Aperitivo

Single Os antidepressivos vão parar de funcionar. Capa. Reprodução

 

O cantor e compositor Kleber Albuquerque disponibilizou nas principais plataformas de streaming o single Os antidepressivos vão parar de funcionar, música de sua autoria que dá título ao seu próximo disco, o 10º. de sua carreira, se incluídos o artesanal 5 coisas que eu podia dizer no lugar de eu te amo [2013] e Contraveneno [2017], dividido com o cantor Rubi, um dos principais intérpretes de sua obra.

Os antidepressivos vão parar de funcionar, título retirado de uma pichação num muro paulistano, deve ser lançado em formato físico em março de 2019, pelo selo Sete Sóis, do poeta e parceiro Flávvio Alves, e até lá Kleber Albuquerque disponibilizará na rede uma faixa por mês, antecipando ao fã clube mais ou menos a metade do novo álbum, gravado em São Paulo, no estúdio Parede-Meia (título de música de Kleber gravada também por Ceumar e Rubi).

O artista revelou a Homem de vícios antigos que a temática do novo álbum “girará por este caminho”: “são, de certa forma, crônicas musicais sobre coisas do dia a dia”.

O blogue também teve acesso à segunda faixa do disco, outra composição solitária de Kleber Albuquerque, intitulada Meu perfil no face. “Meu perfil no face mente sobre mim/ o meu sorriso mente/ o meu olhar contente mente/ e quando acordo meu espelho mente/ deslavadamente sobre mim”, começa a letra, pontuada, qual a faixa-título, pela singeleza melódica alinhavada pelo próprio Kleber Albuquerque (guitarra, assobio, voz) e Rovilson Pascoal (guitarra, ukulele, cavaco e teclados).

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Logo mais às 12h25 (após a transmissão da propaganda eleitoral gratuita), na Rádio Timbira AM (1290KHz, ouça ao vivo), o Balaio Cultural, com Gisa Franco e este blogueiro, tocará o single. Leia a letra:

Os antidepressivos vão parar de funcionar (Kleber Albuquerque)

Cuidado, menina, menino, cidadão, cuidado!
Olhe bem para os dois lados antes de atravessar
Sorria, menino, menina, você está sendo filmado
Consulte seus advogados
Unânimes vão lhe afirmar

Que os antidepressivos vão parar de funcionar
Os antidepressivos vão parar de funcionar
Os antidepressivos vão parar de funcionar

Tecle dois se quiser aguardar
Tecle três para ouvir a musiquinha tocar
Tecle seis para dizer até logo
Ou espere para falar com o atendente
E então siga em frente
E enfrente a fila dos inconformados
Mas se quer um conselho, espere sentado
Porque vai demorar

E os antidepressivos vão parar de funcionar
Os antidepressivos vão parar de funcionar
Os antidepressivos vão parar de funcionar

Cuidado, menino, menina
Mil olhos tem a cidade
Finja naturalidade
Ou todos podem suspeitar
Que na calada da noite
Calado você também sabe
Que os antidepressivos vão parar de funcionar

Os antidepressivos vão parar de funcionar
Os antidepressivos vão parar de funcionar
Os antidepressivos vão parar de funcionar

Troque uma onça e um mico leão por um ingresso

Eduardo Dussek. Foto Academia de Ideias. Divulgação

 

Mês passado a roteirista potiguar Milena Azevedo esteve em São Luís, ministrando uma oficina de roteiros para histórias em quadrinhos. O grande trunfo das 20 horas em que passamos juntos, no Condomínio Fecomércio, foi ela ter ido além dos quadrinhos, se valendo de exemplo de outras expressões artísticas para transmitir o conteúdo a que se propôs.

Logo no primeiro encontro ela botou a turma para ouvir Brega-Chique (O vento levou Black), parceria de Dussek com Luiz Carlos Góes. Se hoje a letra do hit-título de seu disco de 1984, popularmente conhecido como Doméstica, poderia facilmente ser rotulada de “politicamente incorreta”, serviu bem à professora para ilustrar os exemplo de reviravoltas e clímax necessários para o assunto naquele momento.

Eduardo Dussek se apresenta hoje em São Luís, na sétima edição do projeto Ponta do Bonfim: amizade, música e por do sol. Um grupo de amigos se reúne, desde 2011, para trazer artistas que eles mesmos gostariam de ver no palco, mas que por uma série de razões, nunca (ou quase nunca) sobem aos palcos da ilha. Vendem ingressos limitados e fazem a história acontecer em uma casa no bairro que dá nome ao projeto, onde o fundo de palco é São Luís vista de outro ângulo. A quem nunca foi, é realmente uma maravilha.

Por lá, em anos anteriores, já vi shows de Bruno Batista, Ceumar, Danilo CaymmiRenato Braz e, entre outros, Cida Moreira, cantora e pianista que, destaco aqui pelo que tem em comum com o destaque de hoje: ambos, além de cantar, atuam também no teatro. São atores. O que torna a música que fazem sui generis, com toda essa expressividade traduzida nas interpretações – no que voltamos à Brega-Chique com que abro este texto. A propósito: dele, ela gravou Singapura, em Abolerado blues, seu disco de 1983.

Dussek também é bastante lembrado por Nostradamus, com que participou de festival da TV Globo em 1980, e o Rock da Cachorra, composição de Léo Jaime com que acabou flertando com a cena do chamado rock brazuca, na mesma década.

O artista, outro arquiteto da música (nem tão) popular brasileira – estudou arquitetura, além de música e teatro –, é único em sua mescla de bom humor e erudição, termos que bem poderia usar entre os parênteses onde convencionalmente se lê “letra e música”.

Sua apresentação hoje na Ponta do Bonfim será antecedida pelo dj Jorge Choairy, que, a julgar pela relação que sempre promove entre seu set list e o show ao vivo no palco, deve caprichar no escracho – não nego a curiosidade. Na sequência é a vez do show Caros Amigos, que marca o encontro de Marconi Rezende, Tutuca, Gabriela Flor e Chico Neis, que passeiam por um repertório de clássicos da MPB e da música popular produzida no Maranhão, incluindo temas autorais.

A programação da Ponta do Bonfim começa às 15h30 e os últimos ingressos disponíveis (R$ 70,00) podem ser adquiridos pelos telefones (98) 3235-5844, 99166-8736, 99117-0970.

Samba de Nosly

Sambas. Capa. Reprodução

 

As referências aludidas pelo pianista mineiro Kiko Continentino em texto no encarte de Sambas [2018], novo disco do maranhense Nosly, são todas cabidas. O aguardado sucessor de Parador [2011] se aproxima bastante da bossa nova – é lançado no ano em que a revolução musical de Tom Jobim, Vinicius de Moraes e os Joões Gilberto e Donato completa 60 anos –, e consequentemente do jazz, tanto do ponto de vista temático quanto da arregimentação.

Autor de todo o repertório, em parcerias com Gerude, Carlos Berg, Nonato Buzar, Zeca Baleiro, João Nogueira e Luís Lobo, Nosly (violões e voz) é acompanhado por Kiko Continentino (piano), Rogério dy Castro (baixo), Victor Bertrami (bateria) e Wendel Silva (percussão), por 10 faixas que versam, como a maioria dos clássicos bossa-novistas, sobre praias, o amor e a própria música.

Ao refinado time de instrumentistas somam-se as participações especiais de Carlos Malta (sax soprano em Samba em sete, parceria com Luís Lobo), Marcelo Martins (flautas em Pedras do mar, que fecha o disco) e Jorge Continentino (saxes, clarinetes e flautas em Pagar pra ver, parceria com Gerude e Carlos Berg).

Quase todo o repertório é inédito, as exceções são Coração na voz (parceria com Gerude e Nonato Buzar) e Japi (com Zeca Baleiro). O João protagonista de Ladeira (parceria com João Nogueira) evoca o Pedro Pedreiro buarqueano.

Nosly reverencia igualmente a Copacabana, paisagem-musa de bossa-novistas (em É bom viver, parceria com Gerude), e a Ponta d’Areia já louvada por tantos conterrâneos (em Segura o banzeiro, também parceria com Gerude, parceiro mais constante, que assina metade das faixas do disco).

O álbum é embalado pelo belo projeto gráfico de Andrea Pedro, que já assinou trabalhos dos parceiros Zeca Baleiro e Chico Saldanha. Nele, ganha destaque o colorido musical das telas de Betto Pereira, cantor, compositor e artista plástico maranhense radicado no Rio de Janeiro, onde Sambas foi gravado (no Castelo Studio, em Niterói).

Sambas reafirma o lugar de Nosly na música brasileira: um sofisticado compositor popular que merece a atenção de mais ouvidos.

As mil almas de Tatá Aeroplano

Tatá Aeroplano lançou seu primeiro disco em 2004, Onda híbrida ressonante, como frontman do grupo Cérebro Eletrônico. O artista voa pelo chão: é um legítimo flaneur paulistano, que curte a cidade a seu modo, tendo estabelecido com a capital paulista uma relação bastante particular – e inspiradora.

De lá para cá vieram outros três discos com o Cérebro Eletrônico (Pareço moderno, de 2008, Deus e o diabo no liquidificador, de 2010, e Vamos pro quarto, de 2013), dois com o Jumbo Elektro (Freak to meet you, de 2004, e Terrorist!? The last álbum, de 2009), outro grupo de que foi vocalista, na persona de seu alter ego Frito Sampler – personagem que já lançou, por sua vez, dois álbuns solo: Aladins Bakunins [2015] e Cosmic Damião [2016].

Alma de gato. Capa. Reprodução

Tatá Aeroplano acaba de lançar o quarto álbum de sua carreira solo: Alma de gato [2018], sucessor de Step psicodélico [2016], Na loucura & na lucidez [2014] e Tatá Aeroplano [2012]. Ou quinto, se contarmos Vida ventureira [2017], que dividiu com a cantora Bárbara Eugênia.

É isto mesmo: entre bandas, solos, alter ego e duo, são 13 discos (em 14 anos), o que o torna um dos mais profícuos operários da música no Brasil. Isso sem contar suas colaborações em discos de outros artistas, tocando, produzindo, fornecendo composições – para ficarmos num único exemplo, a recente produção de Diamantes na pista [2018], estreia da cantora Malu Maria, parceira dele em Os Novos Baianos sapateiam na garoa dos Sex Pistols, uma das oito faixas de Alma de gato.

Alma de gato é um disco que, por um lado, demonstra o amadurecimento do artista, percebido a começar pelo maior entrosamento com a banda que o acompanha desde o primeiro disco solo. Por outro, mantém o clima bucólico-psicodélico que já é uma espécie de marca de seu trabalho autoral.

“No fim de 2016 mudei de Santa Cecília para o bairro da Vila Romana […]. Esse novo disco que chega está cheio de vivências e experiências de nova fase na cidade de São Paulo”, pontua o artista no release que ele mesmo escreveu. “Batizei o novo álbum em homenagem ao belo pássaro Alma de Gato, que avisto direto pelas ruas e praças da região, e me inspirou a escrever a canção Mil almas de gatos”, continua. O disco é “mais um lançamento de Aeroplano pelo selo não identificado Voador Discos” e “conta com a distribuição digital da Tratore” – a exemplo de toda sua discografia, está disponível para download gratuito em seu site.

Por ocasião do lançamento de Alma de gato, Tatá Aeroplano conversou com exclusividade com Homem de vícios antigos, a que se refere diretamente.

Retrato: Luiz Romero

Homem de vícios antigos – Tatá, você é um paulistano, homem da metrópole, mas teus discos têm um frescor pastoril, embora urbano, bucólico. Acho que um bom rótulo para teu trabalho, se ele coubesse em um, seria bucólico-psicodélico. Nele, esse equilíbrio entre coisas aparentemente tão díspares, no entanto, soa bastante natural. Como você enxerga isso?
Tatá Aeroplano – Zema , bucólico-psicodélico, tem tudo a ver com a música que eu tenho feito. Eu passei uma boa parte da infância e da adolescência no bairro do Passa Três, um vilarejo na zona rural que fica perto da cidade de Tuiuti, no interior de São Paulo. Também vivi em São Paulo, depois fui pra Bragança Paulista na adolescência e com 18 anos voltei pra morar em Sampa. Eu passei muito tempo vivendo a metrópole, mergulhado na cidade, nas noites, escutando sons de todos os tempos, assistindo shows de todas as galeras que vêm morar na cidade, artistas, amigos. Porém, sempre vivi em São Paulo como se eu estivesse vivendo no sítio, de uma forma simples, nunca tive carro, sempre gostei de caminhar e com isso estabeleci uma relação interiorana dentro da cidade, caminhando dia e noite. Hoje, quando tenho uns dias mais tranquilos, passo uns dias na natureza, observando pássaros, conectado com uma essência que eu nunca perdi e que me guia até hoje. E quando estou em São Paulo, vivendo agora na Vila Romana, faço altas caminhadas com a Malu [Maria, cantora e parceira], andamos seis quilômetros pra pegar um cine ou simplesmente curtir o movimento da Avenida Paulista.

Alma de gato é nome de um pássaro, mas também pode ser entendido como a essência do felino, libertária, com seu tempo todo particular. São ângulos possíveis de ouvir este teu novo disco?
Sim, total, Zema. Quando eu comecei a observar o pássaro Alma de Gato foi caminhando por Sampa. Eu ainda não tinha reconectado minha essência espiritual com os pássaros e um dia eu fui participar de um ensaio no estúdio do Guilherme Kastrup [percussionista], que fica no Alto da Lapa, e no quintal da casa dele tem uma vegetação linda com várias árvores e pela primeira vez eu prestei atenção numa Alma de Gato que pulava de galho em galho. Mexeu comigo, pois é um pássaro grande, multicolorido, meio pré-histórico e que se mexe nas árvores numa mistura de gato e macaco. Logo depois eu tive um sonho em que a [jornalista e radialista] Patrícia Palumbo me dizia que eu tinha que voltar a observar os pássaros que eu vi na infância, que eles não tinham sumido, pelo contrário, que ainda veria muitas espécies de pássaros que eu não tive a oportunidade de ver na infância. A partir daí, em Sampa, ou em qualquer cidade ou sítio que eu visite, a Alma de Gato sempre esteve presente. Batizar o álbum com esse nome é também brindar a essência felina, libertária, o voo da mente, porque a gente pode ser de tudo um pouco quando a gente mentaliza e observa, até nos movimentos mesmo, a gente passa a ser um pouco felino nas andanças, nos saltos, na vida. De uns tempos pra cá tenho vivido experiências maravilhosas com várias espécies de pássaros, insetos, plantas e árvores. A gente pode se reaproximar dessa natureza que tem tanta coisa pra ensinar e mostrar pra gente, é como receber fragmentos, estilhaços do elo perdido.

Alma de gato é conduzido por parceiros teus de longa estrada e demonstra um amadurecimento em relação aos discos anteriores. Foi mais fácil fazê-lo? Você o considera seu trabalho mais bem acabado?
É o quinto disco que eu gravo no estúdio Minduca com Bruno Buarque [bateria e percussão], Junior Boca [guitarra] e Dustan Gallas [contrabaixo e sintetizadores]. A gente vive uma sintonia, astral e amizade que fica mais bonita a cada disco, entramos em estado de festa quando gravamos. A gente é uma banda e isso me deixa totalmente realizado e sempre quando terminamos um novo álbum, fico já pensando o que faremos no próximo. Nesse disco eu vivi alguns momentos onde tive que buscar energia e concentração para gravar. Cores no quarto é uma música que veio de uma vez, gravei o momento da criação e levei alguns meses para pegá-la novamente. Tive que me isolar por alguns dias para me familiarizar com a canção. Quando fomos gravar o disco, aproveitei o melhor momento para a gente tocá-la. A base que está no álbum é do primeiro take. As músicas desse disco caminharam prum lugar novo, nesse ponto foi um desafio que com o passar do tempo foi ficando cada vez mais gostoso. Eu perdi a referência e o controle por diversas vezes, e isso foi muito bom. Não sei dizer se é o disco mais bem acabado que a gente fez, mas a gente está tão entrosado na vida e no estúdio, que naturalmente isso vai parar nas canções. Alma de gato abriu um caminho novo para os próximos trabalhos. Estou curioso sobre o que vamos fazer daqui pra frente.

Parceiras mais ou menos recentes, como Bárbara Eugenia, com quem você dividiu disco ano passado e turnê europeia este ano, e Malu Maria, de quem produziu o disco de estreia, comparecem à Alma de gato. Essa brodagem que marca a cena paulista me parece fundamental em teu fazer artístico, concorda?
Uma das coisas que me movem são os outros e seus devires. Desde pequeno sou assim. Gosto muito de escutar novos sons e conhecer novos artistas. Vivo de braços abertos pro desconhecido, pro mistério e encontros musicais. Esse disco está repleto de parcerias. Com a Malu Maria eu compus Os Novos Baianos sapateiam na garoa dos Sex Pistols. Com Luiz Romero, que é de Recife e mora em Sampa, rolaram as parcerias Deixa voar e Hoje eu não sou. Com o poeta cearense radicado em Sampa Daniel Perroni Ratto rolou a canção Colorir de carnavais. Com Beto Antunes, que é mineiro de Milho Verde, foi a vez de se inspirar e criar algumas partes juntos de O alienista da Vila Romana. E do João Sobral, que nasceu em Sobral no Ceará, eu gravei a composição de sua autoria Vida inteira. A Bárbara, a Julia Valiengo e a Ciça Góes, que participaram do disco anterior, também estão presentes nesse álbum. Eu gosto muito desse criar coletivo natural, sem pensar muito. Esse disco nasceu de parcerias feitas principalmente à noite, sem combinar, sem pensar muito a respeito, e quando eu me dei conta, o disco estava pronto. Isso tem feito cada vez mais a minha cabeça: deixar o inconsciente consciente nos momentos de inconsciência total.

Teus discos também trazem uma abordagem bastante particular do carnaval, aqui representada por Colorir de carnavais, uma música alegre, alto astral, mas que fala de superação, de curar uma dor de amor com outro amor. É algo autobiográfico?
Essa canção nasceu a partir do poema presente no livro de poemas Vozmecê do Daniel Perroni Ratto, num domingo à tarde, no Condomínio Cultural que fica na Vila Anglo. O Ratto me deu o livro e eu abri direto na página com a letra de Colorir de carnavais. Automaticamente eu comecei a cantar a melodia da música, a Malu Maria, que estava filmando, registrou o momento e na hora soube que ali estava uma canção vibrante. Depois que eu gravei a música, captei a essência da letra, que foi escrita por um amigo de longa data: com o Daniel Ratto eu tive uma banda, chamada Luz de Caroline. Nessa banda ele cantava e eu tocava brinquedos que passavam por um pedal de delay e reverbe. Daí que nascem as grandes parcerias da vida. Agora, falando sobre a letra da música, alguns amigos que passaram por momentos de separação e superação se conectam a história da letra e isso eu chamo de magia e encontro, porque a letra do Daniel me representou totalmente, é uma história universal.

O título Os Novos Baianos sapateiam na garoa dos Sex Pistols, de longe o que mais chama a atenção à primeira vista, dialoga diretamente com o verso de Caetano Veloso em Sampa, “os Novos Baianos passeiam na tua garoa”, embora tua música, diretamente, nada tenha a ver com a de Caetano. Ela de algum modo serviu de inspiração?
Com certeza, o Caetano Veloso é uma inspiração eterna, bem como Gilberto Gil, Itamar Assumpção, Chico Buarque, Os Mutantes, Novos Baianos, Tom Zé, João Gilberto, Sérgio Sampaio, Raul Seixas, Alceu Valença, Zé Ramalho, Gal Costa, Maria Bethânia, Elis [Regina]… só pra ficar nos artistas do fim da década de 1960 e começo dos 1970. Hoje minhas influências também são os amigos contemporâneos que compõem e fazem música, eles me guiam totalmente. Quando eu terminei de compor essa canção com a Malu Maria, me veio o título referência na hora, pensei na canção do Caetano. Achei até um pouco exagerado colocar a palavra “sapateiam” em vez de “passeiam”. Eu quis dar aquela espetada na galera que vive escutando e louvando a vida inteira artistas gringos e passam batido com a nossa música que tem tanta coisa maravilhosa. Um adolescente brazuca conhecer o Sid Vicious sem saber quem são os Novos Baianos, soa surreal, mas foi o que aconteceu numa noite de show no Teatro de Bolso do IV Mundo e inspirou a feitura da música em parceria com a Malu.

Ainda falando em Os Novos Baianos sapateiam na garoa dos Sex Pistols, há um verso, bonito e sutil, que fala em virar à esquerda. Como se posiciona Tatá Aeroplano nestes tempos sombrios em que o Brasil está mergulhado?
Eu nasci canhoto e dobrei a esquerda. Cada vez mais eu consigo captar o espírito do tempo político de cada época. Através da literatura, história e poesia, quando a gente volta séculos e séculos para trás, se conecta com o estado de espírito político de pessoas que viveram no passado e naturalmente se posicionavam corporal e espiritualmente com as forças da natureza, questionando as brutalidades empenhadas pelas religiões, tradições, coisas que com o passar do tempo carregam uma energia que eu quero passar longe. A realidade que vivemos é que a gente ainda corre o risco de viver preso dentro das religiões, do conceito de família, se você é católico ou evangélico você se torna uma propriedade. Vive-se um tipo de aquietação espiritual, já que te é privada a possibilidade de certas transcendências, pecados, culpas e não se pode tocar em algumas feridas. A gente entrega uma parte do nosso livre arbítrio para outros decidirem. O momento político que vivemos é muito delicado. Sofremos o Golpe [maiúscula dele], domínio das bancadas ruralistas, cristãs, evangélicas a mil por hora e o #EleJamais como uma ameaça real. Mesmo assim sou otimista e acredito que vamos representar nessa eleição. Nasci canhoto, gauche, assim como você, sou um maluco por vícios antigos. Na escola alguns professores tentaram me fazer escrever com a mão direita. Eu chegava em casa e fazia a lição com a mão canhota, no dia seguinte, a professora reclamava e dizia pra eu refazer com a direita, que doideira isso, né? Então, sou mais Zema, [o cantor e compositor Juliano] Gauche, Galírio [o cantor e compositor Gustavo Galo, integrante da Trupe Chá de Boldo], Anelis [Assumpção, cantora e compositora], Karina [Buhr, cantora e compositora], Dustan, Boca, Bruno, Bárbara, Malu, Sobral, Tulipa [Ruiz, cantora e compositora], Ratto, Lenis [Rino, percussionista]… Esse é o nosso estado de espírito, que naturalmente se posiciona frontalmente contra esse estado atual estabelecido através do Golpe contra a Dilma.

A longa O alienista da Vila Romana, que fecha o disco, evoca a balbúrdia de Mutantes, com citações a Macunaíma, Dorival Caymmi e, talvez, Machado de Assis, entre outros, e reúne nada menos que 25 participações especiais, “via rede”. Como foi organizar e conceber isto?
Essa música nasceu de uma noite de bebedeira fumaceira na Casa Gramo, com o Beto Antunes Lanterna, que é muso inspirador e parceiro de alguns trechos da canção. No dia seguinte à bebedeira geral eu fui com a Malu a pé até a feira orgânica no Parque da Água Branca e eu ainda estava meio embriagado do dia seguinte quando os versos todos vieram. Primeiros as cabras e bodes e depois a ideia do Beto Antunes como o Beto Lanterna, uma espécie de Alienista da Vila Romana. Na hora eu saquei que tinha chegado uma música balbúrdia que ia encerrar o disco novo, e assim eu fui fazendo com os amigos da boemia total. A música foi se transformando numa peça teatral e aí fui inserindo áudios que recebi e que achei que podiam entrar e alguns áudios eu pedi especialmente para entrar na música. Enviei [uma mensagem pelo] whatsapp para alguns amigos dizendo “me envia um áudio de cinco, seis segundos falando de um tal de Alienista da Vila Romana”. Faltou o Tom Zé nessa música. Essa peça é uma mistura de devaneio, loucura, cinema marginal de inspiração Sganzérlica, o “MacunaCaymmicamente” veio como um sugestão da Liara [Gattolini, amiga], que foi assistir show junto com o Lucas [Paolillo, amigo] na Sensoria Discos, e o Lucas disse “Tatá, a Larissa está usando direto o termo MacunaCaymmicamente”, e ele entrou na música. Eu fui inserindo áudios até o último dia da mix. Foi como fazer um prato bem doideira mesmo, misturando tudo sem saber como vai ficar o sabor. Ou melhor, são aquelas coisas que a gente faz sem pensar no sabor e sim nas sensações. eu acho que vou escrever uma peça de teatro a partir desse música. Béeeeeee Béeeeeeee Béeeeeeee Béeeeeeeee.

Você já se referiu à sua própria produção fonográfica, à feitura de seus discos, comparando o processo à produção de alimentos orgânicos no Brasil, em pequena escala, lutando contra o poderio dos grandes produtores. Por outro lado, disponibiliza gratuitamente cada trabalho quando do lançamento, apesar de ainda acreditar no formato físico do disco. Como você equaciona todas estas questões?
Zema, eu comecei a disponibilizar os álbuns inteiros em mp3 de forma gratuita em 2012, quando lancei meu primeiro trabalho solo. A partir daí, o que aconteceu foi que me conectei com uma galera que gosta de ter o registro em cd. Como eu vendo os discos através do site e eu mesmo que cuido disso, descobri que tem muita gente que ainda gosta de ter o cd, ou o Vinil, que colecionam. Hoje os serviços de streaming dão o norte total, a cada ano mais e mais gente escuta a música nas plataformas youtube, spotify, deezer e afins. Com isso o número de downloads no meu site caiu muito. Mas as vendas de cds, lps, da caixa de Pandora [com todos os discos] e tals, continuam iguais, o que me possibilita lançar os discos ainda nos formatos cd e vinil. Ainda existe um galera massa que cultua vícios antigos. Assim como nós!

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Ouça Alma de gato:

Rita Benneditto acaba de disponibilizar novo videoclipe

A cantora Rita Benneditto disponibilizou há pouco no youtube o videoclipe de 7Marias (Rita Benneditto e Felipe Pinaud). Na última sexta-feira (21), o single chegou às principais plataformas de streaming.

O videoclipe tem, além da cantora, seis atrizes interpretando as entidades, pombagiras, as sete Marias a que se refere o título da música: Amanda Calabria, Carmen Eça, Dani Ornellas, Isabel Chavarri, Leona Cavalli e Tati Villela. Na gravação Rita Benneditto (direção, arranjo, voz e vocais) é acompanhada por Fred Ferreira (direção, arranjo e guitarras), Pedro Dantas (contrabaixo) e Ronaldo Silva (bateria e percussões), com participação especial do paraense Felipe Cordeiro (guitarras). O single é distribuído pela ONErpm, em parceria com o selo Manaxica.

Com a mesma pegada, juntando elementos da música popular brasileira com eletrônica a rezas e pontos dos terreiros das religiões de matriz africana, 7Marias celebra os 15 anos do bem sucedido Tecnomacumba, com que a cantora já percorreu o mundo – por enquanto há três shows comemorativos agendados até o fim do ano: dia 29 de setembro no Festival Puroritmo, no CCBB de Brasília/DF; 30 de novembro no Circo Voador (Rio de Janeiro); e 1º. de dezembro no Cultural Bar (Juiz de Fora/MG).

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Assista o videoclipe de 7Marias (Rita Benneditto/ Felipe Pinaud):

Nem mortos!

Biógrafos de Sócrates, Tarso de Castro, Wander Piroli, Belchior, Chacrinha, Clarice Lispector e Sérgio Sampaio imaginam quais seriam os votos de seus biografados no Brasil de hoje

O jornalista escocês Andrew Downie, autor de Doutor Sócrates: Futebolista, Filósofo e Lenda [Simon & Schuster, 400 p., ainda sem tradução no Brasil], declarou hoje (19) ao jornal Folha de S. Paulo: “Esses caras hoje em dia são o contrário do Sócrates. Ganham muito mais e se importam muito menos com o lugar de onde eles vêm. Sócrates era imprevisível e não posso falar por ele, mas creio que ele estaria chocado em ouvir jogadores do Corinthians ou de qualquer time grande, como Palmeiras ou Tottenham, falando a favor do Bolsonaro, do autoritarismo”.

Downie se referia ao apoio de nomes como Felipe Melo (Palmeiras), Lucas Moura (Tottenham, da Inglaterra), Jadson e Roger (Corinthians) ao candidato de extrema-direita à presidência da república Jair Bolsonaro (PSL). O contraponto proposto pelo biógrafo se ancora, por exemplo, na atuação de Sócrates em movimentos como a Democracia Corintiana e a campanha Diretas Já!, ambas na década de 1980.

Homem de vícios antigos conversou com exclusividade com biógrafos de Sócrates, Tarso de Castro, Wander Piroli, Chacrinha, Belchior, Clarice Lispector e Sérgio Sampaio, que, baseados no profundo conhecimento que têm de suas personagens, imaginaram quais seriam seus votos no Brasil de hoje.

Sócrates. A história e as histórias do jogador mais original do futebol brasileiro. Capa. Reprodução

Também biógrafo de Sócrates [Sócrates. A história e as histórias do jogador mais original do futebol brasileiro. Objetiva, 2014, 264 p.], o jornalista Tom Cardoso, ao mesmo tempo em que acredita que o ex-jogador poderia estar ainda mais à esquerda, reconhece sua postura libertária. “Acho que ele jamais concordaria com um clube tutelar, ele diria que o jogador é livre para se posicionar politicamente, seja ele eleitor do PT ou do Bolsonaro”, disse. “O Sócrates não ficaria surpreendido com o voto de algum jogador no Bolsonaro. Talvez ele discordasse, claro, como um homem progressista, de esquerda, de um eleitor do Bolsonaro. Mas ele não ficaria assustado com isso, ele sabia, deu várias declarações dizendo que o futebol brasileiro era muito conservador, era um espelho da sociedade”, continua.

“Ele achava que o PT, de quem ele acabou se tornando um crítico, tinha feito essa guinada ao pragmatismo político, através da Carta ao Povo Brasileiro, então eu tenho dúvidas se ele não estaria mais à esquerda do [Fernando] Haddad [candidato do PT] e não estaria mais entusiasmado pelo PSol, por exemplo”, imagina. Cardoso lembrou ainda que Sócrates chegou a ser secretário municipal de Esportes em Ribeirão Preto/SP numa das gestões de Antonio Palocci, tendo permanecido apenas seis meses no cargo, “ele meio que se desiludiu um pouco com aquela coisa preguiçosa da máquina do estado”. O camisa 8 também teria recusado diversos convites do PT para assumir o ministério dos Esportes na gestão de Lula. “Hoje, eu acho que ele votaria no Haddad, mas também poderia votar no Ciro [Gomes, candidato do PDT] ou no próprio [Guilherme] Boulos [candidato do PSol]”, opina.

75 kg de músculos e fúria. Tarso de Castro: a vida de um dos mais polêmicos jornalistas brasileiros. Capa. Reprodução

Indago sobre Tarso de Castro [75 kg de músculos e fúria – Tarso de Castro: a vida de um dos mais polêmicos jornalistas brasileiros, Planeta, 2005, 280 p.], outro biografado de Tom Cardoso. “O Tarso é mais difícil. Eu acho que ele pregaria um voto útil contra o Bolsonaro. Tem o Ciro, que é do PDT do [Leonel] Brizola, mas não tem nada de brizolista, o Tarso era brizolista, antes de tudo, mas tinha simpatia pelo Lula, fez uma grande entrevista com o Lula, acho que em 1982, para a [revista] Careta. Acho que ele estaria inclinado pelo voto a quem tivesse mais chance para ganhar do Bolsonaro”, especula sobre a posição do jornalista, da patota do Pasquim.

Belchior. Apenas um rapaz latino-americano. Capa. Reprodução

O biógrafo Jotabê Medeiros foi direto sobre que opinião teria Belchior [Belchior – Apenas um rapaz latino-americano, Todavia, 2017, 237 p.] sobre o capitão reformado do exército: “Belchior era antifascista. Foi combatente da liberdade até a morte – embora afastado da vida social, angustiava a ele o mergulho que o Brasil deu na via antidemocrática nos últimos anos. Sua defesa da liberdade o posta como um claro adversário de tudo o que Bolsonaro representa”, diz.

O jornalista aposta no voto do compositor cearense: “Belchior é Lula. Lula é Belchior. Ele estaria com o maior líder popular do País em todos os tempos. Caminharia ao lado de Haddad, não tenho a menor dúvida”, coloca as fichas.

“Um compositor que escreveu “um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha”, identificando os alvos prioritários dos ataques de racismo, exclusão e misoginia, sempre demonstrou saber perfeitamente quem são os inimigos a serem combatidos”, arremata.

Wander Piroli. Uma manada de búfalos dentro do peito. Capa. Reprodução

Mais comedido é Fabrício Marques, biógrafo de Wander Piroli [Wander Piroli. Uma manada de búfalos dentro do peito, Coleção Beagá Perfis, Conceito Editorial, 2018, 256 p.]. “Seria leviano de minha parte tentar adivinhar as posições políticas do Wander Piroli. O que posso pressupor, com base nas opiniões dele, é que ficava indignado especialmente com a desigualdade social de nosso país e com as injustiças contra minorias. Como afirmou o jornalista João Paulo Cunha, a principal característica do jornalista e escritor mineiro foi o compromisso humano. Acho que essa postura dá pistas sobre as inclinações dele”, comenta.

Chacrinha. A biografia. Capa. Reprodução

Biógrafo do pernambucano Abelardo Barbosa, que fez fama como Chacrinha [Chacrinha: a biografia, Casa da Palavra/Leya, 2014, 328 p.], Denilson Monteiro segue a linha de Marques: “Seria muito arrogante da minha parte determinar qual seria o pensamento do Chacrinha se estivesse vivo hoje. Mas analisando tudo o que ele sofreu durante a ditadura civil-militar, tendo até sido preso, acredito que ele jamais apoiaria um candidato simpático a esse período tão perverso da história do país”, lembra.

Mas arrisca-se a opinar sobre o “não-voto” do velho Guerreiro em um possível segundo turno: “Partindo do que eu respondi anteriormente, o que  acredito é que num segundo turno, Chacrinha, que participou da campanha das Diretas, jamais votaria em um candidato como Jair Bolsonaro”, afirma.

Clarice,. Capa. Reprodução

Opiniões parecidas têm os biógrafos de Clarice Lispector e Sérgio Sampaio. O americano Benjamin Moser, autor de Clarice, [Companhia das Letras, 2017, 576 p.], afirma: “Clarice teria compartilhado o mesmo nojo que todos sentimos quanto a este senhor. Creio que estaria apoiando Fernando Haddad, mas é impossível saber ao certo”.

Rodrigo Moreira, autor de Eu quero é botar meu bloco na rua! [Muiraquitã, 3ª. edição, 2017, 288 p.], biografia do cantor e compositor capixaba, opina: “Como não cheguei a conhecer Sérgio, não sei precisar qual era sua orientação política, mas decerto seria de esquerda ou centro-esquerda. Sendo assim, acho improvável que uma candidatura como a de Bolsonaro o seduzisse. Arrisco dizer que ele votaria no Haddad ou no Ciro”.

Eu quero é botar meu bloco na rua. Capa. Reprodução

O capitão não conseguiu capitalizar o lamentável atentado à faca que sofreu durante um ato de campanha em Juiz de Fora/MG, no último dia 6 de setembro e, internado desde então, enfrenta, para usarmos metáforas do campo que abre este texto, o futebol, trombadas de gente que veste o mesmo uniforme: sua rejeição, que já era grande, cresce a cada declaração de seu vice, o general Hamilton Mourão (PRTB), e de seu principal conselheiro na área econômica, Paulo Guedes, a quem o candidato apelidou “posto Ipiranga”. Nas últimas pesquisas, o candidato tem oscilado dentro da margem de erro.

Pelo visto, a rejeição ao ideário autoritário do deputado é grande também entre personalidades que permanecem vivas através de suas obras. Não é mesmo estranho ouvir de alguém, quando perguntado se votaria em Bolsonaro: “nem morto!”.

Wado, lírico e político

Precariado. Capa. Reprodução

 

Um dos pilares da identidade musical brasileira, o samba é elemento central em Precariado [2018], disco novo do catarinense radicado alagoano Wado, o 10º. álbum de sua carreira, com 11 faixas inéditas, sucessor de Ivete [2016], disco em que flertava com a axé music. Não que seja um disco de samba, pura e simplesmente, ou que o samba lhe caiba como rótulo.

Mas samba com a pegada moderna e flerte com a eletrônica que pauta há algum tempo a sonoridade de Wado, que junta pontas de fi(li)ações que vão de Dorival Caymmi e Novos Baianos a Radiohead e Michael Jackson, entre outros, no campo da música.

No campo político, a principal referência é Noam Chomsky, filósofo e linguista norte-americano de cuja obra Wado pesca o título do disco: segundo o teórico, “precariado”, soma de precário e proletariado, é aquilo produzido no terceiro mundo com mão de obra barata dos trabalhadores em condições precárias para o consumo nos países desenvolvidos, algo evocado há 20 anos por Tom Zé – outra fi(li)ação do novelo de Wado –, em Com defeito de fabricação [1998].

Wado continua afiado e antenado, suas músicas combinando a dança e a reflexão, lírico e político. “É no raso que as águas se agitam”, diz a letra de Correntes comprimidas, com um violão puxado à bossa. “O esgoto deixou a grama verdinha/ apesar de sua podridão”, ironiza em A grama do esgoto, que abre o disco.

Precariado é disco agregador, que soma participações especiais – Kassin (em A grama do esgoto), Peartree e Tuyo (em Janelas), Baleia (em Bailar dos barcos), Morfina (em Roupa), Momo (em Tudo salta e Correntes comprimidas), Figueroas (em Quem dera) e Teago Oliveira (em Onda permanente) – a músicos que já estão na estrada com Wado há bastante tempo: Vitor Peixoto (guitarra, violão de nylon e voz), Dinho Zampier (teclados e voz), Igor Peixoto (baixo, guitarras, voz, violão e 909) e Rodrigo Sarmento “Peixe” (bateria, percussão e 909).

Com 17 anos de carreira, iniciada com O manifesto da arte periférica [2001], o Precariado de Wado mantém a sofisticação que marca seus trabalhos. O disco está disponível para download no site do artista, como toda sua discografia.

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Ouça Precariado:

Contra a discriminação

A marcha. Capa. Reprodução

 

A graphic novel A marcha [título original: March: book one; 2018, 128 p.; R$ 45], cuja primeira parte (de três) foi recentemente publicada no Brasil pela Nemo, poderia ser apenas uma espécie de publicidade travestida de história em quadrinhos.

É o que podem dizer os apressados ou adeptos de teorias da conspiração, sobretudo os que, cá no Brasil, parecem viver ainda no tempo em que se passa a história – entre as décadas de 1950 e 60. Explico: traduzida por Érico Assis, a graphic novel leva a assinatura de John Lewis, Andrew Aydin e Nate Powell.

Somente o terceiro é da área, romancista gráfico com um Eisner na bagagem, por Any Empire, Swallow me Whole. O primeiro é o deputado do subtítulo da história – John Lewis e Martin Luther King em uma história de luta pela liberdade – e o do meio, seu assessor.

O subtítulo diz perfeitamente do que se trata e terminam aí quaisquer especulações em contrário: a narrativa fluida e muito bem desenhada, toda em preto e branco, remonta às lutas pelo fim da segregação racial nos Estados Unidos, de que Lewis acabaria por tornar-se um líder (é deputado desde a década de 1980, justificando a confiança dos que lhes depositam os votos).

Nesta primeira parte da história, o deputado recebe crianças em seu gabinete, e reconta sua trajetória, da infância na pequena propriedade da família, em que sua relação com as galinhas e com a Bíblia já pareciam desenhar o futuro militante da não-violência.

Adiante, reconta os sit-ins que organizou: grupos de negros ocupavam balcões de lanchonetes que, à época, podiam escolher quem servir ou não de acordo com a cor da pele. Este tipo de protesto, inteligente e não-violento, levou à derrubada das leis Jim Crow, que institucionalizavam a segregação racial americana.

Revelada ao longo da graphic novel, sua inspiração foi a história em quadrinhos Martin Luther King e a história de Montgomery, publicada pela FOR [sigla de The Fellowship of Reconciliation, a Irmandade da Reconciliação], “que explicava os princípios da resistência passiva e da ação não-violenta como ferramentas para a dessegregação”.

130 anos depois de abolir a escravidão, o Brasil ainda não superou o ranço escravocrata e o racismo, embora não institucionalizado, segue vigente, sob camadas de hipocrisia disfarçadas de brincadeiras e/ou não alinhamento ao politicamente correto.

Uma leitura fundamental em um país em que a classe média adora papagaiar os norte-americanos e, sob a égide de um golpe, parece querer retroceder em se tratando de direitos humanos – expressão em geral deturpada.

Coleção de perdas

O peso do pássaro morto. Capa. Reprodução

 

Romance de formação, O peso do pássaro morto [Editora Nós, 2017, 168 p.; R$ 30] acompanha a vida de sua protagonista dos oito aos 52 anos de idade. A paulista Aline Bei estreia com uma prosa vigorosa, impregnada de poesia – sobretudo ecos de Manoel de Barros, mas também elementos de poesia visual, a disposição das palavras nas páginas por vezes reforçando ideias e tons, além do enorme talento da escritora em fazer grande literatura – seu livro é um dos finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura – se valendo da oralidade.

Se ao longo das páginas acompanhamos o amadurecer da personagem, a escritora Aline Bei desponta madura, num livro quase completamente narrado em primeira pessoa, a expor com delicadeza a dureza de uma vida que é uma coleção de perdas.

Secretária da burocracia de um escritório como tantos outros, a mulher que um dia sonhou ser aeromoça conhece a morte ainda na infância, aos oito anos – as idades intitulam os capítulos –, quando perde Carla, sua melhor amiga, colega de escola. Sua vida é um suceder de acontecimentos trágicos, narrados elegante e poeticamente pela autora.

A redação escolar que um dia ela acha em uma caixa, revirando as tralhas quando se muda de endereço, parece ser a chave dO peso do pássaro morto – “A cura não existe” é o título do trabalho escolar –, como nos alerta a poeta Micheliny Verunschk, na orelha, sobre a ideia central do romance: “a vida se resolve mesmo é vivendo, as dobras de acontecimentos se sobrepondo umas às outras”.

Da protagonista, poderíamos dizer tratar-se de uma mulher comum, como tantas outras. Mas a sucessão de tragédias particulares torna-a uma mulher forte, única. Do encanto infantil com seu Luís, um “benze Dor” – Aline Bei domina também os jogos de palavras –, à conturbada relação com o próprio filho e a afeição por um cachorro de rua, a narrativa densa nos emociona, tornando-nos cúmplices, ansiosos pelos desdobramentos – e por vezes voltando para reler esta ou aquela frase, tão bem construída, dizendo tanto, por vezes lições de vida.

Autora e protagonista mulheres equilibram O peso do pássaro morto entre essa dor e delícia, fazendo do romance um livro de raras força e beleza.

Betto Pereira inaugura exposição amanhã (10) em São Luís

Betto Pereira conversou com exclusividade com Homem de vícios antigos. Foto: divulgação

 

Acontece amanhã (10), às 15h, no Espaço de Artes Márcia Sandes, na sede da Procuradoria Geral de Justiça (Av. Prof. Carlos Cunha, nº. 3261, Calhau), a vernissage da exposição Telas e Tons, do artista Betto Pereira, que contará com pocket show dele com participações especiais de Josias Sobrinho, Adão Camilo, Pepê Jr. e Mano Borges.

Consagrado como cantor e compositor, Betto Pereira, atualmente residindo em Petrópolis/RJ, relembra que ambos os ofícios artísticos sempre caminharam em paralelo. “Tem muita gente que acha que eu comecei agora, nesses cinco anos. Eu apenas retomei, mas eu cansei de fazer, mesmo na época do [grupo] Rabo de Vaca, eu já fazia os cartazes, capas de livros, fazia algumas artes quando eu morava em São Paulo, para pagar umas continhas, pro rango, enfim, sempre caminharam junto as minhas artes plásticas com a música. Não é de hoje, eu reassumi, mas a música está sempre presente. Telas e Tons é isso, uma mistura. Eu não sei se eu sou um cantor que pinta ou um pintor que canta. É uma brincadeira mas é por aí”, diz, com exclusividade, a Homem de vícios antigos.

A igreja do Desterro no traço de Betto Pereira, uma das telas da exposição. Reprodução

Betto Pereira recentemente assinou as artes do disco Sambas, recém-lançado por Nosly. Telas e Tons, a exposição, reúne 10 telas, que passeiam por várias fases de sua carreira. “A gente está levando o que a gente pinta desde o começo da minha história. Passa pelas bicicletas, a bicicleta tem uma história com a minha vida, desde quando eu tinha cinco anos, isso me marcou muito, por isso as bicicletas, onde eu passei pelo Museu Nacional de Belas Artes, com a exposição Pedalando cores, então tem um pouquinho de cada coisa, tem os casarios, tem a festa do divino, tem a música, então é um pouquinho de tudo, pode se falar assim”, adianta.

Sobre voltar a São Luís, ele comenta: “A sensação de voltar a expor em São Luís é muito bacana, muito prazerosa, até por que minha arte vem de São Luís, ela passa pela minha música, pela minha história de vida, com as ruas, a música, tudo o que rolou durante esse tempo na minha história com arte, chegar e rever os amigos, e mostrar essa arte que está sendo produzida aqui no país, pelo mundo afora, mas sempre com o pé no Maranhão, claro. Papete me disse uma vez: “Betto, assuma o seu gueto, a sua história, que aí vira universal”. Isso é muito bacana, sempre levei isso pra minha história”.

Além da música, com vários discos gravados, e das artes plásticas, Betto Pereira também teve passagens pela tevê, tendo apresentado durante cerca de 10 anos o programa Armazém Cultural, voltado à cultura do Maranhão, e uma passagem de um ano e meio pela Rádio Jovem Pan. Ainda em São Luís chegou a ser proprietário de uma galeria de arte instalada no Jaracati Shopping; atualmente tem uma no Shopping Estação Itaipava, em Petrópolis, em que expõe permanentemente seu trabalho.

Telas e Tons tem curadoria de Carlos Dimuro e o marchand é Adão Camilo. A exposição fica em cartaz até o próximo dia 14 (sexta-feira).

Maranhão na Tela amplia alcance

Idealizadora e realizadora do festival, Mavi Simão conversou com exclusividade com Homem de vícios antigos

Um dos seis trabalhos em óleo sobre papel cartão do artista maranhense Walter Sá que compõem a identidade visual do festival. Reprodução

A 11ª. edição do festival Maranhão na Tela acontecerá entre os dias 15 a 24 de novembro, e acontecerá, entre sessões e rodadas de negócios, no Cine Praia Grande (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, Praia Grande), Centro Cultural Vale Maranhão (Praia Grande) e Kinoplex Golden (Golden Shopping, Calhau).

As inscrições para as mostras competitivas – gratuitas – e para as rodadas de negócios – entre R$ 70 e 100 – serão abertas amanhã (10), no site do festival.

A realização de mostras em uma sala de uma grande rede de cinemas é uma das novidades do Maranhão na Tela, cuja origem remonta a 2006, idealizado pela cineasta Mavi Simão e realizado pela Mil Ciclos Filmes.

Com a atriz Áurea Maranhão (E), a diretora Mavi Simão no set de Terminal Praia Grande, seu primeiro longa, em fase de finalização. Foto: divulgação

“Sobre a exibição nas salas Kinoplex, o que mais pesou para decidirmos foi a questão da qualidade de exibição, essa é uma enorme prioridade para qualquer festival. Infelizmente, o Cine Praia Grande, espaço pelo qual tenho imenso carinho, não possui a estrutura exigida para a projeção de muitos dos filmes que queremos exibir, mas ainda teremos boa parte da programação nesse espaço tão importante para o cinema maranhense e para o Maranhão na Tela. Também acho importante exibir os filmes locais, agora regionais, com o que se tem de melhor em termos de qualidade. Para os realizadores isso faz toda a diferença. A rede Kinoplex também foi muito aberta a essa parceria, que é inédita até pra eles, já que conseguiremos manter a entrada gratuita. Estou louca para ver a reação dos estudantes da rede de ensino público, assistindo filmes deitados em poltronas reclináveis da sala Platinum.  Grande parte dessas crianças e jovens  estão indo ao cinema pela primeira vez, imagina que experiência inesquecível”, comenta Mavi.

Sobre as rodadas de negócios, ela afirma: “esse é um sonho muito antigo e de grande importância para o fomento à produção maranhense. Trata-se de uma iniciativa com foco na geração de negócios, ou seja, uma ação que vai contribuir de fato para que projetos saiam do papel e, consequentemente, para que o nosso mercado se desenvolva. Serão dezenas de convidados entre executivos de canais de TV, grandes produtores, distribuidoras, entre outros profissionais, além de representantes da Ancine [Agência Nacional do Cinema], do Sicav [Sindicato da Indústria do Audiovisual] e da Bravi [Brasil Audiovisual Independente, associação que congrega mais de 600 produtoras no país]. Outra novidade importante é a ampliação do projeto para as regiões Norte e Meio Norte. A partir de 2018, o Maranhão na Tela estende suas ações para mais oito estados. Seremos uma janela de visibilidade e fomento desse mercado que hoje é o que menos produz no Brasil”.

Mavi não antecipou títulos ou cineastas que participarão desta edição do festival, nem homenageados. “Já estamos trabalhando para fechar os homenageados, mas ainda não temos os nomes confirmados. A curadoria dos filmes convidados está começando a ser feita agora. Nessa fase ainda não temos o detalhamento da programação”, declarou.

Ela é otimista quanto ao atual momento do cinema produzido no Maranhão. “O cinema maranhense vive seu melhor momento. Parte disso é fruto da seleção de realizadores maranhenses em chamadas do Fundo Setorial do Audiovisual [FSA], mas também da Escola de Cinema do Maranhão [vinculada ao Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão, IEMA] e do edital lançado pelo Governo do Estado em 2015, em parceria com o FSA. Esse edital injetou 3 milhões de reais na economia da cultura do audiovisual maranhense, por isso, é fundamental que essa seja uma política pública continuada. Naquela ocasião o FSA entrava com recursos na proporção de 2/1, hoje eles entram com 5/1. É um recurso muito significativo! Se esse edital for realizado anualmente, nosso cinema vai para o alto e além”, finaliza.

São Luís no plural

[o amigo Gutemberg Bogéa, editor do suplemento JP Turismo, encomendou um texto exaltação à ilha, por ocasião de seu aniversário de 406 anos, completados hoje (8); o texto, abaixo, saiu ontem (7), no Jornal Pequeno]

Uma singela homenagem ao 406º. aniversário da capital maranhense. E para você: São Luís de quê?

POR ZEMA RIBEIRO
ESPECIAL PARA O JP TURISMO

Foto: Marcia Carvalho

São Luís completa hoje (8) 406 anos de fundação – há controvérsias. Na última quarta-feira (5), a escritora Clarissa Carramilo presenteou a cidade com Cidade espanto, seu romance de estreia, em concorrida sessão de autógrafos ocorrida na Livraria Leitura (São Luís Shopping).

Cito o livro da jovem autora por que uma coisa salta aos olhos em suas páginas: a relação que cada ludovicense estabelece com sua terra natal. Adoramos exaltá-la, mas no íntimo, também acreditamos sermos os únicos que podemos esculhambá-la. Imagine alguém nascido em qualquer outra cidade falando mal de São Luís perto de você?

Começa uma troca de argumentos sem fim, uns exagerados, sempre na perspectiva ufanista de que “vivemos na melhor cidade da América do Sul”, como cantou o poeta referindo-se a outra. A Cidade espanto que intitula o romance de Clarissa Carramilo está lá, ao longo de suas páginas, com suas belezas, lugares únicos e problemas.

Mais de quatro séculos de história cantados em verso e prosa, entre inúmeros epítetos: Athenas brasileira, Jamaica brasileira, Ilha do amor, Ilha rebelde, capital brasileira da cultura, cidade patrimônio cultural da humanidade, Ilha bela, Ilha magnética, no título de duas músicas tornadas patrimônio imaterial pela Assembleia Legislativa do Maranhão, de Carlinhos Veloz e César Nascimento, respectivamente, que adotaram São Luís como berço, bebendo de sua inesgotável fonte cultural e retribuindo com uma obra à altura.

São Luís das Pedras da rua, os loucos que qualquer cidade tem, catalogados pelo saudoso Lopes Bogéa no livro homônimo – todo mundo já trombou com um: de um Zé da Chave onipresente em bons shows musicais a Maria do Copo, sempre disposta a mais uma dose, entre muitos outros.

São Luís dos pregoeiros, em que uns apregoam que no passado era melhor: tempos de cinemas fora de shopping centers, Roxy, Alfa, Eden, Monte Castelo, Rex, Passeio, de bares como o Moto Bar, Risco de Vida, Baixo Leblon. Outros a enxergar – merecidamente – beleza na pulsação de espaços como o Bar do Léo, o Chico Discos e a rediviva Fonte do Ribeirão, cartão postal do centro da cidade, ocupada por samba, reggae e outras levadas.

São Luís cujo aniversário é colado a feriado nacional, garantindo um feriado prolongado, merecido descanso a seus trabalhadores e trabalhadoras, para inveja de quem nasceu e vive noutros cantos do Brasil – este ano caiu num sábado, mas de qualquer forma, está valendo.

São Luís das praias, destino de boa parte dos que passam este feriadão por aqui. São Luís onde, no entanto, já não dá mais para vacilar com janelas abertas, pois não há mais dia e hora para chover, levando a comparações gaiatas, em tempos de memes, com Belém e Londres.

São Luís da Feira da Praia Grande – ou Mercado das Tulhas – e, agora, da dominical Feirinha São Luís, em que é possível tomar café ouvindo a banda tocar e já emendar uns chopes artesanais até a hora do almoço e além.

São Luís do reduto boêmio da Madre Deus, berço do samba da Ilha, de “bicho terra e bicho homem, que o tempo espalha e não consome toda magia”, salve a Madre Ilha de Ivandro Coelho e de todos que se aventurem respirar seu ar, que quem vem uma vez para sempre quer ficar.

São Luís do bumba meu boi e do tambor de crioula, do peixe frito com arroz de cuxá, da juçara com camarão seco, da tiquira sem poder tomar banho, reza a lenda – como tantas outras, a carruagem de Ana Jansen, a manguda, entre tantas histórias que seu Antonio Vieira não cansou de contar nos fins de tarde na banca do Dácio, no Estacionamento da Praia Grande.

São Luís da Praia Grande que uns insistem em chamar de Reviver, nome de inacabado projeto de revitalização do centro histórico ludovicense, que abarca ainda os bairros do Desterro e do Portinho.

São Luís do Oscar Frota e da Zona do Baixo Meretrício, por onde supostamente o reggae teria sido introduzido, por discos de vinil trazidos por marinheiros de suas viagens. O resto, a história se encarrega de contar.

Fundos rotativos solidários: uma alternativa para o Brasil

Seminário estadual “Fundos solidários: autonomia comunitária para o bem viver” aconteceu no Oásis e reuniu 45 representantes de grupos e comunidades de 15 municípios

POR ZEMA RIBEIRO
ESPECIAL PARA O JP TURISMO

Estamos em plena corrida eleitoral e, como de praxe, candidatos se apresentam, alguns com soluções mirabolantes à busca de fisgar o eleitorado. Diante da crise que assola o país, alguns temas chamam a atenção: o reaquecimento da economia e a limpeza do nome do brasileiro estão entre os compromissos de alguns candidatos.

Não são tarefas fáceis, mas para boa parte da população, podem ser mais simples do que aparentam. Uma ideia que pode ser aproveitada pelos postulantes a cargos neste pleito são os fundos rotativos solidários. O Maranhão está repleto de bons exemplos.

Alguns participantes do seminário. Foto: Lena Machado

Entre a última segunda (3) e quarta-feira (5), na Casa de Retiros Oásis (Rua Frei Hermenegildo, Aurora, São Luís), a Cáritas Brasileira Regional Maranhão reuniu cerca de 45 representantes de comunidades e grupos produtivos para uma formação sobre a temática – alguns grupos já atuam nesta perspectiva há mais de 20 anos. A iniciativa tem apoio da Fundação Interamericana.

“A Cáritas celebrou um convênio com a Fundação Interamericana que prevê o apoio a grupos produtivos ligados à Rede Mandioca para o desenvolvimento de ações produtivas, fortalecimento de ações de economia solidária e de comercialização junto a esses grupos em 11 municípios do Maranhão e esse processo também prevê momentos de capacitação e acompanhamento desses grupos. Esse seminário estadual sobre fundos solidários é um desses momentos de capacitação garantidos por essa parceria, o primeiro”, destacou Lucineth Cordeiro, assessora regional de Economia Popular Solidária.

Momento de mística do seminário. Foto: Lena Machado

Para o desenvolvimento da Rede Mandioca, que já tem mais de 10 anos de atuação no Maranhão, a Cáritas também celebrou um termo de fomento junto à Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular (Sedihpop). Somando as iniciativas, são 30 grupos e comunidades acompanhados em 15 municípios: Água Doce, Amarante, Aldeias Altas, Belágua, Benedito Leite, Codó, Lago Açu, Lago da Pedra, Lagoa Grande, Loreto, Marajá do Sena, Nina Rodrigues, Presidente Vargas, Riachão e Vargem Grande – onde teve início a experiência da Rede Mandioca.

Intercâmbio – Foi um rico momento de troca de experiências. Os fundos rotativos solidários funcionam à base de solidariedade – como o próprio nome entrega –, coletividade e confiança. Indago a alguns participantes do seminário se eles acreditam que esta solução poderia ser aplicada em larga escala pelo país e a resposta unânime é sim.

Dona Expedita. Retrato: Zema Ribeiro

Em Água Preta, comunidade do município de Amarante, por exemplo, o fundo rotativo solidário local teve início diante da necessidade de a comunidade construir uma casa de farinha em regime de mutirão, com o material doado pela Cáritas. “A união faz a força e em 15 dias construímos a casa. Havia a cultura de que nós somos pobres por que Deus quer, vamos sofrer por que é a vontade de Deus. Nisso não acreditamos mais”, conta a quebradeira de coco Expedita Pereira, de 75 anos.

Ela dá uma ideia da dinâmica de funcionamento dos fundos rotativos solidários: “hoje em dia a gente faz farinha todo dia. Cada um que faz tem que deixar uma porcentagem para a manutenção do forno, que é de todos. Um ajeitando, é para todos. Tem um dinheiro no caixa, uma pessoa adoece, não pode comprar o remédio, eles vão lá e ajudam”, explica.

Walter dos Santos. Retrato: Zema Ribeiro

Para o produtor rural Walter dos Santos, 48, a solidariedade é algo tão arraigado em sua comunidade que ele tem dificuldade em destacar o marco inicial do fundo rotativo solidário em Pequi da Rampa, comunidade de Vargem Grande. “Trabalhamos há muito tempo, vem de berço a questão da solidariedade na comunidade”, afirma.

Os moradores de Pequi da Rampa começaram a se organizar diante da necessidade de pagar um empréstimo, contraído com a finalidade de melhorar a casa de forno local. Ele cita o ano de 1995 como marco e conta: “nós trabalhávamos de roça no toco e no ano seguinte cada um deu meia linha de roça. Todo produto que desse nessa meia linha era botado no depósito, vendido e o arrecadado ia pro fundo. Só com as meias linhas de roça a gente conseguiu estocar mais de três mil quilos de farinha e o empréstimo que era para a gente pagar em três anos, a gente pagou em dois”, relembra.

Seu Zezinho. Retrato: Rose Panet

O catador José Ferreira Lima, de 67 anos, mais conhecido como Seu Zezinho, é presidente da Associação de Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis de Imperatriz/MA (Ascamari). Ele lembra que quando a associação foi fundada, já havia um fundo de mil reais, cujo objetivo era a reforma de uma casa na Vila Cafeteira, bairro do município. O dinheiro acabou sendo usado, “em regime de economia solidária”, como ele mesmo frisa, para servir como uma espécie de capital de giro, beneficiando os catadores associados. A associação antecipava aos catadores o pagamento pelo material recolhido e o dinheiro era devolvido ao fundo quando o material era vendido, livrando os trabalhadores de uma espera média de 30 dias.

Através de parcerias desenvolvidas com a Prefeitura municipal, foi construído um galpão e a coleta seletiva está implantada, o que facilita os trabalhos de catação e triagem. A Ascamari tem 54 filiados, o que significa algo em torno de 10% dos catadores e catadoras em atividade em Imperatriz.

Diversidade – Percebe-se a diversidade do grupo reunido no seminário. “Durante esses dias, os integrantes de grupos e comunidades aqui presentes discutiram o que é um fundo solidário, como funciona, proposta de regimento, como organizar um fundo local, pra que serve, qual a perspectiva do fundo solidário dentro da economia solidária, o que é economia solidária. A gente esteve abordando esses princípios e também definindo um pouco a estrutura de gestão, propondo para as comunidades modelo de regimento, como fazer adaptações a partir de suas realidades e a partir também da vocação de cada comunidade”, comenta Lucineth Cordeiro.

Outra experiência apresentada ao longo do seminário foi a de São Benedito dos Colocados, em Codó, comunidade que produz arroz, feijão, milho e mandioca, transformada em farinha. O agente comunitário de saúde Valdivino Silva, 55 anos, agente Cáritas, é um dos integrantes da Coordenação Estadual da Rede Mandioca. O fundo solidário articula várias comunidades, que atuam, além da produção na agricultura familiar, com a produção de artesanato e de peças íntimas.

Valvivino Silva. Retrato: Rose Panet

“Os fundos têm duas frentes de ação: uma é o trabalho em mutirão, é a troca da diária, do serviço; as diárias são calculadas com valores, mas não têm papel [moeda], mas o valor é somado, é contado; a outra parte é a financeira: alguém precisa de um recurso, coloca isso na reunião, tem um tesoureiro, um secretário do fundo, ele anota no caderno e passa a grana”, explica Valdivino. Os valores são pequenos. Nenhum dos fundos solidários sobre os quais conversamos tem mais de seis mil reais em caixa. Mas como dizem os católicos, “o pouco com Deus é muito”, e esta é a premissa que lhes faz crer que, difundidos pelo país, os fundos rotativos solidários podem ser solução para alguns problemas brasileiros.

Pedro Silva Alves. Retrato: Zema Ribeiro

Os conhecimentos adquiridos ao longo das atividades serão multiplicados junto às comunidades, no retorno de seus representantes. O lavrador Pedro Silva Alves, de 26 anos, é morador da comunidade Bola de Coco, município de Lago da Pedra, uma das mais recentes a aderir aos fundos rotativos solidários. “Havia muito desperdício [de polpa de frutas, por exemplo]. O que tínhamos a gente não sabia trabalhar. A Cáritas mostrou o que a gente podia aproveitar e formar uma renda”, conta ele. Seu balanço dos dias de atividade aponta para o futuro: “Foram dias de muita experiência e aprendizado, uma rica troca de informações com outras comunidades. Vamos passar as informações adiante e, com fé em Deus, prosperar ainda mais”, finaliza.

[publicado na edição de hoje do Jornal Pequeno, em que também saiu uma exaltação a São Luís, por ocasião de seu aniversário, amanhã, encomenda do amigo Gutemberg Bogéa, editor do suplemento JP Turismo]

A repórter e a cidade

Cidade espanto. Capa. Reprodução

 

Impressiona a maturidade e o pleno domínio da linguagem de Clarissa Carramilo em seu romance de estreia, Cidade espanto [Editora Oito e Meio, 2018, 94 p., R$ 36,00]. A escritora prova já ter nascido pronta, presenteando os leitores com um enredo bem urdido, em que várias tramas se cruzam, sem perder a mão ou exagerar.

O título refere-se ao fato de a cidade de São Luís ser personagem – o parágrafo inicial, por exemplo, dialoga diretamente com o de O mulato (1881), de Aluízio Azevedo.

“Os fatos narrados e seus personagens pertencem ao universo da Ficção”, adverte a autora, como de praxe, mas ficção e realidade convivem na escrita ousada da autora, que mete o dedo em diversas feridas abertas, bastante conhecidas pelos que habitam a capital maranhense – mas que, no entanto, não tornam a leitura mais difícil ou menos desagradável para gente de outras plagas.

Clarissa Carramilo se vale de suas experiências profissionais para inventar personagens – ou apropriar-se delas –, inclusive a cidade de São Luís.

Antonela Azevedo, a protagonista, um alter ego da autora, é repórter destemida, que deixa claro de que lado está, sem tornar sua literatura algo panfletária: comprometida com a defesa dos direitos humanos, contrária ao golpe político-jurídico-midiático que destituiu do poder a presidente legitimamente eleita Dilma Rousseff, que ousa peitar os patrões pelas coisas e causas que acredita.

Jornalista de formação, a escritora tira onda com a própria profissão, apontando contradições aparentes que acabaram naturalizadas com o tempo: chefes que conhecem menos o ofício que seus subordinados, a ditadura dos textos curtos (pois leitor de internet só curte textão em treta de rede social), a interferência da ideologia dos patrões (os donos dos veículos) sobre a redação final, jornalistas que não leem, além das relações com a ansiedade e o álcool.

A autora equilibra-se ainda entre o thriller, cada capítulo batizado por uma mulher são os bastidores das pautas em que Antonela Azevedo se envolve, enredando também o leitor, e histórias de amor, contadas ou vividas.

Serviço

Autora e obra em uma das paisagens do romance. Foto: divulgação

Clarissa Carramilo lança Cidade espanto amanhã (5), às 19h, na Livraria Leitura (São Luís Shopping). A noite de autógrafos contará com bate-papo da autora com a escritora Camila Chaves e a jornalista Bruna Castelo Branco. A obra foi selecionada pelo Edital de Apoio a Publicação de Obras Literárias da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (Fapema).

A classe média no espelho

Karine Telles e Otávio Müller em cena de Benzinho. Frame. Reprodução

 

Sem firulas ou grandes intrigas, Benzinho [coprodução Brasil/Uruguai, 2018, drama, 95 min.; direção: Gustavo Pizzi; em cartaz no Cine Lume (Edifício Office Tower, Renascença)] é um retrato da típica classe média brasileira, para irmos direto ao ponto, como o próprio enredo do filme.

Conta a história de uma família que vive em Petrópolis (o filme foi rodado lá e em Araruama), numa casa caindo aos pedaços – apesar de ter uma casa de veraneio –, enquanto seus membros se viram nos trinta para conseguir pagar as contas.

Klaus (Otávio Müller) é um livreiro romântico – redundância intencional –, a típica profissão em extinção. Irene (Karine Teles), sua esposa, é a mãe batalhadora, o retrato da mulher enquanto heroína, que se divide entre os afazeres domésticos, criar os quatro filhos, estudar e ajudar no orçamento doméstico, entre a venda de roupas de cama e quentinhas.

Há discordâncias entre o casal apaixonado, sobretudo quanto ao convite a Fernando (Konstantinos Sarris), o filho mais velho, para ir jogar handebol na Alemanha e a venda da casa de praia – Klaus sonha em terminar uma nova casa para morarem e abrir um novo negócio com o dinheiro da venda.

Se o filme não adentra questões políticas, pauta de qualquer família, não apenas classe média, no Brasil polarizado de hoje, a trama comporta a abordagem a um tema infelizmente ainda não superado, com estreitas relações com o golpe jurídico-político-midiático em voga desde 2016: a violência contra a mulher.

Ao longo da película, descobriremos que Irene foi explorada em situação de trabalho doméstico infantil. Quando ela abriga a irmã (Sônia, vivida por Adriana Esteves) e o filho, após uma agressão do marido (Alan, vivido por César Troncoso), manda um recado cristalino ao espectador: está ultrapassado o dito popular de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.

O filme guarda ainda uma surpresa: a discreta participação especial do compositor Ivor Lancellotti, pai do incensado Domenico e autor de sucessos de, entre outros, Alcione, Beth Carvalho, Clara Nunes, Nana Caymmi e Roberto Carlos.

Benzinho, no fundo, é uma história de amor, longe de resvalar na pieguice.

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Veja o trailer: