O choro de Rui Mário na emocionante primeira noite de Lençóis Jazz e Blues Festival 2025

Rui Mário e seu Quarteto, na abertura do Lençóis Jazz e Blues Festival 2025, ontem (21), no Teatro Sesc Napoleão Ewerton - foto: Zema Ribeiro
Rui Mário e seu Quarteto, na abertura do Lençóis Jazz e Blues Festival 2025, ontem (21), no Teatro Sesc Napoleão Ewerton – foto: Zema Ribeiro

Rui Mário chorou no palco. Pura emoção. Como a que fez sentir o público presente. Era a primeira vez dele ali, em um show solo, ele geralmente visto como músico acompanhante e diretor musical de um monte de artistas, como ele mesmo lembrou.

Ao lado de sua sanfona, seu nome figura em fichas técnicas de álbuns como “Shopping Brazil” (2004), de Cesar Teixeira, “Dente de ouro” (2005), de Josias Sobrinho, e “Olho de boi” (2009), de Gildomar Marinho, para citar poucos.

Acompanhado do irmão Tião Lima (zabumba) e do sobrinho Vinícius Lima (triângulo e pandeiro), o núcleo pé de serra de seu quarteto, mais o groove dos ensandecidos Dedé Valença (baixo) e Marcones Pinto (guitarra), Rui Mário (sanfona) fez um show vibrante, dançante (pena estarmos sentados nas poltronas de um teatro em vez de “numa sala de reboco” ou numa praça da cidade), num passeio entre os guarda-chuvas que se convencionaram chamar forró e jazz.

A base do repertório desfilado pelo quinteto foi o álbum “Baião de doido”, que Rui Mário lançou este ano. Começaram pela faixa-título e desafilaram um rosário de referências e reverências que passou por Seu Raimundinho (pai do sanfoneiro e patriarca de uma família de músicos, sei lá quantos trios de forró pé de serra é possível formar ao longo dos galhos de sua árvore genealógica) — “Frevo pro Seu Raimundinho” —, pela filha Maria Eduarda (muitos familiares do músico na plateia) — “Xote desencabulado” — e pelo colega de instrumento Eliézio — “Meu nobre Eliésio” —, outra figura fácil em fichas técnicas de discos da música popular brasileira produzida no Maranhão, ídolo e amigo “que vivia lá em casa, chegava às cinco da manhã, aí está meu pai que não me deixa mentir; aprendi muita coisa com ele”, lembrou Rui Mário.

A emoção de Rui Mário não era jogo de cena para conquistar plateia. Suas lágrimas, no entanto, não se confundiam com timidez: no papel de frontman, o artista estava à vontade, evocando um Jimi Hendrix (1942-1970) na desenvoltura: certamente o americano tocaria daquele jeito se tivesse nascido no Nordeste brasileiro e fosse sanfoneiro em vez de guitarrista. O maranhense só não usou os dentes para fazer soar seu fole.

No bloco dedicado a Hermeto Pascoal (1936-2025), homenageado da edição 2025 do Lençóis Jazz e Blues Festival, Rui Mário equilibrou-se entre a conhecidíssima “Bebê”, em inspirado arranjo, e uma menos óbvia, e tão interessante quanto, “Suíte Norte Sul Leste Oeste”.

“Eu sempre quis dizer isso”, Rui Mário agora ria, enquanto agradecia à produção do festival e anunciava sua saideira, incitando o público a pedir mais uma. “E agora, que não tem no repertório?”. Acompanhado apenas dos parentes, formando um dos trios de forró pé de serra possíveis na árvore genealógica de Seu Raimundinho, antes da foto de costas para o público, atacaram o “Toque de pife”, de Dominguinhos (1941-2013), outra referência fundamental para qualquer sanfoneiro. E a apresentação de ontem foi mais um atestado de que Rui Mário não é um sanfoneiro qualquer.

A noite de abertura da edição 2025 do Lençóis Jazz e Blues Festival aconteceu ontem (21) no Teatro Sesc Napoleão Ewerton. O primeiro show da noite foi do Tiago Fernandes Trio — ele ao violão sete cordas, mais Valdico Monteiro (percussão) e Victtor Sant’anna (bandolim) —, que se apresentou no hall do Condomínio Fecomércio, recepcionando o público. Um show sóbrio e elegante, que incluiu temas como “Canto de Ossanha” (Baden Powell e Vinícius de Moraes), “Samba do avião” (Tom Jobim) e “Boi de Catirina” (Ronaldo Mota).

A noite foi encerrada pelo Mark Lambert Trio, num passeio por rock, jazz e blues, entre temas de nomes como Al Green e Ray Charles (1930-2004), entre outros. O líder, cantor e guitarrista radicado há oito anos em São Paulo, conquistou a plateia de cara, quando se apresentou, brincando: “eu sou norte-americano, ninguém é perfeito”.

Ladeado por Glécio Nascimento (baixo) e Max Sallum (bateria), o uso de pedais de efeitos pelo guitarrista e pelo baixista — a quem Lambert se referiu muitas vezes ao longo da apresentação — faziam o power trio soar por vezes como a eletrônica dos alemães do Kraftwerk. Dançamos sentados.

A programação — inteiramente gratuita — do Lençóis Jazz e Blues Festival 2025 continua sexta-feira (24), às 20h, na Concha Acústica Reinaldo Faray (Lagoa da Jansen). As atrações são o bandolinista Wendell de La Salles, o Jayr Torres Quarteto e o mineiro Beto Guedes.

A etapa Barreirinhas acontece na Avenida Beira-Rio, dias 31 de outubro e 1º. de novembro, também a partir das 20h; na primeira noite por lá as atrações são Luciana Pinheiro, Vanessa Moreno e Arismar do Espírito Santo e Morgana Moreno; na noite de encerramento se apresentam o Jota P Quarteto, Alice Caymmi e os americanos JJ Thames & Prado Brothers Band.

O “Novo mundo” de Arnaldo Antunes, trilha sonora de amor antigo

“Novo mundo” – capa/ reprodução

A faixa-título do mais recente álbum de Arnaldo Antunes diz a que veio logo nos primeiros versos: “cada vez mais plástico e menos água/ cada vez mais casca e menos substância”, canta em “Novo mundo”, parceria com Vandal (com quem dueta na criação a quatro mãos), numa música que alerta para uma série de problemas de nossos tempos, sobretudo na seara da internet e redes sociais, mas não só.

Curioso que o álbum lançado em março tenha passado batido ao crítico de música, este resenhista que vos escreve, que defende o jornalismo cultural como uma curadoria possível desta época, em contraponto a sermos nós, público e crítica, eternas vítimas em looping (redundância intencional) dos algoritmos (e agora inteligências artificiais) a serviço sabemos de quem.

Curioso também é que tenha sido minha companheira Diana Melo quem me tenha chamado a atenção para o álbum — ou mais especificamente para algumas faixas dele — graças a uma espécie de pegadinha dos algoritmos (a contradição possível, enfim): lendo as letras (antes, para depois ouvir as músicas) postadas na conta no instagram do artista. Explico: ambos seguimos o ex-Titãs (o eterno Titãs?) nas redes sociais e duas letras bonitas (aqui um pleonasmo, em se tratando de Arnaldo Antunes) lhe tenham chamado a atenção em um certo intervalo. Devo dizer que mesmo morando juntos há algum tempo, eu e ela passamos os dias nos mandando memes e músicas, não necessariamente nessa ordem, e temos uma playlist alimentada a quatro mãos com músicas bonitas, capítulos importantes de nossa história de amor, reencontro, conquista e propósitos mútuos.

A primeira é “Acordarei”, composição solitária de Antunes: “amanhã amanhã/ de manhã de manhã/ acordarei/ acordarei feliz/ porque você também/ acordará”, começa a letra; “que bom que há você aqui/ pra brisar/ risos em teus zelos/ asas em teus pesos/ pazes em teus pesadelos/ pra ficar feliz/ que bom que há você aqui/ pra brincar”, canta em “Pra brincar”, outra também assinada somente por Antunes.

Se “Novo mundo” abre em tom apocalíptico, o álbum se desdobra em camadas de amor. Citei aí duas letras que fazem sentido e podem ser trocadas por links enviados em aplicativos de mensagens ou acopladas em playlists não só pelo repórter e sua companheira mas por qualquer casal apaixonado, mas há várias outras que caberiam no soundtrack de nossa love story (e da sua também, caro leitor, cara leitora, permita-se). Amar é brega, é piegas e se é amor não há como fugir disso. Minto: há. A forma como Arnaldo Antunes canta o amor é tão sofisticada que você pode tentar conquistar, conseguir conquistar e/ou manter acesa a chama da conquista, da paixão e do amor, com suas composições, sem ser tachado de brega ou piegas.

Se não acreditam, leiam o começo da letra de “O amor é a droga mais forte” (mais uma faixa de assinatura solitária): “o amor é a droga mais forte/ que vicia logo no flerte/ e o que vem depois se reparte/ cicatriz por cima do corte/ o destino faz sua parte/ fora isso só mesmo a sorte”.

Arnaldo Antunes acerca-se de parceiros novos e antigos: canta com o takling head David Byrne em “Body corpo” e “Não dá para ficar parado aí na porta”, ambas parcerias da dupla; com Marisa Monte, parceira em “Sou só”; e com Ana Frango Elétrico em “Pra não falar mal” (Arnaldo Antunes), exercício de empatia, altruísmo e… amor: “”Se pra melhorar a gente/ precisa ter mais cuidado/ pra não falar mal de ninguém/ não pensar mal de ninguém/ pra não ficar mal com ninguém/ não querer mal a ninguém/ pra ser o amor de alguém/ amar alguém também/ pra tudo ficar bem”, diz a letra.

Parceria com Marcia Xavier, “Tanta pressa pra quê?” versa sobre a instantaneidade e o excesso de noticiários do “cristal líquido da tela”, mas é ao mesmo tempo pergunta-síntese e ensinamento: problema nenhum em ouvir, achar bonito e escrever sobre um disco sete meses após seu lançamento; como problema nenhum em reencontrar um amor 20 anos depois e resolver vivê-lo e também, a seu modo escrevê-lo, cuidando também da trilha sonora.

Acervo pessoal – reprodução

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Ouça “Novo mundo”:

A força do longevo Quinteto Violado, atualmente um sexteto, a rigor

O Quinteto Violado no palco do Teatro Sesc Napoleão Ewerton, ontem (15) - foto: Zema Ribeiro
O Quinteto Violado no palco do Teatro Sesc Napoleão Ewerton, ontem (15) – foto: Zema Ribeiro

Ver o Quinteto Violado ao vivo no palco é confirmar o que atestou Gilberto Gil há mais de 50 anos: eles fazem o free nordestino, abreviando e aludindo ao free jazz, a sonoridade encorpada do grupo com liberdade total para a improvisação e para aglutinar elementos da música popular, da música erudita e de folguedos da região nordestina, celebrada pelos seis músicos no espetáculo “Sertão”, apresentado ontem (15), em São Luís, no Teatro Sesc Napoleão Ewerton.

Não, você não leu errado (como um deles disse, ontem, durante o show: vocês não estão vendo errado): com o reforço do violeiro Waleson Queiros, um “viola heroe”, o Quinteto Violado é, atualmente, um sexteto, o que só reforça o groove de seu free.

Em entrevista exclusiva a este repórter, Marcelo Melo, voz e violão firmes aos 79 anos, ressaltou a disciplina como elemento fundamental para eles terem chegado onde chegaram. O cantor, compositor e violonista é o único remanescente da formação original, com o grupo tendo chegado aos 54 anos de estrada — há 10 não vinham à São Luís.

O grupo se completa com Dudu Alves (voz e teclado), Deri Santana (flauta), Sandro Lins (baixo) e Roberto Medeiros (voz e bateria). Em determinados pontos do espetáculo todos têm a oportunidade de exibir seu virtuosismo aos instrumentos. No bis, quase uma jam session, o improviso uniu temas que foram de “Baião” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) a “O trenzinho do caipira” (Heitor Villa-Lobos, Ferreira Gullar e Edu Lobo).

Elegantemente vestidos em roupas cujos tecidos bordados fazem referência ao gibão de couro tornado famoso por Lampião (1898-1938) e Luiz Gonzaga (1912-1989), os músicos estavam super à vontade no palco, entre o repertório, causos, histórias da trajetória e um depoimento gravado do segundo destacando a importância do Quinteto Violado para a música brasileira (o que também tinha me antecipado Marcelo Melo).

Além de Gonzaga — “Asa branca” (parceria com Humberto Teixeira), “A volta da Asa branca” (parceria com Zé Dantas) e “Acauã” (de Zé Dantas, sozinho) —, o repertório trouxe temas autorais — “Vaquejada” (Toinho Alves, Marcelo Melo e Luciano Pimentel), “Palavra acesa” (José Chagas e Fernando Filizola) —, além de nomes como Gilberto Gil — “Lamento sertanejo” (parceria com Dominguinhos) —, Milton Nascimento — “Notícias do Brasil (Os pássaros trazem”, parceria com Fernando Brant —, Alceu Valença — “Morena tropicana” (parceria com Vicente Barreto) —, e Paulo Diniz — “Pingos de amor” (parceria com Odibar) —, entre outros. A última antes do bis foi “Leão do Norte” (Lenine e Paulo César Pinheiro), uma espécie de síntese da nordestinidade.

Merece destaque também a menção ao paraibano Geraldo Vandré, cuja importância Marcelo Melo destacou, lembrando do encontro com o conterrâneo na França, quando ajudou-o a gravar “Das terras de benvirá” (1973), seu último álbum. “A ditadura militar não gostava de suas músicas e ele, como muitos intelectuais, foi obrigado a se exilar”, lembrou, para ouvir gritos de “sem anistia!” da plateia, e depois cantar “Pra não dizer que não falei as flores (Caminhando)” e “Disparada” (parceria com Théo de Barros).

Um espetáculo impecável que dá conta de reafirmar a importância da região Nordeste para a música e a cultura brasileiras, propósito de “Sertão” (que vai virar o próximo álbum do grupo), além da força do groove do free nordestino do Quinteto Violado. Vida longa!

A voz das avós 

A tirinha da Laerte (publicada na Folha de S.Paulo do último dia 3), que me levou a terminar de escrever este texto, começado há algum tempo...
A tirinha da Laerte (publicada na Folha de S.Paulo do último dia 3), que me levou a terminar de escrever este texto, começado há algum tempo…

O dj Victor Hugo, querido amigo, foi adotado pela avó de uma amiga: ele ia para a casa dela, levava uma vitrolinha e uns discos de vinil, que punha para tocar, ganhando da simpática velhinha umas cervejinhas, que brindava com a neta.

Até hoje eles mantêm a tradição de, anualmente, se encontrarem, sempre na data do aniversário da avó dela, com os vinis e a vitrolinha, além das cervejas, é claro, agora pagas por eles mesmos, para celebrar sua memória. Achei a história comovente.

Minha avó fumou a vida inteira e parou uns meses antes de falecer, vitimada por um câncer de pulmão, aos 80 anos, há quase cinco — já sofria também de Alzheimer. Era uma figura. Lembro de alguns de seus ditos, que já pensei em compilar. Tomo café sem açúcar há bastante tempo. Ela gostava com. “De amargura já basta as que eu passo na vida”, dizia, fazendo graça.

Maria Lindoso, seu nome, não tinha papas na língua: dizia o que tinha de dizer na cara, sem meias palavras, doesse a quem doesse. Para o bem e para o mal. Meu avô Antonio Viana, com quem foi casada por quase 50 anos, até seu falecimento, 13 anos antes, costumava adverti-la: “Maria, tu ainda vai levar uma bolacha”, referindo-se ao seu jeito despachado de ser. A gente se divertia com as tiradas e ri ao lembrar.

Depois que me separei da mãe de meu filho, ela manifestou seu descontentamento. Apresentei-lhe companheiras, posteriormente, sempre recebidas com o muxoxo: “ainda não é esta”.

Diana, cuja nossa história de amor e reencontro minha meia dúzia de leitores já conhece, tem, entre suas tatuagens, três frases de expoentes das letras brasileiras: Ferreira Gullar (1930-2016), Guimarães Rosa (1908-1967) e Clarice Lispector (1920-1977).

São elas, respectivamente: “Voai comigo sobre continentes e mares” (do “Poema sujo”), “O que a vida quer da gente é coragem” (do Grande sertão: veredas”) e “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome” (de “Perto do coração selvagem”).

Suas escolhas para marcar na pele dizem muito do ser que é, com quem aprendo todos os dias, que tenho finalmente a alegria de dividir. Pode soar piegas dizer, mas esperei por isso a vida inteira, mesmo quando eu não sabia.

Conversando sobre avós, ela me contou da sua também saudosa dona Mary Benedita, mãe de sua mãe, caxiense da Cabeceira dos Cavalos, que radicou-se em Pedreiras após casar, e não se conformava de ver a neta com os joelhos ou cotovelos ralados por se juntar aos meninos em brincadeiras menos delicadas, típicas de uma época em que as telas não eram realidade.

“Desse jeito nenhum homem vai querer casar contigo”, advertia a vovó, primeira porta de entrada ao feminismo que Diana estuda, pratica e, por que não dizer, (me) ensina.

Nossas mães, também já avós, se conheceram e se deram super bem. Nossas avós não tiveram a oportunidade, nem mesmo nós, de conhecer as avós um do outro.

Gosto de pensar que elas tenham se encontrado onde quer que estejam e nos vendo de cima, tenham tido o seguinte diálogo:

“Finalmente Diana encontrou alguém que quisesse casar”.

“É, finalmente é essa”.

Selfie na plateia do show de Mônica Salmaso no último dia 6 de setembro, no Teatro Arthur Azevedo
Selfie na plateia do show de Mônica Salmaso no último dia 6 de setembro, no Teatro Arthur Azevedo