Bumba meu boi, poesia, literatura infantil e direitos humanos

Bumba, nosso boi. Capa. Reprodução
Bumba, nosso boi. Capa. Reprodução

 

Jornalista de ciência, Diego Freire parte da mais conhecida manifestação da cultura popular do Maranhão, o bumba meu boi, para discutir a questão do bullying. O resultado é o belo livro-poema Bumba, nosso boi [Empíreo, 2016, 40 p.], verdadeira obra-prima da literatura infantil, ilustrado por Rogério Maroja, com trabalhos espalhados por revistas como Superinteressante, Recreio, Placar, Saúde e Playboy.

A dedicatória a Papete, um dos maiores embaixadores da cultura maranhense mundo afora, evoca o Boi de lágrimas, clássico de Raimundo Makarra, gravado pelo próprio Papete e tantos outros: “também sente dor, e boi também chora”, diz a letra. É um mote para entrar no debate.

O poema conta a história de Bumba, o boi preferido do fazendeiro, cuja língua desejada por Catirina, é arrancada por Pai Francisco para satisfazer o desejo da esposa grávida, tal qual no auto do bumba meu boi.

Mas no poema de Diego Freire, em vez de morrer e ser ressuscitado pela pajelança de índios e cazumbás, “Bumba acabou sem língua” e “passou por poucas e não tão boas com os outros bichos da fazenda, que caçoavam do jeito diferente como ele passara a falar”.

O autor extrapola o universo do bumba meu boi do Maranhão e propõe o diálogo da lenda central do auto da manifestação com outras lendas bastante conhecidas em todo o Brasil: o Saci, a Mula sem Cabeça e o Boitatá, “que, bem, nem boi é”.

As criaturas, que a princípio deviam assustar o protagonista Bumba, acabaram por se afeiçoar a ele, que afinal havia encontrado sua turma: “Mas Bumba sorriu em vez de gritar./ “Parece que enfim achei meu lugar!”/ É que Bumba viu que toda aquela “gente”/ era como ele: diferente”.

O poema conta uma história de superação, por um viés sui generis, o que demonstra que o auto do bumba meu boi é fonte inesgotável de metáforas para compreendermos melhor o mundo, nosso lugar nele e lutar pelo fim das injustiças sociais – afinal, não é disso que tratou o enredo junino desde sempre?

Para ser lido em qualquer época, não apenas por crianças, Bumba, nosso boi é um livro, no fundo, sobre “direitos humanos”, expressão em geral detratada pelos que insistem em sua abstração como uma espécie de entidade sobrenatural, generalizando órgãos e instituições como “defensores de bandidos”.

O grande trunfo do livro de Diego Freire reside bem aí: escolhe um tema, apresenta sua necessidade de debate e faz isso de maneira leve, longe, muito longe de soar panfletário. Sobra até para a hoje onipresente Galinha Pintadinha.

O autor, em foto de divulgação
O autor, em foto de divulgação

Serviço

Diego Freire autografa Bumba, nosso boi na programação da 10ª. Feira do Livro de São Luís. Dia 13 de novembro (domingo), às 19h, na Casa do Escritor Maranhense, na Vila dos Livros (Praça da Casa do Maranhão). Toda a programação da FeliS tem entrada franca.

Para ler e reler (e deixar mais doce a vida)

Trinta e poucos. Capa. Reprodução
Trinta e poucos. Capa. Reprodução

 

Qualquer assunto é tema para Antonio Prata e essa versatilidade também faz dele um grande cronista. Trinta e poucos [Companhia das Letras, 2016, 226 p.; leia um trecho] reúne um punhado de crônicas suas publicadas desde 2010 no jornal Folha de S. Paulo.

Do relacionamento à paternidade, passando por futebol, infância, tecnologia, Deus, Keith Richards, procrastinação, cirurgia plástica, cinema e muito mais, qualquer assunto é tema para Antonio Prata, insisto.

A crônica, esse gênero legitimamente brasileiro, tornado grande literatura por nomes como Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Nelson Rodrigues, entre outros – não à toa todos citados na seleção de Trinta e poucos –, encontra em Antonio Prata um dos melhores nomes a garantir a continuidade desta tradição, hoje, no país.

Por detrás de textos aparentemente simples, descolados do compromisso com o factual, o calor da hora, tão caro às principais manchetes dos jornais, a crônica pode ser erroneamente vista como gênero menor. No fim das contas, tudo acaba forrando obra ou embrulhando peixe, como tira sarro o próprio Prata. E talvez aí resida a necessidade de o autor reunir as melhores em um livro, a que os afeitos às tecnologias podem achar desnecessário: livro? Que coisa mais obsoleta! Ainda mais com textos já publicados em jornal, outros torcerão o nariz.

Por detrás de textos aparentemente simples, insisto, toda a sensibilidade e um misto de erudição e cultura de almanaque do autor – em Saída para o mar, por exemplo, ele cita a Wikipedia como fonte. Engana-se quem pensa, no entanto, que é fácil ser cronista. Que é fácil ser Antonio Prata.

Filho do Mário (como assim, que Mário?, ele também uma referência, também personagem), Antonio Prata tem quase quarenta, como entrega o título do presente volume, e já tem, mesmo tão jovem, seu lugar garantido em algum panteão ao lado de todos os citados – inclusive Luis Fernando Veríssimo e Humberto Werneck, de quem também lembra em textos ao longo de Trinta e poucos, o bom humor sempre presente, outra característica sua.

A vida é que nem rapadura: é doce, mas é dura, diz o dito popular. Pode ser mais doce ou mais dura. Depende, certamente, se você lê ou não Antonio Prata.

Sérgio Sant’Anna partilha memórias em novo livro

O conto zero e outras histórias. Capa. Reprodução
O conto zero e outras histórias. Capa. Reprodução

 

Para os leitores que, qual este resenhista, se maravilharam com o soberbo O homem-mulher [Companhia das Letras, 2014, 184 p.], a espera até que não foi tão grande: dois anos depois daquele grande livro, Sérgio Sant’Anna, gênio absoluto da narrativa curta no Brasil, lança O conto zero e outras histórias [Companhia das Letras, 2016, 173 p.; leia um trecho].

O carioca mergulha na própria memória para escrever os 10 contos do volume. No conto que dá título ao livro, a lembrança de sua passagem, adolescente, por Londres, entre “a tonteira do corpo e a emoção da transgressão”, ao tragar, com o irmão, o primeiro cigarro, um samba de Noel Rosa aprendido com o pai, o primeiro beijo e o primeiro namoro.

Flores brancas é um conto de amor e desamor, dos desgastes provocados pelo cotidiano, certa necessidade de aventura e sobre a amizade, essa delicada forma de amar. O protagonista, como foi o autor, é funcionário da Justiça do Trabalho e professor universitário.

A participação de Sérgio Sant’Anna, então um autor iniciante (havia estreado com Os sobreviventes, em 1969), no Programa Internacional de Escritores (International Writing Program), na Universidade de Iowa, Estados Unidos, é rememorada em Vibrações, narrativa fragmentada, feita de colagens de lembranças, mais de 40 anos depois. Sem caretice, o autor, ali chamado simplesmente pela inicial S, lembra escritores, poemas, casos, drogas e álcool – sempre com o bom humor que lhe é peculiar, lembra, por exemplo, que o programa era apelidado de International Drinking Program, devido aos rios de álcool ingeridos pelos participantes. O tema é retomado em Caminhos circulares.

No prefácio de 50 contos e 3 novelas [Companhia das Letras, 2007, 624 p.], José Geraldo Couto anota que conto é tudo aquilo o que Sérgio Sant’Anna deseja transformar em conto, parafraseando o “conto é tudo aquilo que chamamos conto”. No comovente A bruxa, neste O conto zero, o autor parte de uma situação prosaica, o inseto que batiza o conto, uma espécie de libélula, pousado em seu quarto com vista para o Cristo Redentor, para lembrar Clarice Lispector, musa que chegou a conhecer. Trata o inseto como se este fosse um sinal da presença do espírito da escritora. “De todo modo, muitas vezes fantasiei que voltava à sua casa e partilhava sua cama com ela. Mas não ouso escrever nenhuma vulgaridade sobre Clarice”, confessa.

O museu da memória, conto que encerra o livro, é uma espécie de síntese deste reencontro – embora saibamos que ele nunca se perdeu – de Sérgio Sant’Anna consigo mesmo. Ou melhor: um reencontro dele com suas origens, algo como “por que eu me tornei escritor”, onde surgem temas caros à sua ficção, como sexo, futebol e música.

“No museu da memória há a lembrança de quando eu tinha uns quatro anos, cortando-me com o aparelho de meu pai, ao imitá-lo fazendo a barba. Ah, quando terá começado este verdadeiro eu?”, finaliza.

Areia, sol, sal, limão e vidas

Ostreiros. Capa. Reprodução
Ostreiros. Capa. Reprodução

Ostreiros [Pitomba!, 2016, 120 p.] surgiu quase por acaso, da ida de Bruno Azevêdo à praia e o hábito de sol, cerveja e ostras. O reencontro com um ostreiro, algo raro, dados os quilômetros de orla que percorrem a pé, munidos de seus isopores, instigou-o a fotografá-los e, a partir dali, contar suas histórias. Aliou à empreitada a antropóloga e fotojornalista Ana Mendes com quem passou alguns meses frequentando as praias da ilha – Raposa, Calhau, Caolho, Olho d’Água e Araçagy –, aliando trabalho e diversão.

A grande sacada do livro da dupla é, justamente, passar longe de qualquer academicismo ou tentativa de sociologização das coisas – no caso, das pessoas ali retratadas, em foto e texto. Quando passa mais perto disso é para explicar o porquê de a foto de uma criança ostreira – herdeira do ofício de avô e pai, este também iniciado menino na atividade – não poder mostrar seu rosto, a demonstrar a ambiguidade da legislação brasileira, que, bastante rígida, não consegue evitar as mazelas que pretende combater.

“Fotógrafos? Etnofotógrafos? Antropólogos? Na verdade o que vejo aqui no Ostreiros é o trabalho de contadores de história”, resume Pedro Garcia, o Cartiê Bressão, no texto da quarta capa. Bruno e Ana misturam-se a ostreiros, flanelinhas, ambulantes e toda a fauna típica da orla da ilha, inclusive na tiração de onda entre eles mesmos.

É um livro que relata dramas, mas em que em determinados momentos desperta deliciosas gargalhadas. Não se trata de um volume de perfis biográficos: os textos e fotografias de Ana e Bruno são mais livres que enquadramentos em categorias literárias. “Ostreiros é um livro de afetos (…). É, por isso, um livro do “olho no olho”, muito sincero, bonito e necessário”, arremata, na orelha, o poeta Josoaldo Lima Rêgo.

Ostreiros traz em suas páginas a linguagem das ruas – ou melhor, das areias – e as manhas do ofício: o papo de vendedor, os brindes que sempre rolam para o bom freguês (quando uma dúzia pode ter 13 ou 14 ostras), a cerveja a que muitos se dispõem a beber junto (e talvez não o façam mais pela falta de costume dos fregueses em oferecer, como o faz a dupla de autores) e deliciosas histórias, de leitura fácil e rápida, mas sem simplismos.

Toda a experiência foi postada em redes sociais – instagram, facebook – ao passo em que o livro era feito, desde antes mesmo de surgir a ideia do volume, que é a materialização e organização do conjunto, disponível na internet. Quem se contenta com o virtual não vai sacar, por exemplo, a textura de isopor da capa, com o título estampado em uma fonte que imita a vernacular do ostreiro Josivan, o “Buchudo”, pintada por ele na caixa com que percorre as praias da ilha, mantendo o capricho editorial, padrão da editora Pitomba!

Incontáveis dúzias de ostras foram consumidas na colheita dos retratos e relatos, que a dupla não ia empatar com sua labuta a alheia, afinal de contas, “o cara não quer saber na segunda-feira se tu vendeu ou não. Ele quer saber do dinheiro dele”, como dá a real o ostreiro Dominguinhos, que vende ostras catadas por terceiro.

A ele e todos os personagens retratados, Bruno Azevêdo – exército de um homem só à frente (e por detrás) da Pitomba!; Ana Mendes está em Mato Grosso – tem feito o esforço de entregar exemplares, para que se vejam e se leiam – e aos que não sabem fazê-lo, em meio ao sarro mútuo típico de quando os personagens se encontram, o autor/editor tem lido para eles. Outra história comovente que caberia num making of.

A noite de autógrafos de Ostreiros acontecerá dia 26 de agosto (sexta-feira), às 19h, na Casa de Nhozinho (Praia Grande).

Obituário: Veloso

Veloso, nome fundamental da cultura da Madre Deus. Foto: acervo Philippe Caruru
Veloso, nome fundamental da cultura da Madre Deus. Foto: acervo Philippe Caruru

 

Nunca entrevistei Veloso. A última vez que o vi foi no Cafofo da Tia Dica. Na ocasião, presenteou a mim e ao compositor Cesar Teixeira, com quem eu bebia no bar por detrás da Livraria Poeme-se, na Praia Grande, com exemplares do mais recente disco da Máquina de Descascar’alho, agremiação carnavalesca que completou 30 anos no último carnaval.

Indaguei-lhe quanto custava e ele respondeu-me que o importante era fazer o disco rodar e tornar mais conhecida a música, o carnaval e a cultura da Madre Deus. O Fuzileiros da Fuzarca completava 80 anos e eu havia acompanhado Cesar, jornalista de formação, em algumas entrevistas.

A vida é a arte do encontro: nem Cesar escreveu sobre os 80 anos do Fuzileiros, com cuja velha guarda deve fazer um show em breve, nem eu sobre os 30 da Máquina.

Patrimônio madredivino, como nomes como Cristóvão Alô Brasil, Marciano, Henrique Sapo e Caboclinho, José de Ribamar Gomes Veloso (9/9/1948-13/8/2016) morreu ontem, aos 67 anos, vítima de cirrose hepática.

Artesão, compositor, percussionista, produtor, decorador e intérprete, trazia na memória sambas inéditos da velha guarda da Madre Deus, de nomes como os citados – parte desta riqueza se perde com ele.

Além da Máquina de Descascar’alho – que realizou um grandioso cortejo pelas ruas da Madre Deus em sua homenagem – Veloso fundou grupos como o Regional 310, Boi Barrica, Bicho Terra e C. de Asa. Era um dos agitadores do evento mensal Tezão de Velho, no Largo do Caroçudo, na Madre Deus – a edição de hoje foi cancelada em respeito ao luto da família, do bairro e da cultura popular maranhense.

Silvério Costa, o Boscotô, parceiro de grupos como o Regional 310 e a Máquina de Descascar’alho, lembra a importância do amigo. “Veloso estava sempre de bom humor, era querido por todos, por sua irreverência, suas histórias e ideias inovadoras. Com ele se vai um pedaço importante de nossa memória”, lamentou.

Autor de hits do carnaval do Maranhão como A laska e Barreira sanitária, parceiro de Erivaldo Gomes em Malementa, durante muito tempo hit bastante apreciado pelos frequentadores da semanal A vida é uma festa, do poeta-músico ZéMaria Medeiros, entre outras, Veloso deixou quatro filhos, entre eles o cavaquinhista Kauê Veloso.

*

OBITUÁRIO: JOMAR MORAES

O escritor Jomar Moraes. Foto: Acervo O Imparcial
O escritor Jomar Moraes. Foto: Acervo O Imparcial

Faleceu na manhã de hoje o escritor vimarense Jomar Moraes (6/5/1940-14/8/2016), presidente da Academia Maranhense de Letras (AML) por 11 mandatos, autor de livros como Guia de São Luís, O físico e o sítio, Graça Aranha e Vida e obra de Antonio Lobo, entre outros.

Segundo informações, Moraes tinha problemas renais e durante a madrugada uma crise afetou seu coração. Há quase um ano ele doou sua biblioteca, com cerca de 40 mil volumes, à Universidade Federal do Maranhão (UFMA), instituição na qual formou-se bacharel em Direito e recebeu o título de Doutor Honoris Causa.

As galerias de Kucinski

Os visitantes. Capa. Reprodução
Os visitantes. Capa. Reprodução

 

Assinando simplesmente B. Kucinski, Bernardo Kucinski só estreou na literatura de ficção quando já contava 74 anos. Já era um professor bastante respeitado, graduado em física, jornalista e cientista político, reconhecido como autor de livros fundamentais em currículos acadêmicos nas áreas de jornalismo, economia e política.

K: relato de uma busca [Expressão Popular, 2011; Cosac Naify, 2014; Companhia das Letras, 2016, 176 p.; leia um trecho], a estreia, é uma autoficção em que o autor narra o desaparecimento da própria irmã entre os horrores da ditadura militar brasileira. A obra bastou para colocar-lhe entre nossos grandes ficcionistas, tendo sido traduzida para oito idiomas e finalista de seis prêmios literários, no Brasil e no exterior. O autor voltaria ao tema nos contos de Você vai voltar pra mim [Cosac Naify, 2014, 188 p.].

Não é à toa ou mera jogada de marketing o anúncio ao pé de Os visitantes [Companhia das Letras, 2016, 85 p.; leia um trecho], o título na capa de seu novo livro: “do autor de K: relato de uma busca”. É que, magro, mas consistente, este volume não existiria sem aquele – embora a leitura do primeiro não seja imprescindível à compreensão deste.

Trata-se de misto de mea-culpa e making of em que o autor, modesto, assume erros e confessa vacilos, num jogo envolvente com o leitor: o título da novela alude aos que vão até sua casa, quase sempre com o pretexto de criticar o livro ou o autor.

Citações interessantes ao longo de Os visitantes – os escritores Chico Buarque, Enrique Vila-Matas, Fiódor Dostoievski, Franz Kafka, Juan Rulfo, Primo Levi – não fazem de Kucinski um “escritor de escritores”, nem é arroto gratuito de erudição.

Kucinski desfila uma rica galeria de personagens para construir uma espécie de errata em forma de novela. Personagens e situações tão consistentes que, a despeito da magreza do livro, acabam por explicar melhor determinadas passagens de K: relato de uma busca. Se a estreia já alçara o autor ao status de grande entre nossos ficcionistas, este Os visitantes é uma espécie de carimbo de confirmação de seu lugar nessa galeria.

Vidas breves em perfis idem

A vida louca da MPB. Capa. Reprodução
A vida louca da MPB. Capa. Reprodução

 

“Vida louca vida, vida breve”. Os versos de Vida louca vida, parceria de Lobão e Bernardo Vilhena, gravada por Cazuza, são uma espécie de cartão de visitas apropriado aos 17 artistas perfilados em A vida louca da MPB [Leya, 2016, 271 p.], de Ismael Caneppele, autor de Os famosos e os duendes da morte.

Estão lá, por ordem de aparição, Carmen Miranda, Noel Rosa, Mario Reis, Orlando Silva, Dalva de Oliveira, Nelson Cavaquinho, Vinicius de Moraes, Maysa, Wilson Simonal, Tim Maia, Raul Seixas, Sérgio Sampaio, Itamar Assumpção, Júlio Barroso, Cazuza, Renato Russo e Cássia Eller, gênios da música produzida no Brasil em todos os tempos em suas mais variadas vertentes, a maioria de morte precoce, todos dados a exageros, entre drogas lícitas e ilícitas.

O pé na jaca comum é perspectiva interessante para reunir a constelação caricaturada por Rafael Nobre, na capa e abertura de cada perfil biográfico, mas estes nada acrescentam a qualquer conhecedor médio de histórias de bastidores envolvendo figurões da música brasileira, a maioria dos personagens fartamente biografada, grande parte também tema de documentários.

A exceção talvez seja Júlio Barroso, mentor da Gang 90, apesar do sucesso efêmero em tema de novela global – Nosso louco amor [1983] –, cujo tema de abertura era a música homônima do grupo. Mesmo Itamar Assumpção, da Vanguarda Paulista ao lado de nomes como Arrigo Barnabé e os grupos Rumo e Premeditando o Breque, vem, ao longo dos anos, ganhando certa popularidade, por exemplo com o lançamento da Caixa preta [Selo Sesc/SP, 2010] e gravações e regravações de nomes como Zélia Duncan, que dedicou um álbum inteiro a seu repertório [Tudo esclarecido, de 2013], e Chico César, que ao refazer o disco de estreia, Aos vivos [1994], incluiu a faixa bônus Dor elegante, composta pelo Negão Beleléu sobre poema de Paulo Leminski [em Aos vivos agora, de 2011].

Sobre Dor elegante, aliás, há uma incorreção no perfil de Itamar Assumpção: o autor cita-a como “Sofrer vai ser a minha última obra”, um dos versos do poema, afirmando que Itamar a teria composto em 2002, após uma de suas várias internações na luta contra o câncer que acabou vencendo-o em 2003 – a música foi gravada por Itamar em Pretobrás, último disco lançado em vida pelo artista, em 1998.

Há outros erros: no perfil dedicado a Tim Maia, por exemplo, o autor escreve Cachoeira do Itapemirim ao referir-se à cidade natal de Roberto Carlos, Cachoeiro de Itapemirim. No de Sérgio Sampaio, omite o “é” ao citar sua música mais conhecida, Eu quero é botar meu bloco na rua, que deu nome a seu primeiro disco solo, de 1973, e intitulou também a biografia do cantor e compositor, escrita por Rodrigo Moreira, constante na curta bibliografia citada ao final do volume.

O conjunto de perfis ao menos não esbarra em moralismo nem faz apologia ao uso e abuso de álcool, maconha, cocaína, heroína, mandrix, ecstasy ou LSD, vícios que percorrem suas páginas e as vidas dos personagens que por ela desfilam.

Belchior invocado

Jotabê Medeiros e o blogueiro na Feira do Livro de São Luís em 2013, quando ele lançou "O bisbilhoteiro das galáxias". Foto: Talita Guimarães
Jotabê Medeiros e o blogueiro na Feira do Livro de São Luís em 2013, quando ele lançou “O bisbilhoteiro das galáxias”. Foto: Talita Guimarães

 

Amanhã (23) em São Paulo, o jornalista Jotabê Medeiros reúne diversos amigos para celebrar a obra de Belchior, artista cearense de quem está escrevendo a biografia Pequeno perfil de um cidadão comum, título de uma conhecida canção sua, parceria com Toquinho.

E-flyer de divulgação do evento. Arte: André Kitagawa
E-flyer de divulgação do evento. Arte: André Kitagawa

Invocação Belchior – debate-canção sobre a vida e a obra de um grande artista, o evento, reunirá, além do organizador, o jornalista Pedro Alexandre Sanches, seu colega de Farofafá, o compositor Jorge Mello (parceiro de Belchior e fonte de Jotabê na biografia) e Josy Teixeira, doutora em Belchior pela USP, além de músicos revisitando clássicos e lados b do cearense: Edvaldo Santana, Juliano Gauche, Assucena Assucena (vocalista de As Bahias e a Cozinha Mineira), Mário Bortolotto e o próprio Jorge Mello.

“Eu tenho diversos amigos que partilham comigo essa paixão pela obra do Belchior e pela coerência artística dele. Me ocorreu que é legal manter uma obra como a dele, que está agora, talvez, um tanto quanto esquecida, pelo fato de que ele deu um sumiço, que seria legal reunir as pessoas que têm algo a dizer e fazer umas provocações. Os beatniks faziam muito isso, houve uma tradição uma época no mundo cultural, reunir as pessoas, o dadaísmo se reunia no Cabaret Voltaire, lá em Zurique, e lá eles realizavam suas provocações artísticas. A gente esqueceu um pouco essa tradição, tá tudo muito ligado a questões como showbiz, a realização de um show, achei até que essa coisa da extinção do Ministério da Cultura liberou um pouco pras pessoas fazerem ações coletivas sem fins outros que não a própria ação. Esse encontro, Invocação Belchior, é uma coisa assim, eu até brinquei, como tinha essa coisa lá nos beatniks, os belchniks vão se reunir no dia 23 aqui em São Paulo”, anuncia Jotabê.

Biógrafo e biografado têm trajetórias parecidas, como lembra Belchior na autobiográfica Fotografia 3×4, “pois o que pesa no norte/ pela lei da gravidade/ disso Newton já sabia/ cai no sul, grande cidade”, ele cearense de Sobral, Jotabê paraibano de Sumé, o primeiro desce para o eixo Rio-SP em busca de um lugar ao sol na MPB da época dos grandes festivais, o segundo forma-se em jornalismo em Londrina/PR e fixa residência em São Paulo, onde consolida-se como um dos mais importantes jornalistas culturais em atividade no país.

“Belchior tratou em algumas músicas da questão da migração, tem também entrevistas que tratam dessa coisa, o fato do cidadão migrante, principalmente do Nordeste, ser visto como um pária, às vezes, aqui no Sul, Sudeste, ser visto como um ser, eles fazem essa confusão, geralmente é o porteiro ou é o pedreiro, no Rio de Janeiro chamam todo mundo de Paraíba, aqui em São Paulo chamam de baiano, sempre com um tom meio agressivo, e o Belchior sentiu isso na pele e fez algumas músicas maravilhosas sobre esse sentimento. Eu sou migrante, mas vim beber pra cá pro Sudeste, conheço esse sentimento meio transversalmente, mas reconheço a grande poesia que nasce desse estado de preconceito. Belchior fez maravilhas, Fotografia 3×4 é a história de todos nós”, prossegue Jotabê.

A Belchiorgrafia em progresso e o evento de amanhã são exceções no noticiário relativo ao artista nos últimos anos, seu bigode grisalho tingido pelo marrom da imprensa sensacionalista, especulando sobre dívidas, motivações e até seu quadro psicológico. Jotabê trabalha com afinco, em meio a uma agenda intensa de compromissos profissionais, atuando como jornalista independente há pouco mais de um ano, escrevendo regularmente em seu blogue, no site Farofafá e no portal Uol.

“Seria ótimo poder falar com ele, cotejar alguns temas da obra dele, perguntar, por exemplo, eu tou tendo que ir a fontes, parceiros, para chegar, por exemplo, por que o desespero era moda em 73?, um verso famoso dele [de A palo seco]. O desespero era moda em 73 por que naquela época quem mandava no país era um general chamado Emílio Garrastazu Médici, era linha dura, a perspectiva para artistas e pessoas que eram vítimas da censura era muito dura, então ele cunhou esse verso em relação a esse período do Médici, e pouca gente sabe disso. Eu gostaria de falar com ele e perguntar para ele, diretamente. Não vai ser possível”, contenta-se.

Em 2016 Alucinação completa 40 anos. O disco de Belchior foi eleito o melhor da música produzida no Ceará, em enquete do jornal O Povo. Em outubro, o compositor completa 70 anos, quando deve ser lançado Pequeno perfil de um cidadão comum. “Vai estar na mão do editor daqui a um mês, então acho que sai. Tá previsto, vai sair”, garante. Segundo livro de Jotabê Medeiros, o aguardado sucessor de O bisbilhoteiro das galáxias – No lado b da cultura pop [Lazuli, 2013], será certamente um presente e tanto para Belchior, seus fãs e interessados em música e jornalismo cultural em geral.

Ouça o álbum Alucinação:

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O texto toma por base entrevista concedida por Jotabê Medeiros ao blogueiro no programa Conversa à Beira Mar da última quarta-feira (20), na Rádio Timbira AM (1290KHz).

Esse livro é uma pedra!

Da terra das primaveras à ilha do amor. Capa. Reprodução
Da terra das primaveras à ilha do amor. Capa. Reprodução

 

Não à toa Ademar Danilo fala em “pioneirismo desbravador” em A primeira pedra, texto de introdução à reedição de Da terra das primaveras à ilha do amor: reggae, lazer e identidade cultural [Pitomba!, 2016, 143 p.], de Carlos Benedito Rodrigues da Silva, o Carlão.

Fruto da dissertação de mestrado defendida na Unicamp pelo professor campinense radicado em São Luís desde 1981, o livro foi publicado pela primeira vez em 1995, pela Edufma. Também não foi à toa que os lançamentos de Onde o reggae é a lei, de Karla Freire, e O reggae no Caribe brasileiro, de Ramusyo Brasil, ambos da Pitomba!, requentaram a busca pela obra inaugural, até então alçada também ao status de raridade.

Carlão dá um mergulho profundo tentando compreender – e fazer seu leitor – o trinômio do subtítulo. Militante do movimento negro, aborda o preconceito sem soar panfletário. Fato é que passados 20 anos da publicação em livro da pesquisa do professor do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), o reggae pode ter deixado as páginas policiais para ganhar as de cultura. Ainda enfrenta, no entanto, a resistência dos que insistem em se incomodar com o epíteto de Jamaica brasileira atribuído à São Luís.

Saudosistas de um passado que não houve – São Luís nunca foi uma cidade bem servida de livrarias e/ou leitores, e hoje, creio, o quadro é ainda pior – apegam-se a uma Atenas brasileira que a capital maranhense nunca foi, de fato. Nisso também reside o preconceito abordado por Carlão: mais fácil (e bonito) descender da Europa que da África, para quem nisso crê.

Para o autor, entender o reggae enquanto lazer e identidade cultural é libertador, tendo em vista que a maioria dos estudos sobre o negro e a negritude, em geral aborda a herança africana de modo a relegar-lhes à condição de ex-escravos ou descendentes de.

A pesquisa de Carlão alia a abordagem acadêmica – as referências dão um belo catatau a quem quiser se aprofundar no tema – a um trabalho de campo de imersão, que resultou em etnografia capaz de traduzir a realidade daquele momento, em que clubes como Pop Som, Toque de Amor e Espaço Aberto, e radiolas como Estrela do Som, Voz de Ouro Canarinho e Águia do Som davam o tom regueiro à cidade.

Carlão remonta às origens, refazendo o percurso dos primeiros Jimmy Cliff que soaram por estas bandas, passando pelas lendas envolvendo donos de radiola e DJs quanto à exclusividade de determinadas “pedras”, a verdadeira guerra travada por clubes e programas de rádio no sentido de garantir atrativos à massa regueira, quase tão fiel quanto as torcidas de futebol (digo quase por que eventualmente um “torcedor” de determinada radiola podia frequentar uma festa em que outra tocasse).

A necessária reedição de Da terra das primaveras à ilha do amor chega em boa hora, enriquecida, como é padrão da Pitomba!, por vasta iconografia, podendo o leitor perceber melhor a estética do período abordado pelo livro.

Metaliteratura

O céu de Lima. Capa. Reprodução
O céu de Lima. Capa. Reprodução

 

O céu de Lima [Alfaguara, 2016, 245 p., tradução de Paulina Wacht e Ari Roitiman], romance de estreia do jovem espanhol Juan Gómez Bárcena, é um exercício de metaliteratura, um metarromance. O texto é construído à medida que se constrói a história que conta, embora a mesma se passe no início do século XX.

O romance parte da história real de José Gálvez e Carlos Rodríguez, dois jovens limenhos metidos a poetas que, para conseguir um exemplar de Árias tristes [1903], novo livro do poeta espanhol Juan Ramón Jiménez (Nobel de Literatura em 1956), inventam uma personagem: a senhorita Georgina Hübner, fantasma pelo qual o poeta acaba se apaixonando.

Gálvez e Rodríguez, que tratam Jiménez por mestre, querendo sê-lo e escrever a poesia que escreve, fundem-se na personagem feminina, protagonista de um romance epistolar que durará meses – um mês é o tempo médio que os navios demoravam para levar e trazer as missivas entre Lima (onde mora a dupla de simpáticos e inofensivos embusteiros) e Madri (onde mora o poeta admirado) ou Moguer (sua terra natal).

A aventura passa por comédia, história de amor, tragédia e um poema – para citar as partes em que o autor divide o romance; mas esta última, a poesia, permeia completamente o livro, com todos os clichês que acometem jovens metidos a poetas, seja em Lima, no Peru, em 1904, seja em São Luís do Maranhão, no Brasil, em 2016. Ao contrário de suas personagens, no entanto, Bárcena demonstra maturidade, habilidade e domínio para preencher com ficção trechos da história real sui generis que deliciosamente conta.

O título do romance de estreia de Bárcena – que lançou Los que duermen [contos, 2012] e editou a coletânea Bajo treinta [2013], com jovens autores espanhóis – é, afinal, tirado do poema resultante da correspondência entre o poeta (real) e a musa (imaginária): Carta a Georgina Hübner no céu de Lima, publicado em Labirinto [1913].

O caso de amor do samba com a canção

(e outros casos de amor em torno do samba-canção)

A noite do meu bem. Capa. Reprodução
A noite do meu bem. Capa. Reprodução

O subtítulo anuncia e é exatamente disso que se trata: “a história e as histórias do samba-canção”. Em seu novo livro, cujo título pega emprestado o de um clássico do brasileiríssimo gênero, de Dolores Duran, A noite do meu bem [Companhia das Letras, 2015, 510 p.; leia um trecho], Ruy Castro, ao biografar o samba-canção, oferece ao leitor uma radiografia musical, sociológica, geográfica, sentimental e “etilírica” do Brasil entre o final da década de 1930 e meados da de 60.

Experiente, autor de diversas biografias tornadas clássicas – Carmen Miranda, Garrincha, Nelson Rodrigues, a Bossa Nova –, Ruy Castro mesmo foi testemunha ocular do ocaso das boates cariocas, tendo estreado no jornalismo em 1967, no Correio da Manhã. Mas seu foco neste livro é o apogeu, os dias de glória e glamour de cenários lendários, como o Vogue, Sacha’s e Golden Room, entre outras.

“Não eram “sambas de sambista”, como se definiam os sambas rasgados e sincopados de Assis Valente, Wilson Baptista ou Geraldo Pereira. Eram sambas, sem dúvida – o ritmo, apesar de mais lento, era inconfundível –, só que românticos, intimistas e confessionais, com frases musicais longas e licorosas, perfeitos para ser dançados como sambas, mas devagarinho, com o rosto e o corpo colados. O samba fora para a cama com a canção, numa romântica noite de bruma, e resultara neles, os sambas-canção, com suas letras narrativas, que contavam uma história – e esta, com frequência, se referia a um caso de amor desfeito, como de praxe nas músicas românticas em qualquer língua” (p. 70), anota o autor sobre a gênese.

Além do samba-canção em si e de muitas histórias por trás de muitos deles, estão ali os bastidores, as alcovas e camarins, a estreita relação do ambiente das boates com o poder central do Brasil – o Rio era ainda a capital federal – e seus namoricos, a militância de diversos personagens em várias frentes. Nomes como Antonio Maria, Sérgio Porto (ou Stanislaw Ponte Preta) e Fernando Lobo atuavam em rádio, jornal, produção, compunham e ainda tinham tempo para beber olimpicamente.

Ruy Castro advoga ter sido, talvez sem querer, Noel Rosa um dos inventores do samba-canção. Mas isso só se descobriu após a morte do compositor de Vila Isabel, quando Aracy de Almeida – sua maior intérprete – foi contratada para cantar no Vogue e, entre conhecidas e inéditas – “Feitio de oração, Feitiço da Vila e Pra quê mentir, de Noel e Vadico, e Não tem tradução, Pela décima vez, Silêncio de um minuto, O X do problema e Último desejo, só de Noel” – talvez por sua interpretação, “uma sambista que não precisava requebrar as cadeiras para cantar, só então se percebeu que todos aqueles grandes sambas de Noel eram… sambas-canção” (p. 65).

Não faltam clássicos e personagens monumentais ao texto elegante qual os frequentadores das boates em sua origem, quando ternos e gravatas não eram dispensados a seus frequentadores. A noite do meu bem entremeia histórias diversas, pelas quais passam a fundação da Última Hora de Samuel Wainer, o suicídio de Getúlio Vargas, a invenção da Bossa Nova, a construção e inauguração de Brasília, o golpe militar, entre outras, trágicas, anedóticas e/ou lendárias. Craque de nosso jornalismo, Ruy Castro oferece aos leitores mais um livro fundamental para a compreensão de parte importante da História (da Música, com M maiúsculo) do Brasil.

Lúcida, lúdica e necessária: uma Aula sobre a ditadura

Ah, como era boa a ditadura... Capa. Reprodução
Ah, como era boa a ditadura… Capa. Reprodução

 

Ah, como era boa a ditadura… [Companhia das Letras, 2015, 287 p.; leia um trecho]: só podia mesmo ser o título de um livro de Luiz Gê o único lugar onde essa frase soa bem. Pura e fina ironia, obviamente. “A história dos últimos anos da ditadura militar nas charges da Folha de S. Paulo”, como anuncia o subtítulo explicita melhor: a obra não é mera coletânea, é uma Aula, com A maiúsculo, de História, com H idem.

O livro cobre o trabalho de Luiz Gê no jornal paulista entre 1981 e 1984, o que, por um lado, pode parecer facilitar seu trabalho à época, afinal de contas, eram os anos da chamada abertura, da redemocratização do país. Acompanham os desenhos textos explicando o contexto, (re)apresentando personagens – dando nomes aos bois –, tornando-o leitura obrigatória para estudiosos e interessados em humor, história, quadrinhos e até mesmo àqueles que hoje em dia frequentam passeatas pedindo a volta da ditadura – estou certo de que alguns poderiam mudar de opinião após “reviver” com atenção o período.

“Quer que eu desenhe?” é irônica pergunta comumente usada para iniciar uma contraposição a argumentos. Luiz Gê desenha e escreve com propriedade de quem (sobre)viveu (a)o regime, ousando contestá-lo. E defende algumas teses interessantes: primeiro, é falacioso falar em ditadura militar, pois o golpe de 1964, em sua urdidura, contou com civis e graças a este apoio é que foi possível; segundo, a ditadura não durou apenas 21 anos, já que José Sarney, que governou o país entre 1985 e 1990, não foi eleito, mas chegou à cadeira do poder central após mudar de partido (olha o fisiologismo aí, gente!) e a morte do titular Tancredo Neves, de quem o maranhense era vice.

Gê aborda ainda heranças malditas da ditadura, para além das mais óbvias: os métodos das polícias militares, a permanência da prática de tortura, apesar de diversos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e da lei que a proíbe, e a anistia que perdoou torturadores: até hoje, no país, ninguém foi punido pelos crimes de lesa-humanidade cometidos durante o regime, ao contrário de outros países latino-americanos que também sofreram com ditaduras.

“Mas a pior de todas as heranças, a que até hoje não foi superada, foi a destruição da altamente bem-sucedida experiência educacional e do ensino público anterior a 1964. Escolas públicas tinham o mesmo nível ou maior que muitas escolas ditas de elite. Essa experiência, que poderia ter sido aperfeiçoada e ampliada para alcançar um maior número de pessoas, foi sumariamente eliminada sem jamais ter se recuperado, algo crucial que vem afetando profundamente o desenvolvimento de nossa sociedade e de nosso país”, escreve Luiz Gê à página 278. E na seguinte: “o Brasil de hoje, foi criado naquela ruptura no ano de 1964. Quem não puder enxergar o que foi exatamente que ocorreu durante os 21 anos que se seguiram não pode entender aquilo que vive hoje. Havia outra possibilidade para o Brasil e para o nosso presente […]. Tudo “mudou” para permanecer fundamentalmente igual. As relações de poder político e econômico se reajustaram. Qual dos dois manda mais em nosso sistema?”, indaga-se/nos.

Lúcido e lúdico, Ah, como era boa a ditadura… é vasto painel com muito material ainda bastante atual, infelizmente, sobretudo no que diz respeito à nossa fauna política – o folclore, a burrice, o oportunismo – e ao pensamento único da grande mídia – algumas concessões são benesses dos ditadores a apoiadores do regime.

O autor – Personagem menos conhecido e cultuado, mas tão ou mais talentoso que muitos de seus pares, o paulista Luiz Gê é arquiteto e professor universitário, entre inúmeras outras atribuições, com contribuições fundamentais à cultura brasileira ao menos nos últimos 45 anos: fundou as revistas Balão – que revelou talentos como Angeli, Laerte e os irmãos Paulo e Chico Caruso – e Circo, é autor da cultuada graphic novel Av. Paulista [1991, reedição da Companhia das Letras, 2012, 88 p.], em que conta, à sua maneira, parte da história de São Paulo, fez os projetos gráficos de Clara Crocodilo [1980] e Tubarões voadores [1984], de Arrigo Barnabé – este segundo disco são quadrinhos de Luiz Gê musicados por Arrigo –, e roteirista do matutino global TV Colosso. Como quadrinhista venceu os prêmios Casa de Las Américas, em Cuba [1981], o troféu HQ Mix, no Brasil [1991] e o prêmio Angelo Agostini de Mestre do Quadrinho Nacional, concedido pelo Senac [2005]. Ano passado presidiu o júri do Salão de Humor de Piracicaba, um dos mais importantes do país, que também o premiou, ainda na década de 1970. Na ocasião, realizou sua primeira exposição, Luiz Gê quadro a quadro, com cerca de 600 obras.

Um Nelson Cavaquinho da literatura

É como se Miguel Del Castillo fosse um Nelson Cavaquinho da literatura: seus contos permeados de morte e separação, ele escolhido um dos 20 melhores jovens escritores brasileiros pela revista Granta.

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Restinga. Capa. Reprodução

Em Restinga [Companhia das Letras, 2015, 127 p.; leia o conto-título], que dá título e abre o livro, a mãe da protagonista tem um último desejo antes de morrer: visitar a restinga da Marambaia, em conto que cita o Tom Jobim de Querida: “Longa é a praia, longa restinga, da Marambaia à Joatinga”.

“Começou as sessões um ano após a separação” e “Ainda não contou detalhes da separação na terapia” são frases que adiantam apenas em parte Olimpíadas. Empire State retrata um conflito entre irmãos com ecos bíblicos.

A Violeta que batiza conto sobre as ditaduras militares latino-americanas também morre. No texto se mesclam realidade, memória e ficção, português e espanhol.

Paranoá é outro conto povoado pela morte. A música volta a dar as caras, desta vez Stairway to heaven, do Led Zeppelin: “Naquela época cabia pouca coisa no disco. Acho que tiveram que parar a música do nada para fazer caber”, a narrativa termina abruptamente como supostamente a música.

Uma garota se lembra da babá – morta – enquanto passeia em um Cruzeiro. Leme, a narrativa mais curta do volume, é sobre desencontro – de algum modo, uma espécie de separação. Em Cancun, reencontro e fuga: um menino brasileiro de onze anos vai visitar no México o pai envolvido sabe-se lá com o quê. Ferido, o pai resolve voltar ao Brasil.

Duas gêmeas, o casamento e a separação de uma delas, outrora o marido era seu sócio, em Colônia. Em Arraial, em tempos de facebook, a tentativa de uma turma de amigos do tempo de colégio de se reencontrar no Recife.

O subtítulo anuncia na capa: “dez contos e uma novela”. Laguna, a novela que encerra o livro, acompanha as aventuras de um jornalista pelo Uruguai, com uma guia de museu recém-conhecida. É um passeio por paisagens e sensações, numa narrativa em que o abandono também se faz presente, como a música do Ratones Paranoicos, grupo oitentista de rock argentino. “No pierdas tiempo, nunca”, diz uma pichação catalogada no último texto de Restinga. Uma espécie de lição de que a vida é o que acontece enquanto a planejamos.

Linguagem: vírus e vício/s de Burroughs

Burroughs. Capa. Reprodução
Burroughs. Capa. Reprodução

 

Burroughs [Veneta, 2015, 128 p.], de João Pinheiro, outro brasileiro de reconhecimento internacional, é um mergulho profundo na atormentada mente do escritor beat – o quadrinista já havia hqbiografado outro da geração, em Kerouac [Devir, 2011]. A impressão arroxeada do miolo da graphic novel lembra as provas mimeografadas da escola da infância.

“A linguagem é um vírus vindo do espaço”, determina um dos primeiros quadros da história. O big bang de William Burroughs (1914-1997) foi o assassinato de sua esposa Joan, numa brincadeira de de seu xará Tell.

A HQ retrata um Burroughs perseguido por fantasmas, escrevendo para fugir deles, seu processo criativo, o método cut up utilizado por ele, Mugwumps, drogas, alucinações, o famoso inseto de Kafka, sua bissexualidade, a interzona e o Almoço nu – levado ao cinema por David Cronenberg. Também estão lá a violência – sobretudo contra homossexuais – e a sociedade que a aplaude, aos gritos de “bandido bom é bandido morto”.

“Morfina, heroína, dilaudid, eucodal, pantopom, diocodid, diosane, ópio, demerol, dolofina, paufium… comi, cheirei, injetei, enfiei no reto… o método não importa, o resultado é sempre o mesmo: dependência”, revela a certa altura. “Foram 15 anos no vício. Aos quarenta e cinco anos de idade, me livrei da doença da dependência. (…) Registrei minhas alucinações em centenas de páginas que mais tarde seriam publicadas sob o título Almoço nu”, continua. E arremata: “A única coisa real sobre um escritor é o que ele escreve, e não a sua vida. (…) Sinto-me forçado à conclusão apavorante de que nunca teria me tornado um escritor… sem a morte de Joan”.

Burroughs é, em suma, a história da busca de seu protagonista, um artista que viria a influenciar gerações, por salvação através da literatura, sua única crença possível.

Voduns de luz

Quando Cesar Teixeira lançou, em 2004, seu primeiro (e até aqui único) disco, Shopping Brazil, anotou em O lixo é nosso!, o texto de apresentação: “é pouco espaço pra tanto vodum”. Referia-se a mestres que reverencia, de um modo ou de outro, ali presentes e homenageados. O autor das fotos de capa, contracapa e encarte era Márcio Vasconcelos.

Pai Euclides em imagem do livro Zeladores de voduns do Benin ao Maranhão. Foto: Márcio Vasconcelos

Quando Pai Euclides faleceu busquei uma foto para ilustrar seu obituário. E não poderia ter encontrado uma melhor. O eterno líder espiritual da Casa Fanti-Ashanti sentado diante de um altar, em pose que deixa transparecer sabedoria, experiência, seriedade. “O hábito não faz o monge”, diz o dito popular, mas as vestes aproximam-no de um deus. Novamente o fotógrafo era Márcio Vasconcelos.

Agaxosa - Gloku Kosu Naeton (Ouidah - Benin), a fotografia usada na capa do livro. Foto: Márcio Vasconcelos
Agaxosa – Gloku Kosu Naeton (Ouidah – Benin), a fotografia usada na capa do livro. Foto: Márcio Vasconcelos

O retrato de pai Euclides e tantos outros Zeladores de voduns do Benin ao Maranhão [Pitomba!, 2016, 124 p.] integra o conjunto de fotografias de Vasconcelos reunido no livro, em que percorre casas de culto afro no Maranhão e no Benin – veja outras imagens no site do fotógrafo.

Dando valiosa contribuição para a preservação da memória dos voduns, o próprio Márcio Vasconcelos acaba se configurando também um zelador, dado o capricho com que exerce seu ofício e com que reúne o belo e o sagrado, para além do exótico a que são costumeiramente reduzidas estas manifestações que aliam religiosidade e cultura popular, campos em que tem vasta experiência e diversos prêmios nacionais – o próprio livro Zeladores de voduns foi contemplado no 1º. Prêmio Nacional de Expressões Culturais Afro-Brasileiras da Fundação Cultural Palmares do Ministério da Cultura (MinC), o que viabilizou sua publicação.

Mãe Elzita (São Luís) exibe seu retrato em Zeladores de voduns. Foto: Márcio Vasconcelos
Mãe Elzita (São Luís) exibe seu retrato em Zeladores de voduns. Foto: Márcio Vasconcelos

Os textos que precedem as fotografias, do editor Bruno Azevêdo e dos antropólogos Sergio Ferreti e Hippolyte Brice Sogbossi, facilitam a compreensão, sobretudo para não iniciados, das configurações que aproximam Benin e Maranhão e tornaram nosso estado um dos principais centros das religiões de matriz africana no Brasil.

“O catolicismo está muito presente nesta religião uma vez que os escravos eram obrigados a tornar-se católicos e que o catolicismo era a religião oficial do país até fins do século XIX e oficiosa em grande parte do século XX”, anota Ferreti em A terra dos voduns, um dos três textos que abrem o volume. Com Sogbossi, beninense radicado no Brasil, Vasconcelos percorreu, ao longo de quase um mês, em 2009, diversas cidades do Benin. Além de São Luís, outras cidades maranhenses também foram visitadas pelo fotógrafo, fechando o conjunto. Nas fotografias, sobretudo as do lado de cá, é possível perceber este sincretismo, com imagens de santos da Igreja Católica frequentando os terreiros, um retrato do Papa João Paulo II pendurado na parede, “folhinhas” com imagens de santos, caixas do Divino, parelhas do tambor de crioula, a decoração típica dos festejos de São João e o bumba meu boi.

Mãe Mundica Estrela (São Luís) exibe seu retrato em Zeladores de voduns. Foto: Márcio Vasconcelos
Mãe Mundica Estrela (São Luís) exibe seu retrato em Zeladores de voduns. Foto: Márcio Vasconcelos

Além de registrar diversas personalidades importantes para a perpetuação da religiosidade de matriz africana nas geografias em que se concentra, os cliques certeiros de Márcio Vasconcelos em Zeladores de voduns são uma homenagem a Pai Euclides e Mãe Deni Prata Jardim, última vodunsi da Casa das Minas, falecida há um ano. É também uma ótima oportunidade a interessados em geral de conhecer um pouco mais desta história e suas personalidades.

Sempre envolvido em vários projetos simultaneamente, o fotógrafo lançará este ano dois novos livros: Na trilha do cangaço, em que refaz os caminhos de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, no sertão nordestino, com curadoria e concepção da fotógrafa inglesa radicada no Brasil Maureen Bisiliat, será editado pela Vento Leste; pela mesma editora ele publicará, com curadoria de Diógenes MouraVisões de um Poema Sujo, conjunto de fotografias inspirado no famoso livro-poema do maranhense Ferreira Gullar.