Documentário sobre Lupicínio Rodrigues será exibido em São Luís, seguido de roda de música

Sessão acontece nesta quinta (4), às 19h, no Cineteatro Aldo Leite (Palacete Gentil Braga)

"Lupicínio Rodrigues: Confissões de Um Sofredor". Cartaz. Reprodução
“Lupicínio Rodrigues: Confissões de Um Sofredor”. Cartaz. Reprodução

Ano passado, para o Farofafá, escrevi sobre o documentário Lupicínio Rodrigues: Confissões de Um Sofredor, de Alfredo Manevy, que então percorria o circuito de festivais, antes da estreia no de salas de cinema. Ao lado dele, outros importantes filmes com conteúdo musical não têm circulado pelas salas ludovicenses. Cito Saudosa Maloca, de Pedro Serrano, baseado em canções de Adoniran Barbosa (1910-1982) e protagonizado por Paulo Miklos, e Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina, documentário de Ana Rieper, entre os exemplos recentes.

Lupicínio Rodrigues: Confissões de Um Sofredor reúne um time de primeira grandeza da música popular brasileira, entre interpretações de clássicos de sua lavra e depoimentos, ajudando a colocar o compositor gaúcho num merecido lugar de destaque entre os grandes da MPB, algo invariavelmente ofuscado pela chamada “fenomenologia da cornitude”, a tal dor de cotovelo de que, afinal de contas, ele é o inventor e maior representante. Mas também, como aprofundou o colega de redação no citado Farofafá Pedro Alexandre Sanches, debate o quanto esta diminuição de Lupi, como era carinhosamente chamado por pares de ofício, era também fruto de racismo, a partir, sobretudo, de não ter sido creditado entre os concorrentes ao Oscar, em episódio abordado pelo filme e que este busca reparar, artística e judicialmente.

O documentário de Manevy também não estreou nas salas de cinema da ilha, o que vai ser parcialmente corrigido por iniciativa do Departamento de Assuntos Culturais da Universidade Federal do Maranhão (DAC/UFMA) e seu Festival Guarnicê de Cinema, um dos mais longevos do Brasil, cuja 47ª. edição acontece entre os próximos dias 7 e 14 de junho. Na próxima quinta-feira (4), às 19h, Lupicínio Rodrigues: Confissões de Um Sofredor será exibido no Cineteatro Aldo Leite (Palacete Gentil Braga, Rua Grande, 782, Centro, Canto da Viração, esquina com Rua do Passeio).

A sessão será gratuita, com abertura dos portões às 18h, com acesso pela lateral do Palacete (Rua do Passeio), observando-se a capacidade da casa (125 lugares). Às 19h acontece a exibição do filme, seguida de uma roda musical com a presença confirmada de artistas admiradores da obra de Lupicínio Rodrigues (1914-1974), interpretando seus grandes clássicos. A roda é aberta e já tem confirmadas as presenças do compositor Joãozinho Ribeiro, dos cantores Zeca do Cavaco e Aziz Jr., além de Carbrasa (pandeiro), João Eudes (violão sete cordas) e João Neto (flauta) – outros artistas devem se somar à iniciativa, à altura do fabuloso legado do homenageado.

Viagem ao passado desconhecido

O núcleo familiar protagonista de "Segundo Tempo". Frame. Reprodução

Rodado entre São Paulo e Frankfurt, na Alemanha, com elenco enxuto, “Segundo Tempo”, ao contrário do que o título possa fazer parecer, não é um filme sobre futebol – ou não apenas. A morte do pai faz pairar sobre o filho um sentimento de culpa e este é levado a convencer a irmã a fazer uma viagem para tentar descobrir mais sobre o passado do falecido.

Ana (Priscila Steinman) e Carl (Kauê Telloli) são os filhos de Helmut (o alemão Michael Hanemann). Bastante diferentes entre si, ela apaixonada por livros, ele um peladeiro inveterado que ganha a vida se prostituindo; diante de uma fragilidade da irmã, ele acaba arrastando-a para uma viagem até a Alemanha em busca de informações sobre o pai, de quem, somente após sua morte, percebe saber tão pouco.

Há cenas comoventes neste novo longa-metragem de Rubens Rewald (direção e roteiro), como a em que Ana se lembra de um jantar com o pai e este lhe pergunta pelo namorado. Após a explicação dela de que não se tratava de namoro, apesar de os colegas de trabalho se gostarem e terem interesses parecidos e do pai dizer que o achou um bom rapaz, a filha revelou-lhe pensar que o pai não teria gostado do rapaz por ele ser negro; isto é, a filha julgava o pai racista mesmo sem jamais terem conversado sobre isso.

A arte imita a vida: quantas vezes não julgamos parentes e amigos? Quantas vezes estamos certos? Quantas errados?

Em certa medida é um filme sobre a falibilidade humana e, no fundo, uma metáfora sobre nossos tempos, quando começamos a perceber que muitas vezes conhecemos tão pouco pessoas de nosso convívio mais próximo, vide as desavenças familiares motivadas por questões políticas no Brasil recente, mas que movimentam temas para muito além disso, e a própria discussão acerca da verdade, que atualmente varia de acordo com a conveniência de cada um.

"Segundo Tempo". Cartaz. Reprodução
“Segundo Tempo”. Cartaz. Reprodução

Serviço: “Segundo Tempo” (drama, Brasil, 2022, 107 minutos, direção: Rubens Rewald). Estreia hoje (16) em cinemas de Aracaju, Brasília, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.

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Veja o trailer:

“Marte um” e um inédito protagonismo negro no cinema brasileiro

Eunice (Camilla Damião) e Deivinho (Cícero Lucas) em cena de “Marte um”. Frame. Reprodução

Sob a égide do governo neofascista de Jair Bolsonaro (embora isso não comece exatamente com ele), vivemos um período em que a ignorância (vizinha da maldade, como já cantava a Legião Urbana) é cultivada, incentivada e orgulhosamente exibida. É um período em que mais que não ser racista é necessário ser antirracista, embora a mente escravagista de boa parte dos brasileiros se encontre hoje respaldada por exemplos e instituições do governo federal e, por isso mesmo, mais que nunca é preciso combater esse tipo de ideia.

Em “Marte um”, o nome do miliciano que tomou de assalto o Palácio do Planalto, embalado por uma sórdida rede de mentiras com que se elegeu e governa, é a primeira coisa que ouvimos. Mas a eleição e o desgoverno do ex-capitão servem somente para localizar temporalmente os acontecimentos desta ficção que tende ao documentário. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência, os dizeres clássicos que alertam os espectadores a cada filme, traduzem o Brasil real, com sua máscara de cordialidade disfarçando o racismo veladamente vigente ainda.

A opção primeira do diretor e roteirista (negro) Gabriel Martins salta aos olhos, para racistas e antirracistas: a negritude tem protagonismo inédito no cinema nacional, com quase a totalidade do elenco do filme formada por negros, numa inversão da equação costumeira: quantos filmes e novelas já não assistimos (e nos acostumamos) em que negros e negras não passavam de subalternos entre a cozinha e, no máximo, o volante?

Tércia (Rejane Faria) e Wellington (Carlos Francisco) em cena de “Marte um”. Frame. Reprodução

A trama habilmente costurada se desenrola em situações corriqueiras, que poderiam acontecer na casa ou na vizinhança do resenhista, do/a leitor/a, em qualquer lugar do Brasil, a partir de uma típica família de classe média brasileira, formada por um casal heterossexual (Wellington, zelador de um condomínio de luxo, frequentador do Alcoólicos Anônimos, vivido por Carlos Francisco, e a diarista Tércia, personagem de Rejane Faria), pais de uma estudante de direito (a lésbica Eunice, interpretada por Camilla Damião, que, num gesto de afirmação, decide sair de casa e ir morar com a namorada) e um garoto (Deivinho, por Cícero Lucas), que joga bola de óculos, projetando o sonho do pai, enquanto o dele mesmo é tornar-se astrofísico – de onde vem o título do filme.

Longe de qualquer panfletarismo, “Marte um” é agradável de se ver, um dos grandes lançamentos cinematográficos brasileiros deste início de século, daqueles filmes em que o espectador não percebe o tempo passar, e sobretudo brasileiríssimo (no que isso tem de bom e ruim), entre traquinagens infantis, fanatismo por futebol (o ex-jogador uruguaio Sorín faz uma ponta, interpretando a si mesmo), churrasco e cerveja em festa de aniversário no quintal, os dilemas típicos de quem está deixando a adolescência e entrando na idade adulta, o fosso que separa a elite de seus serventes e a dificuldade do brasileiro médio em empatar as contas ao final do mês.

Detratores do cinema nacional e operadores da guerra ideológica travada pelo bolsonarismo no pouquíssimo que restou da estrutura voltada ao cinema e à cultura em geral, num governo que destruiu estruturas como o Ministério da Cultura (e sucateou a Ancine até não poder mais), devem torcer-lhe o nariz, pois o filme é de afirmação: da população negra enquanto sujeitos de direitos, das possibilidades que dignidade e cidadania garantem a estes mesmos sujeitos e da transformação social realizada pelas políticas de cotas, algo negado somente por cínicos, mal-intencionados em geral e gente intelectualmente desonesta que acredita que reconhecer isto signifique perder privilégios.

Gabriel Martins convida à reflexão ao cavoucar o dedo na ferida. “Marte um” levou o prêmio de melhor filme no júri popular do Festival de Gramado e é o primeiro filme dirigido por um cineasta negro a ser escolhido para representar o Brasil no Oscar.

“Marte um”. Cartaz. Reprodução

Serviço – O filme será exibido na sessão de abertura do 45º. Festival Guarnicê de Cinema, hoje (23), às 19h, no Teatro Sesc Napoleão Ewerton (Condomínio Fecomércio, Av. dos Holandeses, s/nº., Calhau). Os ingressos, gratuitos, podem ser retirados na bilheteria do teatro, sujeito à lotação do local.

Veja a programação completa do evento.

Um catálogo de responsa

A exuberante Bárbara Lennie em cena de "Maria (e os outros)". Reprodução
A exuberante Bárbara Lennie em cena de “Maria (e os outros)”. Reprodução

A plataforma de vídeo sob demanda Belas Artes à La Carte existe desde antes da pandemia de covid-19 e o isolamento social decorrente desta acabou por modificar e aprofundar as relações entre cinéfilos e uma das salas de cinema de rua mais charmosas e queridas do Brasil, o Cine Petra Belas Artes.

Dispondo atualmente de um catálogo com mais de 400 títulos nos mais variados gêneros, entre lançamentos e clássicos, a plataforma acaba funcionando também como uma espécie de curadoria para além de algoritmos.

São os casos das mostras “Volta ao Mundo: Espanha” e “Cine Clube Italiano”, em cartaz desde ontem (3) e hoje, respectivamente.

A primeira tem uma seleção de filmes da terra de Carlos Saura, cineasta homenageado em “Saura(s)” [Espanha, 2017, documentário, 86 minutos], de Felix Viscarret, constante do catálogo.

Em “Volta ao Mundo: Espanha” destaca-se também o ótimo “Maria (e os outros)” [Espanha, 2016, drama, 90 minutos], de Nely Reguera, que acompanha a trajetória da personagem-título (interpretada por Bárbara Lennie), entre cuidar do pai em tratamento de um câncer, o golpe do anúncio do novo casamento dele, conflitos com os demais irmãos, a ilusão do sexo sem amor, o trabalho em uma pequena editora e a escrita de um romance.

“Maria (e os outros)” é inédito em salas de cinema brasileiras e foi indicado ao Goya, mais importante prêmio do cinema espanhol, nas categorias melhor direção e melhor atriz (para a protagonista). É a estreia de Nely Reguera como diretora de longa-metragem; ela foi assistente de direção de “Perfume: a história de um assassino”, de Tom Tykwer, baseado no livro de Patrick Süskind. Lennie protagonizou também “Uma espécie de família” (2017), de Diego Lerman.

A edição deste mês do Cine Clube Italiano, parceria do Belas Artes à La Carte com o Instituto Italiano de Cultura de São Paulo, apresenta “De volta para casa” [Itália, 2019, drama, 107 minutos], que poderá ser assistido até o dia 10 de junho por assinantes e não assinantes do serviço de streaming.

O filme de Cristina Comencini aborda, de maneira interessante, as relações de Alice (Giovanna Mezzogiorno e Beatrice Grannò na adolescência da personagem) com seu próprio passado, ao retornar, por conta do funeral de seu pai, à casa onde passou a infância e a adolescência.

A trama costura a insurgência de Alice contra a opressão do pai militar e sua rigidez excessiva na criação das filhas, embora a opressão (e, por que não dizer, violência) não estivesse apenas dentro de casa. Em seu retorno, ela reencontra o sombrio Marc (Vincenzo Amato), que obsessivamente acaba por embaralhar o jogo da memória, com lacunas, dúvidas e tensão.

Na próxima quarta-feira (9), às 18h30, haverá um bate-papo ao vivo sobre o filme, com o crítico de cinema Miguel Barbieri Jr. e o gerente de inteligência do Belas Artes Grupo Léo Mendes.

Era uma vez em streaming

Robert De Niro é Noodles em “Era uma vez na América”; clássico de Sergio Leone está disponível em streaming no Belas Artes à La Carte. Reprodução

Obra-prima de Sergio Leone (1929-1989), o épico “Era uma vez na América” (“Once upon a time in America”, EUA/Itália, 1984, 229 minutos) é uma espécie de romance de formação de uma gangue, acompanhando a formação e firmação de um grupo de moleques desde pequenos golpes na vizinhança até roubos monumentais, com doses de ação, tensão e violência que agradam seus apreciadores em telas de qualquer tamanho.

O filme é ambientado em Nova York, na quadra histórica localizada entre a lei seca americana e seu fim, mas mais que acompanhar planos e suas execuções, entre saques, perigos e prazeres, aborda relações de afeto, amizade e amor.

Último filme de Sergio Leone, que faleceria cinco anos depois de seu lançamento e, 12 anos antes, havia recusado a proposta de dirigir “O poderoso chefão” (Francis Ford Coppola, 1972), do que viria a se arrepender, se vale do uso de flashbacks com habilidade, recurso que já tinha sido utilizado com maestria no segundo filme daquela franquia. O tema também evoca aquela recusa: é um filme de gangsters, em que um deles, judeu, volta ao local onde se iniciou na criminalidade para lidar com seu passado, entre fantasmas, dúvidas e arrependimentos.

Presença constante em listas de melhores filmes de todos os tempos, “Era uma vez na América” tem cenas memoráveis, daquelas que conseguem sobreviver para além dos filmes em que estão inseridas, sempre lembradas por cinéfilos, que também não cansam de apontar as atuações exuberantes de Robert De Niro (David Aaronson, o Noodles) e James Woods (Maximilian Bercovicz, o Max) e a trilha sonora de Ennio Morricone.

Para além da brutalidade do contexto narrado no filme, há generosas doses de delicadeza, mesmo – ou deveria dizer justamente? – em meio à violência. Um clássico absoluto que merece ser visto por neófitos e revisto por apreciadores da sétima arte.

Serviço: “Era uma vez na América” está disponível a partir de hoje (27) no Belas Artes à La Carte, serviço de streaming do Cine Petra Belas Artes. Criado no fim de 2019, já conta com cerca de 400 títulos em catálogo. Também estão disponíveis a partir de hoje na plataforma os seguintes títulos: “Henrique V” (The chronicle history of King Henry the Fifth with his battell fought at Agincourt in France, Reino Unido, 1944, direção: Laurence Olivier), “Humor à italiana” (Risate all´italiana, Itália, 1964, direção: Camillo Mastrocinque e Registi Vari) e “Os frutos da paixão” (Les fruits de la passion, França/Japão, 1981, direção: Shuji Terayama).

“Dente por dente” e a podridão dos poderosos

Juliano Cazarré em cena de Dente por dente. Divulgação

Uma sequência de assassinatos com as mesmas características é o mote do suspense “Dente por dente” [Brasil, 2021, 85 minutos], dirigido por Júlio Taubkin e Pedro Arantes: após a morte todas as vítimas têm seus dentes extraídos de forma brutal. O curioso é que o serial killer por detrás dos assassinatos não some com os cadáveres – a extração das arcadas dentárias poderia servir para sua não identificação.

Juliano Cazarré interpreta Ademar, o guariteiro-sócio de uma empresa terceirizada que presta serviços de segurança privada a uma grande construtora. Numa atmosfera pesadelar, ele acaba fazendo às vezes de detetive, ao descobrir a primeira vítima – enquanto mortes não param de acontecer: seu sócio Teixeira (Paulo Tiefenthaler), esposo de Joana (Paolla Oliveira), filha de Valadares (Aderbal Freire Filho), um delegado corrupto que tem que fingir que investiga o assassinato do próprio genro. O filme exige do espectador a montagem de uma intrincada teia de corrupção e traições, deixando algumas pontas em aberto – o roteiro de Arthur Warren com colaboração de Michel Laub não entrega tudo de bandeja.

A trama é pano de fundo para expor e debater uma triste realidade brasileira: o conluio entre os poderosos – os que são donos do dinheiro e os que ocupam cargos em qualquer escalão, prontos a abocanhar sua parte em esquemas fraudulentos ou mesmo para tentar passar a perna nos próprios pares e abocanhar tudo sozinho. No fim das contas é um filme sobre ganância e a consequente falta de escrúpulos dela advinda, escancarando a falta de ética que permeia as relações político-empresariais no Brasil.

Para ver sair do papel seus novos megaempreendimentos imobiliários de alto padrão, a indústria da construção civil não aceita empecilhos: pouco se importa com quem estava antes e há quanto tempo em determinado terreno, afinal, famílias inteiras de gente pobre não podem ser obstáculo ao surgimento de novos blocos de apartamentos luxuosos com suas áreas de lazer gentrificadas e suas varandas gourmet. Ao menos até a insurgência dos que estão na Encruzilhada.

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A mortalha do amor

Se algo acontecer… te amo. Frame. Reprodução

Vez por outra o noticiário chama atenção para episódios ultraviolentos, como as infelizmente costumeiras chacinas em escolas dos Estados Unidos (mas não só). É este o mote do delicado “Se algo acontecer… te amo” (“If anything happens, I love you”, 2020, 12 minutos), curta-metragem de animação escrito e dirigido por Will McCormack e Michael Govier, disponível em streaming na Netflix.

Um casal faz uma refeição numa mesa comprida, cada qual numa ponta. A cena revela o esfriar do relacionamento e o consequente distanciamento de marido e esposa após terem perdido o amor comum, a filha, como saberemos adiante, para a facilidade do porte indiscriminado de armas de fogo, infelizmente não mais um privilégio norte-americano.

A partir daí, “Se algo acontecer… te amo” corre em feedback e não tem um final feliz: triste e comovente, é impossível para o espectador não se emocionar ao descobrir a origem do título do filme (o deste texto é verso de “Pedaço de mim”, de Chico Buarque, que ali também canta que “a saudade é o revés de um parto/ a saudade é arrumar o quarto/ do filho que já morreu”), mas também se propõe a refletir sobre a violência, esta chaga de nosso tempo, infame, triste, doido e doído. No fundo, é sobre superação, mas engana-se quem imaginar encontrar a água com açúcar típica de quem tenta vender fórmulas para quem deseja ser feliz – como se elas existissem.

Do nascimento da filha, ao aniversário de 10 anos, passando por boas lembranças entre viagens, brincadeiras, objetos e um gato, a força de “Se algo acontecer… te amo” reside também na ausência de diálogos – tudo se resolve no traço dos animadores Youngran Nho (que assina a direção de animação), Haein Michelle Heo e Julia Gomes Rodrigues e na música.

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Veja o trailer:

Entre o riso e a desgraça

Parasita. Cartaz. Reprodução
Parasita. Cartaz. Reprodução

 

Merecidamente o sul-coreano Parasita [Coreia do Sul, 2019, 132 minutos; em cartaz no Cine Lume] figurou em diversas listas de melhores filmes de 2019, uma quase unanimidade ao lado de títulos como Bacurau e Coringa.

A tríade guarda semelhanças: abordam, de maneiras particulares, certa convulsão social, a partir de seus países de origem, mas dando um panorama do mundo, entre a ascensão de governos de extrema-direita e conflitos bélicos.

Parasita. Frame. Reprodução
Parasita. Frame. Reprodução

O filme de Bong Joon-ho é, ao mesmo tempo, comédia, drama e suspense, com suas reviravoltas. Conta a história da família Ki-taek, pobres moradores do subúrbio, que vivem numa casa insalubre, sem trabalhar – roubam o sinal de wi-fi de vizinhos e sofrem com uma inundação. “Eu preferia que fosse comida”, diz a filha em reação a uma pedra trazida de presente por um amigo, com a desculpa de ser um amuleto.

A trama se desenrola a partir de o filho Kim ir dar aulas particulares de inglês à bem nascida herdeira dos Park. A partir daí, em uma sequência surpreendente no roteiro bem urdido, eles começam a se infiltrar na mansão, dando um jeito de forçar demissões de antigos empregados, usando métodos nada convencionais.

Seria mero moralismo barato, no entanto, tachá-los simplesmente de charlatões. É, em certa medida, também, um microcosmo social vingando-se do sistema, do fosso social entre milionários e miseráveis (que no Brasil só aumenta).

Com sua bela fotografia e atuações firmes, Parasita, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, nos coloca diante de dilemas como o limite da dignidade, da paciência, do senso de humor e da tolerância humanos. Seria desnecessário dizer, mas num tempo em que ironias precisam ser anunciadas e piadas explicadas, não é que se ache legítimo o uso da violência ou da vingança, mas a ficção aponta a possibilidade de um colapso. Exatamente como em Bacurau e Coringa, também criticados por isso, aqui e acolá.

Sobram críticas ao vira-latismo em voga (muito comum no Brasil também) entre os que acham que tudo o que é produzido nos Estados Unidos é bom e merece ser copiado. A senhora Park diz algumas vezes ao longo do filme que este ou aquele objeto é bom por que foi importado de lá.

Como seus citados pares de temporada, Parasita é um filme que além de todas as qualidades, gêneros e temas que se propõe a discutir, transita com desenvoltura entre o blockbuster e o filme de arte. Difícil de classificar, mas não de entender, refletir ou simplesmente apreciar, ao menos àqueles que ainda se permitem a isso ou aquilo.

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Veja o trailer:

Lições de um bandido

Coringa. Frame. Reprodução
Coringa. Frame. Reprodução

 

Dizer que Coringa [Joker, EUA, 2019, 122 min.] é uma obra-prima pode soar redundante. Roteiro bem amarrado, atuação exuberante de Joaquin Phoenix, fotografia caprichada, trilha sonora impecável e a memória afetiva de um personagem que todos sabemos bandido, mas que sempre teve o atenuante de sua maquiagem e sua gargalhada sui generis.

É um filme de formação: de algum modo explica ou joga luz sobre como Coringa se tornou o assassino implacável e a sangue frio que é. Para matar, vale o que estiver às mãos: um revólver, uma tesoura, as algemas, as próprias mãos.

Tomando o Coringa como um microcosmo da bandidagem em geral, é possível perceber nele o reflexo do passado, como se cair na criminalidade fosse uma reação (natural, automática) aos maus tratos em casa (violência doméstica) e na rua – a violência social a que estão submetidos os menos favorecidos, seja pelo descaso de governantes inescrupulosos, seja pela invisibilidade a que estão submetidos, com a pressa dos transeuntes.

É lógico que, por si só, isso não justifica e nem explica completamente, nem o personagem, nem qualquer criminoso. A questão é muito mais complexa.

Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é um pobre-diabo com transtornos mentais, que toma(va) remédios controlados (até o dia em que o governo decide cortar a verba destinada ao programa social que lhe garantia medicação e atendimento psicológico) e vive sozinho com a mãe, velha e doente, num apartamento decadente. Seu emprego é um bico de palhaço, ajudando o comércio a vender, de onde será demitido.

Tomando Gotham City/Nova York como um microcosmo do planeta – ou do Brasil: é impossível não pensar num paralelo com o Brasil sob a ditadura bolsonarista –, nota-se uma crítica feroz ao consumo desenfreado, marca do capitalismo selvagem/neoliberalismo que pouco se importa com os que não podem consumir sequer o básico para sobreviver (para usarmos aqui um eufemismo) e uma crítica à política que governa (apenas) para as elites. E o caos, entre revolta popular e a greve do serviço de coleta de lixo.

É lógico que, por si só, isso não justifica sair por aí matando os que compõem essas elites, os que com elas simpatizam. A questão é muito mais complexa e não é possível enxergar Coringa como uma espécie de Robin Hood, deveria ser eticamente impossível enxergar o protagonista como herói.

Esta é, aliás, uma das lições do filme, sobretudo aos espectadores brasileiros: não se deve, seja lá qual for a motivação, tomar canalhas e psicopatas como heróis, mitos e que tais. No final, todo mundo sai perdendo e o troféu pela bravata pode ser uma espécie de delírio e suicídio coletivo. A outra lição que devemos aprender durante a sessão do filme de Todd Phillips, mas não só, é que a falta de empatia, alteridade, solidariedade está nos transformando em uma sociedade adoecida. No final, ninguém se salva sozinho.

Coringa. Cartaz. Reprodução
Coringa. Cartaz. Reprodução

Veja o trailer de Coringa:

Rumos, Maranhão na Tela e Ilha do Amor têm inscrições abertas

Caminhada Rumos acontece hoje em São Luís

A Caminhada Rumos Itaú Cultural encosta hoje (12) em São Luís. O encontro, que tem por objetivo divulgar o edital do programa e tirar dúvidas de artistas e produtores culturais, acontece das 18h30 às 20h30, no Teatro Sesc Napoleão Ewerton (Condomínio Fecomércio, Av. dos Holandeses, Jardim Renascença II), com entrada franca. Estarão presentes Ana de Fátima Sousa, gerente do núcleo de Comunicação, e Valéria Toloi, de Educação e Relacionamento do Itaú Cultural.

As inscrições para o Rumos Itaú Cultural estão abertas desde o dia 3, exclusivamente no site do programa, e a Caminhada percorrerá as 27 capitais brasileiras, já tendo chegado a Cuiabá/MT, Porto Velho/RO, São Paulo/SP e Teresina/PI.

Sobre o assunto, Homem de vícios antigos conversou com exclusividade com Ana de Fátima Sousa.

Ana de Fátima Sousa, gerente do núcleo de Comunicação do Itaú Cultural. Foto: Denise Andrade
Ana de Fátima Sousa, gerente do núcleo de Comunicação do Itaú Cultural. Foto: Denise Andrade

Zema Ribeiro – A Caminhada Rumos tem o objetivo de desburocratizar o acesso do artista ao edital e programa? Por que às vezes um artista que se preocupa menos com a burocracia acaba perdendo espaço para um artista que tem produção por trás. O que o Itaú Cultural tem feito no sentido de corrigir essa distorção?
Ana de Fátima Sousa – A Caminhada é uma oportunidade de aprendermos juntos. Nós como instituição buscamos estar presentes e abertos para entender as demandas de cada lugar e melhorar o programa a partir dessas trocas. E para o artista é uma chance, sim, de tirar dúvidas sobre o edital e sobre políticas culturais e também melhorar suas práticas. Acreditamos muito no poder desses encontros.

Nos últimos anos tem sido mais difícil manter um programa da envergadura do Rumos? Quais as principais dificuldades?
O Itaú Cultural tem no Rumos um de seus principais programas estruturantes. E, por isso, tem caráter de perenidade. Nosso desafio é sempre manter neste programa um processo de escuta ativa em relação aos diferentes territórios do país, às necessidades da arte e da produção contemporâneas.

Como se dá o financiamento do programa Rumos Itaú Cultural?
O programa Rumos conta com verba direta. Não faz uso de leis de incentivo.

Como tem sido a participação, a presença do Nordeste no programa Rumos? Há uma preocupação do programa em regionalizar a seleção de projetos apoiados?
O Nordeste tem excelente participação no programa Rumos tanto em quantidade quanto em qualidade dos projetos artísticos e de pesquisa. No ano passado tivemos dois maravilhosos projetos selecionados vindos do Maranhão. O que queremos é tornar esta presença ainda mais potente.

O jornalismo brasileiro passa por uma crise. O Rumos apoia projetos na área, sobretudo o jornalismo cultural, mais afeito às pautas do Rumos?
Sim, o Rumos acolhe, apoia e aposta em projetos de jornalismo cultural. Acreditamos na relevância de nossos jornalistas e críticos na produção de conteúdo e de reflexão sobre nossas artes e nossa cultura.

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MARANHÃO NA TELA ESTÁ COM INSCRIÇÕES ABERTAS

Colagem de Silvana Mendes. Reprodução
Colagem de Silvana Mendes. Reprodução

Estão abertas desde o último dia 10 as inscrições para a mostra competitiva e as rodadas de negócios do Festival Maranhão na Tela, que este ano será realizado entre os dias 5 e 14 de dezembro.

As inscrições para a mostra competitiva são gratuitas e para as rodadas de negócios variam de R$ 100,00 a R$ 120,00. O Maranhão na Tela foi idealizado pela cineasta e produtora Mavi Simão em 2006 e este ano chega a sua 12ª. edição, realização da Mil Ciclos Filmes. A artista visual Silvana Mendes venceu o concurso e assina a identidade visual do festival em 2019.

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FESTIVAL ILHA DO AMOR RECEBE INSCRIÇÕES ATÉ O DIA 20

Até o próximo dia 20 de setembro artistas nascidos ou radicados há pelo menos três anos no Maranhão podem se inscrever para o I Festival Ilha do Amor, que acontecerá no dia 23 de novembro na Concha Acústica Reinaldo Faray, na Lagoa da Jansen.

As inscrições são gratuitas, pelo site do festival. As 12 músicas selecionadas para a final serão gravadas em um cd. O resultado da seleção será anunciado pela coordenação do festival no próximo dia 30 de setembro. Haverá premiações para o primeiro, segundo e terceiro lugares, além de melhor intérprete.

Um retrato do Brasil do futuro

Bacurau. Cartaz. Reprodução
Bacurau. Cartaz. Reprodução

 

Kléber Mendonça Filho realizou dois dos mais importantes filmes brasileiros dos últimos 20 anos: O som ao redor (2012) e Aquarius (2016), obras-primas que discutem, a fundo e no calor da hora, graves problemas sociais brasileiros – segurança pública e especulação imobiliária, entre outros. Pelo segundo, vem sendo deliberadamente perseguido pelos governos instalados a partir do golpe que depôs a presidenta Dilma Rousseff (contra o que protestou em Cannes), num caso clássico de aspirantes a ditadores que jogam contra seu próprio país.

Um recado explícito é exibido em tela: Bacurau gerou mais de 800 empregos, o cinema é a imagem de um país e a cultura também é indústria, questões ainda não percebidas pelo projeto de destruição empreendido pelo atual governo federal, através do desmonte do Ministério da Cultura e das ingerências junto à Agência Nacional de Cinema (Ancine).

Seu novo filme, escrito e dirigido com o cineasta Juliano Dornelles, embora gestado antes da tragédia que se abate cotidianamente no país, no governo neofascista de Jair Bolsonaro, é uma distopia que profetiza no que o Brasil pode se transformar muito em breve, se o autoritarismo instalado por aqui não for barrado imediatamente.

Batizado por pássaro de hábitos noturnos, arisco, espécie de coruja, Bacurau é um povoado fictício, cravado no oeste pernambucano, um microcosmo brasileiro – quantos são os Bacuraus espalhados pelo país? Ali, além de energia elétrica, não chegam serviços essenciais. A população vive por sua própria conta e risco.

A nova obra cinematográfica de Juliano Dornelles e Kléber Mendonça Filho, vencedora do prêmio do júri em Cannes este ano, é um misto de policial, faroeste, terror, suspense e ficção científica. Nada muito distante da realidade brasileira sob a égide do bolsonarismo. Há inclusive um político canastrão (Tony Jr., interpretado por Thardelly Lima) que joga contra o lugar. Ele está em campanha pela reeleição e num dos recados sutis (mas nem tanto) do filme, seu número é 150 – outro é a distância, em quilômetros (17), que um caminhão pipa precisa percorrer a partir de determinado ponto até chegar ao povoado.

Bacurau. Frame. Reprodução
Bacurau. Frame. Reprodução

Em meio ao cenário de destruição, com direito a uma gangue de nazistas – o filme se passa no futuro, convém lembrar –, há delicadeza, em homenagens prestadas pelos diretores a grandes artistas em cena: Sônia Braga (protagonista de Aquarius), no papel de Domingas, uma enfermeira alcoólatra, Lia de Itamaracá (no papel da matriarca Carmelita, orgulho do povoado) e Rodger Rogério, nome do Pessoal do Ceará, que interpreta o violeiro Carranca.

Há também uma sutil homenagem a Lampião e seu bando de cangaceiros e seu Lunga (Silvero Pereira) não é um velho mal-humorado de respostas desconcertantes. Num país em que grande parte da população brasileira não costuma frequentar (ou nunca pisou em) cinemas, teatros e museus, outro recado sutil dado pelos diretores é a existência (e a necessidade e o orgulho da população) de um museu histórico no lugar, algo a que parecíamos mais próximos, ao menos em utopia, num passado não muito distante.

Politicamente retrocedemos. Cinematograficamente, Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles propõem uma reflexão e ação sobre este retrocesso. Um filme doloroso, bonito, necessário e urgente.

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Um filme é um filme é um filme

Era uma vez... em Hollywood. Cartaz. Reprodução
Era uma vez… em Hollywood. Cartaz. Reprodução

 

​Quem ainda faz faroestes hoje em dia? Quem gosta de faroestes? A revolta​​ de Rick Dalton, personagem de Leonardo DiCaprio, um ator decadente e alcoólatra, é uma das chaves para entendermos o nono filme de Quentin Tarantino, Era uma vez… em Hollywood [Once upon a time… in Hollywood, drama, Estados Unidos, 2019, 161 min.].

O diretor traça uma espécie de documentário ficcional, um falso documentário, remontando as trajetórias de Dalton e Cliff Booth (Brad Pitt), seu dublê, faz tudo e amigo íntimo. Estamos em 1969 e com vários papeis e alguma glória, Dalton está em vias de cair no ostracismo, quando recebe um conselho-convite para fazer westerns na Itália.

A cena em que ele chora ao relatar o enredo de um livro que lê no intervalo das gravações a uma atriz mirim, revelando o próprio destino (e o futuro que ele lhe prevê, sem que ela entenda) é tocante, ao mesmo tempo que é um dos sarros de Tarantino com a indústria, além, provavelmente, de um sábio conselho a iniciantes (ou, pior, aspirantes a celebridades fast food). A confusão entre os filmes (dentro do filme) e a vida de Dalton é ainda maior (mais real?) quando ele usa um artefato cênico (tarantinesco) para salvar a própria vida, durante o ataque de uma gangue à sua residência.

Filmes dentro do filme, Tarantino expõe as vísceras da indústria, numa grande tiração de onda. Sobra, obviamente, até para a publicidade (não só de cigarros, à moda antiga).

Coalhado de referências (e reverências, ao modo Tarantino), a começar pelo título que evoca os clássicos Era uma vez no Oeste (1969) e Era uma vez na América (1984), ambos de Sergio Leone.

Para além do cinema, estão lá gibis de Kid Colt, um personagem chamado Tex (Austin Butler), discos de Paul Revere (a trilha sonora é um espetáculo à parte), o cineasta Roman Polanski (Rafal Zawierucha) e sua esposa Sharon Tate (brutalmente assassinada quando grávida pela gangue de Charles Manson nos anos 1960, interpretada por Margot Robbie, num episódio reinventado por Tarantino) e Bruce Lee (Mike Moh), tornado um idiota em cena hilariante – não são poucas.

Tarantino é um iconoclasta que remonta a história a seu bel prazer para fazer grande cinema. Licença poética não é fake news, o objetivo aqui é nobre, não deseja, por exemplo, influir em resultados eleitorais, nem mesmo a votação do Oscar. Durante as quase três horas de Era uma vez… em Hollywood é possível esquecer o noticiário e o governo, ao menos os espectadores brasileiros, sem se tratar de anestesia.

No meio de tudo isso há uma cadela, que acaba tendo papel central na trama. “Quanto mais conheço o homem, mais eu gosto do meu cão”, cantaria Ataulfo Alves. “É preciso estar atento e forte”, advertiriam antigos compositores baianos. Em Tarantino, “tudo é maravilhoso”.

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O “On the road” de Bob Dylan

Rolling Thunder Revue. Cartaz. Reprodução
Rolling Thunder Revue. Cartaz. Reprodução

 

Martin Scorsese volta a esquadrinhar Bob Dylan em Rolling Thunder Revue [documentário, Netflix, 2019, 142 minutos; classificação indicativa: 16 anos]. Não à toa o subtítulo do filme, em tradução livre, é “Uma história de Bob Dylan por Martin Scorsese”. Em No direction home [2005] abarcava do início de sua carreira até a guinada eletrificadora, em 1966, quando trocou o violão  acústico pela guitarra elétrica. O novo documentário acompanha uma turnê no mínimo inusitada, realizada a partir de 1975, às vésperas do bicentenário da independência americana.

Dylan resolve excursionar pelos Estados Unidos de ônibus – ele mesmo dirige –, acompanhado de amigos. Ao longo das cenas aparecem Allen Ginsberg, Joan Baez, Patti Smith, Joni Mitchell e muitos outros. A estrutura do giro mambembe, que antecedeu o álbum Desire (1976), um dos pontos altos da discografia de Dylan, é comparada pelo próprio com os italianos da Comedia Dell’Arte.

No palco, Dylan tem a cara pintada, entre Kiss e Kabuki, e um chapéu com flores. Canta sobretudo o repertório de Desire, ali ainda não registrado em disco. A Larry “Ratso” Sloman, jornalista da revista Rolling Stone que acompanhou a turnê, chega a responder, quando questionado sobre não cantar canções mais conhecidas, que “não se deve ter expectativa, para que esta não seja quebrada”, em relação aos anseios do público, atestando sua própria liberdade. Ainda assim aparecem versões desconcertantes de A hard rain’s a-gonna fall e Knockin’ on heaven’s door, entre outras.

Enquanto o empresário reclama de estar perdendo dinheiro – poderiam estar tocando em locais para 30 mil pessoas e o fazem onde cabem no máximo 5 mil –, Bob Dylan faz o que quer. Há várias lições no filme. Uma delas tem a ver com dignidade artística, algo cada vez menos na moda no circo da indústria. Dylan é peça da engrenagem, mas desdenha dela. “Não podemos medir o sucesso em termos de lucro”, diz o Nobel de literatura.

Não soa falsa modéstia a afirmação inaugural do bardo de que “foi só uma coisa que aconteceu há 40 anos”, sobre a turnê. “Eu nem lembro direito”, diz, como a querer desencorajar o documentarista do feito. Além de imagens de arquivo, Scorsese conseguiu uma entrevista inédita com o ídolo e coloca os Dylans de ontem e hoje lado a lado, numa interessante perspectiva.

Dois personagens ganham centralidade em Rolling Thunder Revue: Joan Baez e Rubin “Hurricane” Carter, ambos também entrevistados para o documentário. A primeira, de quem foi namorado, aparece como um amor irrealizado de Dylan, algo que parece ter ficado no meio do caminho, um travo amargo de “se”. Diálogos mais íntimos são emocionantes, como a demonstrar certo arrependimento de não terem tido um final feliz juntos. “A gente podia cantar juntos até dormindo. Aliás, muitas vezes, dormindo, eu ouvia a sua voz”, ele revela, comovente.

Durante a turnê Dylan visita Rubin Carter na prisão. Sobre sua injusta condenação escreveu a antológica Hurricane. Divulgação. Netflix
Durante a turnê Dylan visita Rubin Carter na prisão. Sobre sua injusta condenação escreveu a antológica Hurricane. Divulgação. Netflix

O segundo é o pugilista injustamente condenado por um homicídio que não cometeu, visitado por Dylan na prisão durante a turnê, “o homem que as autoridades passaram a culpar por algo que ele nunca fez”, como diz a letra do épico de Dylan (em parceria com Jacques Levy), em tradução livre. O homem que poderia “ter sido o campeão do mundo” (dos pesos médios), como continua a letra, cuja gravação (e performances durante a turnê) é lindamente emoldurada pelo violino de Scarlet Rivera.

O julgamento de Carter foi comprovadamente motivado por racismo. Diz ainda Dylan em seu protesto quilométrico: “Rubin Carter foi falsamente julgado” e “Não posso deixar de me sentir envergonhado por viver em uma terra onde a justiça é um jogo”. Obviamente Rolling Thunder Revue não é um filme (apenas) sobre política, mas é impossível não traçar um paralelo com o Brasil de 2019.

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Num país sem memória a ficção refaz a história

Legalidade, de Zeca Brito e Léo Garcia, terá estreia nacional hoje (20), às 19h, no Teatro Alcione Nazaré (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, Praia Grande) na programação (gratuita) do Festival Guarnicê de Cinema. A estreia mundial aconteceu em abril, no Festival Latino de Chicago, nos Estados Unidos.

O filme costura, a partir de um triângulo amoroso fictício, uma narrativa que remonta ao episódio histórico com que Leonel Brizola, no fim das contas, conseguiu adiar em cerca de três anos o golpe militar de 1964, que acabou por jogar o Brasil numa ditadura militar por 21 anos.

Homem de vícios antigos conversou com exclusividade com os diretores e com Sapiran Brito, pai de Zeca, um dos atores que interpreta Brizola, personagem central na trama.

Léo Garcia, Sapiran Brito e Zeca Brito. Foto: Juliana Costa

Como é que foi a receptividade do filme no festival de Chicago?
Zeca Brito – Surpreendente. Incrível como um filme que conta uma história brasileira pode ser universal e pode encontrar reverberações em outras culturas, outras visões de mundo. Chicago é uma cidade muito cosmopolita, então o público que assistiu o filme era de americanos e estrangeiros, pessoas que foram morar nos Estados Unidos, mas que vêm de outras histórias geopolíticas, por exemplo, do Oriente Médio, ou da própria América Latina, a gente pode conversar com uruguaios, com argentinos que residem em Chicago e por conta de ser um festival latino foram assistir o filme, e todos dizem a mesma coisa: algo muito parecido aconteceu em meu país. Que é o reflexo de como o mundo se movimenta, de como os interesses [acentua os dois primeiros “e”, imitando o sotaque de Brizola], de que o Leonel Brizola falava são reais, e é um pouco o que o filme tenta estabelecer. O filme se passa em 1961 e é sobre esse ambiente de guerra fria, onde Estados Unidos e União Soviética e distintas vontades políticas dominavam o mundo e muito daquilo que a gente vivia como história, como processo histórico era influenciado por esses interesses externos. Em Chicago foi muito interessante como isso passou pela percepção do público, essa identificação de como a história se repete, de como a história é parecida. Por outro lado, foi uma questão também que me surpreendeu, eu tava contando pro Léo esses dias, a gente vem, a gente fala muito no filme sobre o aspecto histórico, os personagens históricos. Mas o público mais desinformado da história do Brasil, que é grande parte do público norte-americano, não sabe nada do que aconteceu aqui, primeiro por que nossa cinematografia não chega lá, segundo por que não há muito interesse dos Estados Unidos de olhar para outras culturas, por que já trabalha a sua também como um produto, foi a questão do romance. É um filme que tem um romance que costura a narrativa histórica e esse romance tocou no coração do público e isso também me surpreendeu.

O diretor Zeca Brito. Foto: Juliana Costa
O diretor Zeca Brito. Foto: Juliana Costa

Por que a opção de estrear aqui?
ZB – Interessante. Acho que o Festival Guarnicê é um festival com uma história muito bonita, diferente de outros festivais, sem querer fazer uma crítica específica, ele não é um festival monárquico, de um dono, de uma empresa, ele é um festival que se liga muito com a comunidade civil organizada, partindo de uma universidade [o festival é promovido pelo Departamento de Assuntos Culturais da Universidade Federal do Maranhão], há 42 anos. Isso no Brasil é muito bonito e importante de ser celebrado nesse momento histórico. A função do cinema tem que ser essa, se aproximar da sociedade civil, cumprir um papel também educativo, falar mensagens importantes, provocar discussões, aproximar nossa memória histórica e também do tempo contemporâneo do que está acontecendo no mundo, mas da nossa realidade cultural, trazer esses debates pra sociedade. Esse festival, nesse sentido, já é muito sério, por estar ligado, a uma instituição do saber. E segundo, a gente vive um momento político, não foi à toa que a gente escolheu Chicago, que é uma cidade ligada à causa operária, aos direitos trabalhistas, e é uma cidade que recentemente elegeu uma mulher, negra, LGBT, prefeita [Lori Lightfoot]. De alguma maneira isso pontua que a gente está num território que tem espaço para as discussões que a gente está propondo no nosso filme e acho que o mesmo se revela no tempo contemporâneo com o Flávio Dino, que é uma referência para um pensamento aberto, de como deve ser a construção da cidadania, do encontro humano, principalmente partindo da luta contra as desigualdades sociais. A gente tem que trabalhar também essa questão de como a sociedade se traduz politicamente. Estar num território com um pensamento tão aberto a questões da história, questões que nosso filme trata, questões da sociologia que nosso filme trata, isso a gente vê publicamente que há uma sinalização de política pública mesmo, que vem a calhar com o que a gente está querendo discutir.
Léo Garcia – A gente começou a escrever essa história em 2007, 2008, mais ou menos, e naquela época era impensável falar em ditadura militar. Tu encontrava dois ou três malucos, mas era algo “ah, já passou”, e aí quando a gente está lançando o filme pairam no ar nuvens cinzentas e o filme ganha outra importância, tem, digamos, outra virtude, que é lembrar um passado recente, que as pessoas já esqueceram, o que foi a ditadura militar. Apesar de o filme se passar antes da ditadura, o Brizola já estava combatendo um princípio de golpe, ali em 1961. Ele consegue, mas depois em 1964, infelizmente…

O diretor Léo Garcia. Foto: Juliana Costa
O diretor Léo Garcia. Foto: Juliana Costa

Dá até pra dizer que o golpe foi adiado por essa ação.
LG – Foi, com certeza!
Sapiran Brito – O golpe era contra ele. Ele tava na rua, tava na boca do povo, “cunhado não é parente, Brizola presidente!”, não tinha outro. Era o grande nome entre os progressistas, não tinha outro. Estava praticamente eleito pelo povo. Pelas ações, pelas atitudes, pelo momento. A CIA [Agência Central de Inteligência do governo americano, na sigla em inglês] tentou, não conseguiu a primeira vez, mas na segunda… por detrás de tudo sempre está a CIA. Sempre estão os interesses norte-americanos, através da CIA, que me desculpe a expressão, mas costumeiramente compra os nossos deputados. Costumeiramente. Ele conseguiu segurar o golpe, conseguiu evitar o golpe, mas terminou o mandato como governador, foi ser deputado, e não tinha os meios físicos e materiais e o poder que tinha como governador para tentar deter os golpistas de 1964. Por que infelizmente o nosso país é construído de golpe em golpe. Agora tivemos o golpe branco contra a presidenta Dilma e tivemos um complô da mídia e do parlamento contra o presidente Lula, nada mais que outro golpe branco. E de golpe em golpe nós vamos. E Leonel de Moura Brizola significa o anti-golpe, a voz da resistência, a voz do progressismo, a voz daqueles políticos corretos que ainda resistem. Cinco por cento, mas ainda temos, na classe política, uns cinco por cento de homens retos, honestos e verdadeiramente brasileiros, sem nacionalismo, sem xenofobia, questão de amar o Brasil. Quero lembrar só uma coisa: Brizola não era um gaúcho. Darcy Ribeiro escreveu uma bela crônica sobre o Brizola, dizia “Brizola, um filho do povo brasileiro”, por que ele era preocupadíssimo e envolvido com toda a questão. Um grande problema nacional é o problema da dominação do Brasil. O Brasil é dominado. E nós sabemos por quem. Dominado pelo capital, que se organiza basicamente em Wall Street. E o Brizola representa essa voz de rebeldia contra isso. O Brizola, que foi tachado de comunista, não tinha nada de comunista. O Brizola era um progressista, um socialista embrionário. Tanto que a Internacional Socialista o elegeu vice-presidente, ele não sendo presidente do país. E esse cargo, em memória dele, ainda está na mão do partido dele, o PDT, hoje representado pelo Carlos Lupe. O PDT tem cadeira na Internacional Socialista, mesmo o Brizola não sendo declaradamente um socialista, mas era um socialista, por que era um progressista e um nacionalista sem xenofobia.

O ator Sapiran Brito. Foto: Juliana Costa
O ator Sapiran Brito. Foto: Juliana Costa

O que significou para o senhor interpretar o Brizola no filme?
SB – Ah, uma grande emoção. Primeiro que eu vi o negócio nascendo, pelas mãozinhas deles, pelas cabecinhas deles [aponta para Léo e Zeca]. Aí quando eles notaram que eu tinha alguma semelhança com o velho, que eu conhecia muito, por ser amigo dele, de frequentar a casa, falar ao telefone, abraçar e conversar com ele com intimidade em diversas ocasiões, eu ajudei a construir o que o Léo e o Zeca roteirizaram. E que fique claro o seguinte: eu não estou no filme por que sou filho do Zeca [risos] ou amigo do Léo, é que eles viram uma semelhança com o Brizola, que eu não posso negar: é uma espécie de osmose, de tanto eu gostar, eu acabei ficando parecido com o velho e tento pensar e agir como ele, por que eu também sou político. Além de artista, ator, diretor de teatro, eu também sou político. Me honra, sobremaneira, representar, mesmo eles me dando pouco espaço [risos], mas é simbólico honrar a memória do velho. E é uma satisfação saber da oportunidade do lançamento desse filme. Eles não previram, eles não têm bola de cristal, nenhum dos dois é Nostradamus, mas parecia que estavam prevendo: “ah, vamos lançar durante o outro golpe”. E estamos aqui honrando a memória de Leonel Brizola.

É curioso que o filme anterior de vocês é sobre Tarso de Castro [A vida extra-ordinária de Tarso de Castro], que é outro combatente da ditadura e também um brizolista.
ZB – E que estava na Legalidade.
LG – De certa forma influenciou um pouco o roteiro do Legalidade. Ele não só estava na Legalidade, como ele foi, a gente conta no filme, um episódio, uns 20 dias antes da Legalidade, o Brizola conheceu o Che Guevara em Punta del Este, um encontro da OEA [Organização dos Estados Americanos] e o Tarso cobriu isso. Várias coisas acabaram se mesclando, a gente estava rodando o Tarso e acabando de escrever o roteiro.
ZB – Quando a gente terminou de filmar o Tarso e foi filmar o Legalidade, o que acontece é que eu acho que tanto personagens que são personagens do filme do Tarso inspiraram personagens do Legalidade. O Flávio Tavares, o Carlos Bastos, pessoas que estão no filme do Tarso de Castro e que são a síntese do Tom e do Luís Carlos, que são os personagens fictícios que a gente criou. São muitos personagens reais, a gente fez uma pesquisa, até interessante, tu vai assistir o filme e vai ver, a gente colocou nos créditos finais todos os livros que a gente pesquisou para criar essa história de ficção. Ela é toda costurada por episódios reais, mas cabe a cada um de nós ir a fundo para ver a veracidade daquela coisa no sentido de que a costura é poética. É uma obra poética, como se fosse o [poeta grego] Hesíodo estar contando a guerra e não estar falando da guerra como ela é, mas está se baseando em fatos que aconteciam e que aconteceram para poder sintetizar de forma poética a guerra. O que a gente fez no Legalidade foi isso. A gente leu muito sobre tudo o que havia sido produzido em termos de pesquisa científica, da academia, e bibliografia, livros sobre episódios históricos, depois entrevistamos autores, o Juremir Machado, o Flávio Tavares, mas primeiro a gente partiu do livro deles, mas entrevistamos, e entrevistamos familiares, amigos, o Carlos Araújo, que inspira nosso personagem comunista, mas vai acabar sendo trabalhista. O próprio [Luís Carlos] Prestes foi ser presidente de honra do PDT, tem essa costura histórica e a gente coloca esses elementos no filme. Tem o personagem trabalhista, que é o Brizola, tem o personagem comunista, que é o Luís Carlos, como essas ideologias vão se encontrar com o campo oposto, que é alguém que está corrompendo a constituição. Alguns deputados, no campo do poder legislativo, e alguns militares, o chefe da Marinha, o chefe da Aeronáutica, que não queriam permitir o Jango [João Goulart] voltar ao Brasil e assumir a presidência, porém, aí é interessante como a história é complexa, a Legalidade só foi possível com a adesão do Terceiro Exército, que era a maior força militar brasileira: 120 mil homens, que estavam no Rio Grande do Sul. Brizola foi tão persuasivo, conseguiu levar tão profundamente a mensagem, mobilizar a população civil, que aqueles soldados que estavam no Rio Grande do Sul aderem à Legalidade, rebelando-se à ordem inclusive de bombardear o Palácio [Piratini, sede do governo gaúcho], que partiu de Brasília, então acontece esse contragolpe. Aí o Jango vem, aí o que acontece: a coisa estava tão inflamada que era mais conveniente que o Jango viesse pra apaziguar, por que o Brizola ia sim subir e tomar o poder. Aí o Tancredo [Neves] vai até Punta del Este, faz uma negociata básica, histórica, e resolve, para que não haja derramamento de sangue, “vamos estabelecer um pacto de silêncio você volta e assume o parlamentarismo, não fala nada, não faz discurso, fica quietinho, acalma o Brizola, silencia o Brizola, a gente vai silenciar o Exército lá em cima, Aeronáutica, Marinha”… Nisso os navios de guerra já estavam no porto do Rio Grande, toda a frota aérea já estava mobilizada para bombardear o Rio Grande do Sul e acontece esse acordo de paz, que foi um desfecho, pro Brizola foi um pouco frustrante, mas um ano depois, através de um plebiscito, se reconstitui a democracia, que dura dois anos e acaba com o golpe, em 1964.
LG – É legal por que tem todo esse aspecto político, mas nosso roteiro tem camadas. Uma pessoa que, digamos, não tem nenhum conhecimento de história pode assistir o filme e vai acabar desfrutando pelo menos da história de amor, vai entender o enredo, vai saber que existiu esse momento tão importante da história. Eu acho que tem essa virtude o roteiro que a gente trabalhou. Quando essa história começou, em 2007, mais ou menos, eu e Zeca bem jovens, Zeca estava acabando o primeiro longa dele, O guri, eu ainda não tinha nem um longa filmado, e o Zeca veio com essa história: “ah, o meu pai sempre falou que a Legalidade renderia um filme”, eu nem conhecia o Sapiran, nem lembrava da Legalidade, eu tinha estudado no colégio, assim [estala os dedos] talvez numa tarde… aí eu comecei: que Legalidade é essa? Li um livro e falei: “cara, rende um filme, vamos escrever?”. “Vamos!” E começou, naquela época a gente tinha o sonho de lançar em 2011, nos 50 anos da Legalidade. Ledo engano. Cinema no Brasil nada é tão fácil. Um dia eu quero convidar o Zeca pra fazer umas quatro, cinco horas, pra gente mostrar nosso roteiro desde o início. Do primeiro argumento o tanto que mudou, a gente foi enxugando personagens, mudando, tinha um circo, quatro irmãos viraram dois. Um roteiro tinha um diálogo de 15 páginas entre dois palhaços, eu falei: “Zeca, não sei se a gente vai ter tempo pra isso” [risos], queríamos fazer uma coisa mais [o cineasta italiano Federico] Fellini, mas enfim, a gente foi se acertando.
ZB – Esteticamente é um filme bem atemporal. Interessante o fato de a gente ter achado que ele deveria ter sido lançado em 2011 e não conseguimos, só filmamos em 2017 e estamos lançando agora em 2019, mas a construção do roteiro, apesar de se passar em 1961, é um filme que joga com a história, com o fato de ter essa construção poética, personagens fictícios. De algum momento essa história já aconteceu em outros momentos antes, aconteceu depois. A gente diz: é a prévia de 1964, depois 1964 aconteceu mesmo. Mas pode ter acontecido agora, em 2016.
SB – Já tinha acontecido antes, com Getúlio [Vargas].
ZB – E esteticamente ele flerta com o melodrama, tenta buscar essa raiz brasileira, que às vezes o cinema olha com certo preconceito, essa matriz que vem da televisão, da telenovela, como elemento estético, para se trabalhar a história, ela se relaciona muito com a história, no sentido de que a história brasileira é um pouco uma telenovela. A narrativa histórica. Às vezes a realidade é tão engenhosa, que parece surpreender, daqui a pouco cai o avião do desembargador, do primeiro ministro, coisas que não existem no Brasil, mas estão aí toda hora.
LG – Alguém viu um corte do filme e falou: “não, os militares nunca iam fazer isso”, mas está ali, foi assim que aconteceu.
ZB – Exatamente. É por isso que a gente bota todos os elementos históricos sem citar, mas lá no final, para que essas pessoas tenham o trabalho de ler esses livros.
SB – Enfrentamos um grande problema: é um país sem memória. Todos nós enfrentamos, jornalistas, todos nós. Ninguém lembra o que aconteceu há cinco anos. Não vai lembrar o que aconteceu há 50. Não tem a mínima informação. O filme contribui pra isso. Não chega a ser um filme histórico, mas pode chamar a atenção para que a juventude desperte para esse tema e vai encontrar outras histórias de muitos e muitos golpes que esse país sofre.

Essa abordagem de algum modo é curiosa por que a gente vive a era das fake news, que ao fim e ao cabo foram responsáveis pela eleição de Bolsonaro. E vocês viram o jogo ao contar um capítulo da história do Brasil através de uma ficção, o que é uma solução supercriativa.
ZB – É uma coisa que está aí desde que o mundo é mundo, que se chama romance histórico. Quem não leu O tempo e o vento [do gaúcho Érico Veríssimo] ou E o vento levou… [da norte-americana Margaret Mitchell]. Ambos são romances históricos que viraram filmes e que contam uma história. A história do Rio Grande do Sul foi contada em O tempo e o vento, a história da guerra de secessão nos Estados Unidos foi contada em E o vento levou… Estou dando dois exemplos, mas poderiam ser outros.
LG – Ao fazer isso a gente altera alguns detalhes, a gente cria personagens fictícios que fazem coisas importantes, mas isso é normal de qualquer dramaturgia.
ZB – A dramaturgia histórica é assim. É a síntese da história. A gente tem a responsabilidade de esperar 50 anos do episódio, poder ler todos os livros, poder comparar as perspectivas históricas, poder colocar diferentes pontos de vista em cena. Por isso é um romance. A gente tem a visão dos Estados Unidos, a visão da CIA, que parte de uma jornalista do Washington Post, de alguma maneira…
LG – Olha o spoiler… [risos].
ZB – A gente não tem o personagem real por que a CIA não revelou esses documentos, mas hoje a gente sabe que a CIA espionava o Brizola.
SB – Já revelou.
ZB – Já, mas a gente não sabe quem era o espião, a gente tem o relatório.
SB – Daqui a 50 anos vamos saber.
ZB – Daqui a 50 anos vamos saber, talvez. Mas a questão é que depois do Che Guevara o Brizola era o homem mais vigiado na América Latina. Como é que a gente vai construir isso historicamente? A gente tem essa informação, mas tem que ser através de personagens fictícios, a própria questão da Legalidade, como a gente tem muitos personagens reais, você precisa sintetizar cinco personagens reais em um personagem fictício. O que aconteceu é real. Essa que é a questão do Legalidade. Você tem compromissos históricos com personagens históricos. Tudo que o Brizola diz no filme são falas do Brizola durante a vida que estão ali na boca dele. Claro, tem uma ou outra cena de intimidade que a gente consultou a família: “isso aqui ele falaria dessa maneira?”. “Ah, sim”. É uma síntese de um discurso, colocado de uma maneira mais coloquial, mais íntima, como ele falava com a esposa, coisas assim. Mas os personagens históricos, os discursos do Brizola são os discursos que ele fez na época. Então tem essa costura entre personagens históricos com discurso histórico real e uma construção poética que é o lirismo da dramaturgia clássica que está aí desde a Grécia antiga.
SB – Uma coisa a ser ressaltada na ação do Brizola é que foi a primeira vez no mundo que alguém usou a comunicação para organizar um levante. Nos dias que correm é a maior barbada, mas naquele tempo, o grande veículo era o rádio. Tevê não tava ainda em cadeia, não tinha as afiliadas, tevê era uma coisa muito incipiente ainda. Ele foi o cara que despertou pra comunicação, pra fazer um levante através da comunicação, quando ele criou a Rede da Legalidade, que começou lá no porão [do Palácio Piratini], depois foi pra Goiás, Paraná, foi crescendo, crescendo, só não entrou em São Paulo, mas no resto do país se formou a Rede da Legalidade. Então, esse fator, o tino desse cara, de se dar conta do uso da mídia, da comunicação, a seu favor, a favor da sua ideia, do seu projeto, é fundamental, pouca gente observa isso.
ZB – É muito interessante. Ele tinha o dom da oratória. Toda sexta-feira ele falava num programa de rádio, ele se comunicava quatro, cinco horas, as pessoas às vezes dormiam, de tanto que ele falava, dormiam, acordavam e ele tava falando.
SB – Que nem o Fidel [Castro] e o Mao [Tsé Tung].
ZB – Quando ele se dá conta de que tinha um golpe em curso ele escreve um comunicado e manda pra todas as rádios. Aí acontece um fato, que era sintomático do golpe, que o exército imediatamente manda fechar todas as rádios que haviam lido o manifesto, em que ele dizia: “Jango está na China, está sendo impedido, temos que nos mobilizar para que seja respeitada a constituição”. As rádios são fechadas, a única que não é fechada é a Rádio Guaíba, por que era um pouco mais conservadora, de alguma maneira tinha uma outra visão política, não aceitou ler o manifesto, não foi fechada. No dia seguinte ele confisca o transmissor da Rádio Guaíba, traz pro palácio e transforma a secretaria de comunicação na secretaria de segurança, digamos assim. Ele bota todo aparato da brigada militar a serviço do resguardo da comunicação. Resguardar a torre da Ilha da Pintada, transforma o palácio num grande forte de comunicação, onde ele bota os transmissores na rua pro povo que tava na frente ouvir o discurso dele, começa a discursar, discursar, produção artística, poesia, jogral, em torno disso, os dias vão passando e só discurso não dá, [o ator Paulo César] Pereio, [a poeta] Lara de Lemos, fazem o Hino da Legalidade, aquilo começa a ser tocado ininterruptamente.
LG – Vai mobilizando todo o Brasil, “olha não vamos deixar ter esse golpe”.
ZB – Mobiliza a sociedade civil inteira no sentido de dizer: “o que temos aqui?”. “A brigada militar”. “Quantos contingentes?”. “Tantos”. “Isso aqui não dá nada”. “O que a gente tem?”. “O povo na rua”. “Quantas mil pessoas estão na rua?”. “As pessoas precisam se armar”. Aí ele estabelece um jogo de guerra civil pela constituição. Quem tem arma pega sua arma e vem pra rua. Ninguém tinha tanta arma, ele pega todas as armas de estoque do palácio e distribui pra sociedade civil. Vai na Taurus, pega todo estoque de armas da Taurus, a Taurus que hoje tá com as ações lá em cima, distribui pra população todas as armas e “nós vamos enfrentar o exército brasileiro, vai ser brasileiro contra brasileiro, por que a gente tem que preservar a única coisa que a gente tem que é o voto democrático popular”. Jango Goulart havia sido eleito com mais votos que Jânio Quadros, numa época que as eleições eram separadas, vice e presidente.
SB – Não podia ser mais legítimo.
ZB – Só que na verdade isso tudo era um jogo de cena, as armas do palácio não tinham balas, as balas eram da revolução de 30, estavam todas estragadas. Ele vai jogando com o limite, pra ver o que ia acontecer, e tentando segurar, segurar, segurar, pro Jango voltar e o Jango não vinha.
LG – Não tinha informação direito de onde é que ele tava, tava em Nova York, ele vinha a conta-gotas, parava em Lima…
ZB – Até começar a guerra eles não precisam saber que elas não atiram [risos].
LG – Triste pensar que tem uma avenida em Porto Alegre chamada Castelo Branco. Fizeram uma votação, vereadores conseguiram mudar pra Legalidade. Aí quiseram mudar, “não, por que tem uma pracinha chamada Legalidade”. Aí virou avenida da Legalidade e da Democracia. Agora, em tempos [de] Bolsonaro voltou a se chamar Castelo Branco.

Sério?
LG – Agora vamos recomeçar, pra voltar a ser Legalidade, é sintomático, não?
ZB – Se a gente quer lutar, tem que lutar por educação, no Brasil hoje.
SB – O Castelo era o menos golpista deles. O Castelo saiu do Ceará pra detonar o golpe, o AI-5 do Costa [e Silva], por que o compromisso moral do Castelo com a nação era da eleição em dois anos. Ele saiu, teve que sair, passou pro Costa e Silva e o Costa e Silva deu um golpe dentro do golpe. E ele decolou e caíram o avião dele.

A personagem da Cléo Pires é jornalista.
SB – É uma espiã disfarçada.
ZB – Spoiler!
SB – Apaga, apaga [risos]. Quem sabe ele não é um espião da CIA? [gargalhadas].

Ou pelo menos da Abin [risos]. Recentemente houve esse episódio do The Intercept vazando as conversas do Sérgio Moro. Queria saber a opinião de vocês sobre a importância do jornalismo e da liberdade de imprensa no mundo e principalmente no Brasil sob a égide de Bolsonaro.
LG – Estou aguardando o episódio de hoje da Vaza Jato.
SB – O filme deles sobre o Tarso reflete muito bem isso. O Tarso sempre disse que não tínhamos uma imprensa livre, é uma imprensa submissa, uma mídia submissa, infelizmente. Claro, tem CartaCapital, tem Caros Amigos, tem umas revistas, uns jornais que não estão no topo do consumo, que são as vozes resistentes. Agora os demais? [Fala com desdém:] Folha, Estadão, O Globo, Rede Globo, Record, tudo isso está a serviço do capital. O jornalista de um desses órgãos que quiser ser libertário, da grande mídia, que quiser falar a verdade, está desempregado. Não só desempregado como o chefe liga pras outras redações e diz: “não contrata fulano, que ele complica”. Nosso jornalismo, infelizmente, está amordaçado. O que salva agora? As redes sociais, as agências independentes.
LG – Pro bem e pro mal. Hoje em dia as pessoas recebem notícias pelo celular e ninguém quer saber se é verdade, se não é. Mas fake news passa.
SB – Passa. O cara vai quebrar tanto a cara dando mancada, que uma hora ele vai procurar uma fonte confiável. E existem fontes confiáveis. A própria grande mídia agora está ficando responsável [risos], está sentindo a concorrência. Desde o tempo do [Assis] Chateaubriand que a grande mídia é golpista, que derruba, se apropria, e manda no presidente.
LG – A gente aborda, no próprio Legalidade, não só a Cléo Pires é uma brasileira que mora em Washington. A gente tem um triângulo amoroso, são dois irmãos, um deles trabalha no [jornal] Última Hora. Todo envolvimento dos jornalistas naquela época na Legalidade é fundamental. Eles fazem parte do plano do Brizola, era um jornalismo muito mais ativista, digamos.
ZB – Tem duas questões, fazendo relação com The Intercept. Primeiro, a questão da investigação e dessa responsabilidade que o jornalismo brasileiro talvez precise retomar, de depender menos do release, das notícias prontas, mas de ir atrás não só da visão oficial. Até no filme isso é engraçado, por que de alguma maneira os meios de comunicação de nosso filme estão a serviço do Brizola, eles são a voz do Brizola, a voz de uma liderança, mas de uma liderança que eles conheciam intimamente. Isso é uma questão. Ele não tinha como governante, esse distanciamento que os governantes costumam ter da imprensa. O Brizola tomava café todos os dias com os jornalistas para falar sobre o que estava acontecendo, chamava, não se negava a responder nenhuma pergunta, não era uma pessoa que fugiria de uma pergunta. Ele sabia a importância da imprensa para se manter ligado ao povo, ele tinha essa relação com o povo. “A grande massa, as pessoas que estão muito distantes, todos precisam saber do que estou fazendo”, pra ser cobrado também. Ele dava a cara a tapa, deu grandes exemplos em vida pra poder fazer as coisas que fez. Ele fez a reforma agrária, mas ele doou uma fazenda que ele tinha, foi a primeira fazenda, que ele doa, da família. Mas ele soube jogar, no episódio da Legalidade, com a imprensa como um elemento de guerra.
LG – Isso o Brizola jovem, por que o Brizola mais velho, depois…
ZB – Vai comprar briga com a imprensa.
LG – E o fato de o Brizola ter brigado com a Globo significou que ele nunca foi presidente do Brasil. O exílio também fez muito mal pra ele.

Como é que vocês têm acompanhado esse ataque sistemático às artes, à cultura e ao pensamento pelo governo Bolsonaro?
SB – É o que se esperava dum fascista. Não pode esperar do fascismo outra coisa a não ser isso. O [ministro da propaganda da Alemanha nazista Joseph] Goebells, o número um do [Adolph] Hitler, dizia: “quando eu ouço a palavra cultura tenho vontade de sacar da pistola”. Indiretamente, eles odeiam, eles também têm vontade de sacar a pistola e matar todos os artistas, por que o artista é rebelde, o artista fala, o artista é independente, além do quê a cultura e a arte servem para o esclarecimento do povo, e eles não querem, querem o povo burro.
LG – Ignorante como eles.
SB – Eles não têm carinho nenhum, têm profundo desprezo pela cultura. E é aí que está o nosso papel: resistirmos. Por que isso passa. Essa onda de fascismo, de direitismo, existe em todo o mundo, não é só no Brasil, eles estão surfando na onda, a direita botou as garras de fora e está tendo seu momento. Até por culpa da esquerda, vamos aprofundar, que fracassou em muitas coisas. Acontece que a hora é deles, não é a nossa hora, não é a hora dos progressistas, não é a hora dos esquerdistas. Nesse momento nós temos que resistir, aguentar, por que muda, claro que muda, não sei se vai durar 10 ou 20 anos. Mas de repente alguém pode cair do cavalo.
LG – Vale falar que o filme é em memória de nosso ator, que acabou falecendo, infelizmente, que interpreta o Brizola, o Leonardo Machado.
SB – Foi o último trabalho dele.
ZB – O Léo é o protagonista, junto com o Sapiran ele faz o Brizola, a maior parte do filme ele conduz a trama, é um grande ator do Rio Grande do Sul, deixa um legado importante. Todos os diretores dos últimos 20 anos em algum momento trabalharam com ele. Não chegou a ver o filme pronto, viu um corte, enfrentou um câncer e nos deixou precocemente. Mas fez o filme com uma entrega absoluta, com paixão, buscou o papel, a gente estava buscando um ator, estávamos caindo no canto da sereia de que para chamar público tínhamos que ter atores do eixo Rio-São Paulo, em grande evidência na televisão.
LG – Mas tu tinha uma pulguinha, queria um Brizola gaúcho.
ZB – É, num primeiro momento a gente achava. Mas ele buscou o papel, me procurou, chegou ao teste caracterizado, era mais forte do que o próprio filme a vontade dele de fazer o filme. Fez lindamente, conduz o filme com uma baita responsabilidade, as falas reais do Brizola, teve um processo de caracterização, mudou o cabelo, colocou lente de contato, engordou um pouco para fazer o filme, é um ator muito completo, tanto pelo aspecto físico, disposto a transformações, quanto pela parte de equipamento vocal, tinha uma voz muito bonita, muito volume, pros discursos do Brizola isso foi muito importante, uma capacidade também de ser muito generoso, conviveu muito com o Sapiran, foi pra Bagé, fez um laboratório de um mês antes, saiu um pouco da cidade, para buscar essa raiz do Brizola, que era um homem rural, um colono, um homem do campo. Foi conviver com o Sapiran para os dois criarem o mesmo personagem. O filme, agora que eu falei esse negócio do campo, tem uma outra questão importante que a gente foi buscar: o filme se passa todo em Porto Alegre, mas estabelece um relação histórica com São Borja, com a raiz desse trabalhismo brasileiro que nasce com Getúlio Vargas num território que é Brasil mas que tem como origem de colonização a cultura espanhola, a figura do caudilho, e principalmente a questão da justiça social que fez parte da utopia jesuítica guarani. São Borja é uma cidade que nasce da colonização espanhola jesuítica, e foi o grande centro da justiça, os tribunais guaranis aconteciam em São Borja. Em 1680 já existia a ideia de reforma agrária, de divisão igualitária da terra, isso vai estar no subconsciente do Getúlio, do Brizola, e o filme tenta também flertar com esse passado espanhol que fez o Rio Grande do Sul, que está nas missões, tem um elemento do nosso filme que é inspirado no Darcy Ribeiro, antropólogo, que está na região das missões, em São Miguel das Missões, trabalhando com os indígenas, e vai pra Porto Alegre, mobilizado pela Legalidade, também mostrando essa mobilização que o Brizola fez no interior do estado. Então, pra falar um pouco das raízes do Brasil, que passa pelo elemento indígena, pelo elemento negro, pelo elemento português e pelo elemento espanhol, também no caso do Rio Grande do Sul.

Foi todo rodado em Porto Alegre?
ZB – O filme teve locações em São Miguel das Missões, também em Torres, mas representando Punta del Este, mas a história em si se passa em Porto Alegre.

No começo da entrevista você fez um elogio ao Guarnicê. Nesta edição foi inaugurada uma mostra chamada Cinema Político. O que você achou da iniciativa?
ZB – Eu achei fantástico, o festival tem que ter um compromisso com a sociedade. A gente vive um momento no Brasil onde as instituições, onde o próprio sistema político, como a sociedade vê a política, precisa ser discutido, pensado, a gente precisa repactuar com a sociedade, com a política. Há hoje uma ojeriza, um preconceito muito grande do cidadão com a classe política, por conta do desgaste da corrupção, que é real e que é histórico. A gente esteve no Museu de Arte Sacra hoje à tarde e há uma frase de Padre [Antonio] Vieira, numa de suas pregações, falando de como a corrupção está presente e é genuína do ser humano e é preciso combatê-la, não é questão apenas de ser brasileira, ela existe em toda parte, mas de alguma maneira no Brasil, por conta de nosso processo histórico, a mancha da corrupção se tornou maior do que a vontade civilizatória de fazer política por parte do cidadão. A gente precisa reaproximar o cidadão da política. A sociedade, no seu mais alto grau de caminhar, de pacto social, precisa da política, precisa da participação política. Mas não necessariamente da figura do grande líder, e é essa que é a questão que o Brizola entende, que aquilo tudo só seria possível envolvendo todos os cidadãos e fazendo com que as pessoas se apropriassem daquela causa, lessem a constituição, entendessem por que estavam lutando por aquilo. Como artista a gente também tem um compromisso de aproximar a política da discussão cidadã. A política é estrutural na sociedade, voltamos pra Grécia antiga. Há sociedades que conseguiram avançar, inclusive pra que a gente pudesse ter um processo civilizatório que deu origem ao renascimento, que deu origem à modernidade, ela se baseia na política.
SB – Há um preconceito contra a política em essência. Quando tem um festival que abre uma janela importante para um filme político, é importante, é um avanço. O Guarnicê tem conteúdo, tem pensamento, é um festival de pensamento. O festival que ele [aponta para Zeca] é coordenador tem isso também. É arte, mas é arte para pensar.

Qual é o festival que você coordena?
ZB – Tanto eu quanto Léo, de alguma maneira nós criamos janelas para poder propagar a arte cinematográfica brasileira, mas também refletir sobre nossas áreas, eu na minha atuação na faixa de fronteira e o Léo como roteirista. O Léo criou em Porto Alegre, o Frapa, o Festival do Roteiro Audiovisual, que é hoje um dos maiores, acho que é o maior da América Latina, e eu criei em Bagé e Livramento o Festival de Cinema da Fronteira, que já tem 11 edições. Ano que vem eu não vou participar, vou assistir. Mas fui o idealizador. O Frapa está chegando à sétima edição.

Qual a previsão de estreia do Legalidade no circuito exibidor?
ZB – Dia 12 de setembro ele vai estrear no Brasil. [Distribuição da] Boulevard Filmes, que distribuiu o Tarso também, distribuiu o Glauco do Brasil, meu outro filme.

Como vocês avaliam o atual momento do cinema brasileiro em que filmes como Bacurau, de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dorneles, e Marighela, de Wagner Moura, têm concorridas estreias internacionais, com ampla repercussão, mas não estreiam no Brasil?
LG – Eu acho que o Bacurau vai acabar estreando. O Marighela tá complicado, eu estou lendo, está complicado, a distribuidora ficou com medo da repercussão. O Marighela é diretamente contra o Bolsonaro. Eu não vi o Bacurau, mas imagino que seja uma coisa não tão direta, é óbvio que o discurso está ali, mas uma pessoa tosca não vai se sentir agredido, como o Bolsonaro, diferente do Marighela, que é um cara que combateu a ditadura. Eu acho que o Bacurau vai entrar em cartaz, deve entrar bem, espero que faça um bom público.
ZB – Eu acho que ambos os filmes escolheram estrear em festivais estrangeiros, é uma política que os realizadores brasileiros têm tido, não agora, mas há muitos anos, por que muitos desses festivais exigem que seja première mundial. Estreiam fora por que não têm espaço no Brasil? Não é verdade. Estreou fora por que os realizadores brasileiros preferem estrear fora, criar expectativas, ganhar prêmios fora, e depois estrear nos festivais nacionais. Acho difícil que ambos os filmes, de realizadores de prestígio, com os elencos que têm não sejam selecionados em festivais brasileiros. Provavelmente a gente vai ver agora no segundo semestre, os dois filmes em Gramado, Brasília, em algum desses festivais, Rio, São Paulo, eles vão estar nesses festivais. A questão do lançamento comercial, hoje no Brasil, tem dois caminhos: ou é investimento de uma grande distribuidora, e aí isso não é uma questão de perseguição política, é uma questão de capital. A gente vê que o capital pode, por exemplo, como a Netflix, lançar um filme sobre o impeachment da Dilma, por que o capital não tem esquerda nem direita, ele vende pra esquerda e pra direita.
LG – A Netflix fez O mecanismo [de José Padilha].
ZB – A mesma Netflix que fez O mecanismo faz Democracia em vertigem [de Petra Costa]. Então o capital é um grande balaio, que tem uma oferta que é o comunismo, o neoliberalismo, está tudo ali em oferta. O outro mecanismo é o Fundo Setorial do Audiovisual. O Legalidade é um filme financiado pelo Fundo Setorial do Audiovisual, o Marighela também. O Fundo Setorial do Audiovisual, na medida em que você aprova o financiamento da realização, a distribuição é suporte automático. Se eu quiser recorrer, eu posso ter recursos do mesmo fundo pra distribuir o filme.
LG – Até o ano passado. Agora tá tudo meio turvo.
ZB – Qualquer filme que está sendo lançado esse ano comercialmente teve que fazer esse processo ano passado. Imagino que qualquer filme que tenha optado pelo Fundo Setorial do Audiovisual ele terá o lançamento, imagino, garantido. A sociedade civil organizada que lutou pelo Fundo Setorial do Audiovisual, que lutou pela transparência, pela governança de um fundo que é gerido por um banco público, aliás, o BRDE foi criado pelo Brizola [risos]. O que existe é uma dominação estrangeira das salas. Vingadores estreou em 800 salas. Há um preconceito contra o cinema nacional, isso existe e isso o Bolsonaro está fazendo questão de acentuar, é uma questão que a gente já vêm lutando há muitos anos e é função nossa, como imprensa, como artistas, formar público, lutar contra essa dominação estrangeira.

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Olhai os lírios do Illinois

A mula. Still. Reprodução

 

Clint Eastwood é um monumento vivo do cinema. Seu novo filme, A mula [drama, EUA, 2018, 116 minutos], é ao mesmo tempo brutal e delicado, com várias camadas e diversas lições (aprendamos com os erros alheios, pois não teremos tempo para cometê-los sozinhos novamente, parece dizer uma delas).

Com direção e atuação magistrais, como é de seu feitio, Eastwood é Earl Stone, um velho premiado por produzir os mais belos lírios do Illinois. É um daqueles seres de que se pode dizer que vive de férias, pois trabalha com o que gosta, mesmo isso custando certo desleixo nas relações familiares.

Decorrem daí a culpa, a falência e uma eterna busca do tempo perdido. Acaso e remorso acabam levando Earl a uma aventura no universo ilegal, perigoso e, por que não dizer, glamouroso do tráfico de drogas. São as viagens que faz a serviço de um cartel mexicano, a princípio numa velha caminhonete – imediatamente pensei em Gran Torino [2008], ao vê-la em cena –, depois numa caminhonete de luxo, adquirida já com o pagamento recebido pelo transporte da primeira carga.

O filme é baseado em um artigo do New York Times, da década de 1990. As viagens e a ousadia de Earl – que dirige cantarolando o que ouve no rádio, a trilha sonora do road movie um espetáculo à parte – prendem o espectador, afinal de contas, ele é um velhinho simpático, bon vivant, bom de papo, um tipo, afinal, acima de qualquer suspeita, dono de fina ironia, bom humor e, por outro lado, de alguma forma, conhecedor da malandragem, já que é um veterano de guerra.

“A geração de vocês”, começa a palestrar a qualquer um que encontre pelo caminho com os olhos enfiados na tela do celular. Ele culpa a internet pela falência de seu negócio com os lírios. É um anacrônico que lamenta não poder comprar mais tempo para recuperar o que deixou de passar com a mulher (Mary, interpretada por Dianne Wiest), a filha (Iris, por Alison Eastwood, filha do diretor) – com quem não fala há 12 anos e meio – e a neta (Ginny, Taissa Farmiga). “Eu pude comprar tudo, só não pude comprar o tempo”, diz a certa altura, arrependido.

Líder da caça ao cartel, o agente Colin Bates (Bradley Cooper) chega a tomar um café com Earl. O policial, com a cara enfiada no celular, lamenta ter esquecido seu aniversário de casamento, e recebe conselhos do protagonista. Estabelece-se uma relação afetuosa, para além da de caça e caçador.

É comovente quando Earl assume os riscos de atrasar a entrega de uma carga para acompanhar os últimos dias da ex-esposa moribunda, e hilariante quando ela lhe pergunta onde ele havia arrumado o dinheiro para retomar a propriedade hipotecada em que plantava lírios e pagar a formação universitária e a festa de casamento da neta.

A única redenção que Earl quer é junto à família. “A família é o mais importante”, diz, noutra passagem. Mesmo isto significando o rompimento definitivo do convívio familiar, assume sua culpa a demonstrar que há limites éticos, ainda que se trate do submundo do crime. Baseada em fatos reais, os criminosos da ficção de Eastwood são maiores que os protagonistas da triste realidade brasileira. O cerco e o ciclo se fecham: A mula começa e termina com a beleza dos lírios, metáfora para o bom da vida, que apesar de tudo, está por aí: basta abrir bem os olhos e prestar a devida atenção.

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Veja o trailer: