a assembléia legislativa do estado do maranhão aprovou, na sessão da última quarta-feira (15), requerimento da deputada helena heluy (pt) pedindo o envio de condolências à família do ex-professor da ufma, flávio pereira da silva, que faleceu por complicações decorrentes de um tiro que levou após uma briga de trânsito. antes de torcer o bico e dizer “condolências?, só isso?” ou coisas que o valham, leia aqui o texto completo.
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em sua coluna quinzenal no jornal pequeno, a professora arleth borges (do departamento de sociologia e antropologia da ufma) republica, na íntegra, a carta-denúncia que leva o título “vidas interrompidas. até quando fecharemos os olhos?”, que este blogue já publicou e que foi entregue à secretaria de segurança cidadã dia 15/8.
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o mesmo jornal pequeno, no espaço do leitor do suplemento jp turismo, publicou o texto que batiza este post, que republicamos integralmente, abaixo.
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Quem matou Flávio Pereira?
Hermes da Fonseca*
Inevitavelmente, toda vez que, na cultura brasileira contemporânea, se questiona “quem matou…”, é revirado o húmus de uma memória forjada/formatada pela cultura de massas e surge límpida uma questão que há quase 20 anos (em 1989) pôs o país, em uma noite de sexta-feira, diante das telas da Globo (86% dos televisores ligados estavam sintonizados na emissora, reza a lenda), intrigado pela “relevantíssima” questão – “Quem matou Odete Roitman?” Aliás, interessa lembrar que Odete Roitman era uma empresária rica e manipuladora (portanto, “legítima” representante da maioria da população brasileira!), que a telenovela se chamava “Vale Tudo”, que a música de abertura era “Brasil” de Cazuza e que a última cena da novela mostrou um corrupto gerente de empresa fugindo do Brasil e dando uma “banana” para o país. A locução “quem matou…” é chave imediata para essa simbologia que ficou atravessada no imaginário dos brasileiros.
A pergunta proposta como título deste texto não pode, óbvio, passar ao largo desse graveto midiático no imaginário dos brasileiros; ao contrário, mexe em seu saudosismo vazio para mostrar uma diferença radical nesse “quem matou…”: Flávio Pereira, ao contrário de Odete Roitman, era brasileiro de carne e osso, simples trabalhador (arquiteto do saber), existente em São Luís do Maranhão, que numa manhã qualquer, transitando com seu carro, foi parado por um tiro de revólver (após um desentendimento no trânsito), ficando prostrado no asfalto, enquanto fugia o homem que lhe atirou. Flávio então passou uma semana num hospital de parcos recursos e morreu na madrugada de 7 de agosto.
Embora fosse mestre em sociologia pela Universidade Federal do Maranhão, até poucos anos atrás Flávio Pereira sobrevivia do trabalho braçal, como a maioria esmagadora dos brasileiros e maranhenses. O ensino constituiu seu passaporte para o trabalho intelectual e o ingresso em uma “elite”, ainda que sem luxos. Numa realidade de absoluta concentração de renda como a do Maranhão, qualquer pessoa que tenha concluído um curso superior e tenha um salário maior que cinco salários mínimos, inevitavelmente, pertence uma reduzida “elite”. Embora Flávio tivesse um carro (São Luís do Maranhão tem uma das maiores frotas automobilísticas do país) – como tantos maranhenses atormentados por parcelas têm –, embora pertencesse a uma “elite”, continuava a ser um trabalhador que passava o dia todo em salas de aula, haurindo trinta e poucos reais por hora efetivamente trabalhada, sujeito a uma carga de trabalho além da recomendada, exposto a alto nível de perturbação psíquica, etc. Ainda que pertencente a uma “elite”, permanecera trabalhador sub-valorizado, embora fosse outro o seu trabalho e suas ferramentas.
A morte de Flávio Pereira não é, para os que o conheceram, que o admiravam e amavam, um acontecimento corriqueiro e banal; mas, para a população em geral é apenas mais um dos casos de “violência urbana” que se estampam no jornal ou se exibem na televisão, mais um dos casos de “autor desconhecido” que fomentam o discurso da impunidade, do aumento e endurecimento das penas, da criminalização de condutas… do “cansei” atualmente alardeado. Mas, por mais que apontemos a falência do sistema penal, seu caráter seletivo (restrito a determinados grupos sociais) e sua (i)lógica de reprodução da violência, é inevitável cobrar a responsabilização do autor do disparo que matou Flávio Pereira. Cobrar essa responsabilização, contudo, não deixa de ser a reafirmação desse modelo social fundado no indivíduo (a responsabilidade penal é individual) e no individualismo (cuja expressão mais evidente, no caso exposto, é o automóvel, que passa a ser concebido por seu possuidor como uma extensão do seu próprio corpo e da sua “honra”); não deixa de ser uma reafirmação do sistema penal e da crença da sua legitimidade. Mas, em contrapartida, não cobrar responsabilização alguma é o mesmo que admitir que fatos como este não fazem diferença alguma, que podem passar incólumes, que “vale tudo” e qualquer pessoa pode estabelecer sua própria lei; daí uma faceta coletiva da cobrança da responsabilização, quando sua reivindicação passa a representar solidariedade.
Cobrar responsabilização exige que se identifique alguém; daí a pertinência de se mexer no lodo midiático do “quem matou…” para criar um lugar comum que permita sensibilizar as pessoas para a reflexão sobre a responsabilização do atirador. A morte desse trabalhador não é apenas uma morte isolada, na terra-de-ninguém de uma avenida qualquer, num amanhã qualquer: é sintoma do autoritarismo que atravessa nossa formação social de margem a margem. A morte de Flávio Pereira é a morte de um entre tantos brasileiros jovens, trabalhadores, cheios de sonhos (e da malfadada esperança latino-americana), e expressa a crua banalização da vida, quando o desfecho para uma discussão de trânsito passa a ser um tiro de revólver que atravessa o peito, rompe a coluna vertebral, e é seguido por uma fuga que atesta o ápice do individualismo, o colocar-se acima de toda a experiência social.
Agora, quando morre mais uma pessoa, simbolicamente um professor, é, como afirma o antigo provérbio africano, como se uma biblioteca inteira se incendiasse; todo um mundo de experiências, libretos abertos e inconclusos, que apenas permanece como estilhaços nas várias lembranças descontínuas dos que com Flávio Pereira conviveram como alunos, como amigos, como parentes ou mesmo como simples conhecidos. Pedir a responsabilização do autor do disparo e clamar por “justiça” deve ser muito mais uma atitude pedagógica, um chamamento à reflexão sobre nossas práticas cotidianas, do que uma ânsia repressiva, sedenta de vingança. Mas, antes e durante o grito por responsabilização (e, quiçá, assim seja todas as vezes que se anunciar uma morte provocada, brutal), uma questão, com carne e osso, revolverá o cadáver simbólico de Odete Roitman e virá à tona: Quem matou Flávio Pereira?
*Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do Núcleo de Estudos de Direito Alternativo da UNESP (Campus de Franca/SP).