Edvaldo Santana conversou com Homem de vícios antigos sobre Só vou chegar mais tarde, disco que acaba de lançar, política e arte
São Luís e o tambor de crioula eram citados na letra de Jataí (2014), faixa-título do penúltimo álbum de Edvaldo Santana. Naquele ano ele chegou à capital maranhense, quando se apresentou em novembro, na semana da Feira do Livro de São Luís, no Teatro da Cidade (antigo Cine Roxy). O mote do show eram as comemorações de seus 40 anos de carreira.
Como arte e vida não são ciências exatas, esta matemática também não: as comemorações do artista se prorrogaram. Como ele diz em 40, faixa que abre Só vou chegar mais tarde (2016), “quando resolvi sair de casa pra cantar de vez/ já faz mais de muitos anos”.
O cantor e compositor conversou por e-mail com Homem de vícios antigos. Só vou chegar mais tarde aprofunda algumas características do trabalho de Edvaldo Santana, por exemplo o trânsito entre ritmos nordestinos e o blues americano.
A faixa de abertura é coalhada de referências. Entre outros, estão lá a Matéria Prima, sua banda inaugural ainda na década de 1970, passando por Tom Zé, com quem chegou a tocar, o poeta Ademir Assunção (o Pinduca), Arnaldo Antunes, Paulo Lepetit e Haroldo de Campos, cujo Galáxias, musicado por Caetano Veloso em Circuladô de fulô, é evocado na letra: “e não me peça nunca que eu te guie/ eu não nasci pra fazer teste”.
Edvaldo Santana (voz e violão) é acompanhado por banda base formada por Luiz Waack (banjo, violão, guitarra e cavaquinho), Reinaldo Chulapa (contrabaixo) e Leandro Paccagnella (bateria). A estes somam-se instrumentos ocasionais, como a sanfona e teclado de Adriano Magoo (em Retorno do cangaço; ele toca ainda piano elétrico em Dom), a gaita de Bené Chireia (em Sou da quebrada, Dom e Arte depura), a tuba de Eliezer Tristão (na faixa-título e em Retorno do cangaço), a sanfona de Antonio Bombarda (em Ando livre e Gelo no joelho), o piano de Daniel Szafran (em Predicado e Fazendo pra aprender; ele toca órgão em Domínio), além de naipe de sopros em 40 e Gelo no joelho.
Edvaldo Santana é autor solitário das 13 faixas. As exceções são Gelo no joelho (parceria com Luiz Waack) e Canção (poema provençal de Guillaume de Poitiers versionado por Augusto de Campos e musicado por Edvaldo Santana).
O disco passeia por temas como futebol (Gelo no joelho e Dom, homenagem ao ídolo Sócrates), viagem e liberdade (Ando livre, com participação especial de Rita Benneditto, em que São Luís volta a aparecer, na citação ao Bar do Léo), tecnologia e o vazio de relações virtuais (Predicado), a competição capitalista e um dar de ombros do autor na faixa-título, tema que volta a aparecer em Retorno do cangaço, em que tece críticas também ao mercado da fé televisionado e o jogo sujo da política em geral, com suas propinas e traições como regra.
Em Sou da quebrada outro tema caro a Edvaldo: a homenagem a pessoas simples, como seu Valdemar, protagonista de A poda da rosa, do disco anterior. Fazendo pra aprender é uma canção romântica, com ecos de filme de faroeste e do desaparecido Belchior. Em Arte depura cita Judite, sua mãe, e Divino maravilhoso (Gilberto Gil/ Caetano Veloso), anteriormente citada pelo cearense na antológica Apenas um rapaz latino-americano (Belchior). Domínio é uma homenagem a São Miguel Paulista e Cabeça na mesa tem a participação especial de Alzira E.
Homem de vícios antigos – Você esteve em São Luís em 2014, quando realizou um show de voz e violão em que comemorava os 40 anos de carreira. 40, faixa que abre Só vou chegar mais tarde, traz inúmeras referências a teu próprio trabalho e artistas de tua influência e convívio. Em que medida este disco é a continuação destas comemorações?
Edvaldo Santana – Sim, 40 é uma música que procura falar dessa trajetória das influências e referências nessa estrada de 40 anos, mas Só vou chegar mais tarde e as outras canções desse álbum estão em sintonia com o presente, refletem o que vivo e penso no momento, sem esconder o aprendizado que o caminho da arte possibilita. Celebrar a arte tem que ser uma constante na nossa vida. Minha estada em São Luís foi muito proveitosa.
Por falar em São Luís, Ando livre, que conta com a participação especial de Rita Benneditto, fala no Bar do Léo, que você visitou quando esteve aqui. Fale um pouco de suas impressões do lugar e de como se deu este encontro com a cantora maranhense.
Pois é, fiquei muito impressionado quando conheci o Bar do Léo, através de você, uma mistura de diversas formas de artes: plástica, música, literatura, dança, diversão e um cara, o dono do bar, muito interessante, de papo bom e cordial. Ando livre é uma música que escrevi refletindo as observações da viagem que fiz pelo nordeste em 2014, passando pelo sertão do Piauí, pelo Rio São Francisco, na divisa da Bahia com Pernambuco, pelo Ceará e pelo Maranhão. Já conhecia a Rita, de quando ela morou em São Paulo, sempre gostei muito de sua voz e de seu jeito de cantar. Como queria convidar uma cantora pra dividir os vocais, que tivesse uma ligação com a letra, não titubeei em convidá-la pra cantar comigo esse bolero. Conversei com sua irmã Elza Ribeiro, enviei uma gravação e Rita depois de ouvir, aceitou meu convite. Como ela mora no Rio tivemos o auxílio luxuoso do amigo e grande artista Lenine, que acionou seu filho Bruno Giorgi, que colocou seu estúdio à disposição, para que pudéssemos registrar a voz dessa cantora genial. Momento muito feliz, onde a amizade e a tecnologia contribuíram generosamente para que esse encontro artístico fosse concretizado.
Você é paulistano, descendente de piauiense: a geografia e a genealogia fazem de você o artista brasileiro que melhor reprocessa certa sonoridade americana, isto é, você faz o que podemos chamar de brazilian blues, contrariando a tristeza típica do gênero. Ao longo de Só vou chegar mais tarde, há autorreferências que citam, entre outros, teu álbum Reserva de alegria. Apesar de tudo, o Brasil ainda é a terra da alegria?
Sou paulistano da periferia, do bairro chamado São Miguel Paulista, filho do piauiense Félix e da pernambucana Judite, que já partiram para outra esfera. Desde pivete que as sonoridades da gaita e da sanfona vivem dialogando no coração e na mente, trazendo melancolia. Talvez um dos motivos sejam as dores e as alegrias do povo nordestino e do povo negro americano, que apesar de todas as dificuldades conseguem doar para o planeta uma música primorosa. Sim, gosto demais do jazz, do blues, da salsa, do reggae, como adoro samba, xote, moda de viola, e essas virtudes sonoras transitam pelas minhas ideias, aguçando a sensibilidade. Nesse disco tem um ingrediente do dixieland, uma das últimas misturas entre a música africana e a europeia no começo do século passado. Pra você viver num mundo contrariado, só com muita reserva de alegria e com o auxilio luxuoso do suingue sofisticado que a música negra brasileira, americana, cubana, caribenha, nascida do povo nos dá de graça.
Por falar em teus pais, uma característica marcante de tua poética é a revelação das pessoas comuns como heróis, de uma professora ou um jardineiro serem teus ídolos, e aí podemos citar Judite e seu Waldemar, entre outras personagens. Ao risco de fazer música a partir de uma poesia hermética, posto que, em tese, só a entenderia quem conhecesse as personagens, você fala de sentimentos que todo mundo entende. A seu ver, por que mais gente não faz isso?
Apesar dos seres serem diferentes, acredito que quando você fala de sua aldeia, das pessoas comuns, você acaba falando pra todo universo, os sentimentos de respeito, bondade, amor, dignidade, são virtudes essenciais na vida do planeta. Outros artistas já fizeram isso muito bem: Jackson do Pandeiro, Bezerra da Silva, cantando os heróis e os vilões de suas comunidades.
Você é autor de músicas definitivas sobre o universo do futebol, embora, infelizmente, menos falado que nomes como Chico Buarque e Jorge Benjor. Em Só vou chegar mais tarde, Gelo no joelho e Dom se somam a O jogador e O goleiro, para citarmos algumas. Nas duas deste disco você fala de sua própria experiência como praticante do esporte e homenageia o ídolo Sócrates. O futebol é uma boa lente para observarmos o Brasil?
Futebol tá no sangue, faz parte da minha vida e acredito que de boa parte da população brasileira. Além de jogar, eu e meus irmãos fundamos um time de futebol na adolescência. Jogo minha bolinha até hoje. Vira e mexe gosto de cantar músicas que falam do jogador de futebol. O Sócrates é uma figura especial que, além de jogar muito bem, sempre se colocou ao lado da população mais desfavorecida, comprou briga com a imprensa marrom, defendendo suas ideias. Fui convidado para fazer a trilha sonora do seu doc, que acabou não rolando, e fiz esse samba em sua homenagem, que registrei nesse novo trabalho. O futebol às vezes é muito passional, como está enraizado no coração das pessoas, pode sim servir de lente para observar o Brasil.
Por falar na politização de Sócrates, algo raro entre jogadores de futebol em qualquer tempo: em meio a esta entrevista acaba de consumar-se a cassação do mandato da presidente da república Dilma Rousseff. Como você recebeu a notícia e qual a sua percepção do processo?
Estou muito triste e injuriado com esse momento funesto, apesar de saber que não teria volta. O Brasil interessa pra muita gente e depois da votação na Câmara os picaretas não iam largar o poder. Novamente tomamos um chapéu do xaveco, temos que aprender que a comunicação é um instrumento a serviço do capital, que não se interessa por igualdade, amizade. O momento é de reflexão e ação imediata. Ficou claro, mais uma vez, que acordo onde o inimigo dá as cartas, nunca deu certo. Vamos à luta, não temos tempo de temer a morte
“Não temos tempo de temer a morte”, verso de Divino maravilhoso, parceria de Caetano e Gil, além de traduzir bem o atual momento por que passa o país, é citado em Arte depura. “A arte existe por que a vida não basta”, já disse Ferreira Gullar. Só a arte salva?
A minha vida foi salva pela arte. Seguir o caminho da música foi fundamental. Quando percebi o definhamento da escola pública e que ficar batendo cartão para ganhar uma mixaria, que não custeava as despesas, poderia ter escolhido o caminho do crime, mas o coração falou mais alto e no começo dos anos 1970, resolvi cair na estrada e estou vivo traçando minha trajetória com alegria e respeito.
Outra convidada neste disco é Alzira E., que de algum modo demarca, digamos assim, tua ligação com a vanguarda paulistana. Pra você, o que significou a participação e aquele momento, liderado por nomes como Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção?
Alzira também é uma amiga de muitos anos. Quem me falou desse seu lado mais rock foi Luiz Waack, ele disse que seria legal convidá-la. Fiquei feliz com sua participação em Cabeça na mesa, ela tem um timbre diferente. Pois é, sou contemporâneo dessa safra do Arrigo, do Itamar. No começo dos anos 1980 em Pinheiros, Zona Oeste, havia o [Teatro] Lira Paulistana, que se tornou o espaço alternativo que abrigava diversas formas de manifestações artísticas. Nessa mesma época em São Miguel, Zona Leste, havíamos fundado o MPA, o Movimento Popular de Arte, que agregava também várias manifestações artísticas na periferia de São Paulo, ocupando praças, ruas, galpões, anfiteatros. Era um momento de ebulição, processo de abertura política em andamento. Essa estética paulistana é uma referência muito forte no meu trabalho.
A seu ver o atual momento político brasileiro contribuirá para uma maior espontaneidade artística, isto é, artistas voltando a se reunir em coletivos, a tocar em atos públicos, de protesto, a uma maior participação política, que de algum modo acaba por ter reflexos na estética de um período ou de um grupo?
Acredito que é a democracia que contribui para a construção de novas estéticas. O que pode acontecer daqui pra frente já é fruto de você poder experimentar, de você saber que pode fazer o que quiser, que ninguém vai te cercear. A liberdade é o grande alicerce da arte. Já estavam acontecendo encontros substanciais nesses últimos anos. Esse momento político adverso mexe com a sensibilidade e vai contribuir para a potencialização da produção artística.