O baú do Baleiro

Arquivo_Duetos 1. Capa. Reprodução

 

Zeca Baleiro lança em todas as plataformas digitais nesta sexta-feira (1º. de setembro) o disco Arquivo_Duetos 1. Ao menos por enquanto o álbum não terá edição física. A compilação reúne 11 gravações que o maranhense divide com nomes nacionais e estrangeiros: em ordem alfabética, Alessandra Maestrini, Bernard Fines, Blubell, Dandara, Edgar Scandurra, Fagner, GOG, Higo Melo, Kana, Nicola Són, Paulo Monarco, Samantha Navarro, Susana Travassos e Wado (veja o repertório do disco e o clipe de Que amor é esse? ao final do post).

“Em 2017 meu primeiro disco completa 20 anos. Eu resolvi remexer nos arquivos que eu tenho e havia um material consistente, que valia a pena botar no mundo. Assim surgiu essa série de lançamentos, eu não sei quantos álbuns serão. A primeira ideia que surgiu foi o álbum de colaborações, de duetos, por que havia muitos. Coisas que fiz para trilhas de filmes, colaborações em discos de outros artistas, outros artistas que colaboraram em discos meus, projetos especiais. Nesse primeiro volume tem dois franceses, a uruguaia Samantha Navarro, a portuguesa Susana Travassos, a japonesa Kana, é um disco bem colorido, cheio de nuances, foi isso que me moveu a fazer essa coletânea. Dá para fazer pelo menos uns quatro álbuns com essas coisas de arquivos desses 20 anos”, revelou o cantor e compositor em entrevista coletiva concedida esta tarde, através do youtube.

 

Foto: Silvia Zamboni

O disco faz parte das comemorações pelos 20 anos de carreira de Baleiro, contados a partir do disco de estreia, Por onde andará Stephen Fry?, lançado em 1997. “Eu já trabalhava com música 10 anos antes, pode-se dizer que eu tenho 30 anos de carreira. Quando se fala em carreira geralmente se fala em carreira discográfica, essa fase anterior não conta muito, em termos gerais. Mas pelo menos desde 1987 eu trabalho com música profissionalmente, primeiro fazendo trilhas para teatro lá em São Luís do Maranhão. Eu tenho uma demo que talvez eu transforme num vinil, precisa de muitas autorizações. Foi a demo que gerou a gravação de meu primeiro disco”, continuou abrindo o baú.

É a primeira vez em 20 anos que um disco de Baleiro não terá edição física. Indago-lhe se é um sinal dos tempos ou um ponto fora da curva em sua carreira. “Sinal dos tempos, uma experiência. O artista tem que estar aberto para essas coisas. Eu sou dos mais apegados com o formato físico. Eu sou um colecionador, um cara que tenho apego pelo formato, pelo encarte, por ler as letras, mas você tem que se permitir certas experiências. Nem digo se moldar, pois não estou me moldando a nada. Quando surgiu essa conversa eu achei interessante, vamos ver até onde isso chega. Lançar uns dois ou três álbuns com material de acervo e ver até onde isso vai”.

Ele não prevê uma turnê específica para Arquivo_Duetos 1. “É um show difícil de levar para turnê, eu teria que levar pelo menos 11 artistas junto comigo. São 11 faixas, algumas com dois cantores. O que eu devo fazer é incorporar algumas dessas canções no repertório de meus shows, isso naturalmente vai acontecer. Mas uma turnê específica desse disco, não. É um retrato, um instantâneo de um período da carreira”, ponderou.

Lançamento de seu próprio selo, o Saravá Discos, Arquivo_Duetos 1 tem de jazz cigano (Que amor é esse?, dueto com Alessandra Maestrini) a rap (O peso da palavra, com GOG e Higo Melo), passando por versão em francês para composição de Baleiro (Le reste on s’en fiche, para Skap, com Bernard Fines). Indago-lhe algumas ausências sentidas, entre tantas notáveis parcerias. Ele responde mantendo a habitual elegância: “Infelizmente não dá para botar tudo. Alguns critérios você tem que criar. Um deles é a própria qualidade da faixa. Às vezes você até gosta da música, mas se não gostei da minha performance ali, é um critério. Não quero fazer durar este desconforto. Outra é quantidade: é uma limitação numérica. Mesmo sendo digital, não acho aceitável fazer 16 músicas. Tem que haver a perspectiva de um disco físico. 35, 40 minutos no máximo, que é o tempo que eu acho que as pessoas têm disponível. Os critérios são muito pessoais”.

Ele deu pistas do que os fãs podem esperar num segundo volume de duetos, já em vias de finalização, além de outros discos com faixas pescadas de seu baú. “O volume 2 terá as gravações que restaram e um terceiro volume de dispersas ou raras e dispersas, que foram canções que ficaram no meio do caminho. Por exemplo, gravei Baioque, do Chico Buarque, para a trilha da novela Joia rara, mas a música não foi aprovada. Eu fiz um rock e a expectativa era de uma coisa mais acústica, o briefing não foi bem dado. Eu li que o Roberto [Carlos] ia fazer um disco só com novos compositores, fiz uma canção e mandei. Tempos depois eu fiquei sabendo que a música não chegou às mãos do Roberto. Depois revi a demo e fiz ao vivo com meu pianista, o [Adriano] Magoo, e por que não? O Roberto não vai gravar mesmo [risos]. Sobras de estúdio, uma música do Tom Zé que eu gravei e não foi ao disco. Bem alinhadas dá para construir uma quase narrativa”, antecipou.

O primeiro single de Arquivo_Duetos 1 a ser disponibilizado no youtube foi Que amor é esse?, composto para a trilha sonora do filme O amor no divã, de Alexandre Reinecke, que Baleiro interpreta com Alessandra Maestrini. Narra a briga de um casal que se separa. Lembrei-me de Tua cantiga, de Chico Buarque, que antecipou Caravanas, seu novo disco, e rendeu ao compositor uma polêmica nas redes sociais e adjetivos como “machista” e “antiquado”. Perguntei ao maranhense se ele havia acompanhado a repercussão e sua opinião sobre o assunto. “Acompanhei com certa preguiça, achei falta de assunto. Polêmica nas redes geralmente é falta de assunto. É difícil você ver algo que vá fazer diferença em nossas vidas. É um verso inócuo, é um personagem. O poeta tem a liberdade da fala, abre as picadas para quem não tem essa voz. Se você começa a se vigiar demais, onde a gente vai chegar? Eu me preocupo, em certa medida. Eu tenho uma patrulha em casa, dois filhos adolescentes, que têm uma preocupação com o politicamente correto. Eu já não tenho nenhuma [risos]”, finalizou.

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Repertório de Arquivo_Duetos 1

  1. Que amor é esse? – com Alessandra Maestrini
  2. A tardinha – com Blubell
  3. Corações ternos – com Nicola Són e Edgar Scandurra
  4. O peso da palavra – com GOG e Higo Melo
  5. O mundo – com Susana Travassos
  6. A canção brasileira – com Fagner
  7. Le reste on s’en fiche – com Bernard Fines
  8. Arenal – com Samantha Navarro
  9. Zás – com Wado
  10. Tem dó – com Paulo Monarco e Dandara
  11. O primeiro passo – com Kana

Veja o clipe de Que amor é esse?:

 

“A reforma trabalhista de Temer é o ouro de tolo do momento”

Foto: Moisés Profeta

 

Acontece amanhã (19), às 21h, na Praça dos Catraieiros (Praia Grande), de graça, mais uma edição do tradicional Tributo a Raul Seixas, show que Wilson Zara apresenta desde 1992 – a primeira edição, realizada ainda em Imperatriz, onde morava o ex-bancário, foi intitulada A hora do trem passar, nome de uma das faixas de Krig-ha, bandolo!, clássico da discografia do roqueiro, de 1973.

É o primeiro disco solo de Raul Seixas, lançado no auge da repressão militar no Brasil, então governado pelo general Médici. O baiano acabou exilado, retornando ao Brasil no ano seguinte, com o estrondoso sucesso Gita (1974).

Clássico do solo inicial, Ouro de tolo é lembrada diante do momento político turbulento por que passa o Brasil, sob novo golpe desde o ano passado. “A reforma trabalhista de Temer é o ouro de tolo do momento”, diz o material de divulgação do show de Zara, prevendo gritos ecoando a hashtag mais usada nas redes sociais desde março de 2016: fora, Temer!

Zara (voz e violão) será acompanhado por Mauro Izzy (contrabaixo), Marjone (bateria) e Moisés Profeta (guitarra e efeitos; é dele o clique do frontman que abre e ilustra este post). No cartaz surgem os nomes de diversos sindicatos locais, a demonstrar o quão antenado era Raul Seixas e o quanto seguem vivas sua música e filosofia.

“Quando eu compus, fiz Ouro de tolo/ uns imbecis me chamaram de profeta do apocalipse/ mas eles só vão entender o que eu falei no esperado dia do eclipse”, dispara em As aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor (1974), um recado direto aos milicos que o exilaram.

Os tempos igualmente sombrios são outros e Raul Seixas, falecido 21 de agosto de 1989 – a data do tributo é sempre próxima –, é um dos que fazem falta para traduzir artisticamente este triste estado de coisas. Como Belchior, Cazuza e Sérgio Sampaio, para ficarmos em uns poucos exemplos de artistas proféticos a seu modo.

Diversão garantida no palco e na plateia, no Tributo a Raul Seixas, Zara e banda repassam boa parte do repertório do Maluco beleza. Nem precisa gritar “toca Raul!”.

E se é “fora, Temer!” o que o povo quer, fiquem com mais esta profecia do homenageado (de Rockixe, de 1973): “o que eu quero eu vou conseguir/ pois quando eu quero, todos querem/ quando eu quero todo mundo pede mais/ e pede bis”.

Divulgação

“Há uma regressão generalizada no campo dos direitos humanos”

A avaliação, sobre o Brasil de hoje, é de Paulo Vannuchi, ex-ministro dos Direitos Humanos do governo Lula (entre 2005 e 2010), e membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (eleito em 2013, tomou posse no ano seguinte). Ele está em São Luís para proferir a palestra Sistema de Direitos Humanos: instrumentos e estratégias para efetivação de direitos.

Vannuchi volta à Ilha a convite da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular (Sedihpop). Aberta ao público, a palestra acontecerá hoje (16), no auditório da Secretaria de Estado da Fazenda (Sefaz, Av. Carlos Cunha, s/nº, Calhau), a partir das 15h.

Graduado em Jornalismo e mestre em Ciência Política, Vannuchi participou da militância política nas comunidades de base da Igreja Católica, em defesa de opositores ao regime militar perseguidos pela ditadura. Trabalhou na elaboração do livro Brasil nunca mais, dossiê coordenado por Dom Paulo Evaristo Arns, que listou nomes de torturadores e métodos utilizados nos porões da repressão. Sempre foi um crítico de que a Lei da Anistia, de 1979, beneficiasse também agentes do regime, assunto que ele aborda nesta entrevista exclusiva a Homem de vícios antigos.

Por telefone, a caminho de um ato em São Bernardo do Campo/SP, ele explicou o que são sistemas de direitos humanos, comentou retrocessos vividos em diversos temas após o golpe que destituiu Dilma Rousseff da presidência da república, e ainda o papel dos meios de comunicação em sua consolidação, no discurso de ódio que já extrapola o ambiente das redes sociais e na visão conservadora que a sociedade em geral tem dos direitos humanos. Leia a entrevista.

Foto: Marcello Casal Jr./ Agência Brasil

O senhor vem à São Luís falar de Sistema de Direitos Humanos. Quando falamos em sistema, pensamos imediatamente nos de Saúde e Assistência Social, por exemplo. O que vem a ser um Sistema de Direitos Humanos e qual o exemplo possível de um estruturado e em funcionamento?
O sistema de direitos humanos é uma existência concreta no âmbito internacional. Nós temos dois: o sistema ONU, das Nações Unidas, com sede em Genebra, no Conselho de Direitos Humanos, permanente, com representação de dezenas de países e todo um processo de acompanhamento dos vários temas de direitos humanos. E temos o sistema interamericano, que tem uma sede da comissão em Washington e uma corte na Costa Rica. Desses dois sistemas deriva a proposta de cada país construir também o seu sistema, como você disse, à imagem e semelhança de um sistema único de saúde, que articula os entes federados: União, estados e municípios. A minha ida à São Luís é a convite da Secretaria de Direitos Humanos do Governo do Estado. O governador Flávio Dino é uma pessoa com quem eu já tive parcerias aí, como na homenagem ao maranhense Ruy Frazão, que hoje tem lá uma homenagem a ele na escola, no Liceu do Maranhão, que ele foi estudante. Acompanho a trajetória do governador, me senti muito honrado com o convite. Eu iria para conversar, sobretudo com prefeitos, houve uma coincidência de uma importante reunião da confederação de prefeitos [a Federação dos Municípios do Estado do Maranhão (Famem)] e nós vamos fazer uma discussão geral. Então eu quero levar informações sobre o sistema Nações Unidas, sobre o sistema interamericano, onde eu sou membro da comissão para um mandato de quatro anos, e trabalhar, aprender mais sobre o Maranhão, conhecer as experiências, sobretudo na questão criança e adolescente, na questão de combate ao racismo, pessoas com deficiência, do direito LGBTI [lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais], do direito à diversidade sexual, e também os chamados direitos econômicos, sociais, culturais, isto é, direitos humanos não é um tema só sobre presídios, sobre a questão das pessoas em conflito com a lei. Direitos humanos é também educação, saúde, direito ao trabalho, direito à comida, sobretudo. A viagem tem um caráter de um diálogo em que eu levo informações sobre a minha experiência como membro da comissão interamericana, como ministro dos direitos humanos do presidente Lula por cinco anos, e também aprendo sobre o Maranhão e quem sabe discutimos possíveis integrações do Maranhão com o sistema interamericano de direitos humanos da OEA.

Como o senhor, que foi ministro de direitos humanos no governo Lula, avalia a trajetória desta política no Brasil ao longo dos últimos 15 anos?
Eu diria um pouco mais. Embora do ponto de vista partidário eu seja uma pessoa muito vinculada ao presidente Lula, ao PT, eu sou assessor do presidente Lula há mais ou menos 37 anos, é muito tempo. Quando ministro dos direitos humanos eu disse várias vezes em eventos oficiais, e também escrevi várias vezes, que havia uma trajetória histórica de consolidação dos direitos humanos que não era como uma política de governos, e sim uma política de Estado, e que mesmo no período Fernando Henrique Cardoso, que é o adversário central, o antípoda do Lula no cenário partidário brasileiro, também no período do Fernando Henrique houve avanços em direitos humanos. Isso foi uma insistência, e deve ser uma insistência, também dos órgãos estaduais. Claro que o governo nasce de eleições populares com um programa que tem que ser seguido por que a maioria do eleitorado aprovou. Agora, políticas de Estado são aquelas que você cria e que mudanças de governo não podem anular. Por exemplo, o Brasil hoje tem no plano federal uma política oficial de desmontar as políticas sociais do período Lula e isso é muito errado. Em direitos humanos, no meu período de cinco anos, nós não fizemos isso de uma maneira mesquinha, estreita, com relação ao legado do período Fernando Henrique. O Fernando Henrique foi responsável pelos dois primeiros programas nacionais de direitos humanos, um de 1996 o outro de 2002. O Brasil foi então um dos primeiros países a criar este seu plano nacional e eu fui ministro quando uma conferência nacional com participação de 14 mil pessoas, duas mil presentes em Brasília, essa conferência aprovou o esqueleto do PNDH 3. Nesse sentido o que é preciso dizer é que a afirmação histórica dos direitos humanos enfrenta de um ano pra cá, de dois anos pra cá, todo esse período, de ódio, de intolerância, uma regressão brutal. Há órgãos de imprensa inclusive fazendo campanhas de intolerância, de ódio, que podem levar a este episódio de fim de semana nos Estados Unidos, Charlottesville, a retomada do racismo, do ódio, supremacia branca, até propaganda nazista. Então o discurso dos direitos humanos tem que procurar sempre ser um discurso amplo, um discurso que chame partidos que estão se opondo na arena política eleitoral imediata, a mostrar que determinados princípios têm que ser comuns a todos: a não violência, a tolerância, o respeito à diversidade, ao diálogo, e isso inclusive quando chega num tema muito espinhoso, como é o tema do sistema prisional, por que uma parte da sociedade entende que, “bom, são criminosos, têm que ser exterminados, olho por olho, dente por dente”, e o pensamento dos direitos humanos é diferente, o pensamento está muito centrado nas ideias que estão até no evangelho de você ser capaz de perdoar, de ser tolerante, e de reincorporar, reeducar e ressocializar. No caso do Maranhão, recentemente episódios graves como Pedrinhas, e cada estado brasileiro terá seu exemplar desse tipo, e mais do que isso, cada um dos 35 países que compõem a OEA. Agora, é preciso divulgar na sociedade que, primeiro, um criminoso tem direito de cumprir a pena, tem direito de eventualmente provar a inocência, já houve muitos casos de pessoas condenadas que mais tarde descobriu-se que o assassino não era aquela pessoa, no caso da pena de morte a pessoa já foi executada quando aparece a prova de que a pessoa era inocente. A gente sabe que ao fazer esse discurso vai na contramão do pensamento comum, que acha que não, que “uma vez que é um criminoso tem que ser exterminado”. As pessoas se esquecem que muitas vezes até um filho daquela família pode ser levado numa prisão e muitas vezes colocado nessa vala comum, são todos bandidos, têm que ser exterminados.

Durante sua gestão como ministro dos direitos humanos o senhor defendeu a revisão da Lei da Anistia, uma lei que acabou por contribuir para a impunidade de agentes da ditadura militar brasileira. O Brasil é o único país da América Latina em que houve uma ditadura que não puniu torturadores. Sua indignação com a Lei da Anistia continua válida? Este debate precisa ser retomado?
Eu nunca defendi a ideia da revisão, a palavra revisão. O que eu defendi é que o Supremo Tribunal Federal, decidindo sobre uma ação da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], uma ADPF, arguição de descumprimento de preceito fundamental, que foi apresentada pela OAB na gestão de César Brito, com patrocínio do advogado, que é um ícone dos direitos humanos, Fábio Comparato, consultava o Supremo se a lei de anistia de 1979, tendo sido feita ainda no período ditatorial, se ela podia ou não proteger os torturadores, uma vez que a tortura é considerada no direito internacional dos direitos humanos como um crime imprescritível, ou seja, não passa tempo e não é passível de anistia ou de graça. O Supremo Tribunal Federal, na minha opinião, decidiu, por maioria, num caminho errado, considerando que sim, a lei de anistia de 1979 protege os torturadores. Agora, essa decisão, ela se choca de frente com os organismos da ONU e da OEA, que também, por opção voluntária do Brasil, precisam ser considerados parte do direito no Brasil. Esse impasse está mantido. O que eu consegui fazer na nossa gestão foi desbloquear o tema, com o presidente Lula enviando em 2010 ao legislativo um projeto de lei para criar a Comissão Nacional da Verdade. Agora, um ano depois o Brasil não tinha uma comissão da verdade, tinha cem. A Comissão Nacional da Verdade foi instalada pela presidenta Dilma, trabalhou durante dois anos e meio, e a sociedade civil proliferou comissões da verdade no âmbito do movimento sindical, das universidades, várias comissões oficiais, eu não sei agora de cabeça se o Maranhão teve ou não, Flávio Dino não era ainda governador.

Teve uma instalada na Assembleia Legislativa.
Então, a Assembleia Legislativa do Maranhão fez, a de São Paulo fez, o município de São Paulo fez, com Fernando Haddad, o governo estadual do Rio de Janeiro fez, com Sérgio Cabral, então o Brasil debateu como nunca o resgate das violações massivas de direitos humanos, e nós temos hoje um conhecimento muito superior do problema. Permanece a sua pergunta, que é a punição ou não. E a punição é necessária, não apenas por ser uma exigência do sistema interamericano, do sistema ONU, que exigem, na chamada justiça de transição, quatro pilares indispensáveis: o primeiro é o Estado nacional, o Estado brasileiro, no caso, reconhecer a sua responsabilidade pelas violações. Isso já foi feito, leis do tempo de Fernando Henrique, a lei sobre mortos e desaparecidos políticos, a lei que criou a comissão de anistia, ações do governo Lula, ações do governo Dilma, e até algumas poucas sentenças judiciais reconhecem essa responsabilidade do Estado. O segundo pilar é a necessidade de reparação. A reparação é indenizatória e isso também começou já no governo Fernando Henrique, mas ela é simbólica, que foi esse evento de São Luís do Maranhão, de oito anos atrás, que eu fiz ao lado de Flávio Dino, para homenagear uma pessoa que morreu na tortura, lutando pela democracia e pela liberdade, Ruy Frazão. O terceiro pilar indispensável é aquele que obriga o Estado a fazer a apuração rigorosa, a responsabilização individual: quem foram os responsáveis por aquele assassinato, por aquele desaparecimento. E por último, muito importante: políticas de não repetição. Mudar o ensino militar, levar as próprias academias militares das três armas a discutir direitos humanos, a superar crenças de doutrina de segurança nacional, combate ao inimigo interno, combate ao comunismo, etc. e tal. Você vê que Flávio Dino é um governador hoje do Partido Comunista [do Brasil, o PCdoB] e ele sempre insiste que o comunismo, pra ele, tem muito a ver com comunhão, a sua origem católica, estudou em Colégio Marista, a ideia da partilha, da comunidade, e não no sentido da Guerra Fria, que já acabou e muitas mentalidades mantém o mundo dividido em União Soviética e ocidente. Nesse sentido, o que falta no Brasil, sobretudo, são esses dois pilares dos quatro. O pilar da investigação apontando, “olha os assassinos de Vladimir Herzog foram fulano, fulano e fulano, seus comandantes”. Não quer dizer necessariamente que essas pessoas tenham que ser mandadas pra cadeia, muitas já morreram, outras estão com 80 anos. O que precisa é haver a condenação para que o Estado não deixe de ter claro que aquilo é condenável. Para que o torturador de hoje, ao torturar, saiba que daqui a 20 anos ele poderá ser punido. E as políticas de não repetição. A reparação simbólica envolve coisas que avançaram, eu falei da homenagem ao Ruy Frazão no Liceu do Maranhão, eu falei da troca do nome, aqui em São Paulo, do Minhocão, que se chamava elevado Arthur da Costa e Silva e agora se chama João Goulart. A gente gostaria de levar esse debate ao Maranhão no sentido de ver também várias outras passagens históricas das violações de direitos humanos ou da violação histórica no Maranhão, para que nos uníssemos nesses avanços, vermos o que falta fazer. O Maranhão tem figuras legendárias como Maria Aragão, Manoel da Conceição, líder camponês que num choque pela terra foi ferido a bala, perdeu uma perna, foi um dos fundadores do PT. A viagem é recoberta destes múltiplos significados.

Além das diversas comissões da verdade espalhadas pelo país, parece que a maior contribuição ao debate sobre a ditadura militar e consequentemente a tortura vem das artes, já que estes temas sempre renderam bons filmes, livros e peças de teatro, entre outros. Neste campo, o que o senhor recomenda?
A pergunta é muito oportuna por que envolve a percepção de que as nossas transformações de mentalidade passam vitalmente pela cultura. A ideia dos livros, das pesquisas, são centenas de teses de mestrado, de doutorado, que foram desenvolvidas no Brasil sobre esse tema, e estão sendo ainda. São vários filmes, são várias produções teatrais, algumas circulam pelo país, tem inauguração de monumentos, tem sítios da memória. E você tem toda razão, por que o que importa mesmo é levar isso agora adiante, inclusive a batalha das comunicações. Não pode, num estado como o Maranhão, a gente ficar limitado por cadeias, monopólios de comunicação que não informam sobre as coisas boas que um determinado partido político faz, um determinado governador faz, só informa sobre as coisas ruins. E nesse sentido o resgate da memória da democracia tem uma conexão com a batalha de hoje, por que no Brasil de hoje nós não estamos numa ditadura, mas no Brasil de hoje o estado democrático de direito sofre agressões. Existem figuras como Bolsonaro fazendo a propaganda fascista, nazista abertamente, e de fato também, qualquer debate sobre direitos humanos hoje tem que colocar em primeiríssimo plano chamar as pessoas de todos os partidos que vão disputar e se confrontar na eleição do ano que vem a ter um acordo nas ideias civilizatórias. Respeito ao ser humano, respeito aos mais pobres, políticas de geração de emprego, valorização dos salários, a ideia de que nós temos que conviver na democracia com opiniões políticas diferentes, e até opostas, mas resolvendo sempre com o compromisso de ninguém eliminar a vida de ninguém, ninguém desqualificar ninguém, matar as pessoas moralmente, como hoje se pratica no Brasil abundantemente, às vezes insuflados por cadeias poderosas de televisão. Isso é um erro absurdo, que terá preço a ser pago por todos os atores, inclusive por esses segmentos conservadores, que no seu ódio não entendem o quanto essa política raivosa também traz danos a seus próprios interesses de elite, dos setores empresariais. Em direitos humanos um princípio angular é o princípio da não regressão, não voltar atrás. O Brasil hoje, infelizmente, está numa etapa em que há uma regressão generalizada no campo dos direitos humanos. Todo debate tem que priorizar o bloqueio, a paralisação dessa regressão e a retomada de um caminho de avanço gradual. A cada ano o país ter um patamar um pouco melhor na questão da pobreza, da saúde, da educação, das condições do sistema prisional, do atendimento socioeducativo.

Otimismo e (re)aproximações

Sinais do sim. Capa. Reprodução

 

Sinais do sim [Universal, 2017], novo disco dOs Paralamas do Sucesso, encerra nove anos de espera dos fãs desde o último álbum de inéditas do grupo, Hoje (2009). Em 35 anos de carreira, o trio sempre se equilibrou entre temas pessoais e sociais, e este novo trabalho, otimista em tempos sombrios, segue essa linha, sem no entanto soar mais do mesmo.

Otimismo aqui não significa alienação. Medo do medo (João Ruas/ Capicua) toca o dedo em feridas contemporâneas: “é muito lucrativo/ que o mundo tenha medo/ medo da gripe/ são mais uns medicamentos/ vêm outros vírus/ reforçar os dividendos/ medo da crise e do crime”. A música, que tem a maior letra do disco, é de 2007 e é uma primeira (re)aproximação – no caso, com o rap e com Portugal – em um disco feito delas.

O trio em foto de Mauricio Valladares

Os Paralamas do Sucesso reaproximam-se da Nação Zumbi, com quem dividiram turnê pela Europa com Chico Science ainda à frente dos mangueboys. O disco tem participação especial de Pupillo (percussão em Contraste, assinada pelo trio) e produção do mago Mário Caldato Jr., que produziu Fome de tudo, da Nação Zumbi, em 2007, entre inúmeros outros trabalhos, de gente daqui e de fora.

Reaproximam-se dos hermanos latino-americanos, de cuja música sempre foram embaixadores – foram os primeiros a gravar Fito Paez por aqui, por exemplo. Em Sinais do sim aparece Cuando pase el temblor (Gustavo Cerati), do power trio argentino Soda Stereo. Há também uma reaproximação com o rock britânico, inspiração no começo da carreira, em Blow the wind (Herbert Vianna), com letra cantada em inglês.

Os Paralamas do Sucesso se reaproximam ainda de seus pares de geração. O trio ganhou de presente de Nando Reis (ex-Titãs) a desbragadamente romântica Não posso mais, em que se derrama: “se o amor é Deus/ rei de um reino/ água no copo/ prato e colher/ uma igreja ergo/ pra rendê-lo/ um poço cavo/ pra encontrar/ mar água lago/ o seu refresco/ vento bandeira/ a tremular/ flor que nasce/ da semente/ mente inventa/ circular/ eu não posso mais/ não posso mais/ não posso mais/ não posso mais viver/ sem você”, começa a letra.

E há ainda uma reaproximação com Gilberto Gil e o terceiro mundo, o que desde Selvagem? (1986) tornou Os Paralamas do Sucesso uma das mais interessantes bandas brasileiras surgidas no boom do chamado rock brazuca. O reggae Sempre assim fecha Sinais do sim com categoria.

A faixa-título (Herbert Vianna/ Bi Ribeiro/ João Barone), que abre o disco, a única em que se ouvem apenas os instrumentos do trio, é síntese: “Eu/ sei que teu coração é meu/ que algo em mim te convenceu/ de que o melhor está por vir”. Como diz a letra de Teu olhar (Herbert Vianna/ Bi Ribeiro/ João Barone), “longe dos clichês”, esbanjando versatilidade, Os Paralamas ofertam um disco do puro, bom e velho rock’n roll.

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Veja o clipe de Sinais do sim:

Fossa nova

Auê. Capa. Reprodução

 

Trilhas sonoras que ganham vida própria após os espetáculos para as quais foram criadas podem ser citadas aos montes. Para ficar em poucas, lembremos as de Yann Tiersenn e Miles Davis para cinema, as de Chico Buarque para teatro e as criadas por nomes como Tom Zé, Arnaldo Antunes e Lenine para espetáculos de dança do Grupo Corpo.

É nesta categoria que se insere o primoroso trabalho da Barca dos Corações Partidos em Auê [Sarau, 2016]. A execução da trilha sonora original do espetáculo dirigido por Duda Maia reúne um time de músicos de primeira linha: Adrén Alves (alfaia, maracas, pandeirola, saxofone, voz), Alfredo Del-Penho (flauta, violão de aço, violão, violão sete cordas, guitarra, baixo, percussão corporal, voz), Beto Lemos (guitarra, guitarra com arco, baixo, rabeca, alfaia, zabumba, triângulo, pandeiro, mineiro, voz), Eduardo Rios (sanfona, saxofone, voz), Fábio Enriquez (alfaia, trompete, flugelhorn, voz), Renato Luciano (violão de aço, guitarra, trombone, voz), Ricca Barros (baixo, saxofone, cavaquinho, voz) e Rick De La Torre (bateria).

Todas as músicas são composições de membros do grupo. As exceções são A barca dos corações partidos e Madeixa, ambas de Moyseis Marques, a primeira em parceria com Bena Lobo, a segunda com Vidal Assis – exibindo a nordestinidade do versátil sambista carioca, a primeira um belo baião, a segunda um inspirado xote.

Direta ou indiretamente, A Barca dos Corações Partidos cita diversas brasilidades, contemporâneas ou não. Desde a guitarrada em Gerais (Renato Luciano) aos cantores da era de ouro do rádio em Sem perceber (Alfredo Del-Penho), evocados por Ricca Barros. Passa por títulos que dão pistas do conjunto da obra: Versim de amor (Renato Luciano), Remédio (Renato Luciano), Ciúme (Rick De La Torre), Saudade (Beto Lemos).

Recitado pelo autor, Doideira de amor (Eduardo Rios), destaque em um disco de repertório de alto nível, é um poema de fôlego que lembra o melhor Cordel do Fogo Encantado: “se a minha tão bela amada/ ocupar a minha mente/ de maneira totalmente/ com seu rosto sorridente/ executo o meu plano/ tão logo rapidamente// Uma mão vai no meu bolso/ encaixa no meu facão/ a outra acha o meu peito/ desabotoa o botão/ deixando o caminho livre/ pra minha morte de paixão// Corto sem dó a minha pele/ abro os ossos da minha caixa/ enfio uma mão lá dentro/ logo ela tateia e acha/ o troço que faz “tum-tum”/ que põe minha vida em marcha”. Visceral. Literalmente.

Dom de um amor só (Eduardo Rios) tem a modéstia dos apaixonados, como a se desculpar por isso, como a pedir licença para transbordar, e novamente evocando brasilidade – desta vez uma unanimidade nacional: “nunca serei Chico Buarque/ pra rimar bem sua beleza/ meus versos são simples e rasos/ mas vêm do fundo da minha tristeza”. Ali (Renato Luciano), pelo timbre do autor, fecha o disco remetendo ao melhor Oswaldo Montenegro.

Um grupo chamado Barca dos Corações Partidos que faz um disco chamado Auê pode parecer contraditório. Talvez seja. Melodias vibrantes, pra cima, em versos em geral sobre dores, fins, amores desfeitos… corações partidos. Resumo da ópera, da peça, da trilha: Lupicínios do século XXI, este timaço reinventa a fossa e sua música remenda corações partidos.

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Veja a Barca dos Corações Partidos em Saudade (Beto Lemos):

Para mudar concepções e posturas

Auditório da OAB/MA ficou lotado para bate-papo com Marcelo Canellas. Foto: Ascom/OAB/MA

 

Caco Barcelos esteve em São Luís na última segunda-feira (7), quando participou do lançamento do I Prêmio OAB/MA de Jornalismo em Direitos Humanos, no auditório da seccional.

Tino Marcos falou para uma plateia lotada de profissionais e estudantes, a quem o prêmio é voltado, em cinco categorias – impresso, rádio, tevê, webjornalismo e fotojornalismo –, com premiações de R$ 3.000,00 e R$ 500,00, para profissionais e estagiários, respectivamente. O edital está disponível no site da OAB/MA.

A comissão julgadora será formada por representantes dos sindicatos dos jornalistas e radialistas, Defensoria Pública da União, Comissão de Direitos Humanos da OAB/MA, e coordenações dos cursos de comunicação da UFMA, Estácio e Ceuma.

Começo brincando com o nome do jornalista a evocar diversas situações em que Marcelo Canellas – uma das reservas morais da Globo, foi ele quem veio, na verdade – foi confundido com colegas de ofício e casa. Contar estes causos foi seu jeito descontraído e leve de extrapolar o tema proposto para a noite, “Jornalismo e cidadania”, e conquistar o público.

Ao citar as “confusões”, de gente anônima e famosa, trouxe à baila a questão da vaidade. Todo mundo tem, é natural, o lance é saber dosar. O jornalista precisa ser movido por outra coisa. “Quando eu comecei, eu queria mudar o mundo. Hoje eu continuo querendo isso, mas sei que não vou conseguir sozinho”, declarou.

Canellas lembrou-se de que uma das motivações que o levaram ao jornalismo – completa 30 anos de profissão em 2017 – foi a leitura do clássico Geografia da fome, do pioneiro Josué de Castro. “Quando eu for jornalista vou fazer uma matéria sobre este livro”, prometeu a si mesmo.

Fez uma série, espécie de Nova geografia da fome – roubo aqui o título do livro de Xico Sá e Ubirajara Dettmar, lançado depois – em tempos pré-Bolsa-família. Canellas lembrou-se de uma entrevistada da primeira reportagem da série. “Quando vi aquela mulher na soleira, era a própria personificação da indesejada das gentes”, comentou, dando um exemplo de como o jornalista precisa também ter faro e acreditar nele. “Quando cheguei com a equipe, a primeira coisa que fiz foi uma vaquinha com os colegas. Fomos à mercearia do lugar e compramos arroz, feijão, açúcar”, ele revelou não ac(r)e(d)itar (em) imparcialidade e neutralidade jornalística.

“A segunda coisa que fiz”, continuou, “foi procurar o orelhão mais próximo e ligar pedindo uma ambulância. Aquela senhora ia morrer. Enquanto a ambulância chegou eu fiz a entrevista mais perturbadora de minha carreira”.

A primeira reportagem da série foi ao ar algum tempo depois e Canellas assistiu, em casa, satisfeito. No dia seguinte, esperou ansiosamente para ver a segunda e, qual não foi sua surpresa, Fátima Bernardes, à época âncora do Jornal Nacional, leu uma nota, ao fim, anunciando a morte daquela personagem, 15 dias após seu depoimento ao repórter.

“Eu sou muito emotivo. Tenho interesse pela vida das pessoas. Com alguns personagens eu chego a manter contato por anos, de outros viro amigo”, revelou, respondendo à pergunta de alguém da plateia.

Provavelmente a grande maioria dos presentes ao lançamento do certame vá escrever e inscrever matérias concorrendo ao prêmio. Canellas, com a leveza habitual, sem posar de “professor que tudo sabe”, deu conselhos, principalmente a quem está começando: “ninguém chega a lugar nenhum sendo vaquinha de presépio, concordando o tempo inteiro com o que o chefe determina”.

Repórter especial do Fantástico há alguns anos, ele citou como exemplo as reuniões de pauta do dominical global: “é a reunião do pau, a reunião em que colega briga com colega e colegas brigam com chefes, tentando convencer o porquê da importância de determinado assunto virar pauta”. Para ele, que quando começou a carreira “passava notícia do orelhão, na ficha, disputando o telefone com a moça que ligava para a tia”, a questão é tirar o máximo de proveito das novas tecnologias, sem descuidar da qualidade da apuração e do texto.

Produto escasso no mercado contemporâneo, abordou a ética na ótica de Claudio Abramo, segundo o qual “não existe uma ética jornalística propriamente dita. A ética do jornalista é a mesma ética do marceneiro. O que ele queria dizer com isso? Que se você for ético e honesto como pessoa, você será um jornalista ético e honesto”. Canellas sabe fazer citações sem nunca tornar sua fala maçante. Lembrou ainda de A melhor profissão do mundo, discurso que Gabriel García Marquez proferiu em 1996 em uma assembleia da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol).

Penso que o I Prêmio OAB/MA de Jornalismo em Direitos Humanos contribuirá para melhorar o nível da cobertura do tema, em geral pautado pelos jargões reverberados pela “legião de imbecis” (conforme Umberto Eco) que usam a expressão “bolsomito”.

Curioso que parte desse público – talvez até houvesse alguns na plateia, na ocasião – que trata, como ele salientou, “os direitos humanos como uma entidade metafísica ou um departamento do governo”, por vezes bata palmas para as reportagens televisivas do Canellas, sem se tocar que elas, no fim das contas, estão abordando questões de… direitos humanos.

Por exemplo as duas com que ilustrou sua palestra: uma tratava de um esquema fraudulento de adoção de crianças, que, com o verniz legal aplicado por juízes e promotores, beneficiava famílias ricas em detrimento de famílias pobres, nada de novo no front brasileiro; a outra acompanhava a saga de um músico que começou a ensinar música para crianças em instrumentos feitos de material reciclável catado em lixões de Assunção, Paraguai. A orquestra-mirim já rodou o mundo.

Que o I Prêmio OAB/MA de Jornalismo em Direitos Humanos, além de qualificar a cobertura das diversas temáticas a que se propõe, consiga contribuir também para mudar concepções e posturas em meio à nossa classe. Oxalá!

O irrotulável Luiz Melodia

Foto: divulgação

 

Foi mais fácil para a crítica e a indústria rotularem-no de maldito, como o fazem com qualquer um que não se enquadre a seus ditames. Ora, que ousadia, um negro descido do morro de São Carlos, Rio de Janeiro, não querer fazer samba. Ou não se limitar a fazer isso, destino natural de todo preto que se meta com música, ao menos era/é o que pensavam/pensam – e diziam/dizem – à época/ontem, hoje e sempre.

Consciente de seu papel e lugar, mesmo rotulado de maldito, Luiz Melodia (7/1/1951-4/8/2017) fez um dos discos fundamentais da história da música popular brasileira, daqueles que entram em qualquer lista de melhores em todos os tempos: Pérola negra, de 1973, era pura ousadia, desde a capa, pura ironia, desde o título.

Em 1971, nos lendários show e disco Fa-tal – Gal a todo vapor, Gal Costa lhe revelaria o talento ao Brasil, ao gravar justamente aquela que viria a ser a faixa-título de seu álbum de estreia. Além da tropicalista estão entre seus intérpretes Arnaldo Antunes, Barão Vermelho, Caetano Veloso, Cássia Eller, Elza Soares, Jards Macalé, Jussara Silveira, Maria Bethânia, Mart’nália, Pedro Luís, Renato Braz e Virginia Rosa.

Entre seus grandes sucessos estão Magrelinha, Estácio, Holly Estácio, Juventude transviada, Farrapo humano, Congênito, Fadas, Ébano e Presente cotidiano. Sua gravação para Codinome Beija-Flor (Ezequiel Neves/ Cazuza/ Reinaldo Arias) obteve grande êxito radiofônico, tendo integrado a trilha sonora da novela global O dono do mundo (1991). Entre as “flores em vida”, recebeu homenagens de Sérgio Sampaio e Itamar Assumpção, outros artistas, como ele, rotulados de malditos. O primeiro, com participação especial do homenageado, ofereceu-lhe Doce melodia (Luiz Melodia) (1982); o segundo, Quem é cover de quem? (1993).

Somente em 2007, com Estação melodia, ele dedicou um disco inteiro ao samba. Mas aí, independentemente de rótulos, já podia fazer o que queria – no fundo, sempre foi assim. Seu disco mais recente é Zerima (2014). Luiz Melodia tinha 66 anos e estava se recuperando de um transplante realizado para combater um câncer de medula.

“Estamos indo ao encontro de alguma convulsão social”

Em São Luís para participar do 3º. Interconselhos – Encontro de Conselhos do Estado do Maranhão, Leonardo Boff concedeu entrevista exclusiva a Homem de vícios antigos

Quando Leonardo Boff (1938) devolveu o e-mail com as respostas à entrevista, assinou, ao final: “teólogo, filósofo, articulista semanal do Jornal do Brasil online e escritor”. Deixou de fora outros predicados, num gesto de desapego coerente com suas escolhas religiosas e políticas.

Trata-se de uma das maiores autoridades cristãs brasileiras, ainda que um processo movido pelo então cardeal Joseph Ratzinger, que viria a ser o Papa emérito Bento XVI, tenha tirado alguns poderes do catarinense de Concórdia junto à Igreja Católica, o que o levaria a desligar-se do sacerdócio em definitivo. Um dos expoentes da Teologia da Libertação, ele resume: “eu mudei de trincheira para continuar no mesmo campo de batalha”.

Leonardo Boff está em São Luís e participa hoje (1º.), às 14h, no Auditório Fernando Falcão, da Assembleia Legislativa, do 3º. Interconselhos – Encontro de Conselhos do Estado do Maranhão, audiência realizada pelo Governo do Estado do Maranhão, através da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular (Sedihpop), em parceria com o Fórum Estadual Interconselhos. Ele ministra a palestra “A participação popular frente à conjuntura nacional e regional: desafios e perspectivas”.

Em entrevista exclusiva a Homem de vícios antigos, Leonardo Boff comenta, entre outros assuntos, o tema de sua palestra, o processo junto à Congregação para a Doutrina da Fé, a cassação de Dilma Rousseff e o (des)governo de Michel Temer, sem nunca perder a esperança.

Foto: Agência Brasil

O Brasil vive uma crise de representatividade, em muito agravada com o golpe que destituiu a presidenta Dilma Rousseff do poder. Como o senhor avalia este cenário?
A deposição de Dilma foi um golpe de classe parlamentar, jurídico e mediático. O objetivo principal era acabar com os avanços sociais que metiam medo nos descendentes da Casa Grande. Eles não defendem direitos, mas os seus privilégios e se encostam no Estado para fazer seus negócios, com juros subsidiados e reserva de mercado. O outro motivo é alinhar o Brasil à política do império norte-americano para acabar com a linha de soberania e autonomia realizada por Lula e Dilma. Por isso houve presença norte-americana no golpe parlamentar, como o mostrou nosso maior analista Moniz Bandeira, entre outros.

Você visita São Luís para participar do 3º. Interconselhos, o Encontro de Conselhos do Estado do Maranhão, reunindo diversas instâncias de participação popular. Conselhos de Direitos são uma importante conquista na democracia no que se refere à participação popular. Qual a importância destes espaços na atual conjuntura?
Não podemos esperar nada de cima, do Parlamento e dos que controlam as finanças e manipulam o mercado. Estes não estão interessados num projeto de nação, mas de garantir a natureza de sua acumulação, que é uma das maiores do mundo. Apenas 77.400 biliardários controlam grande parte de nossas finanças (0,05% da população). As mudanças vêm daqueles que precisam delas, que são as classes oprimidas, subalternalizadas no campo e na cidade, com os aliados que não sendo da mesma classe, assumem sua causa. Eu espero que esses movimentos se articulem, ganhem as ruas e praças, pressionem os poderes centrais de Brasília e consigam uma reforma política com outro tipo de democracia participativa, onde eles, os movimentos, ajudem a formular os investimentos, a realizá-los e a controlá-los. Aí sim, teríamos um outro Brasil, o Brasil das maiorias. Os neoliberais brasileiros querem um Brasil menor, para uns oitenta milhões apenas. Os outros, os 125 milhões que se lasquem.

95% dos brasileiros avaliam mal o governo de Michel Temer, mas esta insatisfação generalizada não consegue extrapolar as redes sociais. Na atual conjuntura, qual o papel dos movimentos sociais, de defensores de direitos humanos, enfim, da militância, de modo geral?
Talvez uma frase do maior pensador cristão e africano, Santo Agostinho, do século V, nos dê a resposta: alimentar esperança, mas atender às suas duas belas irmãs: a indignação e a coragem. A indignação para rejeitar as coisas ruins. A coragem para mudá-las. Hoje os movimentos devem se indignar e mostrar isso nas manifestações, nas praças, nas redes sociais, nas rádios comunitárias e jornais dos movimentos e principalmente ter coragem para as mudanças que devem ser feitas na estrutura social. Esta é uma das mais injustas do mundo. Isso se faz pela política, participando, elegendo representantes confiáveis e querendo ter lugar nas decisões de governo, pois, a democracia implica participação. Sem isso ela é sua própria negação, senão uma farsa. Desenvolvi estas ideias no livro Virtudes para um outro mundo possível [Editora Vozes, 2005], em três pequenos volumes.

O Maranhão viveu durante décadas sob domínio oligárquico, só ocupando espaços na mídia nacional com tragédias e vergonhas. Para citar apenas dois exemplos, rebeliões em presídios e escolas funcionando em ambientes insalubres, para dizer o mínimo. O senhor tem acompanhado notícias daqui? É possível fazer uma avaliação do governo Flávio Dino?
Estive pouco no Maranhão em relação com outros estados. Estive muitas vezes quando em Bacabal era bispo Dom Pascásio Rettler [1968-89], que defendia os posseiros e era muito ameaçado de morte. Estive em Balsas para apoiar o bispo local que estava do lado da luta, os agricultores contra o avanço da soja transgênica. Outras vezes para participar de encontros das comunidades eclesiais de base, que segundo meu irmão teólogo Frei Clodovis [Boff], são das melhores do Brasil, porque agem com certa autonomia sem menosprezar o apoio dos bispos. Há uns três anos fui a um encontro para professores e professoras, em sua maioria, numa cidade histórica perto de São Luís. Fiquei estarrecido com o que as professoras e professores contavam, seus baixíssimos salários e o abandono das escolas. Tudo isso ainda sob o governo dos Sarney. De Dino ouvimos os melhores elogios, seja por suas intervenções no caso do impeachment, seja como está resgatando socialmente o Estado. É uma liderança em quem confiamos e oxalá tenha ressonância nacional e não apenas regional para o país sair da crise com lideranças novas, como a dele, com ética e novos projetos sociais. Em meu livro Do iceberg à Arca de Noé [Editora Mar de Ideias, 2002] desenvolvi tais perspectivas atinentes à realidade brasileira.

Como professor universitário, como o senhor tem recebido os golpes sucessivamente perpetrados pelo governo ilegítimo contra o ensino médio e instituições de ensino superior?
O que o atual governo está fazendo com a educação e suas instituições é um crime contra o país e o futuro de nosso povo. O propósito é criar apenas gente que aprende para fazer funcionar o sistema injusto e excludente que está aí, sem pensamento crítico, sem inovação. Um país só cresce e progride quando há uma educação séria e qualificada. Podem destruir quantas vezes quiserem a Alemanha, como fizeram por duas vezes, mas porque possui uma das melhores educações do mundo (eu tive o privilégio de fazer a universidade lá), sempre se levantará, como se levantou. Hoje é um dos países social e tecnologicamente mais avançados do mundo. Aqui a baixa qualidade da educação é mantida por razões políticas, para manter o povo submisso e eles com os seus privilégios assegurados. Um pobre a quem se negam as razões de sua pobreza, nunca irá se indignar e buscar transformações. Mais ainda: um povo mantido na ignorância, em qualquer nível, nunca dará um salto de qualidade em direção do desenvolvimento humano e justo. Eu venho da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), uma das melhores do Brasil. Está sendo literalmente desmontada, talvez, como se suspeita, para privatizá-la, talvez por ela ter um cunho claramente social. Todos, professores e terceirizados, não estamos recebendo seus salários inteiros desde janeiro. O décimo terceiro nem foi pago. E ouvimos que houve até suicídio de gente que se desesperou com as dívidas por não ter recebido o devido salário.

Ao longo dos últimos anos temos percebido o crescimento da bancada evangélica, com pautas nem sempre alinhadas a princípios verdadeiramente cristãos. Como teólogo, como o senhor enxerga essa junção de religião, poder, conservadorismo e obscurantismo?
O que a bancada evangélica faz é contra a constituição do Brasil. Na constituição ficou claro que o país é laico, quer dizer, não se orienta por nenhuma religião, e respeita a todas, desde que se enquadrem dentro da legislação que é para todos. Os evangélicos querem ter o privilégio de impor sua agenda, especialmente a ética, com referencia à família, à orientação sexual, ao respeito aos LGBTs e outras. Eles podem ter as opções deles, dentro do espaço de suas igrejas, mas é anticonstitucional e desrespeitoso para outros que pensam diferente, quando querem fazer o particular deles, o universal para toda a população. A eles dever-se-ia corajosamente aplicar a constituição com as proibições que ela aponta.

Percebemos diversos avanços da Igreja Católica sob o papado de Francisco. Dois pontos, no entanto, seguem inalteráveis: o matrimônio de sacerdotes e o sacerdócio de mulheres. Na sua opinião, isto ainda demorará a se tornar realidade?
Face aos grandes problemas da humanidade, com a pobreza da maioria, com eventuais guerras que podem dizimar a espécie humana, o agravamento do aquecimento global que pode por em risco o sistema-vida e o sistema-terra, esses problemas do celibato e do sacerdócio das mulheres têm sua importância, mas são de relevância menor. Eles interessam apenas aos católicos. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), quanto saiba, fez uma petição ao Papa Francisco para que os padres que casaram pudessem voltar com suas famílias e assumir responsabilidades pastorais. Outros avançam a proposta, simpática ao Papa, de ordenar leigos, especialmente aposentados, com boa integração familiar, para que pudessem atender espiritualmente, por exemplo, todo um conjunto de prédios. A meu ver, a tendência da Igreja Católica é seguir o que todas as igrejas já fizeram: tornar o celibato optativo. Quem quiser, fica celibatário e se deixa ordenar. Outros se casam e se tornam padres como os outros. Sou da opinião de que a Igreja deveria abrir também a possibilidade de as mulheres poderem receber o sacramento da Ordem e serem sacerdotes no estilo das mulheres, que é diferente daquele dos homens. Creio que, na medida em que o patriarcalismo, forte na Igreja oficial, diminuir, será mais fácil e normal tomar estas decisões. Ainda mais que a Igreja está dentro da globalização, pois em muitas culturas, especialmente na África, não se pode imaginar alguém ficar celibatário. O sentido tribal e comunitário torna o matrimônio dos padres uma exigência até agora não atendida por causa da dominação da cultura branca, ocidental e romana.

Por conta de um processo movido por Joseph Ratzinger junto à Congregação para a Doutrina da Fé o senhor perdeu alguns poderes dentro da Igreja Católica, desligando-se depois do sacerdócio. No entanto, graças a sua atuação junto a Teologia da Libertação, continua sendo um dos principais expoentes religiosos do Brasil. Há alguma disposição por parte do Papa Francisco no sentido de rever este processo?
Eu mudei de trincheira para continuar no mesmo campo de batalha. Deixei, sob fortes pressões, o sacerdócio, mas continuei fazendo teologia e tomando a sério a opção pelos pobres contra a pobreza, porque isto é o eixo estruturador da teologia da libertação. O atual Papa vem do caldo cultural e eclesial da teologia da libertação, de versão argentina, que é a teologia do povo oprimido e da cultura silenciada. Ele está levando as intuições desta teologia nossa para o centro da Igreja. Por isso está se encontrando com teólogos da libertação como com [os sacerdotes] Gustavo Gutiérrez, Jon Sobrino, Pepe Castillo, Arturo Paoli e outros. Quis conversar comigo, mas por razões de última hora, uma rebelião de 13 cardeais na véspera do Sínodo sobre a família, que ele devia acalmar, não pode me receber. Mas seguramente iremos nos encontrar em alguma viagem que fizer à Europa.

O Brasil vive uma situação surreal, com condenação de inocentes sem provas e liberação de culpados com toneladas de cocaína em helicópteros. O senhor é um homem de fé: é necessário ter esperança no Brasil, apesar de nossa classe política?
Quem perde a esperança está a um passo do suicídio, da morte voluntária. É o que não podemos e queremos. O povo brasileiro cultivou sempre em sua história a esperança, pois aguentou séculos de colonização espoliadora de nossas riquezas, três séculos de vergonhosa escravidão e duas ditaduras, a de Vargas e a de 1964. O momento atual é de participação e de ação, sempre com esperança. Entretanto, temo que estamos indo ao encontro de alguma convulsão social porque a desfaçatez e a sem-vergonhice do atual governo de tentar desmontar todos os benefícios que os dois governos do PT realizaram para milhões de cidadãos, não poderá perdurar. Haverá um momento de dizer: “Agora basta. Que se vayan todos”, como disse o povo argentino e pôs a correr um governo corrupto. O Brasil cresceu aos nossos próprios olhos, enchendo-nos de orgulho e também aos olhos do mundo de tal forma que ganhou o respeito e a admiração. Não vamos tolerar que isso se desfaça por aqueles que Darcy Ribeiro dizia: “temos as oligarquias mais reacionárias e com falta de solidariedade do mundo inteiro”. O insuspeito ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em seus Diários da Presidência (1999-2000) [vol. 3, Companhia das Letras, 2017] chegou a confessar: “temos uma sociedade colonial, subdesenvolvida, arrivista, com muita mobilidade e, ao mesmo tempo, muita ganância”. São os atuais senhores da nova Casa Grande que querem que a maioria do povo volte à senzala. Isso não vamos permitir. Lutaremos com dignidade e valor.

[originalmente publicada na edição de hoje (1º.) do jornal O Imparcial]