Joia de estreia

Diamantes na pista. Capa. Reprodução

 

A cantora paulista Malu Maria disponibiliza hoje (3), via Tratore, nas principais plataformas digitais de música, o disco Diamantes na pista, com nove faixas, todas de sua autoria, produzido por ela e Tatá Aeroplano (que participa de algumas faixas, entre vocais, violão e teclados).

Malu Maria, que além de compor e cantar, toca flauta e percussão no disco, é acompanhada da banda Diamantes: Carlos Gadelha (guitarra), Eristhal (contrabaixo), Gustavo Souza (bateria) e Otávio de Carvalho (sintetizadores). Diamantes na pista tem ainda participações especiais das cantoras Laya Lopes, Kika e Laura Wrona.

Escrevi cantora aí em cima, mas ela não é apenas cantora, multiplicidade que se reflete nas composições. Formada em Comunicação e Artes do Corpo pela PUC, Malu Maria é fundadora do Teatro de Bolso do IV Mundo e apresentadora do programa Tranbordando o Copo (no youtube). Ela assina a arte e a capa de Diamantes na pista.

Homem de vícios antigos ouviu em primeira mão e fez um faixa-a-faixa simultâneo à audição, grande desafio, enorme responsabilidade.

Música de pista, mas orgânica. Um convite à dança e ao sonho. Se essa rua fosse minha, “esparramando diamantes na pista”, verso de Diamantes na pista, faixa que abre e dá nome ao disco de estreia da cantora Malu Maria.

Doctor Strangelove tem uma pegada psicodélica, retrô/futurista, homenagem ao filme de Stanley Kubrick lançado em 1964, ano em que por aqui começava aquela outra ditadura.

A percussão e o baixo que abrem Estrada remetem a Ando meio desligado, dOs Mutantes, cuja sonoridade, de resto, permeia o clima do disco, mais para saudável influência que para imitação.

Calcado na eletrônica, Devires é um quase-frevo, “meu sapato é o chão/ meu chapéu é o céu/ meus braços são pra voar”, instiga a letra, um convite ao sacolejo, jogue-se!

Amores ao mar é pura entrega. Voz e violão dialogam a sós na abertura da faixa, do verso “alimentar o gozo sem dissimular”. Malu Maria é autêntica num tempo em que originalidade é artigo vendido em série, em geral gato por lebre.

“Sem você eu fico triste/ mesmo com tudo azul/ o corpo, o copo, o coração/ sugar blue”, começa Circo para todos, bateria evocando o tarol de bandinha de coreto de cidade do interior, como a anunciar a chegada da trupe. A faixa homenageia ainda o Cine Jóia, outrora cinema, palco de shows musicais na capital paulista.

Na também dançante Jardim do Éden Malu Maria junta samba, maracatu e guitarrada. “Quero nada além/ do que essa nossa paz/ dançar com você/ nesse Éden e nada mais”, derrama-se, romântica.

Amando do espaço recomenda amar em qualquer lugar, qualquer caminho. Um sábio conselho nestes tristes tempos. “Salvem os amores delirantes”, diz a letra, quase a redundar – não deve demorar muito a serem considerados delírios o amor, a emoção, o encanto.

A delicadeza de Nosso eclipse fecha o disco, como se fechasse um ciclo. Tudo faz ainda mais sentido (embora nem precisasse, diante de tanta beleza), “pro mundo girar”, como um disco a girar, um mundo particular, um belo disco de estreia.

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Ouça Diamantes na pista:

Um mundo em extinção

Severina. Cartaz. Reprodução

 

Um sebista solitário, ermitão, com pretensões literárias permite a visita constante de uma cliente cujo único intuito é roubar livros. Atraído por sua beleza e por seu gosto literário, ele acaba se apaixonando pela mulher misteriosa, a despeito de logo descobrir não ser sua única vítima: ela tem um séquito de livreiros furtados e corações partidos. É esta paixão o mote de Severina [Brasil/Uruguai, 2018, drama; direção: Felipe Hirsch; em cartaz no Cine Lume], antes de qualquer coisa uma bela declaração de amor aos livros.

Parece falar sobre um mundo que não existe mais: os personagens dialogam com uma arquitetura tida como decadente, apenas em nome de um suposto conforto e segurança trazidos pela modernidade – a urbe tem papel destacado no filme, nos passeios a pé do casal protagonista, ou de bicicleta, quando ele sai à procura dela.

Parece falar sobre um mundo que não existe mais, no qual, por conta desta mesma suposta modernidade, não há mais espaço para sebos, livrarias de rua ou cinemas fora dos ambientes climatizados dos shopping centers e vizinhos de barulhentas praças de alimentação.

Mais que aos livros, Severina é uma declaração de amor à literatura, ao cinema, às artes em geral, e a um modo de vida infelizmente a cada dia mais tido como démodé, sem espaço para qualquer delicadeza.

A película mistura elementos de drama, comédia romântica e romance policial. O espectador, qual um detetive, se vê envolto num mistério, a começar por saber se o enredo aconteceu de fato (ainda que na ficção) ou se é tudo fruto da imaginação do protagonista.

Severina. Frame. Reprodução

 

Baseado no livro homônimo, do guatemalteco Rodrigo Rey Rosa, Severina percorre o convívio entre o sebista e a mulher misteriosa, loucuras de amor, o cotidiano de um casal que lê junto, e um velho em coma. Em tempo: o diretor é brasileiro, o casal protagonista argentino (Javier Drolas e Carla Quevedo) e o filme foi rodado em Montevidéu, no Uruguai.

Obviamente Severina é recheado de citações literárias, entre capas expostas no sebo, nas mãos dos leitores, trechos lidos em tertúlias ou sublinhados pelo livreiro, a vida imitando a literatura (e o cinema) e ajudando a construir a narrativa, de rara delicadeza poética.

A determinada altura, por exemplo, quando o livreiro oferece seu sebo para pagar uma dívida por furtos passados de sua companheira, outro sebista, já tendo aceitado o negócio, troca toda a livraria por um único exemplar, supostamente roubado por ela da biblioteca de Jorge Luis Borges, com anotações do escritor nas bordas do livro, gesto cuja grandeza somente será compreendida pelos devotados aos “objetos transcendentes”.

Bob Dylan, não exatamente um escritor, apesar de ter escrito livros, venceu o Prêmio Nobel de Literatura em 2016, dado que não está em Severina. Dele lembro apenas para dizer do enorme prazer proporcionado, como se já não bastasse tudo isso, por citações a Hermeto Pascoal e João Gilberto.

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Veja o trailer: