[Diário Cultural de hoje]
Era quarta-feira à tarde e o sol inclemente esmorecia a Ilha de São Luís quando “Diário Cultural” toca a campainha da casa de Chico Maranhão. O arquiteto-músico abre a porta pessoalmente, trajando uma camisa preta com a propaganda de um arraial de uma escola de inglês da capital maranhense, bermuda e sapatilha. A sala divide o espaço com a garagem (ou é o contrário?), onde “dormem” um [veículo] gol branco, uma parelha de tambor de crioula, uma escrivaninha, uma lancheira e muitos, muitos livros. A seguir, recortes do rápido papo [ao fim da entrevista, ele desculpa-se: “daqui a pouco tenho que dar aula”].
A arquitetura da casa na rua Graça Aranha, Centro, causa estranheza: a garagem toma a frente e mistura-se à sala. “Esta é uma casa do século passado, anos quarenta, cinqüenta. São Luís está muito alterada, tem hoje uma quantidade muito grande de asfalto, para a qual ela não foi projetada. Há quarenta anos, a Ilha tinha uma temperatura de dez graus à noite; hoje, não fica em menos de vinte e cinco. As casas têm que ser readaptadas. Isso aqui era uma porta-e-janela, a reforma é necessária para se criar um ambiente saudável”, explica Chico, professoral, sobre suas idéias para o espaço reformulado por ele.
Sobre a “entrada” da arquitetura em sua vida, conta: “Quem mora numa cidade como São Luís tem arquitetura na alma, queira ou não queira. A cidade foi muito bem feita pelos mestres dos séculos XVIII e XIX. Nasci num sobrado tradicional, meu interesse por arquitetura não se dá somente quando vou para São Paulo estudar. Quem mora assim, com um avarandado, irá se interessar de qualquer forma por arquitetura. Minha música tem muito a ver com arquitetura. Diversos amigos dizem que eu sou um arquiteto-músico”. Lembra-se de Chico de Assis, amigo seu, dos idos tempos em Sampa: “O Chico dizia que o arquiteto é uma profissão em disponibilidade, adaptável a qualquer coisa. A formação do arquiteto é muito criativa”. E acrescenta: “Mas na verdade eu não me considero arquiteto nem músico. Sou um criador, um homem criador, um cidadão que faz coisas e procura fazê-las com qualidade”.
Mais que de agora: lances de sempre
Em 1969, Chico Maranhão estréia em disco. O antigo escritório de publicidade de Marcus Pereira vira gravadora a partir do lançamento de um disco brinde que trazia, de um lado, músicas de Chico Maranhão, que à época assinava somente “Maranhão” [assim os amigos o chamavam, dada a procedência nordestina] e do outro, Renato Teixeira. “Só eu e Renato temos esse privilégio na música brasileira, um disco em parceria em início de carreira. Se pensarmos em Caetano e Gil, por exemplo, não há”, coloca.
Diversos nomes talentosos foram descobertos, Brasil afora, pela gravadora Discos Marcus Pereira, entre os quais Cartola e Canhoto da Paraíba. Em 1978, a gravadora colocava dois antológicos discos (de) maranhenses no mercado: Bandeira de Aço, de Papete, e Lances de Agora, de Chico Maranhão. Se o primeiro reunia um time de compositores de primeira linha — Josias Sobrinho, Cesar Teixeira, Sérgio Habibe e Ronaldo Mota —, o segundo reunia, para registrar canções de autoria do “maior compositor vivo do Maranhão”, na opinião do jornalista e poeta Roberto Kenard, um não menos importante time de músicos — Arlindo Carvalho, Antonio Vieira, Sérgio Habibe, Paulo Trabulsi e Ubiratan Sousa, entre outros — e foi gravado entre os dias 22 e 25 de junho de 1978 na sacristia da Igreja do Desterro.
Indagado sobre a(s) diferença(s) entre os trabalhos [seu disco nunca teve reedição em cd], Chico Maranhão não se mostra rancoroso e comenta: “São dois destinos diferentes. O Bandeira de Aço, por mais que seja um disco da Marcus Pereira, tem um cuidado especial dado pelo Papete. As músicas foram levadas para São Paulo, trabalhadas, e o disco foi feito. Em Lances de Agora, não: meu disco é muito mais amador, muito mais ingênuo, romântico, descompromissado com o mercado. Era uma reação à posição da Rede Globo, não era pra tocar na novela. De certa forma, eu paguei um preço, com muito orgulho. Mas esse preço ainda será ressarcido, quem sabe. Um dia será reconhecido”. Essa postura é mantida até hoje na obra de Chico Maranhão. “E acho que sempre será assim”, completa o próprio.
Gerações
Sobre a nova geração, Chico opina: “Estou com 63 anos e me sinto com 25, graças à qualidade que busco sempre. Cada vez mais a peneira se fecha buscando qualidade, seja enquanto artista, seja enquanto pessoa. Em relação à minha geração, a diferença básica é que éramos ingênuos e isso é fundamental. A geração de hoje é completamente diferente: competente, decidida, autoritária, competitiva. Falta um pouco de inexperiência, de olhar algo e se impressionar. Banalizou-se tudo. Falta autenticidade. Mas há muita gente boa fazendo coisas novas e boas por aí”.
E continua: “O manguebit foi uma experiência interessante do Nordeste, aqui do nosso lado. Quando eu fiz a Ópera Boi, cheguei a ser colocado no mesmo balaio, no mesmo padrão. Aproximou-se Recife de São Luís, misturou-se um pouco com Hermeto Pascoal. Achei isso interessante”. E cita matéria de Tárik de Sousa, no Jornal do Brasil, à época, fazendo essas comparações.
Magistério
Antes mesmo de concluir a graduação, Francisco Fuzzetti de Viveiros Filho [nome de pia de Chico Maranhão] já ajudava no departamento de projetos da escola de Santos/SP. Aqui ele lembra como entrou no magistério: “Recém formado fui dar aulas, há quase quarenta anos. Muito tempo depois, quando fiz a Ópera Boi, cansei, resolvi dar um tempo. Mas como não consigo descansar, revisei toda a arquitetura e fiz uma tese de mestrado, coisa que eu me devia [a tese virou livro, intitulado “Urbanidade dos Sobrados”, que deverá ser lançado ainda este ano, junto a dvd, disco, e songbook]. A partir daí, comecei a querer ver como estava a arquitetura em São Luís. Formou-se o curso de Arquitetura do CEUMA e fui dar aulas lá. Foi uma grande mudança de vida. Eu não sou professor, eu estou professor. Uma aula é diferente de um show, embora toda aula seja um show. É arte e ciência. A minha aula hoje, é artística e científica; a minha obra também”.
Para dar aulas, Chico carrega seu material em uma lancheira azul. O fato chegou a causar algumas reações, “o preconceito”, como ele mesmo frisa. Depois os alunos gostaram. “Sou um artista que dá aulas”, diz. “Elementos como este, ajudam a quebrar barreiras entre professor e alunos. O aluno precisa do professor, muito. E no Maranhão, precisa muito mais. Não há conhecimento se não houver liberdade”, arremata, de forma certeira.
Serviço
O único disco de Chico Maranhão disponível no mercado é “Só Carinho” (1997). Lá, há, entre inéditas, uma regravação de “Pastorinha” – clássico de seu repertório, lançado no antológico e já citado “Lances de Agora”, 1978. Este mais recente trabalho pode ser adquirido com a produção do compositor, através do e-mail lenavido@hotmail.com
Notas
Sobre o título: No disco “Fonte Nova” (1980), de Chico Maranhão, há uma música chamada “A Vida de Seu Raimundo”, que “trata da morte do jornalista Wladmir Herzog, mesclando-a com a violência ‘popular’”, segundo afirmou o compositor durante a entrevista.
Sobre o texto: A presente matéria foi escrita com base em entrevista dada por Chico Maranhão a Zema Ribeiro em 23 de novembro de 2005; tratava-se de trabalho acadêmico para a disciplina Jornalismo Revista, ministrada pela professora Ana Patrícia Choairy, no quarto período do curso de Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, da Faculdade São Luís. [O texto sofreu pequenas alterações para efeito de publicação no Diário da Manhã].