Um letrista bissexto entre ídolos e amigos

Zema Ribeiro, Regiane Araújo e Chico Saldanha (com o Led Zeppelin ao fundo), no Zabumba Records. Foto: divulgação

A morte de Dolores O’Riordan (1971-2018), em 15 de janeiro de 2018, foi, para mim, golpe de difícil assimilação. A cantora e compositora irlandesa, vocalista da banda The Cranberries, tinha apenas 46 anos. Lembro particularmente de minha dificuldade em noticiar o acontecimento no então diário Balaio Cultural, programa que produzo e apresento com Gisa Franco há mais de sete anos, na Rádio Timbira.

Dizem que quando estamos perto da morte um filme inteiro se passa na cabeça da gente. Com Dolores O’Riordan morria um pedaço de minha adolescência – à época eu já era um quase quarentão, ave, Leminski! Estudante do ensino médio na segunda metade da década de 1990, comprei os três primeiros discos da banda em sociedade com um colega de turma e revezávamos os álbuns entre minha casa e a dele; muito além dos discos, a amizade durou até ele sucumbir ao neofascismo bolsonarista – “war child/ victim of political pride”.

Em algum dia do ano passado eu estava dirigindo quando ouvi, no rádio do carro, uma música dos Cranberries. Não lembro se era “Linger” ou “Ode To My Family” – mas com certeza era uma das duas. Quando cheguei ao destino, liguei o computador e um poema me veio como um jorro, quase como se eu o psicografasse.

Escrita a letra de “Dolores”, enviei ao cantor e compositor Chico Saldanha – que já havia musicado “Dorflex”, ainda inédita. Que também deve ter lá suas manhas no psicografismo, já que no mesmo dia me enviou, por um aplicativo, um esboço de melodia, que ele cantava se acompanhando ao violão, com a seguinte mensagem: “veja se está no rumo”.

Quem sou eu para julgar. A mim, a pegada blues da melodia do ídolo tornado amigo e parceiro, caía como uma luva – perdoem o clichê, mas essas cervejas e essa lua, em véspera de lançamento de parceria com Chico Saldanha, botam a gente comovido como o diabo.

Dolores. Capa. Reprodução

Mais um ano se passou – ano e meio, para ser exato, Cassiano! – e o rosariense resolveu começar a gravar umas músicas inéditas (sim, outras vêm aí!). “Dolores” furou a fila e ele não queria cantar sozinho. Ousei convidar Regiane Araújo, cantora e compositora que desde a primeira audição me impactou tanto quanto Dolores O’Riordan, voz necessária e destacado talento de sua geração.

O sim de Regiane Araújo me deixou contente: era um encontro de talentos e gerações em torno da homenagem a um ícone pop da envergadura de Dolores O’Riordan. Chico Saldanha (voz) e Regiane Araújo (voz) são acompanhados por Fernando Hell (bateria), Daniel Nobre (guitarra e violão aço), Mauro Travincas (baixo), Ricardo Foca (gaitas) e Luiz Cláudio (percussão, arranjo, produção e direção musical). A música foi gravada no Zabumba Records.

Para a capa do single, lembrei de um velho sofá que fotografei durante a pandemia de covid-19, tentando estabelecer um diálogo com a capa de “No Need To Argue” (1994), o segundo álbum dos Cranberries, em que a banda está sentada em um ambiente interno; na capa de “Dolores” o sofá está rasgado e vazio, abandonado em uma calçada que começa a ser tomada pelo mato, à frente de um muro carcomido pelo tempo.

Dolores O’Riordan segue viva em sua música atemporal e na saudade e memória do fã-clube mundo afora, inclusive este letrista bissexto. Se voltasse no tempo e estivesse no elenco de “A Viagem”, novela de Ivani Ribeiro que a Rede Globo exibiu em 1994, cuja trama, de inspiração kardecista, abordava a vida após a morte – e a que The Cranberries compareceu com “Linger” à trilha sonora internacional –, eu mesmo perguntaria se ela gostou da homenagem.

*

Leia a letra:

DOLORES (Chico Saldanha/ Zema Ribeiro)

para Dolores O’Riordan

Nunca mais encontrei Dolores na balada
Ela nunca mais me disse nada
Enquanto eu bebia ao pé do balcão

Dolores nunca mais subiu ao palco pr’uma canja
Mesmo que apareça outra banda
Ouço apenas o vazio de meus pensamentos

A balada já não tem a mesma graça
Nunca mais pedi um drinque estranho
Desligaram o som
Não se ouve mais When you’re gone
When you’re gone

Eu que sou uma gata sem eira nem beira,
Já virei zumbi
Zombie

Aos poucos fui perdendo os discos
Que passei a vida a colecionar
Que passei a vida a colecionar

Dolores foi embora sem dizer goodbye
Tropeço na saudade quando a noite cai
Procuro uma palavra, não vou encontrar
Ninguém vem me dizer onde ela foi morar

Sua voz se diluiu no sinal vermelho
No cruzamento entre a morte e a canção
Eu bato ponto todo dia no balcão
Na doce ilusão de um dia ela voltar

*

“Dolores” chega às plataformas de streaming nesta segunda (30). Faça o pré-save:

VII Plenária Estadual da Rede Mandioca celebrou 15 anos da articulação

Encontro aconteceu no Centro São Raimundo, em Vargem Grande/MA, dias 19, 20 e 21 de outubro

TEXTO E FOTOS: ZEMA RIBEIRO

[Originalmente publicado na edição de hoje (28) do jornal O Imparcial]

Os presentes à VII Plenária Estadual da Rede Mandioca, entre membros, palestrantes e coordenadores
Noite de festa no Centro de Comercialização Quilombola de Piqui da Rampa
Uma missa marcou o encerramento das atividades da VII Plenária Estadual da Rede Mandioca
Visita à hortas comunitárias no povoado Sororoca

Oriundos de mais de 30 municípios de todas as regiões do Maranhão, 110 representantes de comunidades e grupos produtivos filiados à Rede Mandioca estiveram reunidos em Vargem Grande entre os últimos dias 19 e 21 de outubro. Em sua sétima plenária estadual, a Rede Mandioca, que está completando 15 anos em 2023, elegeu também sua coordenação estadual para um mandato de três anos, quando deve acontecer sua próxima plenária, e revisou sua Carta de Princípios, documento que norteia as ações de seus filiados, na adoção de princípios agroecológicos e da economia popular solidária.

Era um momento de refletir sobre passado, presente e futuro da iniciativa, surgida em um contexto de combate ao trabalho escravo – em 2008 o Maranhão era um dos recordistas em fornecimento de mão de obra – e avanços na melhoria da produção e comercialização de derivados da raiz que empresta o nome à rede, mas que acabou se expandindo para campos os mais diversos, como a criação de pequenos animais, o extrativismo e o artesanato.

A VII Plenária Estadual da Rede Mandioca teve por tema “15 anos fortalecendo a agricultura familiar agroecológica e lutando por direitos” e uma mesa no primeiro dia de programação buscava olhar os desafios de fortalecer a agricultura familiar em rede, formada por filiados à Rede Mandioca e por Lucineth Machado, secretária executiva da Cáritas Brasileira Regional Maranhão, organismo da Igreja Católica que anima a articulação.

“A diversidade da Rede é um retrato da sociedade que a gente sonha e deseja”, afirmou ela, referindo-se aos integrantes ali reunidos, entre muitos jovens e adultos, lavradores, catadores, mulheres e negros. “A Rede vem se fortalecendo como organização e dando visibilidade e importância a pessoas historicamente invisibilizadas”, continuou.

Ao longo de sua história a Rede Mandioca já implementou 27 casas de farinha, facilitando e melhorando o trabalho de produção de farinha de mandioca. Com apoio da Fundação Interamericana (IAF na sigla em inglês), implantou os fundos de crédito rotativo solidário, que é retroalimentado com o pagamento dos que acessam o crédito. Já foram apoiados 41 grupos em 20 iniciativas, totalizando 53 projetos, desde 2019. Desde sua implementação o fundo já concedeu crédito solidário na ordem de 460 mil reais.

O lavrador Zé Vando, do Assentamento Alegre (em Alto Bonito, Riachão/MA), formado por agricultores familiares que vivem da terra, afirmou que “foi através da Rede Mandioca que me tornei o homem que sou”. A articulação ajudou a melhorar também a autoestima dos agricultores filiados e, neste sentido, comprova o sucesso da iniciativa no combate ao trabalho escravo.

O jovem – como Zé Vando havia vários outros presentes – já percebe que é possível viver dignamente da agricultura familiar e, não enxergando isso como motivo de vergonha, permanece em seu lugar. Sua comunidade foi uma das beneficiadas com casas de farinha, fazendo a produção do lugar saltar de sete para 25 sacas diárias.

“A agricultura não pode ser vista como um castigo”, complementou o agricultor familiar Zé Filho, de Loreto/MA. “É necessário que estejam em pauta políticas públicas voltadas para agricultura familiar e juventude, para a geração de trabalho, emprego, renda e dignidade. A Cáritas tem mostrado possibilidades concretas, com os fundos de crédito rotativo solidário, que têm mudado a vida de comunidades e grupos produtivos”, continuou. A Rede Mandioca tem ajudado a mudar uma realidade literalmente de fome, algo de que atualmente nenhum membro seu padece.

Na manhã do segundo dia de atividades, o advogado e ambientalista Guilherme Zagallo realizou uma análise de conjuntura, citando questões como o calor que assolava o Brasil – e particularmente o município de Vargem Grande, que chegou a registrar temperaturas de 40ºC durante o encontro –, relacionando-o a contexto de opção de sucessivos governos por modelos equivocados de desenvolvimento. “2023 provavelmente será o ano mais quente da história”, advertiu. O palestrante também não esqueceu do desmantelo político vivido pelo Brasil após o golpe que destituiu a presidenta Dilma Rousseff do Palácio do Planalto, em 2016, e tudo que o sucedeu.

Zagallo trouxe diversos dados em sua intervenção, entre eles a taxa de pobreza no Maranhão (58,9%, a maior do Brasil), estado que ainda tem maioria da população em zonas rurais, apesar de o quadro estar se revertendo progressivamente, com cada vez mais a ocupação de áreas urbanas. O Maranhão tem a segunda maior taxa de trabalhadores informais do país: 59,4%. “A presença maciça de jovens à plenária é algo que me chama a atenção”, disse. Ele destacou ainda o impacto do uso de agrotóxicos na vida e na saúde da população, lembrando o recorde de liberações de vários tipos do produto durante o governo Jair Bolsonaro (2019-2022).

Há cerca de ano e meio – devido a um adiamento causado pela pandemia de covid-19 – a Rede Mandioca vem sendo pesquisada. Um grupo de professores e estudantes das Universidades Federal (UFMA) e Estadual do Maranhão (UEMA), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (Fapema), vem traçando o perfil dos filiados à rede.

O professor Marcelo Carneiro (do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFMA), observado por estudantes e demais presentes à plenária, apresentou os resultados da citada pesquisa, que será publicada em livro em breve. As incursões em campo do Grupo de Estudos e Pesquisas Trabalho e Sociedade (GEPTS), apontam dados interessantes: se a maior parte dos respondentes estudou apenas até a quarta série, 3,5% dos entrevistados cursa ou concluiu o nível superior.

75% participa de sindicatos, 24% de cooperativas e 68% de associações – a soma dos percentuais é superior a 100 por muitos deles fazerem-no simultaneamente. O resultado da pesquisa traz inúmeros outros dados, com informações sobre o perfil produtivo dos grupos filiados à Rede Mandioca e o volume de sua produção.

A tarde do segundo dia foi dedicada a intercâmbios: os participantes do encontro visitaram experiências filiadas à Rede Mandioca, nas zonas urbana e rural de Vargem Grande, incluindo a Cooperativa Agroextrativista dos Pequenos Produtores Rurais de Vargem Grande (Coopevarg) e grupos produtivos no bairro Rosalina, além de povoados como Sororoca, Caetana, Remédios e Riacho do Mel.

E a noite foi de festa: uma feira da agricultura familiar aconteceu no Centro de Comercialização Quilombola de Piqui da Rampa, como parte da programação da plenária, com a presença da sociedade local, além de apresentações culturais como tambor de crioula e forró pé de serra e a comercialização da produção de grupos filiados à Rede Mandioca.

Pe. Isaque (pároco de São Benedito do Rio Preto/MA) celebrou a missa de encerramento do evento, com alguns avisos ao final – traduzindo a metáfora da articulação estar em movimento, ou seja: o encontro acabava, o trabalho não. A Rede Mandioca – junto com as Pastorais Sociais da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB Regional NE 5) e outras organizações da sociedade civil – irá participar do processo de criação da lei de iniciativa popular para proibir a pulverização de agrotóxicos por aviões mobilizando a coleta de assinaturas em todo o Estado. E na Romaria da Terra e das Águas, que irá acontecer ano que vem, fazendo o percurso entre Santa Inês e Pindaré-Mirim, serão distribuídas e plantadas mudas de árvores de diversas espécies – a recomendação é que cada romeiro e romeira leve mudas e sementes, distribuindo e assim ajudando a reverter as altas temperaturas no planeta. Pela disposição dos envolvidos, nem mesmo o calor forte os fará esmorecer.