beat tem 20 anos. Está sendo um ano difícil, mas por outro lado esse aperto está nos levando a repensar muita coisa, a trabalhar novas parcerias, pensar em coisas novas. Incrível também a solidariedade de muitas bandas e artistas, que estão chegando espontaneamente e oferecendo apoio. Acima de tudo é bom momento pra saber quem está por dentro e quem está por fora.

O ministro Juca Ferreira deu uma entrevista ao jornal online Nexo afirmando que o MinC já vive um momento “pós-crise”. O que você poderia comentar a respeito da fala dele?
Respeito muito Juca Ferreira, um grande gestor, um dos melhores ministros que esse país já teve na área da cultura, e só o fato de Marta Suplicy não gostar dele já mostra que ele é boa gente. Acho que quando Juca diz que já vivemos um momento de “pós-crise” talvez ele queira dizer que estamos conscientes que estamos vivendo uma crise e adotando caminhos para superá-la. Concordo quando ele diz, na entrevista, que a crise é menor do que parece. Antes de tudo vale dizer que a crise é mundial, o mundo vive um momento de retração econômica, que reflete principalmente o esfriamento da economia chinesa. Nossa visão da crise no Brasil é dada pelos grandes meios, o famoso PIG [o partido da imprensa golpista], que aliado a uma oposição medíocre, está impedindo que Dilma governe e que adote medidas para superar as dificuldades. E quando você tem um bombardeio diário na mídia falando de crise, crise, crise… é claro que acaba criando uma expectativa negativa nos agentes econômicos. Só acho que o MinC deveria nesse momento ter mais cautela no lançamento de editais de financiamento de projetos. Existe muita pendência de editais aprovados cujos recursos não são liberados. Isso cria um desgaste muito grande junto aos produtores que são contemplados e que depois recebem a notícia de que o dinheiro não existe.

Que nomes já estão confirmados para a edição 2016 do Rec-Beat? Além do corte no patrocínio, o festival sofrerá alguma espécie de diminuição?
Vamos reduzir uma atração por noite, que na verdade significa voltar ao formato que já fazíamos um ano atrás. Serão cinco bandas e mais um dj por noite fazendo os intervalos entre as bandas. Além disso, devemos ter festas after com djs, em uma casa fechada, no Bairro do Recife. Também mantivemos este ano o “Rec-Beat Apresenta”, que é uma proposta de realizar no período pré-carnaval uma noite com três bandas novas, revelações, nas quais o festival aposta. Este ano, além de fazer no Recife, estamos fazendo o “Rec-Beat Apresenta” também em Joao Pessoa, lá também com três bandas. Nesse momento que respondo a essa pergunta já temos confirmado oficialmente para o Festival Rec-Beat 2016: Maite Hontelé (Colômbia), Moh! Kouyaté (Guiné), Liniker (SP), Francisco-El Hombre (México/Brasil), Luísa e Os Alquimistas (RN), Duda Brack (RS). Até o final da semana teremos tudo definido.

Show de sensibilidade

EMILIO AZEVEDO*
ESPECIAL PARA O BLOGUE

Acompanhada do sete cordas João Eudes, Tássia canta Nara. Foto: Rejane Galeno
Acompanhada do sete cordas João Eudes, Tássia canta Nara. Foto: Rejane Galeno

Foi num lugar muito especial, o bar do senhor Francisco de Assis Leitão Barbosa, no Centro de São Luís. Ocorreu no dia 22 de janeiro de 2016. A cantora arrebentou. Deitou e rolou, fez e aconteceu. Introjetou letras e músicas, soltando a voz, descendo literalmente do salto e fazendo chover literalmente. Enfim, assistido por uns 70 privilegiados, foi muito interessante o show que Tássia Campos fez ontem, no Chico Discos, homenageando Nara Leão.

Acompanhada do músico violonista João Eudes, ela cantou composições de Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Ronaldo Bôscoli, João Gilberto, Fagner, Zé Kéti, João do Vale, Roberto e Erasmo Carlos, Bené Nunes, Ari Barroso e Chico Buarque de Holanda. Destaque (as que mais me arrepiaram) para Carcará (João do Vale e José Cândido), João e Maria (Chico Buarque e Sivuca) e Noite dos Mascarados (Chico Buarque). Ao todo foram vinte canções, com mais duas após os pedidos de “mais umas”.

Tássia agrada naturalmente pela voz, misto de talento e trabalho. Como me disse Leo (o do outro Bar), “é uma menina estudiosa”. Mas, além da dádiva e do estudo, ela me chama a atenção por certa agressividade. Não por uma agressividade fruto da grosseria inconsequente, ou de algum tipo de estupidez. Falo de uma agressividade que se reflete (também) no palco e me parece relacionada com sensibilidade, ternura e insubordinação, consequência de inquietações artísticas, sociais, místicas, existenciais, libertárias.

É a mesma bendita insubordinação que fez com ela mandasse “se fuder”, um burocrata que certa vez tentou atrapalhar seu trabalho no antigo bar Odeon, ou então, a ternura que lhe deixou de olhos arregalados, ao observar os versos de Carlos Drummond de Andrade, declamados pela atriz Rosa Everton, na abertura deste mesmo show dedicado a Nara Leão. É a sensibilidade de uma operária da arte, que com seu cotidiano de cigarra-formiga, enfrenta diariamente “os batalhões”, “os alemães e seus canhões” e que guarda “o seu bodoque, ensaiando rocks para as matinês”.

*Emilio Azevedo é jornalista do Vias de Fato.

Galeria de desgraçados

Amar é crime. Capa. Reprodução
Amar é crime. Capa. Reprodução

Em boa hora ganha reedição o volume de contos Amar é crime [Record, 2015, 160 p.], de Marcelino Freire.

Dono de voz e ritmo particulares, a prosa do pernambucano radicado em São Paulo não poupa os personagens nesta galeria de desgraçados.

As narrativas são brutais, cruas, secas – o conto Ricas secas, por exemplo, é “livremente inspirado” no romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, de que se vale de um trecho.

A “nova edição ampliada”, como nos alerta a contracapa, traz novas histórias em relação ao volume publicado em 2011 pela Edith Editorial. Ricas secas, por exemplo, aborda a crise hídrica paulista.

Em Amor e sangue, o prefácio assinado por Ivan Marques, é o próprio Marcelino Freire, de Rasif [Record, 2008], quem serve de epígrafe: “Cristo mesmo quem nos ensinou./ Se não houver sangue, meu filho,/ não é amor”.

“Oralidade: eis a palavra-chave. A literatura de Marcelino Freire é erguida sobre falas, frases roubadas, pedaços vivos do cotidiano e da miséria social brasileira, que ele recolhe com inteligência crítica, a exemplo do que ocorre em autores como João Antonio e Francisco Alvim”, atesta o prefaciador.

“Contos de amor e morte ou pequenos romances”, é o próprio autor quem define, num subtítulo informal, que não comparece à capa nem à ficha catalográfica.

Impossível não ser tocado pela tragédia da protagonista de Vestido longo, conto que abre Amar é crime: uma garota que, abusada sexualmente na infância, torna-se prostituta e sonha com a roupa que intitula a narrativa.

Em meio a essa prosa de agruras, violenta como os cotidianos que relata, há espaço para a poesia. Como no onírico Liquidação, em que dois carroceiros brigam por um sofá velho: de quem é? Quem viu primeiro? “Ele primeiro viu, repetiu. Ajeitou na noite anterior. Descansou o troço ali. Hoje, recolheria. Nem precisaria abrir crediário das Casas Bahia. De que maneira pagaria?”, rima a tragédia.

Em Irmãos e A última sessão, as igrejas evangélicas que tomaram o lugar de cinemas são panos de fundo para a crítica de Marcelino à fé enquanto engodo do povo. Num o protagonista, abandonado pela mulher, é confundido com um pastor; noutro, um velho, sem família, após sair do hospital, consegue achar o caminho até um cinema pornô que costumava frequentar e encontrar consolo em uma travesti. Mas o cinema já não mais existe.

Em União civil a homossexualidade é pautada. O conto é narrado como se o autor estivesse em uma mesa num evento literário ou ministrando uma oficina – universos do autor.

Seu companheiro de projetos, Jorge Ialanji Filholini – ambos estiveram na Feira do Livro de São Luís em 2014, ocasião em que ministraram oficinas pelo Quebras, patrocinado pelo Itaú Cultural –, assina as orelhas e atesta: foi aquele conto uma espécie de laboratório, “inspirador para o que viria: a “prosa-longa” do solitário e solidário primeiro romance, Nossos ossos [Record, 2013]”.

Amar é crime e a única pena possível para os que se apaixonarem pela prosa de Marcelino Freire é sair imediatamente à procura de outros livros do autor, “fundamental para a nossa literatura contemporânea”, como afirma Filholini na orelha.

O dial da memória sintonizando o FM Abissal

Em 2014, contratado como assessor de comunicação da Aldeia Sesc Guajajara de Artes, me vi diante de um dilema: o show principal da noite de abertura do evento teria a banda pernambucana mundo livre s/a (que eu nunca havia visto ao vivo) tocando de graça na Praça Nauro Machado, mesma data em que o baiano Elomar Figueira de Mello se apresentaria, ao lado do filho João Omar, no Teatro Arthur Azevedo, com ingresso pago.

Imaginei que a apresentação de Elomar começasse praticamente sem atraso, que o show durasse algo entre uma hora e hora e meia e que o show do mundo livre atrasasse, em virtude do que sempre acontece quando um show principal fecha uma noite de programação, precedido por outras apresentações. Isto é, eu conseguiria ver ambos os shows. Mas meus cálculos estavam errados, matemática nunca foi meu forte, e Fred Zeroquatro e companhia continuam praticamente inéditos ao vivo para mim.

Digo “praticamente inéditos” por que ao chegar à praça, voltando do teatro, ainda ou/vi as últimas palhetadas do jornalista e compositor ao cavaquinho, encerrando o bis.

Não me arrependi da escolha e sei que a hora de ver/ouvir o mundo livre s/a chegará. Profissionalmente não me penitencio: a pequena equipe de assessoria com que eu contava deu conta do recado, isto é, de contar o que foi a noite de abertura daquela edição da Aldeia.

Antes do show de Elomar começar, enquanto enxugava umas latinhas com o amigo Otávio Costa no bar do Arthur Azevedo, recebi um telefonema: Fernando Matos – cujo aniversário, hoje (20), me fez lembrar essa história –, o lendário DJ Abissal, estava em São Luís e me convidava para “molhar a palavra”. Informei-lhe que estava no teatro para assistir Elomar e avisei-o do show do mundo livre s/a, a que ele acabou assistindo. “Eu não esperava tanta opção”, revelou-me o amigo pernambucano, que baixou na Ilha numa quinta-feira útil, a trabalho.

Elomar e sua produção proibiram fotos – regra que dei um jeito de desrespeitar, mas o resultado foi tão tosco que joguei todas fora, depois. Uma amiga, com uma máquina melhor, teve melhor sorte.

O mundo livre s/a posou para fotos com fãs. Levei Fernando ao camarim e acabei por promover, em plena São Luís, seu reencontro com Zeroquatro, o Montenegro que foi seu contemporâneo de “científico” e UFPE. Daniel Sena clicou e ainda tivemos pique para ir até A vida é uma festa!, capitaneada pelo poetamúsico ZéMaria Medeiros, àquele ano integrada à programação da Aldeia Sesc Guajajara de Artes.

FM, 04 e o blogueiro no camarim, após o show do mundo livre s/a. Foto: Daniel Sena
FM, 04 e o homem de vícios antigos no camarim, após o show do mundo livre s/a. Foto: Daniel Sena

Chorografia do Maranhão: Paulinho Oliveira

[O Imparcial, 29 de março de 2015]

Flautista, professor da EMEM e membro da primeira formação do Instrumental Pixinguinha, o músico é o 50º. entrevistado da série Chorografia do Maranhão

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVANIO ALMEIDA SANTOS

Seu cartão de visitas é certeiro: “Eu sou filho da Madre Deus, vocês sabem que quem nasce na Madre Deus já é musical. Ouvi muita música, batucada, Fuzileiros [da Fuzarca, bloco carnavalesco sediado no bairro], Turma do Quinto [escola de samba idem], os terreiros, [Casa das] Minas, [Casa de] Nagô”. Ainda no bairro boêmio em que nasceu, Paulo Oliveira dos Santos Filho começou a soprar em flautas feitas por seu pai com taboca de mamoeiro.

Seus pais eram operários da fábrica de Cânhamo, nos arredores, onde hoje estão instalados o Ceprama e o Museu do Tambor de Crioula. Paulinho Oliveira nasceu em 26 de julho de 1965, filho do pernambucano Paulo Oliveira dos Santos e Maria José Ribamar Silva.

Sorridente e descontraído, Paulinho deu seu depoimento à Chorografia do Maranhão, o 50º. da série, na Sala Turíbio Santos, na Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo [EMEM], onde leciona. A entrevista foi ilustrada musicalmente por Corrupião, de Sérgio Habibe [compositor].

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

Em sua infância, você se lembra do movimento do operariado em torno da fábrica Cânhamo? Não tenho muita lembrança, mas vagamente alguma coisa. Eu ia levar marmita, quando criança, junto com minhas irmãs mais velhas, eu sou o caçula de quatro, dois homens e duas mulheres.

Você tem outra profissão, além de músico? Eu trabalho só lecionando. Estudei no Senai [o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial], fiz curso na área técnica, mas não quis exercer a profissão. Na Escola Técnica [hoje Instituto Federal do Maranhão – IFMA] eu estudei na banda, com Maestro Nonato, que foi meu primeiro professor de música, assim em um curso regular, sistemático, né? Eu sou filho da Madre Deus, vocês sabem que quem nasce na Madre Deus já é musical. Eu sou uma pessoa que ouvi muita música, batucada, Fuzileiros, Turma do Quinto, os terreiros, Minas, Nagô.

E na sua casa? Teus pais tocavam algum instrumento? Minha mãe participou de baralho, brincadeiras carnavalescas, populares. Meu pai não teve isso. Papai tinha muitos amigos, gostava de encontrar.

Ele conviveu com os boêmios da Madre Deus, de algum modo? Sim, [os compositores] Cristóvão [Colombo da Silva, popularmente conhecido por Cristóvão Alô Brasil], Sapo [Henrique Martiniano Reis], Tabaco [Hermanegildo Tibúrcio da Silva], Bibi [Silva], Patativa [Maria do Socorro Silva], trabalhou na Cânhamo com ele.

A Madre Deus sempre foi um ambiente propício. Eu sou filho da Madre Deus, aquele ambiente, tambores, tinham alguns comércios próximos de minha casa, músicos amadores iam até ali, meu irmão mais velho era músico amador, violonista, tocou muito em bailes. Uma influência muito grande ali que eu tive foi a de conviver com grandes ritmistas, como Welllington [Reis], Amauri, Prio, finado Tião, Eloy, Biné do Banjo [banjoísta, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 31 de março de 2013], outros que eu esqueci o nome.

Você lembra com que idade começou a tocar? Vem de criança. Eu lembro que na Madre Deus tinha um senhor, ele trabalhava e fazia algumas flautas, pífanos, aquilo foi me levando. Meu pai fabricava instrumentos para mim de cano de mamoeiro, brincadeira de criança. Eu comecei mesmo com flauta doce, houve um tempo aqui em que os jovens tocava muita flauta doce, eu fiz parte de movimento de Igreja, a gente tocava de ouvido, tinha uma musicalidade, eu fui me envolvendo. Na oportunidade em que eu conheci o Gilson [César, ator e mímico], ele me levou para o Laborarte [Laboratório de Expressões Artísticas do Maranhão], eu fiz parte do Departamento de Música do Laborarte, ali pela década de 1980.

Quando você fez parte do Laborarte já tinha passado pela Escola Técnica? Pela Escola! Nessa época eu estava estudando flauta transversa. Nesse período, que eu encontro o Gilson, que me apresenta o Raimundo Luiz [bandolinista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 15 de setembro de 2013]. Eles foram a ponte para eu chegar até a Escola [de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo], onde eu cheguei como aluno. Eu já tocava um pouco de flauta doce. Tive aulas com professor Vanilson [Lima], Wolf Clemmens [Hilbert], alemão, foi o cara que trouxe a flauta doce para cá para o Maranhão, para São Luís. Eu tive aulas particulares com ele, ele já não era mais da Escola.

Teus principais mestres seriam estes? Sim, na área de flauta doce. Eu tive aulas com Lisiane [Nina], Zezé Alves [flautista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 9 de junho de 2013], este é o pai dos flautistas daqui. Comecei a estudar teoria musical, eu já tinha começado na Escola Técnica, mas a Escola de Música é que foi mesmo o grande alicerce.

Quando você escolheu seguir a música, teus pais te apoiaram? Naquele período, aqui no Maranhão, não era uma coisa tão bem vista. Tinha aquela coisa, “você vem de uma família de negros, pobre, mora na periferia, olha teu irmão”. As pessoas queriam que eu exercesse uma profissão que me desse um lucro financeiro.

Que músicos você citaria entre suas principais influências, aqueles que te levaram a ser o músico que és hoje? Lisiane foi uma grande figura, Zezé, Raimundo Luiz, Tomaz [de Aquino Leite], muita gente, muita gente.

Como é que você enveredou pelo choro naquele período? A minha linha musical, eu comecei na Madre Deus, ritmista, percussão, a minha linguagem era dentro disso, o samba. Quando eu entrei na Escola de Música foi que eu fui descobrir a música clássica, erudita, comecei a percorrer esse caminho. Meus estudos de flauta doce eram mais relacionados à música erudita. Nesse período, quando eu entrei na Escola de Música, ela não era direcionada à questão da música popular. Essa minha relação com o choro começou através de Zezé, eu comecei a ter aulas com ele. E no Laborarte, no Departamento de Som, a coisa da cultura popular, mesmo.

Você então vivenciou aquele ambiente laborarteano de pesquisa. Sim, tive contato com tambor de crioula, divino, cacuriá, Mestre Felipe, era um laboratório, a gente fazia um trabalho inovador para a época. Foi um período divino! Se eu pudesse voltar eu voltaria.

Apesar das preocupações iniciais de tua família, hoje é possível viver de música? Sim, dá para viver com dignidade. Há poucos dias eu estava conversando com uma aluna, prestes a fazer vestibular, meio em dúvida, ela querendo saber como estava a situação. Hoje nós temos várias escolas, faculdades, o mercado vai se abrir.

Além do [Instrumental] Pixinguinha, de que grupos musicais você fez parte? Do Laborarte, o Departamento de Som, fizemos vários shows, peças de teatro, Jorge do Rosário era o cabeça, Marco Cruz [compositor], Saci Teleleu [bailarino]. Depois eu comecei a trabalhar com o pessoal do choro, antes disso fiz alguns trabalhos com Rosa [Reis].

E o ambiente daqueles shows [Homenagem a Velha Guarda] do [Instrumental] Pixinguinha no [Teatro] Arthur Azevedo? O Solano [Francisco Solano, violonista sete cordas, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 26 de maio de 2013], essa história de vir estudar com o Marcelo [Moreira, violonista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 28 de dezembro de 2014], ali surgiu essa ideia de se fazer um grupo, tanto que o grupo começou com eles e a vontade de fazer a Suíte Retratos [de Radamés Gnattali]. Eles perguntaram se eu não queria fazer parte, alguns números com eles. Foi aí que eu me integrei, fiz parte da primeira formação.

Como era a rotina daquela formação? A gente ensaiava diariamente, à noite. O pessoal trabalhava, Correios, o Jansen [César Jansen, bandolinista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 21 de setembro de 2014], Solano tem a empresa dele, o Biné [do Cavaco, Os Irmãos Gomes, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 22 de junho de 2014], aliás, começou conosco o Quirino, Carbrasa [percussionista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 19 de outubro de 2014] e Marcelo. Passamos praticamente um ano ensaiando para esse trabalho, muita partitura. O objetivo maior do grupo era a Suíte Retratos, e foi quando o Biné entrou. O show foi no [Centro de Criatividade] Odylo Costa, filho [no Teatro Alcione Nazaré, então Teatro Praia Grande, que integra o Centro]. Algumas pessoas [em entrevistas à Chorografia do Maranhão] falaram em Arthur Azevedo, mas foi no Odylo. Foi início de 1990.

Depois você saiu do Pixinguinha? Algum motivo em especial? Não, eu continuei tocando. Depois foi que Zezé entrou, eu tive um problema, tive que fazer um tratamento de saúde, me afastei, Zezé foi e assumiu.

Atualmente você integra algum grupo? Não. Atualmente estou só lecionando. Já integrei grupos de câmara aqui na Escola.

Além de instrumentista você desenvolve outras habilidades na música? É compositor? Não. Só instrumentista. Nessa praia eu ainda não enveredei.

Você toca algum outro instrumento? Não. Flauta doce e flauta transversa. Violão eu estou estudando na Licenciatura da UEMA [Universidade Estadual do Maranhão], percussão um pouco, mas meus instrumentos mesmo são a flauta doce e a flauta transversal.

Além de Rosa Reis [cantora], com que outros artistas você já tocou? Toquei com Cesar Teixeira [compositor], Josias [Sobrinho, compositor] e outros.

Você participou do Rabo de Vaca? Não. O Rabo de Vaca era Zezé, Omar [Cutrim, compositor], aquela turma.

E participação em discos? Já fiz. Fiz com Cláudio Pinheiro, não lembro agora o nome do CD, fiz a primeira gravação do Cacuriá de Dona Teté, foi um vinilzão, eu fiz aquela flauta. Eu ia gravar com Rosa, mas teve algum problema lá no estúdio. Fiz com Ubiratan [Sousa, multi-instrumentista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 12 de maio de 2013], aquele disco produzido pelo marido da Zelinda [o falecido folclorista Carlos de Lima], de carnaval das antigas.

Na sua opinião, o que significa o choro? O choro é a grande música brasileira, a música genuinamente brasileira, podemos dizer assim. Uma música já mais elaborada, que vem do século XIX, com Callado [Joaquim Callado, flautista, considerado um dos pais do choro], que foi o cara que formou o primeiro regional de choro, tem uma contribuição imensa.

Entre as linhas você tem uma preferência, erudito ou popular? Ou está tudo misturado? Não, eu não faço distinção. Eu tenho uma formação, o começo, aqui na Escola de Música, foi clássica, tocando música barroca, gosto muito, gosto de fazer, de tocar, [sou] um negro que tem uma veia por essa música, mas não é só esse caminho, eu gosto muito da música popular também.

Você escuta muito choro, hoje? Ouço, ouço bastante.

Você tem acompanhado as mudanças que o choro tem experimentado? Sim. Há poucos dias eu estava ouvindo o Maurício Carrilho [violonista], aquele trabalho que ele fez há uns anos, com choros com compassos alternados, de cinco, de sete, é um trabalho interessante. Eu tenho visto as correntes, vão se modificando, existe uma linha de Brasília, com uns choros mais acelerados, São Paulo, mais cadenciado, Curitiba, Pernambuco, a gente [no Maranhão] já faz um choro mais tradicional.

No disco do [Instrumental] Pixinguinha a gente percebe, por exemplo, entre outras, uma influenciazinha do lelê. É, o nosso choro traz essas informações. O Luiz Jr. [violonista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 4 de agosto de 2013], por exemplo, o violão dele já traz informações jazzísticas.

Quem são os grandes flautistas brasileiros, aqueles que você gosta de ouvir, que te tocam? Eu sou um cara que sou apaixonado pela pessoa do Toninho Carrasqueira, é um guru, um cara de uma simplicidade, um coração, um puta músico.

Em que lugar você coloca o Altamiro CarrilhoO Altamiro Carrilho podemos dizer que é um papa, né?, da flauta. É um papa da flauta! A flauta do século XX. A escola brasileira de flauta é uma escola rica, grandes flautistas. David Ganc, o Antonio Rocha, da Escola Portátil, Dirceu Leite, a Odete [Ernst Dias], a mãe dos flautistas brasileiros.

A forma de consumir música mudou muito de uns tempos para cá. Como é que você consome música, hoje? Compra discos, ouve rádio, baixa, vê no youtube, ou tudo isso? Eu compro, continuo comprando. Tem coisas que, baixar, essa parte tecnológica eu ainda sou meio que um dinossauro [risos], eu ainda não sei muito vasculhar. Sei que tem muitos sites, tem muita coisa, eu gosto de ouvir música erudita, eu compro cds, mando buscar em São Paulo, Rio, a gente vai garimpando.

E aqui no Maranhão, quem são os flautistas que te chamam a atenção? Hoje nós estamos com uma safra de bons flautistas. Mestre Serra [de Almeida, flautista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 3 de março de 2013] é uma memória, muito bom, fiz um trabalho com ele ano passado, foi um trabalho que nós fizemos os dois grupos, o Pixinguinha e o Tira-Teima [um show na programação da 8ª. Aldeia Sesc Guajajara de Artes, em 2013, promoveu o encontro dos grupos no mesmo palco, na praça Nauro Machado, na Praia Grande], um trabalho bacana, eu nunca tinha tocado com o mestre, eu me senti muito lisonjeado. Ele é um autodidata, toca de memória. Tem o Lee Fan [flautista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 7 de setembro de 2014], está com um grupo, fazendo um trabalho, teve outros, a Suellen Almeida promete.

O professor fica feliz quando vê essas figuras despontando? Ô! É o que nos alimenta. Tem o Elton, Erivan, Gabriel foi para o Rio, morar com uns parentes. Tem o Neto [João Neto, flautista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 2 de fevereiro de 2014], Neto agora é quem tá na parada!

Você se considera um chorão? [Pensativo] Eu gosto de choro! Se eu disser pra ti que sou um chorão, um chorão, eu não sei. Eu gosto muito do choro. Taí! Pra ser um chorão, precisaria o quê? Ficou uma pulga [atrás da orelha], o que é ser chorão? [risos]

Hoje nós temos uma escola de música, a escola municipal, que está parada, duas faculdades. Como você vê esse cenário da música, do estudo da música, hoje, no Maranhão? As coisas estão evoluindo, crescendo. Há tempos só tínhamos a Escola de Música, e agora já temos a escola do município, temos a banda do Convento das Mercês, grande formadora de jovens, em sopro, cheguei a fazer parte, dei aula, lá eu tive a oportunidade de deixar um pouco, passar minha semente para algumas pessoas, o Elton é fruto dessa escola, os Carafunim [Hugo e Nelma, primos, trompetista e saxofonista, respectivamente], estes dois cursos que nós temos aí, Pixixita [o músico José Carlos Martins] quando era vivo sonhava com este curso superior, infelizmente não chegou a ver.

Você acha que esse ambiente novo favorece a uma cena melhor, da música instrumental, especialmente do choro, em São Luís? Você gosta do nível do choro praticado em São Luís? A gente trabalha com o que tem, a gente faz o que pode. Eu te digo com certeza: está caminhando. Antigamente não havia escola de choro. O professor Zé Hemetério [multi-instrumentista] foi orientador de muita gente, Elinaldo [Gordo Elinaldo, multi-instrumentista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 27 de outubro de 2013], Ubiratan Sousa. Mas foi com a história do [Instrumental] Pixinguinha que essa história do choro começou a se disseminar. O Pixinguinha foi talvez o primeiro grupo de música popular dentro da Escola.

O choro tem essa capacidade de construir unidade. A Escola tinha um perfil mais erudito, ele acabou agregando grande parte dos alunos nesse movimento do choro. Exatamente! Hoje eu tenho muitos alunos aqui, a Suellen, é apaixonada por choro. Minha classe de flauta, eu trabalho com música erudita. Mas não tem como focar só nessa parte erudita, os alunos querem estudar outra coisa, a linguagem, mudar um pouco. A gente procura ir ajudando-os a ir por estes caminhos. As pessoas gostam muito de música popular, a gente tem que se desdobrar. Não há como desfiliar a flauta do choro.

Infância roubada

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Vestida feito adulto, criança fuma em anúncio publicado na imprensa brasileira em 1918. Reprodução

 

Por princípio, sou contra programas como The Voice Kids, Masterchef Kids e que tais. Não me venham dizer que os que por lá desfilam são fofinhos, inocentes, que cantam e/ou cozinham com a alma e blá blá blá. Nem se apressem simplesmente em me tachar mero chato, estraga-prazeres, #diferentão.

Os cantos das crianças, afinados até demais, as feições emocionadas dos jurados – certamente bastante ensaiadas – e as lágrimas de ambos, concorrentes e jurados, nada é capaz de tocar e amolecer meu coração de pedra, perdoem-me a fra(n)queza.

O que percebi, vendo alguns poucos minutos do certame musical mirim televisionado é que as crianças ali perdem sua inocência e pureza: são tão ensaiadas que chegam a opinar com desenvoltura até sobre a questão indígena brasileira. E certamente saberiam, caso instigadas, comentar política, economia, o impeachment da presidenta, o crime de lesa-humanidade cometido pela Vale/BHP Billiton/Samarco em Mariana/MG e por aí afora.

Crianças devem brincar e estudar – e nisso, consequentemente, desenvolver habilidades. Expô-las a competições e aos constrangimentos inerentes, ainda mais transmitidos simultaneamente pela tevê para outros milhões de terráqueos, é algo que não consigo conceber.

Alguns hão de argumentar que o mundo é assim mesmo e que, na seleção “natural”, quem não pisa na cabeça dos outros será engolido, tentando justificar, talvez, que, por isso, é necessário que mais e mais cedo crianças entrem no jogo – literalmente. Sinceramente, não creio. Crianças não são miniaturas de adultos, como no anúncio que abre/ilustra este post, da Revista da Semana de 19 de março de 1918, que roubei daqui.

Imaginem os danos psicológicos que uma derrota, ou mesmo um comentário mais ácido (e/ou cretino) de um jurado, pode causar em uma criança. O mundo já é por demais cruel e não precisamos antecipar o ingresso dos petizes nesta trágica realidade.

A meu ver reality shows mirins são uma forma bizarra de os pais realizarem alguma frustração: um sonho abandonado em prol de alguma questão prática é realizado num filho, seja lá por vaidade, os 15 minutos de fama, ou mesmo a sobrevivência – quanto rende, ainda que temporariamente, um talento revelado por um grande canal de tevê? Outro problema disso é que pode pintar aí uma nova frustração, desta vez redobrada.

Pai recente e de primeira viagem, preocupo-me naturalmente com os rumos que ofereceremos ao guri. Como livrá-lo da miríade de horrores propagada pela mídia convencional e/ou sob demanda, sem prendê-lo numa bolha, sem sermos extremamente superprotetores?

É claro que quero que ele experimente se arriscar a tocar um instrumento musical, praticar esportes, aprender línguas estrangeiras: ter as possibilidades. Mas não quero simplesmente impor-lhe estes anseios, como um “diferencial de mercado”. Antes, é preciso deixá-lo à vontade para escolher o quê e quando fazer, aproveitando as coleções de “vícios antigos” do pai – respeitando-lhe os tempos, escolhas e abdicações.

O que me incomoda em reality shows mirins é também o que me incomoda em reality shows adultos: muito show e pouca reality. Todo mundo ensaiadinho buscando as cifras milionárias da premiação. A vantagem dos segundos em relação aos primeiros: os participantes já estão bem grandinhos e podem decidir seus destinos por si mesmos. O que vão fazer com a grana do prêmio, eventuais contratos descolados a partir dele, se vão posar nu/a/s ou não só lhes diz respeito.

Dos males o menor em relação aos problemas que afligem nossa infância? Certamente. Num país em que crianças são assassinadas no colo da mãe, escravizadas ou exploradas sexualmente, ou sucumbem às drogas e ao crime, sua exibição musical-televisiva nem chega mesmo a ser problema.

Estes outros casos, citados aqui de raspão, constituem o verdadeiro show de realidade que infelizmente ainda persiste no Brasil. A este reality show nos negamos a assistir.

Hoje: noite preta no Chico

Divulgação

 

Sobrinho do veterano violonista sete cordas Francisco Solano, o bandolinista e guitarrista Ronaldo Rodrigues apresenta-se hoje (8), às 20h, no Chico Discos. Black & Tal, o show, tem três momentos distintos.

No primeiro, ao bandolim, com o tio ao sete cordas, reverencia o universo do choro, lembrando seus clássicos – o músico foi entrevistado pela série Chorografia do Maranhão e integra o grupo Novos Chorões, no Rio de Janeiro, onde está radicado desde 2008.

No segundo momento, também ao bandolim, Rodrigues será acompanhado por Orlando Moraes – autor das composições que serão executadas nesta parte do show –, violonista com quem estudou por vários anos, Jeff Soares (contrabaixo) e Stenio Luz (percussão).

No terço final do espetáculo, Rodrigues ataca de guitarra – o músico integrou a Som do Mangue de Beto Ehongue e cia., antes desta virar Nego Ka’apor. Franklin Nazareno (bateria) e Jeff Soares (contrabaixo) acompanham-no por roteiro instrumental de black music.

Atualmente Rodrigues está concluindo a graduação em bandolim pela Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Os ingressos para esta terceira edição de Black & Tal custam R$ 20,00. Chico Discos tem capacidade para 60 pessoas. A noite terá ainda discotecagem da Maré de Som.