CELSO BORGES*
Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez mil, vinte mil, cinquenta, cem mil carros arrombam um sobrado que fica na rua do Sol ou Nina Rodrigues, 567, esquina com a rua da Mangueira, conforme indicam os catálogos telefônicos absolutamente obsoletos. Ali querem construir um estacionamento no mesmo lugar em que ficam o sobrado e a alma do sobrado de Aluísio Azevedo, escritor da terra, futuramente expulso pela elite escravocrata local da cidade, que ainda sonha com a Atenas do passado.
Estacionamento o caralho!
Estacionamento o caralho!
Um carro arranca na frente, outro descarrega sua carne de prata e alumínio sobre a calçada, um terceiro entra na sala da casa, o quarto invade o quarto da mãe de Aluísio cuspindo gasolina sobre a mesinha de cabeceira, o quinto dos carros infernos outros tantos vários em acúmulo de tijolos de barro e cimento de amianto no coração do sobrado entre alicerces e subterrâneos enferrujando de fumaça e fuligem o sonho do pai de Aluísio e do irmão Artur, que a essa altura do campeonato já está no Rio de Janeiro há muito tempo cansado da província que só quer saber de construir estacionamentos no centro da cidade.
Melhor alguns carrinhos enfileirados do que esses prédios velhos que não prestam pra nada e ficam atrapalhando o progresso da cidade tombada pela Unesco, o que na prática não significa porra nenhuma.
Estacionamento o caralho!
Estacionamento o caralho!
Carros e mais carros sobem as escadas uns sobre os outros. Os azulejos portugueses já ficaram para trás. Seguir adiante, esse o futuro que temos pela frente. O quintal da casa é uma questão de tempo. Cadê Aluísio? Cadê o filho de Aluísio? Cadê o neto de Aluísio, O Cortiço de Aluísio, a Casa de Pensão de Aluísio, o final dO Mulato de Aluísio? Cadê Américo Azevedo Neto? Por que não escreve mais Cartas a Daniel? Cadê o berro de Emílio e suas foices de bigorna? Cadê a AML e o busto perdido de Aluísio? Notas de consternação não ressuscitam mortos. Aluísio e seu bigode em triunfo, suas bengalas polidas esgrimando com martelos que derrubam fachadas e economizam trabalho da chuva do próximo inverno.
A morada inteira se levanta!
Estacionamento o caralho!
Estacionamento o caralho!
Quem viver verá os carros subindo as escadas até o mirante, lá em cima de onde se vê um tanto de outros telhados inúteis com seus musgos e mururus. Ali cabe uma coleção de Mercedes, quem sabe uma Ferrari envenenada. Haja cicuta para tanto filho da puta!
Estacionamento o caralho!
Estacionamento o caralho!
*CELSO BORGES é jornalista e poeta. Seu livro mais recente é O futuro tem o coração antigo.