Bandeira de aço, eterna

Disco antológico é divisor de águas na produção musical maranhense. Faixa-título, de Cesar Teixeira, batiza show do compositor em julho. Breve memória sentimental embalada pelo trabalho, fruto da pesquisa incansável de Marcus Pereira

ZEMA RIBEIRO

Papete usa um boné xadrez e óculos de aro fino. E sorri. E não é para menos. O músico bacabalense é um homem de sorte. Estava na hora e lugar certos. A estampa é ladeada por um texto, de que colho trecho.

“E logo entrei em contato com um grupo de compositores maranhenses que nos convidou para uma reunião boêmia na Madre Deus, trincheira maior dos resistentes em favor da cultura popular regional, dos tambores, do bumba meu boi. E, perplexos, assistimos ao desfile de composições surpreendentes de Carlos Cesar [Teixeira], Josias [Sobrinho], Ronaldo [Mota] e Sérgio Habibe. Muito antes, a partir de 1968, Chico Maranhão, cujo apelido não deixa dúvidas, vinha me mostrando as coisas de sua terra. Nosso encantamento foi tal que as músicas se instalaram dentro de nós e nosso grupo passou a ter uma senha que era cantarolar ou assobiar a fantástica música de São Luís.”

O trecho é um parágrafo inteiro do texto sem título, assinado pelo pesquisador e produtor Marcus Pereira, na contracapa do vinil Bandeira de Aço, lançado por ele em 1978. Na capa, além do título do disco e de um simpático boi de lata, o nome de seu intérprete, Papete, encimando a expressão “Compositores do Maranhão”, que se referia aos quatro que gravou, os citados autores das composições surpreendentes. Àquela altura, Chico Maranhão já havia lançado pelo menos três discos pela gravadora: um disco brinde com músicas do maranhense de um lado e de outro Renato Teixeira (1969) – disco este que transformou definitivamente o escritório de publicidade de Pereira em gravadora –, Maranhão (1974) e Lances de Agora (1978), gravado em quatro dias na sacristia da secular Igreja do Desterro, no bairro homônimo do centro histórico da capital do Maranhão.

Outra contracapa de texto antológico, aliás. Lá, Pereira cravaria a sentença, espécie de doce praga de que não conseguimos nos livrar: “Ninguém nasce e vive impunemente em São Luís do Maranhão”.

Mas divago.

Bandeira de Aço era o segundo disco de Papete na Marcus Pereira. Antes, ele já havia lançado Papete, berimbau e percussão (1975), em que executa em sua maioria temas de domínio público, pontos de mina e tambores outros. No segundo, nove composições dos quatro mosqueteiros, três deles com passagens pelo Laboratório de Expressões Artísticas do Maranhão, o Laborarte, fundado em 1972 – a exceção é Ronaldo Mota (hoje o único que reside fora do estado) –, um repertório para ninguém botar defeito: no lado a, Boi da Lua (Cesar Teixeira), De Cajari pra Capital (Josias Sobrinho), Flor do Mal (Cesar Teixeira), Boi de Catirina (Ronaldo Mota) e Engenho de Flores (Josias Sobrinho); no lado b, Dente de Ouro (Josias Sobrinho), Eulália (Sérgio Habibe), Catirina (Josias Sobrinho) e a faixa-título (Cesar Teixeira).

Músicas até hoje, como preconizava o relato de Marcus Pereira, cantaroladas e assobiadas por qualquer maranhense – ou quem quer que as tenha ouvido ao menos uma vez. É ou não é Papete um artista de sorte? O talento não lhe nego. Era ou não era fácil tornar Bandeira de Aço, o disco, um sucesso? Nem tanto: “aquele time de compositores praticamente definiu uma estética da música popular produzida no Maranhão”, afirma o sociólogo e radialista Ricarte Almeida Santos em dissertação que está produzindo para o Mestrado em Cultura e Sociedade (UFMA) – o trabalho do apresentador do Chorinhos e Chorões versa sobre as relações entre os sucessivos governos e a produção musical/fonográfica do Maranhão, a ser defendido ainda este ano.

O fato é que demorando mais ou menos, o repertório de Bandeira de Aço inteiro caiu nas bocas, mentes e corações do povo – o disco embalou minha infância e a vida inteira e o que dela ainda vem. Quem nunca ninou uma criança com um Boi da Lua? Ou quem nunca dançou ao som de qualquer daquelas músicas num arraial da vida?

Meu "Shopping Brazil", autografado pelo compositor
Meu "Shopping Brazil", autografado pelo compositor

Cesar Teixeira, Josias Sobrinho Ronaldo Mota e Sérgio Habibe ainda demorariam algum tempo a estrear no mercado fonográfico – digo, em disco, interpretando suas próprias composições. Uns mais, outros menos. O primeiro, que já compunha e vencia festivais desde entre o final da década de 1960 e início da de 70, já vencera salões de artes plásticas e participou da fundação do Laborarte, só viria a lançar Shopping Brazil – sua estreia em disco-solo, apesar de já ter sido gravado por um sem-número de intérpretes – em 2004.

Ali mostrou músicas inéditas e regravou músicas já conhecidas do público em interpretações alheias. Boi de zabumba, coco, choro, samba, xote, baião, hip-hop, ladainha. Tem de tudo. Entre as regravações, Bandeira de Aço. Quem não se lembra de versos clássicos como “Mamãe, eu tou com uma vontade louca/ de ver o dia sair pela boca/ de ver Maria cair da janela/ de ver maresia/ ai, maresia”?

Esgotado, Shopping Brazil ganhará reedição ainda em 2011. A verdade é que as demoras – para lançar um primeiro disco, para recolocá-lo nas prateleiras das quase inexistentes lojas ou para gravar um segundo – se justificam pela despreocupação do artista com questões que não sejam coletivas. Sua música e sua poesia – esta completamente inédita, fora um ou outro poema publicado aqui ou acolá em antologias – sempre estiveram a serviço de causas nobres, como seu jornalismo, sua militância por direitos humanos, indissociáveis os vários césares que lhe habitam. Quem, numa greve, nunca cantou os versos de Oração Latina? A música, vencedora do Festival Viva Maranhão de Música Popular, em 1985, é hoje um hino de trabalhadores e movimentos sociais. Sua vida e obra sempre foram bandeiras de aço, resistência, ideais, convicção e coerência.

Bandeira de Aço dá nome a show que Cesar Teixeira (foto) apresenta dia 30 de julho (sábado), às 21h, no Circo Cultural Nelson Brito (Circo da Cidade, Aterro do Bacanga, ao lado do Terminal de Integração da Praia Grande). A produção é de Ópera Night.

No espetáculo, uma espécie de “saideira das férias”, o repertório, completamente autoral, passeará por músicas mais ou menos conhecidas, incluindo aí dos clássicos que todo mundo sabe e cantará junto a inéditas. Os poderes públicos do Maranhão têm permitido à população conhecer apenas as faces carnavalesca e junina de diversos artistas. A exemplo de outros, Cesar Teixeira é daqueles que têm bem mais a mostrar.

Bandeira de Aço, o show, é uma oportunidade ímpar de ver e ouvir Cesar Teixeira em ação. De saber-lhe a força poética. De sentir a alma tocada por seus versos certeiros. De perceber que a cultura popular do Maranhão é bem mais que carnaval, São João e bumba-bois abençoados por madrinhas e padrinhos cuja credibilidade quase nos faz perder a fé num mundo melhor. Que a Bandeira de Aço tremule de alegria.

[Outro texto nosso no Vias de Fato de julho, ora nas bancas]

As aventuras do Criolina

 [Textinho nosso no Vias de Fato de julho, ora nas bancas]

Duo maranhense teve Cine Tropical considerado melhor álbum na 22ª. edição do Prêmio da Música Brasileira

ZEMA RIBEIRO

Nem mesmo eles acreditavam, conforme confessou um Alê Muniz já de troféu na mão num programa de tevê local. Um casal do Maranhão papar prêmio assim, deixando Reginaldo Rossi e Roupa Nova para trás? Este repórter mesmo chegou a publicar um texto pessimista na internet, antes do resultado. Parecia impossível. Mas não era.

O Criolina (foto) voltou com o título de “melhor álbum” na bagagem, na 22ª. edição do Prêmio da Música Brasileira. Incautos invejosos faziam beicinho e afirmavam categoricamente nunca ter ouvido falar nesse prêmio. Ou diziam que se tratava de um premiozinho inventado pela Vale em mais uma de suas iniciativas de “responsabilidade social” e “compromisso com a cultura” e coisa e tal.

Não, meu caros, trata-se do mesmo outrora chamado Prêmio Sharp de Música ou ainda Prêmio Tim de Música, muda o nome conforme mudam os patrocinadores. Outros maranhenses já o ganharam em outras edições – e mesmo nesta, com Alcione levando a estatueta de melhor cantora de samba – e ainda me parece injusto o Criolina ter perdido o outro troféu a que concorria: melhor dupla, vencido por Zezé di Camargo e Luciano, tendo ainda Victor e Léo na concorrência.

Cine Tropical, a obra laureada, é um disco bonito. Musical e plasticamente. Realizado com apoio do Projeto Pixinguinha, da Funarte/MinC, aprovado em edital público. Cada faixa, um filme cujas imagens nossas mentes inventam (e reinventam), “cinema auditivo”, como já havia cravado Wado, alagoano nascido em Santa Catarina, ao batizar disco seu nos anos zero zero. Cada faixa um gênero e uma sinopse.

Como o “documentário” São Luís-Havana – que já havia saído vitoriosa como melhor música no Prêmio Universidade FM do ano passado, parceria de Alê Muniz, Luciana Simões e Celso Borges, com o poeta participando da faixa. A sinopse: “Traça um paralelo entre São Luís e Havana, a relação física e cultural entre as duas cidades. Investiga o fato de uma suposta rádio do Caribe ter invadido a frequência do litoral do Maranhão há 30 anos”, uma das lendas – reais ou fictícias – que tentam explicar o fato da capital maranhense ter se tornado a Jamaica Brasileira.

Um pedaço da letra, já bem conhecida de vocês do rádio: “São Luís-Havana, Chiquita Bacana, lá na bodeguita/ Tiquira catuaba, yo te quiero catita/ melodia cubana se vê/ nos becos e nas veredas, malecón e las quebradas/ nas matracas e tambores, nos lelês e suas cores”.

Outra sinopse anunciou o show recém-apresentado dentro do projeto Quinta Esticada, na Let it Beer (antiga Boate Flamingo): “um homem, uma mulher e uma guitarra numa aventura eletrizante em busca do Prêmio da Música Brasileira”, berrava a arte distribuída por e-mail ao fã-clube.

O “casal mais charmoso da música brasileira” provou ser possível fazer música de qualidade mesclando elementos do que se convencionou chamar world music e das culturas populares do Maranhão, hibridizando as coisas, de fato, em vez de construir pequenos monstros para encalhe nos laboratórios de criação e produção.

O Criolina é nosso tardio reprocessamento de tropicália e manguebeat, sem nenhum demérito temporal.

Grande parte de Cine Tropical foi gravada em São Luís, onde “o melhor acontecimento da música do Maranhão nos últimos 20 anos”, nas palavras de Zeca Baleiro, escolheu para morar, contrariando a “ditadura” do eixo Rio-São Paulo.

Como sua música, com um pé no Maranhão outro no mundo, o Criolina está em turnê pelo país. Passarão por Fortaleza, Crato, Salvador, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Haja “ronco do motor do Maverick”, tanta estrada a percorrer. Ainda bem que “nós capota mas não breca” (subtítulo de Nó ni pingo d’água): “Nós tá na boca do povo/ diz que nós é osso duro/ nós aguenta chumbo grosso/ olha nós aí de novo”.

Sarney quer se dedicar à Literatura

Com o título acima, o colunista social miranteano Pergentino Holanda, mais conhecido como PH, cravou hoje (21) no cabeçalho de sua coluna de página inteira no caderno Alternativo em O Estado do Maranhão (p. 3), o jornal de Sarney: “Ganhou enorme destaque nos principais jornais do país a declaração do presidente José Sarney de que não pretende concorrer a cargos eletivos após a conclusão de seu mandato, em 2014. Ao se “aposentar” da vida política, o ex-presidente da República, hoje com 81 anos, pretende se dedicar à família e à literatura”.

Que repercutiu, repercutiu, sabemos. Como soubemos do lançamento da bigodegrafia, digo, biografia do político por estas plagas. Aliás, que coberturazinha horrível e bajulatória a dos meios de comunicação em geral por aqui, hein? A que, aliás, se soma o colunista duas letras, cometendo inclusive ato falho, chamando o chefe simplesmente de “presidente”, quando deveria escrever “presidente do Senado”. Terá o colunista lido o texto de Xico Sá sobre o assunto? Ou a notassarro de Tutty Vasques? Não creio.

A propósito, dialogando com o primeiro, lembro da máxima de Millôr Fernandes: “a literatura de Sarney é tão ruim, mas tão ruim, que quando você larga um livro dele, não consegue mais pegar”. Daí o encalhe de volumes e volumes, inclusive autografados, nos sebos, não só da Ilha: quase mil volumes, numa busca simples na Estante Virtual. O ex-Pasquim, aliás, com seu tratado sobre Brejal dos Guajás (1985), me economiza a tarefa árdua e inglória de lê-lo (de Paulo Coelho ainda li um livro entre o fim da infância e o início da adolescência para dizer que sua literatura não presta; de Sarney, nem disso precisei, ave, Millôr!).

Quem ler a “análise crítica” de Millôr, aliás, verá ali um pouco de Sarney, digo, um quê de autobiografia na obra. Terá Regina Echeverria começado a tomar o rumo da biografia autorizada a partir dali? Aliás, será o livro da jornalista a versão de Sarney para os fatos de Honoráveis bandidos, de Palmério Dória? Que, aliás, já havia escrito A candidata que virou picolé, sobre a ascenção e queda da filha Roseana Sarney em seu desejo de tornar-se a primeira presidenta da República, sim, ela o teve um dia. E, bem, eu prefiro “presidente” a como chamam a Dilma.

Outro quê autobiográfico em obra do presidente do Senado é encontrado no início de Norte das águas, como bem lembra por e-mail o professor Chico Gonçalves, trechos abaixo, em itálico:

“Neste mares, Mestre João?”

“Sim, cá e code.”

“Por amor de quê?”

“Para sofrer menos.”

“Sofrer de menos ou sofrer de mais?”

“Tanto faz.”

“Andando que rumos donde?”

“Caminhos do Norte.”

“Do Norte ou da morte?”

“Tanto faz.”

“Norte de quê?”

“Das águas, compadre.”

“Das águas de mais ou das águas de menos?”

“Tanto faz.”

“Águas ou éguas?”

“Tanto faz.”

José Sarney é o homem do “tanto faz” (com todo respeito, mestre Reinaldo Moraes): Com a ditadura ou a democracia? Tanto faz. Com FHC ou Lula? Tanto faz. Com fraude ou sem fraude? Tanto faz. Tanto faz, o negócio é manter o poder, a qualquer custo.

Na literatura ou na política? Tanto faz.

Aliás, aí é um tanto faz com ressalvas: em tese, o autor de O dono do mar é menos nocivo na literatura, já que o leria quem quisesse. Mas as coisas não são bem assim. Enquanto mandava mais uma cerva pra dentro, ontem, comentava tudo isso com a esposa. Ela já havia lido essa última obra que cito, por obrigação, para um vestibular (já pensou se a moda pega?): “uma costura mal feita de um monte de histórias mal contadas de pescadores e fantasmas”, foi mais ou menos o que me disse. “Deve ser cine trash então”, mandou ainda quando informei que o livro havia virado filme.

Minha esposa tem razão: trash total, saca só o trailer:

Os Sarney José e Roseana anunciaram pendurar as chuteiras em 2014. Dois bons motivos para comemorarem brasileiros e brasileiras.

Criolina comemora Prêmio da Música Brasileira em show

Merecidamente agraciados com o Prêmio da Música Brasileira, na categoria Melhor álbum, em sua 22ª. edição (alô, incautos: é o mesmo prêmio que outrora se chamou Sharp, Tim etc.), o casal Criolina volta ao Maranhão, terra que escolheram para viver e contrariar a “regra” de que para fazer sucesso tem que estar no sul/sudeste “maravilha”.

Mas melhor que este blogue convidá-los à festa são os próprios Alê Muniz e Luciana Simões fazerem-no:

A exemplo de cada faixa de Cine Tropical, o disco premiado, esta festa também tem sinopse:

Agora que você já conhece o script, já sabe: a regra é alegria! Após o show em São Luís a dupla sai em turnê por algumas capitais do Brasil.

Maranhão quilombola: olhares do cinema na década de 1970

[Não costumo pendurar releases acá. Mas quebro a regra, pois o assunto vale a pena e estes dias a correria não tem sido pequena]

Mostra de documentários de Jean-Pierre Beaurenaut e Murilo Santos

Nos dias 20 (quarta) e 21 (quinta-feira), às 19 horas, na Aliança Francesa (Rua do Giz, Praia Grande), o fotógrafo e cineasta Murilo Santos apresenta dois documentários realizados em meados da década de 1970 sobre comunidades negras rurais. No primeiro dia será exibido o documentário Le Bonheur Est Là-bas, em face, um média metragem (filmado em película 16mm) do cineasta francês Jean-Pierre Beaurenaut e, no segundo dia, A festa de Santa Teresa, um curta metragem de autoria de Murilo Santos, filmado em película Super-8 – ambos os documentários podem ser considerados as primeiras obras cinematográficas a abordarem comunidades negras rurais no Maranhão.

Em 1975, Murilo Santos, então cinegrafista da TV Educativa do Maranhão, teve como professor de cinema Jean-Pierre Beaurenaut, cujas influências o inspiraram em seu trabalho no que tange à forma de fazer documentário, num período também de grande culto ao etnólogo e cineasta francês Jean Rouch. Jean-Pierre filma alguns personagens da comunidade de Ariquipá, antigo engenho e fazenda de cana de açúcar no município de Bequimão, que se deslocam para São Luís em busca de melhores condições de vida – o subemprego surge como única alternativa.  O título Le Bonheur Est Là-bas, em face traduz a frase de um dos personagens ao justificar seu êxodo para a cidade: “a felicidade está lá na frente”.

O documentário de Murilo Santos foi realizado no município de Alcântara, na comunidade quilombola de Itamatatíua – não muito distante de Ariquipá – e aborda a tradicional Festa de Santa Teresa. Ao contrário do filme anterior, este documentário enfoca a comunidade num período em que seus moradores, residentes em São Luís, retornam ao seu local de origem para a festa.  O documentário A Festa de Santa Teresa conta com a participação da antropóloga Maristela de Paula Andrade e de Joaquim Santos que, nessa época, iniciava suas pesquisas no campo da etnomusicologia. A equipe de Jean-Pierre Beaurenaut teve como diretor de fotografia o cineasta Yves Billion, autor de Guerra de Pacificação na Amazônia (1973).

Os dois filmes trazem em seus cenários reais algumas preciosas particularidades. No filme de Murilo Santos o destaque, quanto à raridade de imagens, vai para as cenas do baile em Itamatatíua, ao som de uma das primeiras radiolas de reggae. Em Le Bonheur Est Là-bas, em face Jean-Pierre mostra um antigo engenho de cana de açúcar na baixada maranhense, cujas máquinas vindas de  Liverpool na Inglaterra ainda funcionavam. Outras imagens preciosas em seu filme são locais da capital, hoje completamente transformados, como a região do cais da Praia Grande, o bairro do João Paulo com o Cine Rex ainda em funcionamento e o trem trafegando pela antiga Estrada da Vitória, desde a estação da Rffsa (Rede Ferroviária Federal S/A) na região, onde hoje se situa a Praça Maria Aragão.

Desde então, Murilo Santos não teve mais contato com seu ex-professor Jean-Pierre Beaurenaut, embora tenha estado no Brasil em 1990 para filmar, juntamente com Jorge Bodanzky e Patrick Menget, A Propos de Tristes Tropiques, documentário sobre Claude Lévi-Strauss, com foco em sua presença no Brasil entre 1935 e 1939.

Durante anos Murilo Santos alimentara a esperança de obter uma cópia do filme francês e exibi-lo em Ariquipá, porém, recentemente soube do lançamento na França do documentário de Beaurenaut e conseguiu adquirir uma cópia em DVD. O interesse de Murilo Santos com a comunidade de Ariquipá se dá a partir de um documentário sobre o reggae, para o qual filmou em 1996 os funerais de Antônio José, até então um dos mais famosos Djs de radiolas de reggae, morto em acidente de trânsito. Além disso, Antonio José – “O Lobo” da radiola “Estrela do Som” – era sobrinho de Pedro Silva “Calango”, líder sindical que Murilo Santos conhecera na década de 1970 quando produzia materiais audiovisuais para as ações educativas da Comissão Pastoral da Terra.
 
Pedro Silva e outro companheiro de Ariquipá aparecem ao lado do cineasta Jean Pierre Beaurenaut, na fotografia deixada pela equipe francesa durante as filmagens 1975. Esta imagem, ainda hoje existente na comunidade, é uma espécie de relíquia, que durante décadas parece corporificar a esperança de seus moradores de um dia ver as imagens filmadas pelo francês, especialmente os mais antigos.

A programação do evento na Aliança Francesa inclui fotografias e outras peças audiovisuais que ilustram o relato da experiência empreendida por Murilo Santos ao levar, de forma voluntária, esses dois filmes às comunidades, em 2008 e 2010, possibilitando um encontro dos personagens com suas imagens “congeladas” em películas cinematográficas por mais de 30 anos.

Festival Lume de Cinema segue até dia 23

Muita gente, este blogueiro, inclusive, reclamou do sigilo em torno da programação do I Festival Internacional Lume de Cinema. Explico: na sessão de abertura do citado festival, no Teatro Arthur Azevedo, quinta-feira passada (14), recebemos um panfleto com a programação que aconteceria nas dependências do Teatro Alcione Nazaré. Faltavam detalhes, que não eram conseguidos sequer acessando o site da Lume Filmes, produtora do evento e administradora do Cine Praia Grande, outro espaço em que aconteceria o festival.

Posto abaixo a programação que recebi por e-mail, ainda insuficiente. Não basta saber o nome do filme e a hora e o local em que o mesmo será exibido: carece uma sinopse, o nome do diretor, elenco, classificação indicativa, o cartaz do filme, e chamegos outros etc., etc., etc. No mais, louvável e corajosa a iniciativa de Frederico Machado, sempre homem de frente nas trincheiras que buscam levar cinema de qualidade ao povo cada vez mais refém dos espaços contíguos às praças de alimentação de shopping centers.

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Chorinhos, chorões e bandeiras de aço

Era a primeira vez que o mestre ia ao programa, que já conta mais de duas décadas no ar. Eu, modéstia à parte, já sou figurinha carimbada por ali, “aparecendo” vez por outra.

Ricarte Almeida Santos e este que vos perturba entrevistamos Cesar Teixeira em Chorinhos e Chorões gravado sexta-feira passada (15). Calma! Você não perdeu nada: o programa vai ao ar domingo (24), no horário de sempre: às 9h, na Rádio Universidade FM (106,9MHz).

Além de ditadura militar, censura, Laborarte e a definição de uma estética musical do Maranhão, Bandeira de aço (o disco lançado por Papete em 1978, com três composições suas, entre as quais a faixa-título), o compositor conversou ainda sobre Bandeira de aço, show que apresenta dia 30 (sábado), uma espécie de “saideira das férias”, às 21h, no Circo da Cidade, com produção de Ópera Night e todo o entusiasmo da turma boa do Vias de Fato, que caiu em campo (e ainda está) atrás dos recursos para viabilizar esta empreitada cultural. Pra quem não tá ligado, Cesar Teixeira é também jornalista e coordenador editorial do jornal mensal, de que muito me orgulho estar ocupando as páginas de cultura.

Músicas interpretadas pelo próprio Cesar além de alguns de seus importantes intérpretes estão no roteiro do programa: Flanelinha de avião, Dolores (Flávia Bittencourt), Ray ban (em duas versões: a do compositor e, antes, a de Cláudio Lima), Vestindo a zebra, Lápis de cor (Célia Maria), Botequim (Lena Machado) e Das cinzas à paixão, entre outros clássicos que todo mundo assovia e cantarola aqui e acolá.

Abaixo, dois flagrantes da tarde risonha. Agora é esperar por domingo. E mais, pelo sábado do show. Que venham!

Cesar Teixeira e Ricarte Almeida Santos durante gravação do Chorinhos e Chorões
Os risonhos Ricarte Almeida Santos, Cesar Teixeira e o blogueiro

O “Vento nordeste” de Terezinha de Jesus

[Texto emocionado e emocionante publicado na edição de junho/2011 do jornal Vias de Fato]

Pelas manchetes você percebe que o texto do professor não é o único bom motivo para ler o Vias de Fato do mês passado, o deste mês quase nas ruas

LUIS INÁCIO OLIVEIRA*

Sem a música a vida seria um erro, disse uma vez, com toda razão, o pensador Friedrich Nietzsche.

Hoje posso ver que a formação do meu ouvido vem de longe, das terras da infância – meu pai gostava dos baiões de Luiz Gonzaga, uma tia-avó escutava coisas mais eruditas e um tio boêmio, fã do violão de Dilermando Reis, fazia longas serestas no quintal da sua casa. Foi como um ouvinte ainda adolescente que ouvi certa vez a canção Vento nordeste, de Sueli Costa com letra do poeta Abel Silva, na voz agreste da Terezinha de Jesus e aquela voz nova pra mim, com seu belo timbre e seu tom meio doído, com um leve sotaque e um frescor de menina, lembrando a voz da Gal Costa nos seus inícios, me chamou imediatamente a atenção. Nos idos anos 1980, ainda tínhamos em São Luís alguns bons programas de rádio! Algum tempo depois descobri numa loja de São Luís, na época das lojas de vinis, o álbum da Terezinha de Jesus intitulado, justamente, de Vento nordeste e este se tornou então um dos discos que me acompanharam durante certo tempo da adolescência, formando também o meu ouvido na canção popular brasileira, com suas riquezas melódicas e sua bela tradição poética. Acho que uma coisa que precisa ainda ser melhor estudada é essa tradição poética que se refugiou na música popular brasileira, desde Noel Rosa, passando por Vinícius de Moraes, até chegar a Chico Buarque, Caetano Veloso, Torquato Neto, José Carlos Capinam, Waly Salomão, Cacaso e muitos outros poetas da nossa canção popular.

Quando retornei do meu mestrado há alguns anos, vi que não conseguiria mais manter meus vinis no clima quente e úmido da ilha de São Luís e me desfiz de praticamente todos, que se dispersaram por aí pelos sebos; acho que o da Terezinha já havia sumido bem antes dessa última diáspora… Foi assim que, depois da diáspora final, comecei a garimpar na internet algumas gravações que haviam se tornado parte da minha “memória musical afetiva”, vamos denominar assim, algumas das quais sequer chegaram a ser lançadas em cd. Os discos lançados pela Terezinha fazem parte, por assim dizer, dessa memória obscura e esquecida da canção popular brasileira que não se encontra registrada em cd. Pelo que sei, só uma coletânea da Terezinha foi lançada em formato digital, já há muito fora de catálogo. Isso nos faz pensar naquilo que a compositora e letrista Ana Terra, num artigo justamente sobre a cantora, chamou de sequestro da memória da música popular brasileira. Parece que a internet tem ajudado a implodir esse controle pelo esquecimento que as gravadoras ainda exercem sobre a memória fonográfica.

Nessas minhas buscas pela internet, me dei conta de que, por algum motivo, a cantora Terezinha de Jesus havia sido praticamente varrida do mapa da recente história da música popular brasileira. Havia poucas informações internáuticas disponíveis sobre ela, as mais completas no verbete dedicado à cantora no Dicionário Cravo Albin e algumas noticiando uma melancólica interrupção da carreira e uma volta à terra natal que poderia até lembrar um baião triste de João do Vale. Fiquei então curioso em saber por onde andava a Terezinha de Jesus, o que havia acontecido com essa cantora que fez um relativo sucesso no finzinho dos anos 70 e início dos 80 e depois desapareceu completamente do cenário musical, aliás, como muitos de sua geração. Não custa lembrar aqui a efervescência política, cultural e musical da época, quando já se forçava a abertura política, depois de anos de ditadura militar, e quando muitas energias reprimidas, inclusive as artísticas, vinham à tona.

Nesse pouco material disponível na internet sobre a cantora, obtive, como já disse, a informação de que ela havia retornado à Natal/RN no início dos anos 90, fez ainda alguns shows e não chegou mais a gravar. Na mesma época, em rápido mas poético contato com a compositora mineiro-carioca Sueli Costa, de quem Terezinha gravou algumas canções, em belos registros, tive a confirmação de que a cantora potiguar havia realmente retornado à capital potiguar e vivia hoje lá, numa espécie de discreto silêncio, já retirada da vida de shows e discos. Lembrei então de outra canção da Sueli Costa, com letra do mesmo Abel Silva: “O que é uma vida de artista/ no mercado comum da vida humana?/ um projeto de sonho inocente…/ não se esqueça de mim essa semana!”

Em agosto passado, em viagem a Natal, resolvi procurar a cantora e o compositor potiguar Mirabô Dantas, a quem Terezinha é muito ligada e de quem gravou várias canções. As minhas buscas em jornais e órgãos oficiais de cultura poderiam, por si só, render uma história, talvez com lances detetivescos. Lembro que um jovem historiador da Casa de Câmara Cascudo, um rapaz estudioso da história e da cultura do Rio Grande do Norte, não conhecia a cantora. O taxista que me levou à casa dela ficou curioso com o meu insistente interesse por aquela cantora hoje esquecida e de quem, ele próprio, tinha apenas uma vaga lembrança. Mas deixemos de lado as histórias paralelas de minhas perambulações por Natal.

Findas as buscas, tive a oportunidade de conversar com Mirabô, um compositor importante, da mesma geração de Terezinha, e, como ela, também pouco conhecido fora de seu estado e do círculo de alguns ouvintes mais entusiasmados com a música popular brasileira e nordestina. O Mirabô, que tem várias composições com o poeta baiano Capinam, lançou um livro, há alguns anos, em que procurou contar a história musical e cultural da geração dele e da Terezinha. Mirabô chegou a ser presidente do Sindicato dos Músicos, no Rio de Janeiro dos anos 70, em plena ditadura militar e quando havia uma movimentação política com importância entre os músicos, pelo que ele me contou. Acho que a geração do Mirabô e da Terezinha é uma geração de órfãos da utopia musical dos anos 70. Ele me contou também a história de vida da Terezinha, que daria um romance musical, com alguma coisa da história de algumas cantoras do jazz norte-americano. Mas essa também já é outra história.

Fui eu mesmo conversar com a Terezinha de Jesus, na sua pequena casa de porta, janela e varanda, no bairro de Areia Preta, em Natal. É claro que a Terezinha que encontrei não era mais a jovem e bela mulher da capa dos seus discos, mas uma senhora de seus sessenta anos, já com as marcas de uma vida que nem sempre foi fácil. Conversamos uma tarde, com a presença da sua irmã Odaires, que foi casada com Mirabô, e com o barulho do mar por perto. Hoje a Terezinha é companheira do poeta Falves Silva, também potiguar. Eu disse a ela, na oportunidade, que tinha a intenção de escrever um artigo, uma resenha, alguma coisa sobre o Vento nordeste e ela apenas sorriu e se dispôs a falar de sua história, desde a infância no interior do RN, na cidade de Florânia e depois estudante em Natal, onde o pai trabalhava com a seleção de fios de algodão, trabalho delicado como o de um artista.

O Rio Grande do Norte teve o seu ciclo algodoeiro, como ela mesma me informou. Tinha a lembrança de cantar com as irmãs, mas era tímida e jamais supunha que se tornaria cantora profissional um dia. Confessou-me que subiu ao palco para cantar pela primeira vez um pouco forçada e quando se deu conta já era cantora. Como universitária em Natal, teve uma rápida militância política, mas logo percebeu que tudo havia se tornado perigoso naqueles tempos de acirramento da ditadura já instalada. Terezinha, no entanto, já se enfronhara com músicos e artistas que queriam experimentar caminhos novos no início dos anos 70, apesar do clima pesado da ditadura – uma agitação cultural que, me parece, pipocou no Rio e em São Paulo, com as guitarras dos tropicalistas, os parangolés de Hélio Oiticica, as experiências do Teatro Oficina, mas também em Belo Horizonte, Salvador, Recife, São Luís e por outros cantos. Era também o momento do desbunde, do hippismo, da psicodelia, da difusão do rock e, paradoxalmente, na América do Sul, ditaduras militares recrudesciam. No Brasil, essa tensão entre mudanças culturais e sufoco político.

Já no começo dos anos 70, Terezinha, que ainda não era Terezinha de Jesus, se despede de Natal e se manda para o Rio de Janeiro. Na verdade, uma nova leva de nordestinos repetia esse antigo êxodo. Os chamados centros culturais do Rio e de São Paulo foram então tomados não só pelos baianos, antigos e novos, mas também pelos cearenses, pernambucanos, paraibanos, alagoanos, potiguares. Traziam um sotaque diferente, um baião que já convivia com o rock. Reviravam a tradição poética e musical nordestina, cantorias, cordeis, aboios, galopes, feira de Caruaru, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro. Violas de 12 cordas, zabumbas, triângulos e sanfonas se misturavam a guitarras elétricas. Terezinha guarda muito da memória musical desses anos 70 no Rio de Janeiro, me contou muitas histórias. Chegou a conhecer Lupicínio Rodrigues já no final da vida dele, assim como Nelson Cavaquinho, que era um boêmio contumaz. Lembrou de um show antológico de Elizeth Cardoso acompanhada por Jacob do Bandolim e o Época de Ouro – depois registrado em disco, mas hoje também fora de catálogo. Foi também amiga muito próxima do maranhense João do Vale, de quem achavam, inclusive, que era namorada. Ou uma delas. Contou ainda que descobriu numa churrascaria o músico maranhense Zé Américo, que tocou na banda que a acompanhava e depois foi músico de Elba Ramalho. “Pra mim não havia essa história de eu ser a solista e, por isso, ser mais importante que os outros músicos. Trabalhávamos todos juntos, todos tinham ali a mesma importância”, disse. Seria esse o clima de muitas das experiências criativas dos anos 70. Lembro imediatamente do poeta-músico Cacaso: todos fazendo coletivamente um mesmo poemão!

Assim, Terezinha foi desfiando pra mim, como se também selecionasse fios de algodão, histórias daquele momento musical, daquela geração de nordestinos pós-tropicalistas (ou trans-tropicalistas) que invadiram o cenário da música popular naqueles anos – Ednardo, Fagner, Zé Ramalho, Alceu Valença, Moraes Moreira, Geraldo Azevedo, Cátia de França e a lista poderia se alongar bastante.  Lembrou do show importante que ela fez no Parque Lage, no Rio de Janeiro, final dos anos 70, e que antecedeu o lançamento de seu primeiro disco, justamente o Vento nordeste. Me falou da sua convivência com João do Vale, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, Sueli Costa, Fagner, Moraes Moreira, Mirabô… Falamos da forte poesia que impregnava a música popular da época, da convivência que teve com alguns desses poetas ligados à música popular, Capinam, Abel Silva, Cacaso… Comentei que quando escutei de novo o seu primeiro disco, já passados tantos anos depois daquela minha primeira audição adolescente, o que aconteceu foi uma bela redescoberta. Ela me respondeu que essas surpresas sempre podem acontecer e me deu um exemplo poético: a surpresa que teve quando releu A hora e a vez de Augusto Matraga. De repente, já tínhamos entrado por outra vereda e ficamos ali falando do sertão de Guimarães Rosa…

Terezinha de Jesus gravou seis discos na sua carreira. Acho o primeiro deles, Vento nordeste, um disco primoroso. O segundo, Caso de amor, é também um belo disco, com algumas belas gravações, apesar de um arranjo meio cafona para um samba do Elton Medeiros. Depois ela gravou dois discos com o Sivuca, com sotaque mais nordestino, com forrós, xotes, xaxados, baiões, frevos. Neles, sente-se o entrosamento musical dos dois, a ligação com as raízes poéticas e musicais da canção nordestina, embora aqui e ali haja também algum deslize, algum resvalo para um piegas desnecessário. O seu último disco não conheço, é o menos conhecido, mas sei que nele ela gravou Luiz Melodia. É um disco com uma linguagem mais pop, segundo suas palavras, e isso parece ter sido imposição da gravadora.

No nosso papo, ela falou dessas pressões da gravadora para que fizesse coisas mais facilmente vendáveis, para que se enquadrasse numa espécie de fôrma da ‘cantora nordestina’. Contou que foi chamada por um executivo da sua gravadora e este sugeriu que ela gravasse coisas mais alegres, pois o seu disco Caso de amor tinha saído um disco meio triste e com poucas chances de venda. Ela, então, lhe respondeu que o disco não era um amontoado de canções, que ela havia construído o disco como uma pequena obra que tinha uma feição, uma unidade, um desenho autoral e não conseguiria sair trocando por canções mais alegrinhas e frevos vendáveis; se quisessem que ela o gravasse daquele jeito, ela o gravaria; caso contrário, gravaria outro disco, com outro repertório igualmente pesquisado, ou então não gravaria disco algum.

Nesse depoimento, senti que havia ali uma liberdade artística rara, que opunha ao sistema no qual havia se metido uma espécie de resistência delicada, quase singela na sua impotente potência. Não é de se estranhar que a Terezinha não tenha conseguido se adequar direito a esse sistema de formatação e de produção do êxito que a indústria do disco, à época todo-poderosa, impunha aos artistas. Minha impressão é que a jovem Terezinha era uma menina cigana que gostava da boêmia e queria ficar ali cantando as canções que a tocavam naquele agitado Rio de Janeiro do fim dos anos 70. Contou-me, por exemplo, que ouviu o samba-choro Curare, de Bororó, e achou lindo aquilo, com a mudança de registro e de ritmo que o samba adquire na segunda parte. Comentou com Paulinho da Viola e ele lhe mostrou a gravação original do Orlando Silva. Ela estudou o samba e o incorporou ao seu repertório. Curare foi gravado em Vento nordeste.

Quanto a esse Vento Nordeste, considero um dos belos discos dos anos 70, um disco com simplicidade, delicadeza, poesia, com arranjos bonitos, bem cuidados, ainda com aquele som acústico dos anos 70, com cordas, violões, flauta, acordeom, piano acústico e com a voz agreste de Terezinha, que remete aos ventos marinhos de Natal, aos agrestes do Seridó, às frutas do sertão, mangaba, caju, siriguela, umbu. Ela gravou nesse disco tanto compositores novos à época, como Sueli Costa, Fagner, Moraes Moreira, os compositores do grupo Boca Livre, na época Cantares, e o próprio Mirabô, quanto compositores da tradição da canção popular brasileira, como Bororó, Lupicínio e Luiz Bandeira. A gravação da canção Vento nordeste, de Sueli e do poeta Abel Silva, é muito bela, cheia de delicadeza poética – “Viaja o vento nordeste, cavalo de meu segredo”. A Sueli Costa me confidenciou, no nosso breve contato, que acha a melhor gravação dessa sua composição! O mesmo se pode dizer da gravação de Cigano, de Raimundo Fagner, e de Não posso crer, de Mirabô, com letra do poeta Capinam, espécie de samba-canção com distorções da guitarra de Robertinho do Recife no final. A gravação de outro samba-canção, Aves daninhas, dessa vez de Lupicínio, é pra mim antológica, com o acordeom choroso de Dominguinhos. Sem falar no samba do Bororó…Aos clássicos de Bororó e de Lupicínio fazem contraponto o debochado samba de gafieira Fogo-fátuo, de Moraes Moreira com letra do poeta carioca Chacal, e a melancólica canção Foi-se o tempo, dos cearenses Petrúcio Maia e Fausto Nilo. E no disco há também uma gravação saborosa do choro amaxixado Coração Imprudente, de Paulinho da Viola e Capinam, a Terezinha cantando num dueto com o próprio Paulinho da Viola e o maranhense Zé Américo ao piano. Na direção do dia é uma toada ao modo mineiro, dos compositores Juca Filho, Zé Renato e Cláudio Nucci; na gravação, Terezinha é acompanhada pelos músicos do grupo Cantares, que depois viraria Boca Livre e gravaria a mesma toada num disco independente famoso.  O Vento nordeste se encerra com dois baiões-forrós ingênuos, um de Luiz Bandeira e o outro de João Silva, um compositor menos conhecido da época do Luiz Gonzaga – essas gravações trazem no vento sons longínquos do interior do Brasil e portam algo de desconcertantemente antiquado, sonoridades que remetem às feiras nordestinas, às cantorias, às ladainhas, aos forrós tocados nos rádios das casas do sertão. Pelo menos é assim que eu as ouço, com essas ressonâncias levemente arcaicas.

Os músicos que tocam no disco são todos muito bons: Dominguinhos, Tutty Moreno, Robertinho de Recife, o flautista Copinha; os arranjos são muito bem cuidados. Mas tudo tem frescor e simplicidade. A própria Terezinha me confessou, na nossa conversa, que, como cantora, sempre prezou pela simplicidade. Mas a simplicidade desse seu Vento nordeste é uma simplicidade cheia de pequenas sofisticações e delicadezas, simplicidade difícil de ser alcançada, a simplicidade de uma Nara Leão, de um Agustín Barrios, de um poeta como Manuel Bandeira, de um pintor como Guignard. Talvez com o exagero daquela minha memória musical afetiva, considero o disco uma pequena pedra preciosa deixada ao esquecimento e, por isso, fico querendo resgatá-lo do silêncio.

Readquiri o vinil em Natal. Voltei com ele a uma coleção de vinis. O Vento nordeste foi o primeiro dessa nova coleção e vejo como as capas dos antigos discos podiam ser pequenas obras de arte. A capa do disco da Terezinha é singela, mas evoca o enigma do vento nordeste viajando nas dunas de Natal. Sobre a imagem das areias com os rastros do vento há uma foto da Terezinha com jeito e brincos de cigana. Um encarte acompanha o vinil com a mesma foto e indicação detalhada de todos os músicos. Na contracapa, ainda sobre a imagem das dunas, há a lista das canções com os compositores e os créditos do disco, mas, sobretudo, há dois textos de apresentação emocionados, textos escritos por dois poetas próximos de Terezinha, o baiano Capinam e o carioca Abel Silva. O texto de Capinam é, na verdade, quase um poema dedicado à cantora.

Por fim, não posso deixar de dizer que esse texto se originou de uma carta que enderecei ao Ricarte Almeida Santos, propondo a ele que dedicasse um Chorinhos e chorões à Terezinha de Jesus. O programa aconteceu no segundo semestre de 2010 e rolaram as gravações mais chorísticas da Terezinha, com a minha presença e a do jornalista Zema Ribeiro. Este texto é uma versão desdobrada daquela carta.

*LUIS INÁCIO OLIVEIRA é professor do Departamento de Filosofia da UFMA

Joãozinho Ribeiro é um mestre

Poeta e compositor da melhor estirpe, tem canções que já estão cravadas no imaginário do maranhense, tal como as pedras das ruas do Desterro ou como o som das matracas que ecoam no arraial da alma.

Mas não é só isso. Ele é um mestre também ao tentar, com suas atitudes de cidadão arretado, nos fazer ver o mundo com o olhar encantado dos puros.

Seus versos e melodias são assoviados como clássicos, mesmo sem João jamais ter gravado um disco sequer. Não por falta de torcida. Há tempos cobro do homem um registro de sua rica obra, um regalo certamente para fãs apaixonados como eu e outros tantos.

João parece ter ouvido o apelo de seus entusiastas, e agora começa a tramar para gravar seu primeiro disco. Mas, antes disso, fará um fuzuê no Novo Armazém com convidados durante algumas semanas, onde “testará” dezenas de músicas que comporão seu disco, na verdade uma antologia, considerando que João tem já 30 anos de carreira e correria.

Nesses anos, esteve envolvido em muitas lutas, algumas políticas, outras existenciais, algumas vencidas, outras inglórias. Sempre artista inquieto e cidadão íntegro, comprometido com a “felicidade geral da nação”.

Mas eu lhe digo: João, saiba, rapaz, felicidade maior que ouvir suas canções não pode haver.

Texto de Zeca Baleiro, à guisa de apresentação da série Outros 400, que estreia hoje (14), às 21h, no Novo Armazém (Rua da Estrela, Praia Grande), sobre o que você lê mais detalhes na Agenda do Samba & Choro e/ou no Ponte Aérea São Luís.

Hoje

Ambas talentosíssimas e inéditas em disco, mas já com relativo sucesso na noite e no rádio maranhense. Falo de Milla Camões e Tássia Campos, que se apresentam juntas, hoje, no Let it Beer Legendary Music Hall (o nome correto, enorme e gringoso da antiga Flamingo, ali por baixo do Rio Poty Hotel), a partir das 20h (se começar no horário, dá pra correr pro show que anuncio post que vem), detalhes abaixo:

As letras voaram

Sobre A palavra voando, ontem (12), 21h, Cine Ímpar (sede do Jornal O Imparcial)

“Todo mundo que se veste com a roupa da utopia/ sofre tanto, sofre muito/ Eu estava nu e não sabia/ Eu e minha namorada/ eu nu e ela nua/ vestidos de utopia/ fomos passear na rua/ tropeço, tombo fatal/ meio fio, meia lua/ baque lindo”.

Os versos de Utopia (Chico César) são os únicos cantados por Celso Borges em A palavra voando, espetáculo poético-musical que apresenta ao lado de Beto Ehongue, vocalista/letrista das bandas Negoka’apor e Canelas Preta – com esta última o poeta se apresentará em agosto, detalhes acá em breve.

Celso Borges, vestido de utopia, desnudou letras de música de suas melodias, as letras, poesia, como a querer responder a um dos grandes dilemas da humanidade, pergunta que ecoa, sample bem humorado, na abertura e no encerramento do espetáculo de cerca de uma hora.

A palavra voa e ecoa por universos distintos, os de Caetano, Gil, Chicos Buarque, César e Maranhão, Torquato Neto, Paulinho da Viola, Vitor Ramil, Milton Nascimento, Zé Ramalho, Lula Cortes, Alceu Valença, Zeca Baleiro, Josias Sobrinho, Sérgio Natureza, Sérgio Sampaio, Raul Seixas – “sem Paulo Coelho”, frisa Celso Borges ao dizer Ouro de tolo em base de samba – entre outros, além de seu mundo próprio, por exemplo trechos do poema Matadouro: “quase nada do boi é do boi/ quase tudo do boi é do homem/ e o que é do homem o bicho não come”.

Beto Ehongue, sentado em frente a um(a) laptoparafernália eletrônica, usa um engraçado óculos escuro e balança as pernas ininterruptamente, como se marcasse os não poucos ritmos que tira de seus equipamentos. As trilhas inventadas por ele ruminam os poemas-ex-letras tornando-lhes outra coisa que ainda não sei o que é: música? Poesia? Outras músicas? Outros poemas? As (letras de) músicas transformando-se em poemas?

É um espetáculo performático em que as palavras voam, alcançando lugares inimaginados. Celso Borges e sua sombra deslocam-se pelo palco e telão. Ecos reverberam propositalmente. A palavra palavra, a sombra da palavra, a sombra do poeta, a asa da palavra, palavra não para fazer literatura, mas para um show de literatura, uma literatura particular. Um show de poesia. E uma poesia de show!

Ecoam em minha cabeça os versos lidos-ditos-cantados pelo poeta em A palavra voando. Letra de música é poesia? Para mim a resposta sempre foi/é/será “depende”. As letras de músicas e trechos usados por Celso Borges no espetáculo são letras e poemas ou ambos, “sim”, a depender da leituraudição que cada um faz delas/deles. Devemos nos fazer, pois, algumas perguntas: toda letra de música é poesia? Toda letra de música é letra de música? Todo poema é poema? Aí a resposta sempre será “não”.

(Só) até amanhã

Só mais hoje e amanhã aos que quiserem (e ainda não o fizeram) ver Maus hábitos, de Pedro Almodóvar, em cartaz no Cine Praia Grande. Sessões às 16h, 18h15min e 20h15min. Ingressos: R$ 10,00 (meia para estudantes). Só mais hoje e amanhã, repito, por que dia 14 começa o I Festival Lume de Cinema, mais uma “presepada” de Frederico Machado e cia.