“RIO DOS CACHORROS” RESISTE AO PÓLO SIDERÚRGICO
por Ed Wilson Araújo (*)
O toque das caixeiras convida os moradores de Rio dos Cachorros para o ritual de carregamento do mastro que vai enfeitar o largo da festa em homenagem a Santana, uma das tradições religiosas do lugar. Celebrações como esta integram o calendário cultural da comunidade rural da ilha de São Luís, acessada pela BR-316, na área pretendida para a instalação do Pólo Siderúrgico. Na rodovia que leva a Rio dos Cachorros, um outro som desperta atenção: os comboios de carretas de soja que vêm do sul do Maranhão descarregar no Porto do Itaqui, para onde convergem também os grandes projetos de minério e aço do Maranhão.
Na área do suposto Pólo Siderúrgico existem mais nove comunidades: Taim, Limoeiro, Porto Grande, Vila Maranhão, Cajueiro, Camboa dos Frades, São Benedito, Coliê e Vila Conceição. Elas estão no centro da disputa que pretende transformar a zona rural e residencial em zona industrial para viabilizar a implantação de três gigantescas usinas de aço, cada uma com capacidade de 7,5 milhões de toneladas anuais.
Em Rio dos Cachorros moram cerca de 500 famílias, numa área margeada por manguezal e irrigada de brejos, com fruteiras nativas, pequenas roças e jazidas de areia, pedra e piçarra.
A comunidade é o principal foco de resistência à implantação do Pólo Siderúrgico dentro da Ilha de São Luís. Os moradores têm participado ativamente das audiências públicas que debatem a implantação do pólo, realizam oficinas para discutir o impacto do empreendimento e integram o fórum Reage São Luís, que congrega várias organizações contrárias à concretização do projeto na ilha.
Maria Máxima Pires, 46 anos, uma das lideranças de Rio dos Cachorros, questiona a relação autoritária dos gestores do empreendimento com a comunidade. Em meados de 2004, a Vale (CVRD), a empresa Diagonal e o Governo do Estado começaram a fazer o cadastro das famílias e o levantamento de bens, numerando as casas. “Invadiram as comunidades, informando que tinham até dezembro para limpar a área. Os idosos e crianças ficaram apavorados”, relata. Para amenizar o impacto, os técnicos lançavam a promessa de que os moradores teriam prioridade na inscrição para obter emprego no pólo.
“Passaram de meio dia até cinco horas da tarde conferindo pé de planta, mediram e anotaram tudo”, lembra o quitandeiro Inácio de Moraes, 78 anos. Moraes nasceu em Taim e há quase 60 anos mora em Rio dos Cachorros, onde criou 16 filhos. “Eu acho aqui muito beleza, é tranqüilidade. Pra mim sair daqui eu sou contra eles botar a gente lá pro lado de um lixeiro (na Ribeira). Me choca quando diz que vamos sair”, lamenta.
O sentimento do comerciante é compartilhado por quase todos os moradores de Rio dos Cachorros. Andando pela vila, conversando com as pessoas, é difícil encontrar alguém que queira sair do lugar onde já viveram os avós e bisavós. Aos 64 anos, Rosilda Vera Gomes lembra passagens da infância que deram nome ao povoado. Ela conta que uma família morava na beira do porto e mudou-se, ficando só os cachorros. Quando os pescadores iam embarcar os cães latiam e avançavam. “Então ficou assim, sair para pescar era no rio dos cachorros”, conta às gargalhadas, registrando que foi mordida por um deles quando criança.
“Quem é nativo não quer sair da área. A terra é nossa de fato e de direito. Não vamos abrir mão. Não tem dinheiro que pague a nossa qualidade de vida aqui”, adverte Máxima Pires, referindo-se à reduzida taxa de violência do lugar e às múltiplas alternativas de sobrevivência da população: mineração, pesca, economia doméstica, pequena agricultura, extrativismo e empreendimentos como a produção de mel de José Raimundo da Cruz Pires. De junho a dezembro, a cada 18 dias ele colhe, em sete colméias, uma média de 40 litros. Ao redor das colméias plantou 200 pés de murici. “A flor do murici alimenta as abelhas e dá o mel amarelo. Na época da juçara o mel é escuro, porque o alimento é rico em ferro”, detalha.
O ambiente bucólico sintonizado na modernidade é partilhado principalmente pelas mulheres. São elas que lideram a resistência e vão aos embates nas audiências públicas e nas oficinas, como as lavradoras Carla Santos Dias, 23, e Maria Laura Vera Gomes, 35, sempre com fortes argumentos para contestar a prosperidade prometida pelo empreendimento. Laura e Carla são freguesas da cabeleireira Maria de Jesus Araújo. Aos domingos, ela sai do bairro João de Deus para atender de casa em casa às clientes em Rio dos Cachorros. “Elas gostam de se cuidar. Você precisa ver como ficam arrumadas nas reuniões. Nem parece mulher que trabalha na roça. Não é pelo fato de serem lavradoras que não sejam vaidosas”, ilustra a cabeleireira itinerante.
A favor – Logo na entrada de Rio dos Cachorros, uma família de japoneses cultiva mamão, maracujá, pimentão e pepino em uma área de 26 hectares. “A produção é pequena e abastece algumas feiras livres, mercados e sacolões. A maior parte nós trazemos de fora, do Ceará e Pernambuco”, explica o empresário Roberto Kunihiko Tasaka. O “japonês”, como é conhecido, é favorável ao pólo, afirmando que não sobrevive da produção de Rio dos Cachorros. Sua principal fonte de renda é a comercialização de produtos agrícolas na Coortifrut, antiga Ceasa.
Mas a disseminação da idéia do Pólo Siderúrgico está ativando tensões entre os moradores, proporcionando a atuação de especuladores de outros bairros que vêem possibilidade de lucro com a venda de terras. Além disso, os defensores do empreendimento operam a cooptação e aliciamento nas comunidades. As promessas de indenização e emprego também alimentam expectativas. É o caso de Manoel Alves de Oliveira, 62 anos, há dez em Rio dos Cachorros, que está interessado em pegar o dinheiro e desocupar a área. “Essa região aqui é deles mesmo. Há muito tempo o governo vendeu para a Vale”, justifica.
Entraves – O Pólo Siderúrgico é uma parceria da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), Governo do Estado, Prefeitura de São Luís e as multinacionais Baoosteel (chinesa), Posco (sulcoreana) e Arcelor (européia), visando instalar (em uma área de 2.472 hectares) três usinas e duas gusarias com capacidade de produção de 72% do aço nacional. Os impactos ambientais e sociais são gravíssimos. Além disso, é necessário alterar a Lei de Zoneamento, Uso e Ocupação do Solo Urbano, transformando a Zona Rural Rio dos Cachorros em Zona Industrial, desalojando 11 comunidades onde vivem cerca de 15 mil pessoas. Nas audiências públicas realizadas para debater o tema, a resistência ao pólo argumenta que é necessário, primeiro, fazer a revisão do Plano Diretor de São Luís, conforme determina o Estatuto das Cidades.
Fora da Ilha – Os argumentos contrários ao pólo na ilha, sustentados nos impactos à qualidade de vida de todos os moradores de São Luís, começam a ampliar a corrente de opinião que defende a instalação das siderúrgicas além do Estreito dos Mosquitos. Na Câmara Municipal e na Assembléia, respectivamente, Adbon Murad (PMDB) e Helena Heluy (PT), contrariando a subserviência da maioria do legislativo aos megaprojetos internacionais, defendem o empreendimento fora de São Luís. Até o PV, comandado pelo deputado federal Sarney Filho, publicou nota contra o pólo na ilha. Em Rio dos Cachorros, um pescador que saboreava um milho assado recém-colhido no quintal, desconfia: “Sô, eu vi a mesma ‘guerra’ na época da Alumar. É tudo só uma questão política”, filosofou, referindo-se à disputa entre os grupos alinhados ao senador José Sarney e ao governador José Reinaldo. Ambos são favoráveis ao aço na ilha, pressionados pelo capital internacional e pela CVRD, mas aguardam com cautela o desenrolar dos acontecimentos, operando nos bastidores.
(*) jornalista e professor universitário