“Ao longo dos três meses que se seguiram, pensamos em casamento. Eu tinha objeções de princípio, ideológicas. Para mim o casamento era uma instituição burguesa; eu considerava que ele codificava juridicamente e socializava uma relação que, sendo de amor, ligava a duas pessoas no que elas tinham de menos social. A relação jurídica tinha a tendência, e até mesmo a missão, de se tornar autônoma no que se refere à experiência e aos sentimentos dos parceiros. Eu dizia: “O que nos prova que, em dez ou vinte anos, nosso pacto para a vida inteira corresponderá ao desejo do que teremos nos tornado?”.
“A sua resposta era incontornável: “Se você se une a alguém para a vida inteira, os dois estão pondo em comum sua vida e deixarão de fazer o que divide ou contraria a união. A construção do casal é um projeto comum aos dois, e vocês nunca terminarão de confirmá-lo, de adaptá-lo e de reorientá-lo em função das situações que forem mudando. Nós seremos o que fizermos juntos”. (páginas 16-17).
“Você dizia que tinha se unido a alguém que não podia viver sem escrever, e sabia que quem quer ser escritor precisa se isolar, tomar notas a qualquer hora do dia ou da noite; que seu trabalho com a linguagem continua mesmo depois de largar o lápis, e pode inesperadamente se apossar dele por completo, bem no meio de uma refeição ou de uma conversa. “Se eu pelo menos pudesse saber o que se passa na sua cabeça”, você dizia às vezes, diante de meus longos devaneios em silêncio. Mas você também sabia disso porque você mesma já tinha passado por isso: um fluxo de palavras procurando o arranjo mais cristalino; fiapos de frases continuamente remanejados; começos de idéias que ameaçavam desvanecer se uma senha ou um símbolo não conseguisse fixá-las na memória. Amar um escritor é amar que ele escreva, dizia você. “Então escreva!””. (páginas 27-28).
[André Gorz, Carta a D. – História de um amor, Annablume/Cosac Naify, 2008].
Uma carta – as capas do livro imitam um envelope, trazendo uma foto do casal na primeira orelha – o último escrito de André Gorz. Obra tocante, comovente. “Já tinham mais de oitenta anos quando ele escreve esta carta de amor, que anuncia a morte escolhida pelos dois a 22 de setembro de 2007. Partiram juntos porque não seria possível para ele viver um segundo sequer sem a presença dela”. (Ecléa Bosi, na segunda orelha)
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“André Gorz é um dos mais importantes intelectuais da atualidade. Filósofo e jornalista, sua produção bibliográfica inclui quase duas dezenas de livros (oito deles já publicados no Brasil), centenas de artigos e de entrevistas, que versam sobre os mais relevantes temas da teoria social e da política contemporânea. (…). Nasceu em Viena, na Áustria, em fevereiro de 1923 (…).
“Radicou-se na França após o fim da Segunda Guerra Mundial, onde adotou o pseudônimo de André Gorz, com o qual ficou mundialmente famoso. (…). Seus primeiros livros, publicados a partir de 1958, são importantes contribuições ao chamado marxismo-existencialista francês do pós-guerra.
“O marxismo-existencialista é uma corrente teórico-filosófica que valoriza a autonomia do indivíduo e se contrapõe às correntes teóricas que dão prioridade às instituições e estruturas sociais. É uma corrente de pensamento que se assenta, em grande medida, nas teorias de Jean-Paul Sartre e Karl Marx. Marx e Sartre são, de fato, os autores que mais parecem ter influenciado o pensamento de André Gorz; e não apenas no início de sua formação. No entanto, sua teoria social transcende a influência dos mestres e mostra-se bastante original, sobretudo em capacidade de detectar a dinâmica das mudanças contemporâneas”.
[Posfácio (páginas 73-74), por Josué Pereira da Silva, professor de sociologia no IFCH/Unicamp. Autor de André Gorz: Trabalho e política (Annablume/Fapesp, 2002) e organizador da coletânea André Gorz e seus críticos (Annablume, 2006)]
