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1937: NOEL, O SAMBA EM FUNERAL
RUY CASTRO
O dia de hoje marca os 30 anos da morte de Noel Rosa. O samba nascido na calçada e no botequim de subúrbio encontrou no poeta-cantor de Vila Isabel o seu expoente maior. Genial e boêmio. A tuberculose o levou cedo, aos 27 anos de uma vida noturna agitada: um samba, entre um copo e outro, fotografando a madrugada carioca.
Uma grande parte das camadas urbanas, proletarizada ou mesmo um pouco acima do salário mínimo, formula um contexto específico de que o samba, nascido na Praça Onze, é apenas uma das incontáveis ramificações. Mergulhado nesse contexto, produto de uma mistura de mulata, violão e botequim, o samba é a forma de expressão mais apta para comunicar aquela carga latente de nostalgia & desencanto, conseqüências da marginalização social e econômica.
Essa conjuntura deságua facilmente em Noel, menino de Vila Isabel, de mãe viúva e professora, sambista de subúrbio, desemprego e madrugada. Cada um de seus sambas ultrapassa o mero aspecto “descritivo” de um fato exótico, para traduzir todo o macrocosmo de uma classe empurrada para o último ou penúltimo degrau da escala social, indo tomar de noite o seu ópio musical, entre o pileque e a serenata.
Sem choro nem vela – Segundo Almirante, desde 1935 a vida de Noel vinha minando a sua frágil resistência física. A tuberculose já o rondava, por trás de seu defeito no rosto que o fazia comer de menos e beber de mais – dormir todo o dia e só depois sair, para seu samba engolir a noite. Constatada a doença, sucederam-se as estações de repouso, mas o samba de Noel não tinha férias nem tomava conhecimento de descanso. O compositor já iria regressar da última viagem, em Piraí, com a moléstia seriamente agravada.
Tudo terminou no dia 4 de maio de 1937, em Vila Isabel, presentes Orestes Barbosa e Marilia Batista, e, daí a meia hora, Aracy de Almeida acabava de gravar naquele dia, o último samba de Noel: Eu Sei Sofrer.
Triste cuíca – A morte de Noel lançou no limbo o compositor, repercutindo quase que unicamente nos arraiais do samba. Isto porque, segundo Almirante e Aracy de Almeida, nos idos de 30 qualquer sambista era violentamente marginalizado e acusado de vagabundagem, sofrendo todos eles os efeitos dessa discriminação. Menos Noel, que, apesar de sua família enfrentar uma série de dificuldades, jamais abandonou aquele despojamento e desprezo pelo sucesso.
Os seus sambas continuaram a ser tocados no rádio, sem grande alarme popular. Em 1942, Almirante produziu na Rádio Tupi o primeiro programa dedicado à revisão de Noel Rosa e, a este, seguiram-se vários outros. A “redescoberta” do compositor pelos cantores de maior contato com as massas, como Silvio Caldas, acabou de restituir-lhe a plena identificação com o público, especialmente depois de um show de sambas de Noel Rosa na Boate Vogue, com Aracy de Almeida, em 1948.
Feitiço de Noel – Aracy fala do samba, no tempo de Noel: “A gente ganhava pouco ou nada, mas vivia só pra sair de noite, cantar e fazer música, e viver na boemia. Não era à toa que sambista, naquele tempo, era sinônimo de malandro e vadio. De fato, naquela época, sambista era pinta-braba, tinha muito valente e mal-elemento querendo ser compositor. O Noel, que conhecia todos os pilantras do Rio, nunca foi muito aceito porque não saía da Lapa e do Mangue, de onde voltava com uma porção de sambas escritos em maços de cigarros Odalisca, que depois ele vendia pra pagar a farra do dia seguinte. Aliás, naquele tempo não houve sambista a quem Noel não tivesse dado uma mãozinha, trocando uma letra aqui, outra ali, e muito samba famoso por causa disso, tem o dedo de Noel Rosa, e ninguém sabe”.
Aracy conheceu Noel em 1932 e o seu primeiro contato maior com o compositor nasceu numa noite de samba em caixa de fósforo, regada com cerveja Cascatinha, na Taberna da Glória: era o début boêmio da jovem cantora. Do pileque na Taberna até a morte de Noel, em 1937, Aracy esteve presente a todo o processo de evolução do samba e da noite carioca, nos cabarés da Lapa e nos botequins detrás da Central, ao lado de Noel, com quem saía à noite, para varar as madrugadas. Dessa parceria de cantora & compositor nasceram Palpite Infeliz, O X do Problema, Pela Primeira Vez, Século do Progresso, Amor de Parceria, Triste Cuíca, Já Cansei de Pedir, Feitiço da Vila. Aracy conta: “Uma noite eu cheguei pro Noel e pedi pra ele fazer um samba pra mim gravar no dia seguinte. Noel pensou um minuto e ali mesmo, na mesa do Café Trianon, compôs O X do Problema, nas costas de um maço de Odalisca.”
O xis do samba – Em 30 anos, os sambas de Noel foram regravados algumas dezenas de vezes, desfechando aquela carga poética e musical que tanto influencia os novos compositores. Três livros foram escritos a seu respeito: um deles, o mais completo, por Almirante, testemunha ocular da história do samba e amigo de Noel desde 1923. Das suas madrugadas saíram cerca de duas centenas de músicas, algumas mulheres e uma série de lendas sobre sua vida e obra. Mas, o choro de flauta, violão e cavaquinho para os 30 anos de sua morte é a sua presença constante nestes 30 anos de samba.
Recolocada em órbita, a partir dos anos 40, a sua obra pode ser submetida hoje a um olhar de Raio-X sem perder nada de sua instigante contemporaneidade. Mesmo porque Noel traduz o X do samba, haja vista que a sua arte permanece pelo tempo, não só pela eternidade de suas criações gravadas na cera para a posteridade, mas principalmente pela sua poderosa influência no que de melhor se faz hoje em samba.
Trinta anos depois de Conversa de Botequim, Com que Roupa?, Coisas Nossas, Mentiras de Mulher, Fita Amarela, Noel encontra um eco nas criações de Chico Buarque de Hollanda e Sidney Müller. A mesma dimensão crítica e criativa dos seus sambas, por trás da historinha ingênua e bem temperada, está presente em Juca, Você não Ouviu, A Rita, etc. e nas duas mais recentes composições de Chico: Com Açúcar e com Afeto e Quem te viu e quem te vê. E quanto a Sidney Müller, é só ouvir O Circo.
A revalorização do trivial, do cotidiano e do popularesco, o reencontro do samba com as suas raízes, que são os vértices da moderna música brasileira, têm como base Noel, carioca e universal. De 1937 a 1967, Noel tem sido o X do samba.
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Com dificuldades para postar nos dois últimos dias – muita coisa para fazer em pouquíssimo tempo – encerro com o texto acima a Semana Noel Rosa. 1937: Noel, o samba em funeral foi publicado em 4 de maio de 1967 no Correio da Manhã (RJ) por ocasião dos 30 anos de falecimento do Poeta da Vila. O hoje conhecidíssimo Ruy Castro, autor do artigo, estreava na imprensa (é seu primeiro artigo assinado) e dividia a página com ninguém menos que Nelson Rodrigues, que publicava suas memórias. Este blogueiro teve o trabalho de re-digitar o artigo, cujo fac-símile encontrei em Tempestade de ritmos: jazz e música popular no século XX (Companhia das Letras, 415 p., 2007).