Pra encher a caveira!

Sempre que ouço falar em algo relativo à cultura mexicana algumas coisas me vêm à cabeça.

Uma cena de uma comédia romântica em que o personagem de Adam Sandler, em plena lua de mel, é (per)seguido por um grupo de mariachis e, perdendo a paciência, distribui um couvert artístico às avessas: paga para não ser perturbado, quer apenas conversar com sua esposa.

Lembro também da piada recorrente, que afirma terem os restaurantes mexicanos a melhor comida, ao contrário da música ao vivo. E do finado Miguelitos, cuja cozinha era especializada nas iguarias do país de Frida Kahlo – saudades, micheladas!

Incrivelmente lembro também de uma camisa que usei, com dois ratos trajando sombreiros, qual Ligeirinho – arriba!, arriba!, arriba! – com a inscrição, embaixo: México 86, quando o país sediou pela segunda vez uma Copa do Mundo de futebol.

Segunda-feira (2) é feriado no Brasil: dia de finados. Nunca tive o costume de visitar cemitérios ou acender velas, embora lembre meus mortos (e não apenas esse dia). Em Olinda, há alguns anos, toquei o mármore do túmulo de Dom Helder Câmara, que fica em uma igreja na cidade pernambucana, e estranhamente considerei o ato algo importante da viagem – como se fosse parte do “turismo” que teimo em fazer mesmo quando viajo “a trabalho”, se é que me entendem. Também confesso a vontade de, um dia, visitar a sepultura de Sérgio Sampaio. Mas são exceções.

De resto, o Dia de Finados é como uma data marcada no calendário em que todos seríamos obrigados a ser tristes – o que nunca aceitei direito. Quando criança, lembro ainda, nem música se podia ouvir.

Na contramão de minhas lembranças, a festa Viva la Muerte acontece hoje (30), às 19h, no Barulhinho Bom (Rua da Palma, 217, Praia Grande), festejando, por mais contraditório que possa parecer, o Dia dos Mortos, feriado celebrado a 1º. de novembro na América Latina – quando no Brasil o calendário marca o Dia de Todos os Santos.

Música ao vivo com Los Mariachis de Virgulino (o grupo General Virgulino convertido especialmente para a ocasião) e o DJ Jorge Choairy. Os convidados que desejarem serão caracterizados com maquiagem neon inspirada nas caveiras mexicanas.

O make up temático será feito por Luciano Teixeira e Camila Abreu. A festa tem produção da Carruagem Produções, que tem primado por festas temáticas na capital maranhense, prestando agora sua reverência à data, reconhecida em 2003 Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade pela Unesco.

“A morte tem tanta certeza que vai te pegar que te dá uma vida inteira de vantagem”, diz o dito popular mexicano. Enquanto seu dia não chega, que tal aproveitar?

Divulgação
Divulgação

Chorografia do Maranhão: Celson Mendes

[O Imparcial, 22 de fevereiro de 2015]

Aviador e violonista, Celson Mendes é o 48º. entrevistado da série Chorografia do Maranhão

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

 

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVANIO ALMEIDA SANTOS

Celson Afonso de Oliveira Mendes Filho nasceu em Barreirinhas/MA em 25 de janeiro de 1952, pelas mãos de freiras da paróquia local. É o mais velho de oito irmãos. Com menos de dois anos foi levado pelo pai para o Rio de Janeiro, morando depois no Recife e em diversas outras cidades brasileiras – incluindo Cururupu/MA, onde chegou a administrar uma destilaria de álcool.

A vida do violonista é feita de aventuras e acasos. Aviador, ele se tornou músico profissional por acidente – não aéreo; é que mesmo tendo descoberto o talento desde muito cedo, ele não tinha essa pretensão, até participar por acaso de um show de Joãozinho Ribeiro [compositor].

Filho de Celson Afonso de Oliveira Mendes, economista e estatístico, e de Maria Leônia Dias Mendes, Celson Mendes concedeu seu depoimento à Chorografia do Maranhão na nova praça de alimentação do São Luís Shopping, onde se apresentaria àquele sábado no projeto Arte Musical do Maranhão, que teve quatro noites dedicadas a ritmos, instrumentistas, vozes e compositores maranhenses, valorizando e apresentando a diversidade da produção musical do estado.

Ao longo da bem humorada entrevista, ele lembra a participação em grupos como o Bom Tom e o Regional Caixa de Música – quando venceu o Prêmio Universidade FM de melhor músico violonista –, as aventuras da vida de aviador, como guardou uma carteira de cigarros de Baden Powell como souvenir e sua relação com João Donato e Antonio Vieira.

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

 

Como era o universo musical na tua casa? Onde você identifica as primeiras influências? Foi meu pai. A gente morava no Filipinho, e ele era o camarada que agregava. Sempre gostou muito de cultura, artes, esportes. Era estatístico, depois se formou em Economia. Logo depois da Estatística ele resolveu fazer Odontologia. No último ano, os estudantes, formandos, iam para um hospital e operavam pessoas carentes gratuitamente. Uma das pessoas que ele estava tratando, ele arrancou um dente, a pessoa teve uma hemorragia, quase morre. Ele gastou uma grana preta para tratar da pessoa e resolveu que nunca mais [risos]. Quando ele foi para o Rio, tinha uns tios, ele se hospedava no apartamento desses tios, e eles tinham acabado de perder um filho. Aí se apaixonaram por mim, pediram para me criar. Ele falou com minha mãe, “pode ser muito bom para ele”, eu me mudei para Copacabana aos um ano e oito meses de vida, isso em 1953, final de 53. Peguei aquela época boa do Rio de Janeiro, em termos, quando dei por mim, lá por 61, 62, com 10 anos de idade, lembro de muita coisa de quando eu tinha cinco, seis anos. Lembro do célebre assassinato da Aída Cury [atentado violento ao pudor, tentativa de estupro e homicídio, o crime aconteceu na noite de 14 de julho de 1958, em Copacabana], lembro da repercussão sobre o atentado da [rua] Tonelero, de Carlos Lacerda [uma tentativa de homicídio contra o jornalista e político ocorrida na madrugada de 5 de agosto de 1954], era pertinho de onde eu morava. Eu morava a um quarteirão de um prédio onde moravam quatro vascaínos [jogadores do Vasco]. Eram eles: Barbosa [Moacir Barbosa, goleiro da seleção brasileira quando da derrota para o Uruguai, na final da Copa do Mundo de 1950, no Maracanã], o goleiro, Bellini [Hilderaldo Luís Bellini, zagueiro, capitão da seleção brasileira campeã mundial em 1958, na Suécia], parecia um artista de cinema, Sabará [Onofre Anacleto de Souza, atuou 12 anos – a maior parte de sua vida profissional – no clube carioca que lhe deu o apelido], eles moravam no mesmo prédio, na esquina de Nossa Senhora de Copacabana com Barão de Ipanema [não chega a dizer o nome do quarto jogador]. Eu vinha passar férias aqui. Meu pai centralizava. Todo domingo de manhã, ele acordava, tinha uma vitrola enorme, até hoje eu tenho discos dele, e ele colocava discos de música erudita durante uma hora, uma hora e meia, tomava café, depois disso começava a tocar Românticos de Cuba, e lá pelas 10, 11 horas, os amigos começavam a chegar com sacolinhas de cerveja, ficavam ouvindo aquele som e isso ficava até umas duas horas da tarde, sentados numa varandinha. Tio Maniquito tocava bem violão, minha vó dizia que o pai dela também tocava. Isso [as reuniões musicais do pai com amigos] desenvolveu, eu tinha duas irmãs de criação que adoravam música. Quando eu fui para Recife, meu sonho era ser aviador. Eu passei para o Colégio Militar do Rio de Janeiro e não me deixaram entrar, por que eu não era filho de militar. Fui pra Recife, passei de novo, nessa época meu pai era superintendente adjunto da Sudene, trabalhava com Celso Furtado [economista paraibano, autor de Formação Econômica do Brasil]. Ele disse: “venha pra cá e faça o exame de novo”. Passei e Celso Furtado foi lá e disse “agora ele entra”. Ao entrar no Colégio Militar, conheci um rapaz, loirinho, tivemos afinidade, ele gostava de basquete, eu também, de música ninguém sabia nada, ele gostava de tocar bateria, e ele disse “eu tenho um tio que é músico, muito famoso”. Eu não sabia de quem se tratava, ele dizia o nome, eu não sabia quem era. Até que um fim de semana ele me convidou para passar na casa dele. O pai dele era médico, coronel da aeronáutica, fui passar o final de semana na frente da praia de Piedade, onde tinha uma vila militar. Quando chega o irmão da mãe dele. Sabe quem era o cara? João Donato [pianista, um dos mentores da bossa nova]! Um dia eu estou passando por uma rua no Centro de Recife e ouço um som de violão que eu nunca tinha escutado. Uma tia compra o disco [Sambas e marchas da nova geração, de 1967] pra mim, Paulinho Nogueira, tocando Roda [faixa de abertura do disco], de Gilberto Gil. Foi meu primeiro elepê. Peguei esse disco, quase furo de tanto ouvir. Uma tia minha, que cantava muito bem, resolve aprender a tocar violão. Eu assistia as aulas, quando acabava, eu pegava o violão, ia lá para o quarto, e comecei a aprender violão assim. Um belo dia fui procurar um professor, ele me botou para tocar, “você leva jeito para a coisa, eu vou te dar umas aulas. Depois conforme seja, a gente vê o valor”. Eu era doido para aprender música, adorava aquele negócio de alguém botar as bolinhas [as partituras] na frente e sair tocando. Eu disse “eu quero aprender isso”. E ele: “primeiro vamos ver se realmente você tem queda”. E um belo dia eu roubei uma partitura dele. Uma semana depois eu voltei tocando aquele negócio. “Quem foi que te ensinou isso?” “Eu aprendi lendo”. Ele nunca me cobrou. Aí veio a perseguição política, meu pai teve que ir embora pro Chile, por conta da ligação dele com Celso Furtado, ele era padrinho de um irmão meu, inclusive. Meu pai foi embora, minha mãe foi para o Rio de Janeiro, com todo mundo, menos eu, por conta do Colégio Militar. Aí fui adotado pela irmã do João Donato, por isso eu a chamo Tia Eneida. Seguimos juntos, passamos para a Escola de Aeronáutica, eu e o Amim [sobrinho de João Donato], passamos para a preparatória, para a academia, depois me botaram para fora. Incompatibilidade de gênios.

O que foi, especificamente? A tia Eneida resolveu, em comum acordo, ela e o coronel Amim, resolveram se separar. Nessa época era a ditadura pesada, 1970. Nós éramos obrigados a nos recolher às 10h da noite, depois disso não podíamos sair, a não ser em toque de emergência. Eu era de uma turma, A, Amim era da turma H, tinha que atravessar, ele foi lá, chorando, e me disse: “nossos pais se separaram”. Botamos uma roupa, pegamos a carteira de cigarros, fomos para o pátio fumar e conversar. Nessa hora me chega um capitão, a gente vivia pendurado, aprontava muito. Eu era atleta, jogava basquete, jogava vôlei e isso me aliviava. Ele não, o negócio era ser músico, vivia tocando a bateria dele. O capitão disse: “cadeia pra vocês!”. Eu chamei o capitão e disse: “vamos fazer um acordo”. Com o número de dias que ele ia dar para nós, ele estava fora. Eu disse: “me dê os 10 dias de cadeia”, eu não sairia ainda, eu tinha uma reserva [risos], mas não faça isso com ele. Ele disse: “vou dobrar a dele e manter teus 10 dias”. Ele tinha uma .45 bem aqui [aponta para a cintura]. O que eu fiz? Dei um murro no nariz dele. No dia seguinte o brigadeiro comandante chamou: “vou fazer um acordo contigo. Fica aí até o fim do ano, pede teu desligamento”, faltavam dois ou três meses, “se não isso vai prejudicar sua vida toda, vai dar expulsão, e vou segurar o Amim, que é filho do brigadeiro e quem deu o murro mesmo foi você”. Numa boa, eu já estava de saco cheio mesmo. Saí da vida militar, seis meses depois o Amim pediu o desligamento dele também, foi chamado para a Transbrasil. Eu já fiz meu curso para aviação civil, era piloto da Votec [companhia aérea brasileira adquirida pela TAM em 1986], voava para a Petrobras, plataforma. Uns seis meses depois dessa história, mais ou menos isso, ele teve um acidente [chora, sem conseguir completar a informação de que o amigo faleceu].

Quem foram teus outros mestres no violão? Um cego em campos, foi professor também de uma cantora muito bonita, a Marina De La Riva. Os De La Riva eram usineiros, amigos de meu pai, meu pai eventualmente trabalhava para eles. Foi o maior tempo de aula com um professor particular. Depois eu estudei também na Escola Villa-Lobos. Estudei um pouco com João Pedro Borges [violonista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 14 de abril de 2013], tive aqui o Pixixita [o músico José Carlos Martins, professor da Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo] como professor de harmonia. Minha vida de aviador não me permitia ter cursos regulares. Eu andava com o violão no avião. Depois proibiram. Eu cheguei a ter nove violões em lugares diferentes, ficavam no hotel. Eu ficava danado da vida quando me mandavam para um lugar onde eu não tinha um [risos].

Quanto tempo você passou nessa vida de aviador? De 1973 a 1980.

E depois? Em 1980 meu pai me fez uma proposta indecente. Eu estava indo pros Estados Unidos com a noiva, ele me apresentou um amigo, que estava precisando de alguém de confiança para recuperar um avião dele. Era urgente. Ele cobria a passagem, hospedagem no melhor hotel de Salvador e mais uma grana que cobria qualquer coisa. Acabei não indo, terminei o noivado. Eu tinha recebido proposta da Vasp na época, estava esperando terminar um curso, se não eu ia primeiro para a Táxi Aéreo Marília, que hoje é a TAM. O cara disse que ia pagar todos os meus cursos, era presidente do Santa Cruz [Futebol Clube], o maior advogado e maior fazendeiro de Pernambuco, usineiro em Alagoas, e tinha um projeto enorme no interior da Bahia. Tinha duas filhas, não tinha filhos. Ele me pagava um salário de piloto de Boeing, eu ficava voando, todo final de semana. O escritório era uma coisa familiar, de noite uísque rolava. Ele ia comprar uns tratores, acabou me contratando também para cuidar da parte técnica, foi esperto, pagava um para fazer o serviço de dois [risos], mas foi bom para mim também, continuei voando. Eu resolvia toda a questão técnica, ganhei um bocado de dinheiro, não tinha onde gastar, não tinha tempo. Depois meu pai resolveu montar uma destilaria de álcool em Cururupu, onde ele tinha, tem, um terreno. Vim pra cá, cheguei aqui 10 de outubro de 1980. Por que eu lembro? Primeira notícia que eu tive aqui foi que tinha afundado um barco chamado Lima Cardoso, com metade do povo de Cururupu, inclusive parentes e amigos meus. Isso fez meu retorno ao Maranhão, lembro bem desse sentimento, tinha passado minha vida toda fora, Minas [Gerais], São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Norte e Pernambuco.

Nessa época você morava em Cururupu? Sim, eu morava na fazenda, a 10 quilômetros da [sede da] cidade.

Voltando um pouco, você viveu no Rio numa época de bastante efervescência, sobretudo na cena musical. Como isso reverberou em você? Quando eu me entendi por músico meus colegas de turma tinham banda. A música que eles tocavam eram Beatles. Eu achava bonito, interessante, a banda. Mas a música que me tocava era escutar Tom Jobim, Chico Buarque, João Donato, que eu passei a ter acesso aos discos. Eu ia para a casa da tia Eneida, ela tocava muito bem acordeom, cansei de vê-la, João Donato no piano, ela no acordeom, depois eles revezavam. O Amim ficava numa bateria atrapalhando todo mundo [risos]. Eu escutava aqueles temas, ficava encantado. Muitas músicas até se perderam, bolavam na hora, aquelas pegadas jazzísticas. A primeira vez que eu ouvi Samba da bênção [de Vinicius de Moraes e Baden Powell], eu fiquei alucinado. Depois eu me apaixonei por música francesa, era a época de Pierre Barouh [ator, compositor e cantor francês], que também tinha uma ligação com a bossa nova, cinema francês. Nós tivemos recentemente falecido, já com quase 90 anos, foi até um dos percussores da bossa nova, grande compositor, gravou com Rosa Passos [cantora], inclusive: Henri Salvador [cantor, compositor e guitarrista francês]. Ele gravou um disco com uma moça, não lembro se sueca ou norueguesa, chamada Lisa Ekdahl [cantora sueca]. É lindo, lindo, lindo [repete, enfático]! A bossa nova e o jazz, através da influência desse primeiro professor de violão. Minha ligação não era com o jazz, com exceção de Glenn Miller, que eu pai botava e eu ouvia. Meu pai comprou uma usina em Campos, e tinha uma roda de choro. Eu fui lá, eles em volta de uma mesa tocando. Eu me aproximei e fiquei observando. Uma hora eles pararam, conversaram, eu continuei parado. Uma hora sem me dar nem boa tarde. Aí entra no recinto, um galpão, Ivon Curi [cantor, compositor e ator]. Ele chega por trás de mim, botou a mão e disse: “esse camarada aqui toca violão também”. Ele, muito gente boa, simples, dava o show dele, depois sentava do teu lado. Aí os caras me olharam, “é mesmo?”, eu achei de uma indelicadeza, eu era um jovem, eles, todos senhores, eu achei de uma arrogância tão grande, saí e fui jogar sinuca. Mas aquilo me marcou. Foi o contrário do que aconteceu com Paulo [Trabulsi, cavaquinista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 22 de dezembro de 2013]. Paulo quando foi sacaneado por Zé Hemetério [multi-instrumentista e compositor], botou na cabeça e disse “eu vou mostrar que eu posso”. Eu fiz exatamente o contrário, me desinteressei, me afastei. Eu comecei a observar que havia dois comportamentos distintos: o pessoal mais ligado ao jazz, à bossa, gostava de agregar, o pessoal do choro era “se sabe, sabe, se não sabe, cai fora e nem faz barulho”.

E como se deu a escolha pelo violão? Foi por causa desse disco [Sambas e marchas da nova geração, de Paulinho Nogueira]. Eu completei 15 anos, meu pai tinha um relógio Mido de ouro, eu botava os olhos, achava lindo, todo mundo elogiava aquele relógio. Quando eu fiz 15 anos, eu acordo, ele começou: “vou lhe dar um presente” [imita o pai, sacudindo o relógio]. Aí ele disse: “se eu fosse lhe dar um presente, do que você gostaria?”. Eu respondi: “um violão”. Ele murchou [risos]. Ele parou e pensou: “é um idiota. Em vez de ganhar um relógio, que vale não sei quanto, quer um violão”. Fomos a A Guitarra de Prata [loja de instrumentos musicais na Rua da Carioca, Centro do Rio de Janeiro]. E ele: “traga o melhor violão que você tiver”. Na cabeça dele, um violão não podia custar o preço de um relógio. Aí veio uma caixa, com o violão, eu olhei o violão, aquela boca de madrepérola, tinha um senhor no balcão, afinou o violão, começou a tocar, parecia uma escola de samba, meu pai ficou olhando: “O senhor é um artista!”. Era o Codó [violonista, cantor e compositor baiano]. Tocou uma música chamada Boladinho [de Codó], me deu um disco, eu tenho até hoje. Quando papai perguntou quanto era o violão, levou um susto: “é só um, eu não vou montar uma orquestra” [risos]. Mas fez o cheque, levou, foi meu primeiro violão. E ainda comprou um baita dum estojo, muito caro também. “Não adianta ter um violão desses e ficar jogado” e já queria me matricular no outro dia, aí eu falei: “calma!”. Eu não queria entrar em escola, queria voltar para meu professor no Recife, eu não queria ser músico profissional, nunca tive essa ideia.

Por que você não queria ser músico profissional? Nunca tive essa pretensão. Eu vim para cá, eu tocava com Anna Cláudia [cantora], com Léo [Capiba, cantor e percussionista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 4 de maio de 2014], e Anna Cláudia precisou fazer um disco, pediu para que eu fizesse um projeto. Eu comecei a ser profissional numa circunstância interessante: num show de Joãozinho [Ribeiro], comemorativo de 40 anos dele. O diretor musical dele tinha ido embora e Arlindo Carvalho [percussionista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 18 de agosto de 2013] tinha me visto tocar em algum lugar e disse a ele que eu quebrava o galho dele. Eu passei 48 horas acordado para fazer três dias de show no Teatro Alcione Nazaré. Outro dia eu postei uma foto, estávamos eu, Zé Américo [maestro, arranjador, multi-instrumentista], Rui Mário [sanfoneiro, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 7 de julho de 2013] começando, um dos primeiros shows dele. Eu nunca tinha aceitado cachê na minha vida, mas dessa vez a grana era tão boa, e você se diverte. Hoje eu vivo em torno da música, eu não vivo só de tocar: trabalho com projeto, um estúdio de gravação.

Teu pai nunca ofereceu resistência a você seguir a carreira de músico? Não. Ele era muito do “não quero saber o que você vai fazer. Agora, faça bem”. Eu fui campeão brasileiro de pouso de precisão. Ele tinha uma certa restrição com a coisa da aviação. Ele achava que eu era muito afoito. Quando eu estava na força aérea, sempre tinha uma turma que ia para a esquadrilha da fumaça. Ele tinha pavor de que isso pudesse acontecer, ele sabia que se eu fosse eu ia morrer. Nas décadas de 1950 e 60 morreu muita gente da esquadrilha, hoje bem menos, a técnica é outra, os equipamentos são mais modernos. Mas eu gostava mesmo é de loucura, passar embaixo de ponte, quinze minutos invertido, o motor falha, você voltava, essa era a farra.

O músico que mais te influencia do ponto de vista do estilo é Paulinho Nogueira? Não, eu tenho uma admiração pela limpeza do violão do Paulinho Nogueira. Lógico que ele também tem uma técnica, é uma pessoa que nunca entrou numa escola, aprendeu com um irmão, quem escrevia suas partituras era um rapaz aqui do Ceará, o André Jereissati [violonista]. O que mais me influencia é Baden Powell. Eu cheguei a assistir o mesmo show de Baden Powell 11 vezes. Ainda roubei a carteira de cigarros dele [risos], levei para Cururupu, minha mulher jogou fora – depois de quase 20 anos –, foi uma confusão danada. Eu era apaixonado. Baden fazia de tudo, tem uma coisa que me lembra muito o Yamandu [Costa, violonista sete cordas gaúcho]: ele saía desse plano, saía de órbita quando tocava. Ele tinha a habilidade de violonista, a sensibilidade de compositor, normalmente o grande músico não é um bom compositor. Ele conseguiu fazer coisas simples e belíssimas. Baden tinha um ritmo, era um sujeito miudinho, franzino, fumava desbragadamente, no palco, fumava e bebia. Eram sempre dois bancos, num ficavam a carteira de cigarros e o copo de uísque.

Que grupos musicais você já integrou? Nós tivemos tribos. Por incrível que pareça, minha primeira tribo era exatamente a do choro. Era Paulo Trabulsi, era Solano [Francisco Solano, violonista sete cordas, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 26 de maio de 2013], Zeca [do Cavaco, cantor e cavaquinista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 21 de julho de 2013], Serrinha [Serra de Almeida, flautista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 3 de março de 2013], era o [Regional] Tira-Teima, basicamente. Na época tinha o Teles, já falecido, tocávamos no fundo do quintal da casa de Paulo. Foi onde eu conheci Carlinhos Veloz [cantor e compositor], Léo Capiba também fazia parte, Anna Cláudia, que na época era casada com Paulo. Como grupo de formação profissional, o primeiro grupo foi o Ensaio Três. Foi uma história muito engraçada: trabalhávamos eu, Léo e o Mariano Aguado, que era assessor chefe da presidência do Instituto de Planejamento. Nós éramos muito ligados, Mariano gostava de tocar timba, Léo de tocar pandeiro e cantar, e eu, violão. Uma sexta-feira, deu duas da tarde, o presidente nos dispensou, era véspera de um feriado, alguma coisa. A gente acostumado a trabalhar até seis, passei em casa, peguei o violão, passamos na casa de Léo, pegou o pandeiro, compramos uma timba para Mariano, no caminho, ainda não tinha essa estrutura da [avenida] Litorânea hoje, compramos uma garrafa de uísque, gelo, isopor. Chegamos lá, Léo começou a desfiar o repertório dele. Lá pela trigésima música, eu pensei: “já dá um show”. E disse: “se tu aguentar, a gente podia fazer uma história”. E ele disse: “eu tenho música é pra fazer 10 shows”. Resultado: saímos da praia quase 11 da noite, já com quase 100 músicas tonalizadas. Voltamos sábado de manhã, outro litro de uísque. No outro sábado, de novo. Foram três ensaios. Depois do terceiro já arrumamos um contrato, fomos tocar no Pelicano, já tínhamos umas 300 músicas. Durou um tempo, depois do Ensaio Três, agregamos Paulo Lima, grande baixista, violonista, grande músico, depois o filho dele, Athos, guitarrista, grande músico também. Durante um bom tempo o Pelicano era o ponto de encontro, todo mundo que vinha de fazer show, o ponto de encontro era lá. Já montei muitos quartetos, quintetos, veio o Bom Tom. O Bom Tom é o seguinte: nós montamos o Estúdio Bom Tom, e um dia o Marcelo Bianchini, eu nem sabia que ele cantava, ele deu uma canja no Dom Calamar, eu fiquei encantado com a voz dele, e disse que ia montar um grupo só para acompanhá-lo, acabamos montando o Bom Tom, era um quarteto, depois virou quinteto, já chegou até a hepteto. A ideia era um grupo para acompanhar intérpretes, eventualmente tocamos música instrumental, não somos solistas natos.

E tua participação no Regional Caixa de Música [grupo que acompanhou Joãozinho Ribeiro no Circuito Samba da Minha Terra, entre 2002 e 2003], quando você ganhou o prêmio Universidade FM de melhor violonista? Eu reconheço que aquele prêmio foi mais pelo conjunto da obra, o grande mérito é de Joãozinho Ribeiro, um projeto complicado, de meio de rua, feito com sacrifício, mas aquilo foi fantástico. Para mim, pessoalmente, me deu conhecimento de pessoas da cidade, mais uma vez comprovei que qualquer lugar que você chegue com boa música, do Olho d’Água ao Anjo da Guarda, a boa música será apreciada. Uma história que eu sempre me emociono quando lembro: eu estava tocando num lugar, chegou um senhor, pediu uma garrafa de vinho. Sentou na nossa frente, ele estava pra baixo, arriado. A gente tocando, eu bem de frente pra ele. Eu comecei a prestar atenção que a cada música que a gente tocava ele levantava um pouquinho. Secou a primeira garrafa de vinho, pediu outra, não tomava depressa. Perto de a gente acabar, ele não bebia mais, a feição era outra. Acabamos de tocar, comecei a arrumar meu violão, ele: “posso falar com o senhor? Me acompanha numa taça de vinho?”, chamou o garçom, pediu um prato de frios e outra taça. Ele passou uns 30 segundos olhando para minha cara, o garçom veio, me serviu, e ele disse: “em primeiro lugar eu quero agradecer. Não só o senhor, todo o grupo, mas eu estava prestando muita atenção no senhor. Eu cheguei aqui com um firme propósito, era minha última garrafa de vinho”. Eu disse: “que bom, parar de beber”. Ele frisou: “não, minha última garrafa de vinho. Mas não será mais minha última garrafa de vinho, tanto que eu já pedi outra”. Ele sério, eu gelei: tinha ido ali beber, sair dali e jogar o carro contra um poste, me disse que tinha tido uma decepção muito grande, não entrou em detalhes. Depois ele me disse: “olha, se existe alguma coisa nobre, é o que vocês fazem. Foi Deus que me trouxe aqui. Se eu tivesse ido pra outro lugar… mas vocês tocaram meu coração”.

E discos gravados, participação em discos? Não tenho muitos, não sou um músico de estúdio. Gosto mais de palco. A última agora foi com Vieira [O Natal Azul de Antonio Vieira, com vários intérpretes, lançado em dezembro de 2014], o Memória [Música do Maranhão, de 1997] eu pensei, coordenei o projeto, mas não toquei. Registramos vários compositores da velha guarda. Há ali uns registros muito interessantes. O Canta Cidade, um dia Dr. Jackson [Lago, ex-prefeito de São Luís, ex-governador do Maranhão] chegou muito irritado na Prefeitura, ele tinha ido a um evento, pediu para tocar o Hino da Cidade [Louvação a São Luís, de Bandeira Tribuzzi] e ninguém sabia, aí ele mandou fazer um disco.

Você também teve um papel importante na realização do Festival Internacional de Música de São Luís, infelizmente até aqui, de única edição. Para mim foi a coisa mais importante, musicalmente, que eu já fiz na vida.

Para você, o que é o choro e qual a importância dessa música para a música brasileira? Não concordo que seja a única música brasileira, mas a importância é inegável. Se você olhar hoje, no Brasil, os melhores músicos que nós temos passam pelo choro. Ou pelo menos pelo erudito. E mesmo no erudito, não tem jeito, passa ao menos por Ernesto Nazareth [pianista e compositor]. O choro tem um pé no erudito, um pé no popular, e hoje, com essa turma nova, já pisa em outros terrenos.

Você se considera um chorão? Não, eu não tenho essa pretensão. Se eu dissesse que sim seria muito pretensioso. Não posso de jeito nenhum dizer que sou um chorão. Na realidade, não posso dizer que eu sou um chorão, que eu sou um jazzista. Na verdade, se prestar bastante atenção no que eu faço, talvez seja possível dizer que eu sou um sambista. É, a coisa que eu mais gosto de tocar é samba. Na verdade, como dizia Maestro Nonato: “esse pessoal fica pedindo pra tocar choro. É samba!” [risos].

Para finalizar, gostaria que você falasse um pouco de sua relação com seu Antonio Vieira. Por duas vezes eu fiz essa observação: Vieira foi meu segundo pai. Ele foi um cara que me mostrou muita coisa do mundo. Era um sujeito aparentemente simples, mas era de uma sapiência. Nós viajamos muito, convivemos muito, 24 horas, ficávamos no mesmo apartamento, andávamos, ensaiávamos, tocávamos, três, quatro dias, eu não me cansava nunca dele [emocionado]. Fizemos muitos shows juntos, viajamos o Brasil inteiro. Hoje eu conheço muita gente fora por causa de Vieira, por ter ido acompanhando, ele me deu essa visibilidade, me botou em outro patamar. Eu tenho aproximadamente 50 MDs [minidiscs] de Vieira, isso vai dar mais de 80 horas de Vieira cantando, falando, conversando. Às vezes a gente sentava, ele falava: “tu já vai ligar tua besteira?”. Era uma figura!

Personagem de si mesmo, Mutarelli volta aos quadrinhos em novo romance

Quadrinista tornado escritor, Lourenço Mutarelli entrou para a história: foi o primeiro escritor brasileiro a protagonizar a adaptação de um livro seu para o cinema, O natimorto [DBA, 2004; Companhia das Letras, 2009], após uma ponta em O cheiro do ralo, também adaptação de um sucesso literário seu.

O Grifo de Abdera. Capa. Reprodução
O Grifo de Abdera. Capa. Reprodução

Em O Grifo de Abdera [Companhia das Letras, 2015, 264 p.; leia um trecho], Mutarelli realiza um interessante exercício literário ao brincar com várias faces de si mesmo. É um jogo de trocadilhos, desde a composição dos nomes dos personagens, anagramas que ganham vidas e histórias, de dar à vida aspectos de ficção, e de revelar segredos por trás dos bastidores do ofício de escritor – ou do quadrinista, muito mais trabalhoso e menos reconhecido, embora ambos, de algum modo, glamurizados.

Mutarelli tira onda até mesmo com sua fórmula de escrever romances: os protagonistas são sempre homens mais ou menos em sua faixa etária, levando vidas mais ou menos comuns, até um acontecimento surpreendente e uma guinada, confessa.

Suas obras, entre as realmente lançadas e fictícias, estão lá citadas. Amigos escritores, de verdade e inventados, tornam-se personagens: Paulo Lins, Marcelino Freire, Marçal Aquino, Ferréz, além de Raimundo Maria Silva, Oliver Mulato e Mauro Tule Cornelli, que “assinam” O Grifo de Abdera com Mutarelli, este último seu anagrama. Um deles é quem figura nas fotos de orelha e viagens do autor a eventos literários, dentro e fora do Brasil.

O livro é a história de um duplo, fabricado a partir da chegada, às mãos de um dos protagonistas, da moeda que dá título à obra. As obsessões continuam perseguindo o autor, entre citações – entre outros, William S. Burroughs e Kurt Vonnegut, que já tiveram os nomes inscritos noutras obras de Mutarelli –, diálogos ligeiros e certeiros, exigindo e prendendo a atenção do leitor, a vasta pesquisa – um personagem acometido de síndrome de Tourette repete frases grosseiras e, portanto, inoportunas em espanhol digitadas pelo duplo no tradutor do Google – e o entrecruzar de diversos enredos paralelos, a vidinha nada besta de professores, escritores e biscateiros.

É recorrente também a ideia de Mutarelli, personagem, retomar os quadrinhos. Dividido em três partes – O livro do fantasma, O livro do duplo e O livro do livroO Grifo de Abdera é um presente aos fãs que o acompanham desde Transubstanciação [1991] e/ou aos recém-chegados. Após cinco anos do último romance – Nada me faltará [2010] – quatro do último álbum – Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente [2011] – e três do volume único que reuniu a trilogia do detetive Diomedes [2012], o múltiplo Mutarelli mescla romance e quadrinhos (as 80 páginas centrais do livro) em uma obra que, além de agradar a leitores antigos e mais novos, certamente aumentará seu fã-clube. A pergunta, talvez óbvia, que não lhes calará é: quando O Grifo de Abdera será adaptado ao cinema?

Pra despertar roqueirinhos

Rock para pequenos, v. 3. Capa. Reprodução
Rock para pequenos, v. 3. Capa. Reprodução

Laura D. Macoriello é assessora de imprensa da Edições Ideal, por onde publicou os três volumes de Rock para pequenos – Um livro ilustrado para futuros roqueiros, além de Cinema para pequenos – Um livro ilustrado para futuros cinéfilos [Edições Ideal, 2013, 52 p.]. Os dois primeiros volumes de Rock para pequenos, dedicados aos gringos, microperfilou Angus Young, B-52, Beatles, Chuck Berry, David Bowie, Elvis Presley, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Kiss, Ozzy Osbourne, Ramones, Rolling Stones e Steve Harris (no primeiro volume) e Axl Rose, Bjork, Bono Vox, Bruce Dickinson, Chrissie Hynde, Dave Grohl, Dick Dale, Freddie Mercury, Green Day, Jeff Hanneman, Jerry Lee Lewis, Jim Morrison, John Lennon, Lemmy Kilmister, Metallica, Morrissey, Nina Hagen, Robert Smith, Sex Pistols e Van Halen (no segundo).

O recém-lançado terceiro volume [Edições Ideal, 2015, 44 p.; leia um trecho] é dedicado a nomes do rock nacional: Capital Inicial, Cazuza, Erasmo Carlos, Inocentes, Ira!, Kid Vinil, Legião Urbana, Mamonas Assassinas, Os Paralamas do Sucesso, Pitty, Raul Seixas, Rita Lee, Ronnie Von, Secos & Molhados, Supla, Titãs e Ultraje a Rigor.

Os livros são ilustrados por Lucas Dutra e trazem microperfis dos artistas e, espécie de narrativa fabular, algo como uma moral da história, linkando as vidas e obras a valores cotidianos que devem ser ensinados aos “futuros roqueiros”, como indica o subtítulo da trilogia – até aqui; indagada sobre um possível quarto volume, a autora disse não saber responder ainda.

A assessora/escritora conta que “a ideia surgiu do meu cotidiano com minha filha Olívia, 5, que na época do primeiro livro estava com três anos. Peguei situações que eu vivia com ela para dar as “lições” e achei legal dar uma breve explicação sobre os astros”.

A “lição de moral” do microperfil que abre o terceiro volume, dedicado a Cazuza, é “ser filho único é muito legal, podemos escolher nossos irmãos-amigos”. Encaro o livro como uma boa porta de entrada para as crianças ao universo do rock, especificamente o brasileiro, no caso deste terceiro volume. Pergunto-lhe se este papel deveria, em alguma medida, ser também das rádios e tevês. “Talvez. Acho que de alguma forma os próprios pais que gostam do estilo podem tentar introduzir isso desde cedo nos pequenos”, aponta. “Acho que a opção deve ser dada. Não teremos controle sobre eles [os filhos] para sempre, caso eles gostem de outra coisa mesmo conhecendo o rock, acho que o certo é respeitar”, continua.

Laura D. Macoriello se define como alguém que “gosta mais de Smiths do que de lasanha”. Indagada sobre a maior loucura que já cometeu por um ídolo, responde sorrindo: “Nossa! Nenhuma! Até porque acho que em se tratando de um ídolo, nada é considerado loucura, concorda? [risos]”.

Ao fim do volume, uma discografia básica aponta os principais discos dos artistas, para pais e filhos ouvirem juntos. A autora poupa a petizada de eventuais detalhes trágicos da vida e carreira dos microbiografados. É um livro sobre rock, mas sem sexo, drogas e mortes trágicas.

Bem-vind@s ao século XXY!

Começa hoje no Cine Praia Grande a II Mostra de Cinema Trans; veja programação completa e leia entrevista exclusiva com a ativista transfeminista Hailey Kaas

XXY. Capa. Reprodução

 

A literatura e o cinema argentinos não poupam suas personagens. Tudo é cru, quase cruel – mas antes de tudo, verdadeiro. Em XXY [2007, Argentina/França/Espanha, drama, 90 min., direção: Lucia Puenzo], Alex enfrenta o drama de ter nascido com características de ambos os sexos e a consequente – pois naturalizada, infelizmente – vontade de parte da sociedade e de sua própria família mudá-la/o – e grafo ambos os gêneros para falar da escolha que ela/e (não necessariamente) terá que fazer, sem querer soar spoiler.

O cinema argentino não poupa sequer a própria Argentina: os pais de Alex (Inês Efron), de 15 anos, mudam-se para o Uruguai tentando fugir da arrogância de gente que acha que sabe de tudo – como dizem as personagens –, para os quais a/o menina/o seria uma aberração que deve ser corrigida a qualquer custo. Caso do cirurgião Ramiro (Germán Palacios), durante cuja visita à família se desenrola este comovente drama.

Durante a visita, Alex e Alvaro (Martín Piroyansky), 16, este, filho do cirurgião, sentem-se ambiguamente atraídos. São momentos de descobertas e revelações cruas e, talvez por isso mesmo, poéticas. O pai de Alex, o biólogo Kraken, interpretado por Ricardo Darin, merecidamente um dos melhores e mais conhecidos atores argentinos em todos os tempos, até então desconhecia as reais intenções de seus visitantes, chegados a convite de sua esposa (Suli, interpretada por Valeria Bertuccelli), o que tornará mais forte a ligação entre pai e filha/o, na altura em que a vida lhes dá novas lentes para enxergar o que é “normal”.

O filme é baseado em um conto de Sergio Bizzio, que assina o roteiro com a diretora, filha de Luis Puenzo, cujo A história oficial, de 1985, foi o primeiro filme latino-americano a ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro – curiosamente, o segundo (e são os únicos até aqui) seria o também argentino O segredo de seus olhos (2010), de Juan José Campanella.

XXY integra a programação da II Mostra de Cinema Trans, organizada pelo Fórum de Mulheres Maranhenses, que será aberta hoje (22), às 19h, no Cine Praia Grande (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, Praia Grande). Os ingressos, a preços promocionais, custam R$ 5,00, à venda no local, e a atividade integra o mês da Campanha Internacional pela Despatologização das Pessoas Trans. A programação acontece até sábado (24, veja completa ao final do post).

O blogue conversou com exclusividade com a ativista transfeminista Hailey Kaas. Após a sessão inaugural da mostra, ela participa de debate com a ativista trans Andressa Sheron. Além da exibição do filme Teste da vida real, a noite contará ainda com performance de Andrezza Maranhão.

Hailey Kaas, que também é tradutora, está em São Luís desde a tarde de ontem (22), quando participou de reunião do Fórum Maranhense de Mulheres. Indaguei-lhe o porquê de ela sempre grafar um asterisco após usar a palavra trans e tive este link recomendado. Leia a conversa.

A ativista trans Hailey Kaas, em foto de seu perfil no facebook
A ativista trans Hailey Kaas, em foto de seu perfil no facebook

 

ENTREVISTA: HAYLEY KAAS

O que é transfeminismo?
Resumidamente, transfeminismo é uma corrente feminista orientada para as questões das pessoas trans*. Ele nasce da necessidade das pessoas trans* para se organizar em torno de pautas feministas, assim como para demandar inclusão e participação e no feminismo mainstream que historicamente só representou e representa um único tipo de mulher considerado universal, a mulher branca, heterossexual, magro, de classe média, cisgênera. Percebemos que havia necessidade de nos organizarmos em uma corrente separada que desse conta de discutir nossas questões específicas ao mesmo tempo que seríamos aliadas das pautas hegemônicas do feminismo, que, inclusive, ressoam muito com as nossas próprias, como direito ao próprio corpo, igualdade de gênero, combate ao machismo e ao binarismo de gênero etc.

O conceito é recente e você uma das primeiras teóricas do assunto. Isso torna tudo mais difícil?
É difícil na medida em que você se vê sozinha lutando contra uma grande resistência dentro e fora da academia e dos espaços militantes que acreditam que o transfeminismo é desnecessário ou separatista. Além disso, é sempre mais difícil falar de algo que ninguém nunca ouviu falar e que consequentemente não consegue perceber ou entender como necessário.

O que é mais difícil: lutar contra o machismo generalizado ou contra a transfobia partindo de feministas?
Eu poderia dizer que é igualmente difícil lutar contra o machismo dentro da esquerda, por exemplo. Temos uma tendência a pensar os movimentos sociais e a esquerda como isentas de homofobia, bifobia, lesbofobia, transfobia, machismo, racismo etc., quando na realidade, como parte da sociedade, também somos influenciados ideologicamente para todos esses comportamentos e pensamentos preconceituosos. Parte da esquerda se acha eticamente infalível e impassível de reproduzir preconceitos. O mesmo vale para certos setores do feminismo que são não somente transfóbicos, mas também racistas, homofóbicos, bifóbicos, lesbofóbicos etc. O problema está em não discutirmos isso achando que o “inimigo” está só “lá fora”, na bancada evangélica, por exemplo. Na realidade, quando discutimos e problematizamos esse tipo de coisa na esquerda só temos a ganhar e a aperfeiçoar a forma como militamos e como compreendemos os outros. Por outro lado, estar em espaços teoricamente seguros e da militância onde eu sei que serei hostilizada simplesmente por ser trans* por algumas feministas é de fato bastante desempoderador.

Em que medida o “cross-dressing” da cartunista Laerte contribui com a luta trans no Brasil? O que você acha da postura dela?
Acho que Laerte não pode ser regra e nem exemplo, afinal ela parte de uma posição que de longe não é o padrão da população trans*: branca e classe média. Por outro lado, sempre ganhamos quando temos representações de pessoas trans* que são mais críticas em relação às questões de gênero na mídia. Laerte tem mais bagagem feminista e de gênero porque também tem fortalecimento e estrutura econômica para tal. Isso não é errado ou uma crítica, apenas uma constatação de que a situação corrente das pessoas trans* é bem diferente da de Laerte.

O escritor João Paulo Cuenca em artigo na Folha de S. Paulo defende o “outing” de usuários de drogas e compara: “Ativistas costumam justificar a evasão da privacidade alheia por combater a hipocrisia num mundo onde gays são alvo de preconceito e violência”. Na sua opinião, pessoas famosas, sobretudo artistas e políticos, declarando publicamente sua orientação sexual ajudaria a combater o preconceito? Você concorda com o escritor neste aspecto?
Acho representatividade importante. Para as minorias marginalizadas é muito fortalecedor ver que existem pessoas como você lá fora, ganhando a vida sem estar nos empregos precarizados que a sociedade nos reserva. Por outro lado, representatividade não deve e nem pode ser o objetivo da militância, afinal temos uma presidenta e pouco se avançou nas questões feministas nesses últimos anos; ao contrário, há enormes retrocessos com a anuência do governo, inclusive.

A Lei Maria da Penha é um avanço na proteção à mulher, mas muitas vezes, mulheres sequer conseguem registrar queixas em delegacias, por conta do péssimo atendimento e da revitimização – em casos de estupro, por exemplo, é comum, infelizmente, a culpabilização da vítima. Em que medida essa legislação específica é importante no combate à transfobia e ao feminicídio?
As legislações são importantes, a meu ver, mais ou menos como a questão da representatividade: são importantes como marcos, como elemento de fortalecimento, de reconhecimento, mas são inócuas sem uma estrutura por trás e sem trabalho de base nas escolas e nos espaços de formação dos sujeitos. O machismo não é uma doença que acomete o sujeito, mas sim um projeto social ensinado às pessoas em todos os espaços de convivência e de formação.

Qual a sua opinião sobre a recente fusão dos ministérios de Direitos Humanos, Igualdade Racial e Mulheres em uma única pasta no âmbito do governo federal?
Sem dúvida alguma um retrocesso, fruto de um governo traidor de classe que governa com o capital. Os bancos continuam lucrando com recordes trimestrais e, no entanto, as medidas que atacam os trabalhadores e a austeridade vieram com força no primeiro ano do governo que havia prometido exatamente o contrário. Acredito que isso só vem provar que, de fato, não se pode ter um governo conciliador de classes porque no fim somente a classe dominante rica é privilegiada. Sou socialista e bastante crítica ao atual governo Dilma e aos movimentos que a defendem. Não podemos continuar a defender uma militância LGBT, feminista, antirracista ou o que quer que seja, senão por uma perspectiva socialista, uma vez que, dentro do capitalismo, estaramos sempre sujeitos a sermos “rifados” em prol do “bem maior”: o capital e seus mantenedores.

Outubro é o mês da Campanha Internacional pela Despatologização das Pessoas Trans. Em que consiste a campanha? Poderia falar um pouco sobre ela?
A campanha existe faz alguns anos e veio para divulgar o assunto e combater a patologização das identidades trans* materializada principalmente pela revisão do DSM que estava prevista para 2012. O DSM é um documento da Associação de Psiquiatria Americana (APA), que classifica e patologiza os comportamentos, incluindo a transexualidade. Esse documento tem uma força regulatória quase sempre soberana sobre as políticas de atendimento à saúde de pessoas trans*.

Você participa da Mostra de Cinema Trans em São Luís. Após a sessão de abertura, com a exibição de Teste da Vida Real, você debate o filme. Poderia falar um pouco sobre ele?
O filme é muito importante para ilustrar o impacto da patologização sobre nossas vidas. Ele traz uma abordagem bastante empírica de como os estereótipos trans* e o estigma que recaem sobre nós atrapalham nossas vidas, nos desumanizam e previnem nosso acesso aos espaços e principalmente ao sistema de saúde. Também mostra como os profissionais psi desconhecem completamente a questão da transexualidade e se guiam por estereótipos pré-estabelecidos sobre o que é ser homem ou mulher socialmente.

Programação

Hoje (22)
19h: Exibição do documentário Teste da vida real, de Florencia P. Marano | Performance de Andrezza Maranhão | Debate com Hailey Kaas (ativista e teórica transfeminista) e Andressa Sheron (ativista trans)

Sexta (23)

9h: Minha vida em cor de rosa (exibição para alunos de escolas públicas), de Alain Berliner
14h: Minha vida em cor de rosa

18h30: XXY, de Lucia Puenzo

20h: Hedwig – rock, amor e traição, de John Cameron Mitchell

Sábado (24)

18h30: Meninos não choram, de Kimberly Peirce

20h: Para Wong Foo, obrigada por tudo! Julie Newmar, de Beeban Kidron

Para que serve a UFMA?

FLÁVIO SOARES*

O professor Flávio Soares durante o encontro "Pensando na fronteira: leituras cruzadas de Ribamar Caldeira". Foto: ZR (17/6/2013)
O professor Flávio Soares durante o encontro Pensando na fronteira: leituras cruzadas de Ribamar Caldeira. Foto: ZR (17/6/2013)

 

“A crítica é a morte do rei”
(R. Koselleck, Crítica e Crise)

“A quem serve a UFMA?” poderia ser indagação mais precisa para título desse texto, nascido numa situação difícil de urgência pessoal.

Mas um infortúnio individual, sobretudo no trabalho, pode revelar ou confirmar aspectos mais amplos da pobreza e cegueira institucional onde se vive.

Às vezes, talvez, seja preciso sofrer o trauma no corpo e vivenciar o absurdo em série para perceber a presença fria dessa besta – em forma de incompreensão e miséria – na Universidade Federal do Maranhão.

Uma coisa é falar da “crise” em sala de aula ou livro; outra é sentir no osso sua crueldade numa UPA do Bacanga, nos corredores velhos de um hospital ou nos labirintos administrativos da sua própria universidade, em São Luís.

Por isso, o acidente também pode abrir brechas para reforçar questionamentos e reagir.

Até se precisar do ambulatório “HUzinho” pode se supor que ali seja uma “unidade de atenção à saúde do estudante e do servidor”. Não está escrito na placa? Até se ir à unidade Presidente Dutra do Hospital Universitário é capaz de se permanecer na incerteza ou ilusão quanto à existência por lá de um centro de referência qualificado. Não se ouve falar assim?

Existem sempre exceções admiráveis, mas absurdos e desacertos são normalidades no estado de emergência.

Aparecem de várias maneiras: na cena do velho cadeirante, dentro do hospital, apressado para ir ao banheiro, mas preso na porta porque a largura desta não lhe deixa entrar; na daquele senhor tentando marcar, sem êxito e há meses, simples consulta de poucos minutos; em outro necessitando e não conseguindo fazer cirurgia reparadora que já devia ter ocorrida há muito tempo; na imagem do rapaz humilde e trabalhador sofrendo num leito à espera da imediata ressonância que nunca acontece porque a máquina está quebrada; nos desencontros (propositais?) entre a direção e suas próprias decisões ou “bilhetes de recomendação”; nas imperícias da perícia; no médico – coronel do sistema – a atender apenas durante uma hora a cada semana.

Ao expor o domínio de práticas arcaicas e a exclusão do incluído, o acidente desvela a propaganda da “inovação e inclusão” pelo seu lado triste de horror e farsa.

Vozes solícitas surgem na urgência para lembrar a força de um “pedido do Reitor”, fazendo sentir o círculo do medo e da servidão voluntária que move as hierarquias em torno da Reitoria. O sinal transmitido é que o Reitor não é lugar do direito e sim do pedido; é mais negócio, portanto, cortejar o poder e seus favores.

Conclusão imediata: não há inteligência substantiva nem independência possíveis dessa forma.

*

Um parêntese sobre a questão da expansão da UFMA.

O problema nunca foi o seu crescimento em si, que mais ou menos sempre houve.

Com 30 anos nesta universidade (como aluno e professor) somos testemunha de que ela sempre cresceu, mesmo nos tempos difíceis do governo FHC, na década de 1990.

Não foram nestes anos a construção do atual CCH?

No período Lula, na última década, qualquer um pôde perceber o crescimento da UFMA, nas suas estruturas físicas e atividades básicas.

Difícil foi observar que essa expansão teve mais a ver com uma conjuntura de “falsa euforia” nacional – quando universidades federais cresceram no país inteiro – do que com méritos e virtudes de qualquer gestão competente e suas figuras iluminadas. Isto poderia até ser o caso se o aporte de recursos oriundos da adesão a programas federais emergenciais, como o REUNI, fosse canalizado para uma virada de página no destino da universidade, e não para a reiteração de um modelo superado (cf. Flávio Reis).

O problema, portanto, sempre foi o da natureza da expansão: autoritária, precária, desorganizada e de qualidade duvidosa.

*

É incrível, mas se partirmos do pressuposto de que deveria haver um mínimo de correspondência entre as situações da universidade e do estado, a observação imediata é de que quanto mais a universidade federal ampliou seu espaço físico e aparato técnico-administrativo e atividades de ensino, pesquisa e extensão, mais os índices sociais do estado foram para baixo.

Pois há décadas essa universidade diploma educadores, médicos, advogados, engenheiros, administradores, etc., e há décadas são sempre piores os índices estaduais da saúde, justiça, infraestrutura, serviços públicos, educação.

Há anos desenvolve programa de pós-graduação em políticas públicas, por exemplo, mas alguém se lembra de alguma política “pública” oriunda da UFMA – tocada mesma numa simples prefeitura?

Não é possível que só a UFMA melhore e o Maranhão não.

*

A emergência reitera a miséria e alienação universitárias.

Revolve a ferida de uma existência submissa, sem autonomia e, assim, sem movimento e pensamento próprios.

Certifica um fato: a Universidade Federal do Maranhão, principal lugar do ensino superior no estado, é incapaz de se pensar e, assim, olhar o Maranhão e o país.

Lembro José Ribamar Caldeira como exemplo significativo de um mestre inquieto com as dificuldades para a vida do pensamento, da crítica sem amarras e da inovação real, e pergunto: a professora Maria de Lourdes, da mesma geração, poderia escrever São Luís do Maranhão: corpo e alma (2012) dentro da cidade universitária?

*

No campo das ciências humanas, nas últimas décadas, apenas três estudos conseguiram fecundar alguma coisa para além de si, quebrando o círculo negativo da inveja e do silêncio. A Ideologia da Decadência, de Alfredo Wagner, esforço de repensar a tradição dos antigos estudos maranhenses, elaborado fora da UFMA, inspirador de várias pesquisas, inclusive na universidade; Grupos políticos e estrutura oligárquica no Maranhão, dissertação de mestrado de Flávio Reis feita pela Unicamp reavaliando a formação política do estado, cujo impacto, além de acadêmico, foi político (“oligarquia” virou mantra na guerra político-partidária); A fundação francesa de São Luís e seus mitos, elaborado pela professora Lourdes Lacroix quando aposentada da UFMA, questionando a construção da memória histórica da cidade e ferindo a fundo os nervos do sistema intelectual local. Academia Maranhense de Letras, Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão e Sistema Mirante que o digam.

Tais obras fizeram figura de exceção especialmente quanto à amplitude do impacto interno gerado.

Outros livros, pela qualidade, poderiam ter tido efeito semelhante, mas não tiveram e não sabemos exatamente por que.

Apesar da divulgação, das festas de lançamento, do tamanho, dos prêmios e honrarias, não produziram discussão pública alguma. E nem adiantou apadrinhá-los com nomes de fora ou de dentro mais conhecidos, injetar valor antecipado pela invenção curricular de autoridade, copiar sem pejo as obras citadas invertendo os sinais, ou se fazer aparecer em algum periódico ou programa televisivo nacional (ou, agora, apelar pra rede “social”.). No máximo são discutidos entre pares e compadres; ou em situações de orientação de pesquisa e ensino, quando o orientador ou professor-doutor pressiona o aluno a ler suas obras ou então o próprio autor busca se promover, falando de si, pondo-se na bibliografia da sua disciplina e coisas do tipo.

20 anos de acúmulo de profissionalização, pós-graduação, grupos de pesquisas, etc., não foi bastante para fazer sair do Centro de Ciências Humanas sequer um estudo que se aproximasse (atualizando criticamente), por exemplo, da História do Comércio do Maranhão, não o título de uma coletânea, mas de um clássico local, escrito por Jerônimo de Viveiros na década de 1950; ou O Sertão, de Carlota Carvalho, escrito em condições mais difíceis ainda.

Mencionando tais obras queremos dizer o seguinte. Pode se concordar ou não sobre livros como História do Maranhão, de Mário Meireles, inclusive quanto ao seu baixo teor crítico, mas toda sua produção historiográfica foi representativa, a seu jeito, de uma ordem maior de problemas e ideias acerca da sua realidade.

Desgraçadamente, o Maranhão nunca foi prolífico em obras como estas (no sentido indicado da representatividade de uma ordem maior de problemas), que, no entanto, praticamente desapareceram desde que a UFMA surgiu, na aurora do regime militar e do Maranhão Novo (para não esquecer a hora macabra em que ela nasceu).

O ganho, quando há, é quase sempre quantitativo, apesar da estratégia midiática do poder universitário de vender gato por lebre – como se, por exemplo, a publicação de “x” artigos na revista “y” significasse em si avanço real do saber.

A questão, porém, está longe de ser simplesmente numérica. Se fosse já teria sido equacionada. Comparar, não a quantidade, mas a qualidade da produção anterior do conhecimento (reconhecida como tradição) à da universidade é brincadeira.

Fora qualquer juízo, a produção dos “antigos” inventou o Maranhão conhecido. A dos “novos”, especializada e técnica, consegue apenas ser miseravelmente medíocre.

É triste, mas perto de fazer 50 anos a Universidade Federal do Maranhão não vale uma frase do velho João Lisboa.

Fábrica de espíritos pequenos, servis e vaidosos, a universidade jamais reconhecerá isso.

A UFMA nunca foi fonte de qualquer campanha e debate realmente engrandecedor, formador da opinião pública no estado, em qualquer área (saúde, tecnologia, educação, etc.).

Poderia ter desempenhado papel direcionador em questões como a do desenvolvimento regional, da educação, do meio ambiente, da violência, ou até mesmo na elaboração de um ponto de vista original sobre o Brasil, mas isso nunca aconteceu.

*

É que o modo como na prática ela funciona é algo muito distante da vontade coletiva de superação dos problemas de sua trágica realidade por meio das artes, ciências e tecnologias.

Presa entre imitação pobre de modelos teóricos estrangeiros e idiossincrasias locais, a UFMA nunca passou duma aberração burocrática “colonizada”, dependente, cada vez mais reduzida à meio de transformar verbas federais em giro eterno dos recursos num balcão de negócios e troca de favores de todo tipo.

A combinação de burocratismo e orçamento não explica tudo, mas, em grande parte, ajuda a entender a situação.

Onde impera o toma-lá-dá-cá como estilo de gestão, aliado ao espírito do negócio, não há possibilidade para a vida do pensamento, da criação e da crítica.

*

Talvez as bases sociais e propósitos da UFMA possam ser realçados se pensarmos na história da principal universidade do país.

Todos sabem que no século XX, a partir da década de 1930, em São Paulo chegou a se criar uma verdadeira universidade – a USP – e um centro de ciência humanas (FFCL) que mudou o padrão nacional do conhecimento. Fruto da combinação entre influência estrangeira, sentido de engajamento social e tradição local viva (Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e outros), formou-se nova massa crítica, num contexto de transformações sociais profundas daquela região do país (cf. Antônio Candido, O mundo coberto de moços). Tal processo resultou numa instituição de saber efetiva, que fez escola no Brasil, embora hoje se assemelhe mais a uma organização empresarial (cf. Paulo Arantes).

Longe de ser fruto de uma história de superação crítica, onde se retoma, repensa e atualiza a herança cultural e intelectual recebida, a UFMA foi produto de um tipo de “renovação” baseada na justaposição de faculdades com histórias distintas, espécie de agregação de alhos e bugalhos, dada em consonância com a corrente política-ideológica estabelecida com o Golpe de 1964, fundamento de um organismo hoje cada vez mais indeterminado, caótico.

Por quê?

Porque a UFMA, na sua constituição, nunca deixou de ser fiel a velha conjunção entre igreja e sua teologia reacionária, estado oligárquico e sua burocracia patrimonialista, e tradição mental conservadora arraigada, bacharelesca, avessa ao espírito crítico; conjunção fortalecida, agora mais como simulacro de representação, com o progresso-catastrófico de uma sociedade senhorial e bárbara na etapa final do nacional-desenvolvimentismo brasileiro.

Medicina, direito e letras indicam bem a sua natureza.

Na área de humanas (principalmente nos departamentos de economia e sociologia), numa atmosfera de direita, surgiram reflexões de esquerda, sobretudo marxistas, mas frágeis, confusas, pouco criativas e sem expressão política dentro da universidade.

Até hoje é comum, no centro de ciências humanas, o fenômeno esquizofrênico dos professores bifrontes, vários oriundos das classes baixas, oscilando entre o público e o privado, entre a lei e a malandragem, entre discursos de esquerda em sala de aula e projetos de pesquisa para alunos, e a prática político-administrativa diária de direita para a reitoria da vez.

O atual governador – ex-aluno e professor de direito da UFMA -, fruto da queda do sarneismo e das lutas entre facções, talvez seja exemplo sugestivo de que não haverá o que esperar ou temer da parte dessa universidade, gestada dentro do mundo daquela oligarquia, quanto a qualquer capacidade de aproveitamento do momento para ajudar o Maranhão a se perceber e superar criticamente seus dilemas seculares.

Apresentando-se sob a graça de deus como expoente do primeiro governo comunista do Brasil, almeja chegar à terra prometida do “Maranhão de todos” através da fundação da república, da “revolução burguesa” e do capitalismo. Indicando a amplitude geral do atual pântano mental, onde tudo é possível, tal projeto-zumbi – repita-se: a criação divino-comunista de uma república burguesa capitalista no Maranhão – foi defendido a sério em jornais da província e do sudeste, sem provocar espanto algum. Nem lá e nem cá.

Se a construção de uma capacidade crítica própria tivesse vingado no Campus da UFMA – salvo ilusão retrospectiva, possibilidade talvez existente na virada da década de 1970 para a de 1980 -, não há dúvida de que a ideia de Maranhão hoje poderia não ser a mesma e os seus desdobramentos nas artes, ciências e na política seriam outros.

A palavra “crítica”, aliás, é impossível de ser compreendida nesse ambiente. Como se gosta de dizer, crítica só “construtiva”, o resto é “falar mal”.

Mas, quem sabe, ela não esteja se refazendo agora em outros lugares?

*Flávio Soares é professor do departamento de História da UFMA

[texto roubado do perfil do professor no facebook, onde o mesmo é anunciado como “ruminado e escrito no primeiro semestre de 2015, num momento pessoalmente muito difícil, mas que queríamos transformar numa forma de reflexão mais ampla, forma de registro e de luta. Saiu como um desabafo depois esquecido. Um amigo do facebook lembrou que hoje é aniversário da UFMA, dando um click”]

Um gesto grandioso

Dom Valdeci (C), o "bispo quilombola", em seu nobilíssimo gesto. Fotosca: Zema Ribeiro
Dom Valdeci (C), o “bispo quilombola”, em seu nobilíssimo gesto. Fotosca: Zema Ribeiro

 

Um dos momentos mais marcantes da 12ª. Romaria da Terra e das Águas do Maranhão, em Chapadinha/MA, dias 17 e 18 de outubro, se deu quando Dom Valdeci, bispo diocesano de Brejo, virou um coreiro, tocando tambor de crioula durante a apresentação do Movimento Quilombola do Maranhão (Moquibom) – à esquerda na foto, Murilo Santos também capta o momento.

Contrariando o sábio padre Antonio Vieira, ainda atualíssimo em se tratando de Maranhão, aquele homem não fez aquilo por vaidade. Impera ali, em seu gesto de grande carga simbólica, o reconhecimento da Igreja Católica – e dos homens e mulheres que a fazem – como morada de Deus e dos homens e mulheres que são – ou deveriam ser – sua real razão de existir.

Dom Valdeci fez valer o lema do evento – “tire as sandálias! O lugar onde estás é chão sagrado” (Êx 3) – ao afirmar suas raízes quilombolas, numa noite/madrugada/manhã em que a autoridade episcopal e cada romeiro e romeira ali presentes foram também indígenas, ribeirinhos, quebradeiras de coco, trabalhadores e trabalhadoras rurais.

Seu gesto, nobilíssimo, dialoga diretamente com o ar progressista que a Igreja Católica começa a respirar sob o papado de Dom Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco.

O tema da Romaria, “território livre para o bem viver dos povos”, incorpora o grito dos mesmos e o rufar dos tambores, especialmente o tocado por um bispo negro, soma-se a este e a tantos gritos que há tempos não querem calar.

O coroataense José Valdeci Santos Mendes, 54, o “bispo quilombola”, ainda se aventurou depois, a acompanhar a cantora Lena Machado, em toadas clássicas do repertório do Maranhão, como Engenho de flores (Josias Sobrinho), Bela mocidade (Donato Alves) e Lua cheia (Godão e Bulcão), além de juntar-se ao coro de mais de 10 mil vozes que entoou Oração latina (Cesar Teixeira), hino autêntico do povo maranhense, sempre em busca de melhores dias.

Uma toada bastante conhecida no registro de Mestre Felipe sofreu alterações na letra, adaptada à realidade das comunidades quilombolas congregadas no Moquibom. O título, que é também seu refrão, traduziu o gestou de Dom Valdeci, que a seu modo nos dizia: “Maranhão sou eu!”. Amém!

Choro em dose dupla – ou quádrupla

[remix dum release já distribuído]

RicoChoro ComVida terá duas edições extras, na mesma noite, dentro da programação da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia no Maranhão. Apresentações de Chorando Callado, Regional Tira-Teima, Anna Cláudia e Luciana Simões são gratuitas e acontecem na Praça Maria Aragão

Apreciadores de boa música nunca estão satisfeitos com o dito popular “tudo o que é bom dura pouco”. Frequentadores assíduos de RicoChoro ComVida sempre reclamam: ou a festa mensal é curta; ou deveria ser semanal. Por outro lado, reconhecem a importância do projeto, nos moldes do saudoso Clube do Choro Recebe, então semanal, no Bar e Restaurante Chico Canhoto, com breves passagens pela Pousada Portas da Amazônia/ La Pizzeria, na Praia Grande, e Associação do Pessoal da Caixa (APCEF), no Calhau.

A este coro de mais ou menos descontentes, um motivo de alegria está agendado para a semana que se inicia: amanhã (20), às 20h, de graça, na Praça Maria Aragão, nada menos que dois shows – ou melhor, quatro – poderão ser presenciados, sob produção de Ricarte Almeida Santos, na programação da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia no Maranhão – que acontece entre os dias 19 a 25 de outubro –, evento promovido pela Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Inovação, pasta cujo titular é Bira do Pindaré (PSB).

A noite desta terça (20) terá nada menos que o retorno do Chorando Callado – um dos grupos surgidos por ocasião do Clube do Choro Recebe, celebrando 10 anos de estrada – e o Regional Tira-Teima, mais antigo grupamento de choro em atividade no Maranhão, prestes a lançar seu disco de estreia. Os grupos receberão, respectivamente, as cantoras Anna Cláudia – com disco novo pronto, a ser lançado em breve – e Luciana Simões (do duo Criolina), com repertório baseado em Dalva de Oliveira (1917-1972), Carmen Miranda (1909-1955) e Noel Rosa (1910-1937).

O Regional Chorando Callado – cujo nome homenageia Joaquim Antonio Silva Callado, considerado um dos pais do choro – é formado por Wendell Cosme (bandolim e cavaquinho), Wanderson Silva (percussão), João Eudes (violão sete cordas) e Lee Fan (flauta e saxofone). O Tira-Teima – batizado por um choro de Ubiratan Sousa, um de seus fundadores, ainda na década de 1970 – é atualmente integrado por Paulo Trabulsi (cavaquinho solo), Zeca do Cavaco (voz e cavaquinho centro), Luiz Jr. (violão sete cordas), Zé Carlos (voz e percussão), Serra de Almeida (flauta) e Henrique (percussão).

Wendell Cosme revela a alegria em participar do projeto: “Estamos felizes em participar do RicoChoro ComVida. A gente já estava conversando há algum tempo e, na verdade, nós estamos comemorando os 10 anos de Chorando Callado. Parece que o Ricarte adivinhou. Estamos com o projeto de um show e da gravação de um disco para festejar essa data. Será um grande prazer começar essa comemoração acompanhado a Anna Cláudia”, revelou.

Wanderson também revela empolgação em participar do projeto e admiração por Anna Cláudia: “Nós estamos todos felizes com o convite, [Anna Cláudia] é uma cantora que tem um perfil que se encaixa com o Chorando Callado, bem alegre, extrovertida e profissional, assim como nossa maneira de fazer música”, declarou.

O violonista João Eudes reforça a importância das amizades para a consolidação do grupo: “É uma sensação prazerosa, esta reunião é uma relação de amizades concretas e sinceras que só o tempo constrói. Acompanhar Anna Cláudia é uma emoção: além de uma grande amiga, sua voz e afinação são impecáveis”, elogiou.

A cantora Anna Cláudia durante canja em edição do projeto RicoChoro ComVida. Foto: Rivanio Almeida Santos
A cantora Anna Cláudia durante canja em edição do projeto RicoChoro ComVida. Foto: Rivanio Almeida Santos

 

A paraense, há muito radicada no Maranhão, por seu lado, devolve o entusiasmo e antecipa um pouco do que será sua apresentação: “Participar desse projeto é uma honra. O repertório é todo formado por músicas de compositores maranhenses”, contou, antecipando nomes como Djalma Chaves, Gerude, Nosly, Ronald Pinheiro e Zeca Baleiro entre os autores que gravou em Bons ventos, segundo disco de sua carreira, cujo lançamento oficial arquiteta para breve.

O violonista Luiz Jr. já vinha há algum tempo substituindo Francisco Solano [violão sete cordas] em apresentações do Regional Tira-Teima no Hotel Brisamar [em cujo terraço o grupo toca às sextas-feiras] e em outros projetos do grupo. “Pra mim é uma honra, um prazer, integrar um grupo que conheço desde a época em que eu frequentava a roda de choro no Monte Castelo, Bateau Mouche [apelido do bar que abrigava o encontro]. Eu era criança, estava começando, mal tocava violão, na verdade eu não tocava nada, e já acompanhava esse grupo desde aquela época, com a presença de Zé Hemetério e grandes chorões de São Luís e do estado do Maranhão”, lembrou.

“Isso [sua presença efetiva no grupo] vai reforçar mais minha afirmação em relação ao [violão] sete cordas, meu estudo do sete cordas, diariamente ensaiando com Paulo [Trabulsi, cavaquinista do grupo]. Esse grupo é referência em relação ao choro, não só no estado, mas no Brasil, pelo trabalho de pesquisa em relação aos autores maranhenses, está com novos projetos, disco que está vindo, preparando uma turnê para tocar em outros estados, esse grupo vai chamar muita atenção país afora e espero que cresça muito mais”, adiantou.

Sobre a participação na edição extra de RicoChoro ComVida, garantiu: “esse show vai ser interessante, com a Luciana Simões, grande intérprete da música brasileira, já reconhecida em São Paulo e outros eixos. Pra gente vai ser muito interessante, contemplando o ambiente muito agradável da Praça Maria Aragão, aquela beleza de visual da ponte, da lua, de Gonçalves Dias, que é outra fonte de inspiração. Quem for vai gostar muito. A alegria e a felicidade são maiores ainda em saber que o projeto RicoChoro ComVida, tão necessário, está se expandindo”.

A cantora Luciana Simões. Foto: Renan Perobelli
A cantora Luciana Simões. Foto: Renan Perobelli

 

Luciana Simões, que também cantará nomes como Lupicínio Rodrigues (1914-1974), Humberto Teixeira (1915-1979), Lopes Bogéa (1926-2004) e Cesária Évora (1941-2011), ressalta a importância do projeto e a honra em participar desta edição: “fiquei muito feliz com o convite. Sinto-me honrada em fazer parte deste projeto único, de extrema importância para a cidade, tanto para o público apreciar essa música preciosa que é o chorinho, quanto para o músico tocar esse repertório e incentivar outros projetos que já existem, como é o caso do próprio Tira-Teima”, afirmou.

E reafirmou: “para mim é uma honra ser acompanhada por estes músicos, por quem tenho o máximo respeito. Ao ser convidada fui logo reouvir umas músicas de que gosto muito, nas grandes vozes da era de ouro do rádio”. Luciana anunciou ainda a participação especial do marido, Alê Muniz, durante sua apresentação: “ele canta uma ou duas comigo”, antecipou.

Para o produtor Ricarte Almeida Santos “a importância da presença do projeto RicoChoro ComVida, com essas atrações e encontros de artistas de linguagens diversas, na Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, se dá pela compreensão de que a prática da arte, da música, é uma importante dimensão da produção de saberes e técnicas distintas e, portanto,  de trocas de informações, de influências e de culturas. Portanto espaço da produção de novos conhecimentos e de reinvenção das identidades”, declarou.

Serviço

O quê: edição especial de RicoChoro ComVida
Quem: Regionais Chorando Callado e Tira-Teima, Anna Cláudia e Luciana Simões
Quando: dia 20 de outubro (terça-feira), às 20h, na programação cultural da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia no Maranhão
Onde: Praça Maria Aragão (Centro)
Quanto: grátis

Jornalismo, música e quadrinhos

Malcolm. Capa. Reprodução
Malcolm. Capa. Reprodução

Em 1995 Malcolm McLaren (1946-2010) visitou os estúdios da MTV Brasil. Pego de surpresa, o escalado para entrevistá-lo foi Fábio Massari, o Reverendo, profundo conhecedor de cultura pop. Apenas cerca de 15 minutos da entrevista de quase uma hora foi ao ar e o material bruto (em VHS) continuava apenas no acervo pessoal do radialista – e no da emissora, ele descobriria depois, contrariando a expectativa de destruição na qual ele próprio acreditava.

Mesmo no susto, Massari cumpriu bem seu papel e certamente seria um dos poucos brasileiros a fazê-lo, como atesta André Barcinski no posfácio. Por anos, guardou também uma cópia da transcrição da conversa, recheada, e não poderia ser diferente, de citações – sobretudo de música, moda e política – do universo ao redor dos Sex Pistols, a maior invenção do entrevistado.

Quase duas décadas depois, após um desejo acalentado por anos, Massari e o quadrinista Luciano Thomé, cujo traço encarna a alma punk do protagonista, transpõem a entrevista televisiva – na íntegra – à HQ Malcolm [Edições Ideal, Coleção Mondo Massari, 2014, 64 p.; leia um trecho]. O resultado é tão bom que parece que a conversa foi originalmente pensada para o formato.

O papo orbita em grande parte em torno do grupo de John Lydon e companhia, mas é um passeio pela indústria cultural, em companhia de quem sempre tirou um sarro por dentro. McLaren afirma, por exemplo, que os Sex Pistols nasceram como manequins: mais importava vestirem o que era conveniente ao empresário que que soubessem tocar (bem) algum instrumento. “Em 1977 criamos um movimento em que tudo era possível e não era necessário saber tocar guitarra”, diz. Quer atitude mais punk que isso?

A intimidade de Massari com o universo também aponta para as influências de MC5, Iggy & The Stooges e New York Dolls, e o legado deixado pelo grupo, que influenciou grupos como The Damned, Buzzcocks “e muitas outras bandas”. Sobram críticas à cultura americana – minimizada a “rock’n’roll, Levi’s, Coca-Cola e Marylin Monroe” –, à própria MTV – “se você ouve música, você é menos controlado por ela. Se você assiste na TV, você está mais propenso a ser controlado por ela e ela se torna uma… uma droga que o transforma num zumbi” – e a artistas que McLaren não aprecia – “o importante é ter algo a dizer em vez de botar todo mundo para dormir com música insossa, do tipo Mariah Carey”.

Para o inglês Malcolm McLaren não havia lugar para gênios nos Estados Unidos: “os gênios transformam a vida e os EUA não querem mudanças. Vivem um momento conservador”.

Malcolm, a HQ, é um belo tributo ao legado de seu protagonista, em geral amado e odiado ao mesmo tempo e na mesma intensidade, um dos personagens mais interessantes e controversos da música em todos os tempos.

Uma grande farsa

Quando a máscara cai. Capa. Reprodução
Quando a máscara cai. Capa. Reprodução

Desde Caim o planeta azul sempre foi povoado por variada gama de mentes doentias e criminosas. Quando a máscara cai – A verdadeira história do homem que fingiu ser um Rockefeller [Companhia das Letras, 2015, 247 p., tradução de Sérgio Tellaroli; leia um trecho], de Walter Kirn, é a biografia de uma dessas mentes, um assassino que se passou por integrante de uma das mais famosas e ricas famílias americanas. Um mergulho atormentado/r na mente de um manipulador profissional e a tentativa de autoconhecimento, o porquê de se deixar enredar na teia farsesca.

Um ser humano fascinante, é como o autor o classifica, a maldita mania de quem, jornalista e/ou escritor por paixão e/ou vício, acredita que tudo e todos podem render grande reportagem e/ou romance. É aí que começa a via crucis de Kirn, que atravessa boa parte dos Estados Unidos dirigindo uma caminhonete – e depois pegando um avião – para entregar ao suposto Rockefeller uma cadela presa a uma cadeira de rodas.

O episódio é relatado minuciosamente: fazer um favor de tal monta a um Rockefeller, era mais que estar próximo de um, e o autor de Amor sem escalas embarcou literalmente na aventura a fim de ter um personagem para um próximo romance. O desembarque e seu encontro com aquela personalidade desencadeia uma série de mentiras: da coleção de obras de arte falsificadas a empresas, bancos, propriedades, veículos e vizinhos famosos (Tony Bennett e J. D. Salinger, por exemplo), tudo é teatro nas mãos – e imaginação – hábeis do manipulador, que chegou a usar nove nomes falsos – ou além: a encarnar nove personalidades diferentes – ao longo de sua jornada criminosa.

O que ninguém sabia – e o autor sequer imaginava quando começou a pensar em tomá-lo como personagem – é que o falso Rockefeller era um assassino frio, que armazenou pedaços do corpo esquartejado de sua vítima em sacolas de livraria. Ao longo dos capítulos dedicados a seu julgamento e condenação – e após, quando o personagem insiste em seu teatro doentio – há diversas citações (Jornada nas estrelas, Alfred Hitchcock e Patricia Highsmith incluídos) de filmes, livros e séries de tevê, usadas para compreender o impostor, suas motivações e até mesmo o comportamento do júri durante o julgamento. Era de onde ele retirava ideias, citações e trejeitos: era um mero plagiador, sem ideias próprias, inclusive para seus livros e roteiros para cinema – outras frustrações em seu currículo.

Quando a máscara cai é ainda uma espécie de assunção pública de fraqueza e vergonha de alguém que caiu feito um pato no enredo de mentiras de um terceiro – e ali se manteve durante 15 anos de “amizade”. O autor lança-se ao personagem pensando no romance e consegue um livro interessante e bem escrito, de alguma forma comparado, guardadas as devidas proporções, a A sangue frio, de Truman Capote, e O talentoso Ripley, de Patricia Highsmith, de onde vem uma das epígrafes do livro. No fim das contas, do começo da amizade com o protagonista à sua condenação por sequestro e assassinato, a aventura de Walter Kirn é sobre a escrita do livro em si, não ficção em que sobressai o talento jornalístico do romancista.

“60 é o novo 30”

Birdman. Capa. Reprodução
Birdman. Capa. Reprodução

Depois de se tornar um sucesso interpretando um personagem no cinema – o Birdman que dá nome ao filme – um ator tenta refazer a carreira no teatro, em crise consigo mesmo e com a família – é separado da esposa, com quem tem uma filha adulta, sua assistente na nova ambição.

O cinema de Alejandro González Iñárritu – de petardos como Amores brutos, Babel e Biutiful, entre outros – continua distribuindo tapas na cara de nossa sociedade. “A única obsessão de vocês é viralizar”, vemos o protagonista dizer à sua filha, que por sua vez retruca que toda a dedicação do pai em montar uma peça de Raymond Carver é seu ego inflado, “nada a ver com arte”.

“Um crítico se torna um crítico por não ter qualidades suficientes para ser um artista”, é o que mais ou menos – cito de memória – diz Riggan Thomson (Michael Keaton), o personagem central, à crítica de teatro de um jornalão cuja opinião parece ser a única preocupação do elenco. Ela ameaça “destruir” sua montagem – mesmo antes de vê-la.

A cena que afinal garantiria o sucesso (de crítica) da peça – ou, antes, o acidente durante – lembrou o conto-título de O homem-mulher, de Sérgio Sant’Anna, que daria um ótimo filme.

Após a contratação de Mike Shiner (Edward Norton), o sucesso (de público) – mesmo para a pré-estreia – é imediato, o que contribui para as crises de Thomson. Numa cena, espécie de ensaio aberto, o novo integrante do elenco brada para que a plateia abandone os celulares e tenha uma experiência própria, sem mediação, que, mesmo no papel de espectadores, vivam, enfim.

Enquanto tenta provar que é um ator (e diretor) para além do personagem – e/m roupa de pássaro – que o consagrou, Riggan é atormentado com a voz (e presença) do homem pássaro em sua cabeça, recomendando-lhe a volta a ele – ao personagem, ao estrelato.

Birdman nos leva o tempo todo a questionar os limites e interseções entre ego, vaidade, bastidores, relações, fama, sucesso, crítica, arte “de verdade” e a que merece o desprezo da crítica, por vezes apesar do sucesso de público.

A ditadura militar brasileira em original abordagem ficcional

K. Capa. Reprodução
K. Capa. Reprodução

Graduado em Física pela Universidade de São Paulo (USP), Bernardo Kucisnki é cientista político e jornalista, e neste último campo, autor de ao menos uma obra fundamental: Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa [Página Aberta, 1991].

Assinando simplesmente B. Kucinski, bastou um livro para que ele passasse a ser também reconhecido como “escritor” ou “autor de ficção” – o que no fundo deve servir apenas a quem organiza as obras nas estantes, em livrarias, bibliotecas ou coleções particulares.

K. – Relato de uma busca [Expressão Popular, 2011; Cosac Naify, 2014, 190 p.], primeiro romance do autor, foi finalista dos prêmios Portugal Telecom e São Paulo de Literatura em 2012.

Você vai voltar pra mim. Capa. Reprodução
Você vai voltar pra mim. Capa. Reprodução

O tema era urgente, embora o autor o tenha maturado por quase 40 anos: K. é o relato autobiográfico, embora o livro seja classificado como ficção, sobre o desaparecimento, em 1974, 10 anos após o início da ditadura militar brasileira, da irmã e do cunhado de Kucinski – Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva –, ela química, professora da USP; ele físico, funcionário de uma empresa.

Como o assunto exigia mais, o autor não se contentou e, na sequência, lançou o volume de contos Você vai voltar pra mim [Cosac Naify, 2014, 188 p.] e o romance policial Alice: não mais que de repente [Rocco, 2014, 191 p.], o único que não se passa durante a ditadura, totalmente ficcional, sobre o assassinato de uma professora da USP.

Alice. Capa. Reprodução
Alice. Capa. Reprodução

Kucinski revela que os 28 contos de Você vai voltar pra mim foram selecionados de um universo de 150 – os que tinham a ditadura militar como tema/ambiente –, escritos entre 2010 e 2013. “Embora o autor não nos explique nada a respeito da veracidade, ou não, dos episódios, alguns deles são muito conhecidos das vítimas e dos estudiosos do período. Minha memória sugere que todos eles sejam, como se afirma nas legendas finais de alguns filmes, inspirados em fatos reais”, a psicanalista Maria Rita Kehl nos coloca a boa e quase óbvia pulga atrás da orelha no prefácio. O conto-título, aliás, é frase dita por um torturador a uma vítima.

Os muitos anos de jornalismo e magistério certamente ajudaram Kucinski com a forma: narrativas bem estruturadas, doses de ironia, a cumplicidade do leitor com a urgência dos personagens – o que lhes/nos espera nas linhas seguintes? – e a dúvida não incômoda: autobiografia? Invenção? Ou um mix? O conteúdo, mesmo que com pitadas de ficção, é, por vezes, fruto de seu próprio sofrimento, transformado em literatura da melhor qualidade. De um modo ou outro, ele dá uma bela contribuição à discussão sobre o direito à memória e à verdade no Brasil, um debate infelizmente tardio e por vezes enviesado e sem a profundidade necessária.

Laborarte comemora 43 anos com vasta programação

Trupe do Laborarte em foto de data e autoria não identificadas. Da esquerda para a direita: Claudio Ribeiro, Zeca Baleiro, Joãozinho Ribeiro e Jorge "Cara de Borracha"; abaixo: Jorge do Rosário, Rosa Reis, Paulinho Oliveira e Saci Teleleu
Trupe do Laborarte em foto de data e autoria não identificadas. Da esquerda para a direita: Claudio Ribeiro, Zeca Baleiro, Joãozinho Ribeiro e Jorge “Cara de Borracha”; abaixo: Jorge do Rosário, Rosa Reis, Paulinho Oliveira e Saci Teleleu

 

Diversos movimentos convergiram para o nascente Laboratório de Expressões Artísticas do Maranhão, o Laborarte, fundado em 11 de outubro de 1972. Música, teatro, artes plásticas, fotografia, cultura popular: para tudo havia espaço em seus departamentos, ocupados por nomes que fariam história neste estado, como Cesar Teixeira, Josias Sobrinho, Sérgio Habibe, Murilo Santos, Wilson Martins, Regina Telles, Tácito Borralho, Rosa Reis, Nelson Brito, Mestre Patinho, Dona Teté e Joãozinho Ribeiro, entre outros, em diferentes épocas.

O Labô, como é comumente chamado pelos mais íntimos, completa 43 anos domingo (11) e preparou vasta programação, inteiramente gratuita, para comemorar. Ano que vem, o casarão 42 da Rua Jansen Müller (Centro) será enredo da Escola de Samba Flor do Samba no carnaval.

Ao longo da programação (veja completa ao final do post), uma videoinstalação apresentará documentários, espetáculos e outros acervos históricos do Laborarte, acumulados ao longo de mais de quatro décadas de atividades ininterruptas.

Entre as montagens iniciais merecem destaque Espectrofúria [1972], recentemente reencenada, sobre texto de Eduardo Lucena, que recebeu o prêmio de Melhor Plasticidade no Festival Nacional de Teatro Jovem em Niterói/RJ, Os Sete Encontros do Aventureiro Corre-Terra ou O Cavaleiro do Destino, de Josias Sobrinho e Tácito Borralho [prêmio Mambembe de 1978], Agonia do Homem [1972], poemas de Nauro Machado adaptados por Otto Prado, Mártir do Calvário [1973], em que Ubiratan Teixeira interpretou Pilatos, e Marémemória [1974], baseado no livro-poema homônimo de José Chagas, cuja foto de Josias Sobrinho e Cesar Teixeira fazendo um par de violeiros encabeça este blogue.

De 30 anos de Laborarte, reportagem do último, aliás, cato informações para este texto. O do compositor-fundador foi publicado em 19 de outubro de 2002 no Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante, do Jornal Pequeno, e está também na coletânea Maranhão Reportagem [Clara Editora, 2002], organizada por Félix Alberto Lima.

Entre os destaques da programação de aniversário, acontece hoje (9) a noite de autógrafos dos livros Cantigas Divinas, em que Camila Reis, com transcrições de Gustavo S. Correia e ilustrações de Layo Bulhão, transpõe para partituras, cantos entoados nos festejos do Divino e na dança do Cacuriá, e Vem cá curiar o cacuriá, de Inara Rodrigues, sobre a dança em que ambas as autoras dão – ou já deram – passos. O primeiro tem patrocínio da Fundação Cultural Palmares e Ministério da Cultura; o segundo foi premiado no Concurso Literário Cidade de São Luís.

Moda, dança e poesia dão o tom da noite de amanhã (10). A partir das 20h Tieta Macau, Deuzima Serra, Moisés Nobre e Raimunda Frazão – uma das homenageadas da 9ª. Feira do Livro de São Luís – apresentam performances nas áreas.

Na sequência, Joãozinho Ribeiro atrela à programação de aniversário do Laborarte o show que tem apresentado ao longo deste ano, lançando seu disco de estreia, Milhões de uns – vol. 1. Nesta ocasião, a apresentação terá as participações especiais de Josias Sobrinho e Rosa Reis.

“Para mim é uma honra e um prazer fazer valer o dito popular, “o bom filho à casa torna”. Minhas relações com o Labô têm tempo e história”, declarou o compositor, autor da maioria das músicas do espetáculo carnavalesco-teatral Te gruda no meu fofão. “Alegria maior ainda é poder dividir o palco com Josias Sobrinho e Rosa Reis, nomes de importância fundamental, em diferentes épocas, para o surgimento e a continuação do Laborarte nas trincheiras em prol de nossa cultura popular”, continuou. “Darei um presente ao Laborarte, o público pode esperar uma surpresa”, prometeu, deixando o mistério no ar.

A noite de sábado guarda espaço ainda para show das Afrôs e a programação se encerra no domingo de aniversário (11), com um cortejo do Cacuriá de Dona Teté na Feira do Livro (Praia Grande), às 17h30, cujo encerramento também acontece na data.

Como afirmou Cesar Teixeira em seu texto de há 13 anos, “nomes de pessoas e considerações sobre o trabalho do Laborarte não caberiam nesta página – dariam um livro”. Faça parte dessa história!

Programação

Hoje (9), a partir das 20h

Receba! – Dança, Negritude, Pertencimento, com Luana Reis
Noite de autógrafos dos livros Cantigas Divinas, de Camila Reis, e Vem Cá Curiar o Cacuriá, de Inara Rodrigues
Instalação fotográfica Chuseto, de Jesús Pérez
Videoinstalação – documentários, espetáculos e outros acervos históricos do Laborarte
Roda de Capoeira Angola com os mestres Nelsinho, Patinho e convidados
Shows de Rosa Reis e Camila Reis
Palco livre

Amanhã (10), a partir das 20h

Exibição de vídeo de Moda e intervenção Beltranesca, com Tieta Macau
Solo de dança popular com Deuzima Serra
Performance Poéticas, com Moisés Nobre, Raimunda Frazão e convidados
Show de Joãozinho Ribeiro – Lançamento do cd Milhões de uns, com participação especial de Josias Sobrinho e Rosa Reis
Cânticos aos 43 anos de Laborarte
Show das Afrôs

Domingo (11), às 17h30

Cortejo do Cacuriá de Dona Teté na 9ª. Feira do Livro de São Luís (Praia Grande)