Machismo e assistência não as/os representam

Para não perder a velha mania de meter o bedelho onde não sou chamado: sobre o material de divulgação da Calourada de Serviço Social da UFMA

Sou casado com uma assistente social. Tenho várias amigas assistentes sociais. Trabalho com mais algumas assistentes sociais. Tenho uma prima que largou o curso e outra no terceiro período; o pai delas, meu tio, acaba de ir para o segundo período. Outra tia iniciou recentemente o curso na modalidade à distância. Posso dizer que estou rodeado de assistentes sociais, em casa, no trabalho e em momentos de lazer, sem contar uma passagem pela assessoria de comunicação do Conselho Regional de Serviço Social – 2ª. Região/ Maranhão (CRESS/MA).

Quando conheci minha esposa, colega de trabalho, demorei a entender uma porrada de coisas sobre essa profissão quase sempre vinculada a processos de resistência, à esquerda, ao marxismo, ao combate à violência, opressão, machismo, racismo, homofobia. É claro que há profissionais do Serviço Social que fazem o serviço sujo, como por exemplo, o convencimento de uma população que deve ser relocada (à força) em nome da implantação de um grande projeto de grande interesse do capital transnacional, mas essa é outra discussão.

Quando, começo de namoro, eu confundia Serviço Social com Assistência Social, imediatamente eu recebia uma micro-aula, estivéssemos até mesmo na mesa de um bar.

Não nego algumas dificuldades que tive em trabalhar com este povo “cri cri”, que quer tudo nos mínimos detalhes, e que nos obriga a apreender um monte de categorias e terminologias, às vezes um tanto difíceis para, no meu caso, um jornalista. Ter sido assessor de comunicação do CRESS/MA foi uma experiência de grande valia.

Mais que divulgar a calourada de Serviço Social, abrir este post com a imagem acima tem mais o objetivo de problematizá-la. Num tempo em que temos Marco Feliciano (PSC/SP), um pastor racista e homofóbico, na presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, disparando impropérios diários, num surreal politik freak show; num tempo em que um entrevistado “corre a mão” entre as coxas de uma apresentadora de televisão, a “estudante fashion e moderninha” que convida “vem que eu dou assistência” presta um desserviço aos avanços que a categoria das/os assistentes sociais vem tendo ao longo dos anos, vide a lei das 30h para ficar num exemplo recente e importante.

O cartaz é machista e este é apenas um problema (agudo em vez de crase, vou nem comentar). Além dele, reduz as possibilidades de intervenção da categoria à “assistência”, cujo nome já parece trazer em si mesmo a característica de transitoriedade desta política pública. Ou o anúncio da próxima calourada trará uma velhinha em trajes de freira lembrando o tempo em que o Serviço Social, vinculado à Igreja Católica, buscava quase catequizar os atendidos por aquela profissão que nascia?

A maioria absoluta dos profissionais do Serviço Social ainda é de mulheres. Motivo mais do que suficiente para as estudantes do 1º. período, as calouras, dizerem que “este cartaz não nos representa”. Nem a elas, nem às veteranas, nem às professoras, nem às assistentes sociais. Nem ao ainda pequeno percentual masculino de calouros, veteranos, professores e assistentes sociais.

Violência, alienação e facebook

Nos últimos dias tenho visto fortemente uma campanha grotesca, sobretudo no facebook, em defesa da redução da maioridade penal e, em tom debochado, perguntas sobre onde estariam os defensores de direitos humanos, que supostamente não aparecem quando as vítimas de homicídios são policiais.

A redução da maioridade penal não é a solução para a violência, nem mesmo para minimizá-la. Começar a condenar severamente adolescentes aos 16 anos despertará, sem tardar, daqui a alguns anos, a vontade de reduzi-la, a maioridade penal, para 14, 12, 10 anos e assim sucessivamente. Em breve, cagar nas fraldas seria crime, passível de punição do bebê.

Os que defendem a redução da maioridade penal são, em geral, contra a política de cotas; é mais fácil punir quem também é vítima que atacar as reais causas do problema. Entupir celas de presídios com jovens a partir de 16 anos faria o sistema penitenciário cumprir ainda menos sua função primordial: a de ressocializar quem passa (e sobrevive) por ali.

Quem defende a redução da maioridade penal também é, em geral, a favor da pena de morte. Ora, já não é o que está acontecendo? Só não aos moldes de filmes americanos, onde se aplicam o fuzilamento, a cadeira elétrica, a eutanásia. Ou, em épocas mais distantes, o enforcamento ou a guilhotina. Em praça pública, de preferência, para aumentar a audiência e servir de exemplo a outros “bandidos”, “marginais”, “vagabundos”, que seriam, hoje em dia, digamos, os usuários de crack com seus olhares vidrados, em qualquer retorno ou semáforo.

Em suma, reduzir a maioridade penal não é solução para nada. Por outro lado, o discursinho fajuto de que “os direitos humanos só defendem bandidos” é pra lá de surrado. Repetido à exaustão por uma mídia que compactua com a opinião de que se deva reduzir a maioridade penal ou instituir a pena de morte no Brasil, agora é copiado indiscriminadamente por quem nem sabe que “os direitos humanos” não são uma entidade abstrata. O que são os direitos humanos? São os direitos de pessoas como este que vos escreve, vocês que me leem, moradores de rua, doutores, padres, policiais “que estão contribuindo com a sua parte para o nosso belo quadro social”.

O que muita gente esquece é que moradores de rua, mendigos e mesmo os ditos bandidos também são gente. Igualzinho a quem preconceituosamente torce o nariz e acha que matar quem dorme debaixo do viaduto é solução. Que acha normal a polícia acordar quem dorme no frio, ao relento, a base de cutucões de cassetetes, chutes de coturno, balas (de borracha ou não) e spray de pimenta.

Sabem por que “os direitos humanos”, no caso, as entidades de defesa dos direitos humanos, aprendam, ó preconceituosos!, aparecem quando um jovem negro é assassinado? Por que em geral as circunstâncias são “misteriosas”, o crime é cometido de forma covarde e brutal e o defunto acabará virando mera estatística, às vezes nem isso. Por ele apenas a família, quando muito, às vezes sem a (in)formação necessária para reivindicar seus direitos, seja a reparação (a vida de um filho, tirada, nunca será recuperada) e/ou a punição do(s) agente(s) responsável(is). Policiais por outro lado têm suas associações, sindicatos, o apoio da mídia, sobretudo a que empunha cassetetes em programas sensacionalistas baratos (apesar dos caríssimos patrocínios), além do corporativismo e da impunidade vigentes.

Uma imagem vale mais que mil palavras. Disse até aqui pouco mais que a metade disso, embora não tenha dito tudo. Resumindo, deixo-lhes o sempre genial Carlos Latuff, que traduz perfeitamente toda a hipocrisia vigente, do sistema, da mídia e dos alienadinhos do facebook.

Brevíssimo panorama cultural da capital no período eleitoral

Já não há circo, mas os palhaços continuam por aí…

São Luís é uma Ilha. Não sai do lugar. No entanto, parece andar em círculos. Como se quisesse evitar que a cabeça da serpente lhe toque o rabo. Autoridades anunciam e iniciam obras como se estas fossem, num passe de mágica, melhorar a vida da população, tudo a toque de caixa – e não falo aqui do Divino ou do cacuriá –, sem a participação popular. O povo só participa na hora do voto, e olhe lá!

O mais novo anúncio é o de construção de um veículo leve sobre trilhos, que deverá resolver – ou amenizar – os problemas do trânsito, carregando passageiros do São Cristóvão até o Centro da cidade, ao menos em uma etapa inicial. Resolver, ou ao menos tentar, o problema do trânsito, nada mal. O problema é começar justamente desalojando um palco privilegiado, referência na cena cultural ludovicense.

O Circo Cultural Nelson Brito, popularmente conhecido por Circo da Cidade, deixará o Aterro do Bacanga para dar lugar a uma estação do VLT. Futuramente o equipamento cultural será reinstalado na área entre o antigo Espaço Cultural e a Praça Maria Aragão, nas imediações da Avenida Beira Mar. Se o Brasil é mesmo o país da piada pronta, conforme achincalha o colunista, que dizer destas plagas? Resolver um problema de trânsito criando outro, já que grande parte das vagas de estacionamento que passarão a servir os três espaços será ocupada pelo último. Isto é, quando hastearem a lona do Circo, sem data de previsão.

Os contentes dirão que choro de barriga cheia, que a municipalidade pode “matar” o Circo, afinal de contas “ressuscitou” o Cine Roxy, agora Cine Teatro Cidade de São Luís. Falta algo ao “milagre”: um equipamento cultural sem programação, uso e circulação de pessoas nada mais é que um prédio. E isso o Roxy já era antes de adquirido e reformado pela Prefeitura da capital maranhense.

São Luís carece de palcos, formação e sensibilização de plateias para uma cena que tem se virado para fazer (e) acontecer, quase completamente sem apoio dos poderes públicos e da iniciativa privada.

Atualmente dois bons exemplos têm movimentado esta cena. O primeiro, o BR-135, capitaneado por Alê Muniz e Luciana Simões, o duo Criolina, espaço que tem mostrado o que há de novo em música e mais, integrado artistas de diversos gêneros e expressões (música, poesia, teatro, artes plásticas etc.). O segundo, o Papoético, debate-papo semanal articulado pelo jornalista e poeta Paulo Melo Sousa, que tem botado na roda os mais variados temas relacionados à arte e cultura, além de produzir shows e realizar festivais – depois de realizado um de poesia, um concurso de fotopoesia que tem como tema o Centro Histórico de São Luís está com edital aberto.

Não são os únicos acontecimentos, mas suas feituras, na raça, na cara e na coragem, merecem destaque pelo alcance e repercussão, por mostrar que é possível fazer algo se movendo pela simples vontade de ver esse algo acontecendo, de dar a cara para bater, mostrando que isso é melhor que ficar pelos cantos se lamuriando ou pelas repartições correndo o pires em busca de migalhas.

A estas iniciativas é preciso que se somem outras. Estas e outras carecem do incentivo do Estado e da iniciativa privada, em relações republicanas e transparentes e não na manutenção do clientelismo e da obscura política de favores.

A cultura precisa ser cada vez mais entendida como um importante elemento de desenvolvimento, gerador de emprego e renda. Em época de campanha eleitoral precisa ser mais debatida – mas não apenas nesse período. No controverso aniversário de 400 anos de São Luís é preciso potencializar a vocação cultural de nossa capital. E isto não se faz passando trilhos por sobre uma casa de espetáculos.

*

Textinho que escrevi a pedido, às pressas, em julho passado, um pouco antes da reunião da SBPC em São Luís. Deveria ter integrado uma revista do Observatório Cultural da UFMA (não tenho certeza se é este o nome). A revista não saiu (ou saiu e eu não vi?), então resolvi pendurá-lo aqui. Já passaram os shows pelos 400 anos de São Luís. Logo, logo, passadas as eleições, o VLT vira uma realidade ou não. O tapume e a placa do “novo” Circo Cultural Nelson Brito já estão dispostos ao lado do Espaço Cultural, onde o mesmo será (?) instalado. O cirquinho vai ficar espremidinho, grande por aqui só mesmo a palhaçada.

Este blogue tem lado e diz. Que outros o farão?

(OU: SÃO LUÍS, O CAMINHO É PELA ESQUERDA)

Desde cedo aprendi que imparcialidade jornalística é quimera.

O fato é o fato; a notícia, uma forma de contar aquele. Uma forma, viram? Um repórter escreve uma matéria de um jeito, outro, de outro. Dois repórteres cobrindo determinado fato não escreverão a notícia da mesma maneira, a mesma notícia – a não ser que, prática corriqueira no jornalismo cometido no Maranhão, estejamos falando do control c control v que empesteia as redações, a blogosfera, o escambau.

Desde sempre aprendi que o compromisso do jornalismo deve ser com a verdade, com a informação, com o interesse público.

No Maranhão, notícia virou mercadoria. Este blogue, em pouco mais de oito anos de existência, nunca colocou um centavo no bolso deste que o escreve/edita. Não é a primeira vez que toma partido, declara voto, assume suas preferências, com as dores e delícias que estas envolvem.

A campanha eleitoral está nas ruas e logo chegará ao rádio e televisão. Este blogue declara apoio à candidatura de Haroldo Sabóia (PSol) à prefeitura de São Luís do Maranhão, encabeçando a chapa “São Luís, o caminho é pela esquerda” (PSol/ PCB).

O “selo” colocado à sua esquerda na página inicial permanecerá aí até o dia do pleito. O blogue não recebeu, não recebe, nem receberá um centavo por isso. Se, por acaso, a campanha da chapa PSol/PCB me encomendar algum trabalho, declararei cá no blogue, inclusive o valor da remuneração.

O que mais há no Brasil – e particularmente no Maranhão – são veículos e profissionais de comunicação que têm partido e candidato, mas não declaram. E dizem ser imparciais e assim exercer seu ofício. Este blogue o faz, como o fez, por exemplo, a revista Trip, que há tempos, pioneiramente, recusou publicidade de tabaco em suas páginas e, à época de um referendo, declarou-se a favor do desarmamento de cidadãos. No primeiro caso a atitude da revista foi um dos primeiros elementos que dariam na proibição da publicidade de cigarro no Brasil.

No Maranhão, programas de rádio e tevê, jornais e blogues são, em grande parte, instrumentos de campanha política travestidos de noticiário. Este blogue continuará suas atividades normalmente: a única coisa que faz aqui é assumir seu candidato, de que lado está nestas eleições municipais. Resta saber quantos e que outros veículos e profissionais o farão com clareza. Fica o desafio, quem topa?

A história de joelhos

RUY CASTRO

RIO DE JANEIRO – Biógrafos, editores, juristas e demais interessados na liberdade de expressão reuniram-se ontem na Biblioteca Nacional para apoiar o projeto de lei do deputado federal Newton Lima Neto (PT-SP) propondo-se a corrigir os artigos 20 e 21 do Código Civil, que agridem justamente essa liberdade garantida na Constituição. Pelos ditos artigos, que pretendiam proteger as pessoas simples de exposições indevidas, as figuras públicas, inclusive as mortas, ganharam poder de autorizar ou não os livros que contam suas histórias.

Conheço bem essas “autorizações”. Uma semana antes da publicação de “Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha”, em 1995, o advogado das herdeiras do jogador -sem ter lido o livro- telefonou para ameaçar a Companhia das Letras com um processo por danos morais e falta de autorização. “Mas”, acrescentou, “tem acordo…”. Que consistia no pagamento de US$ 1 milhão, na época, R$ 1 milhão.

Significa que, com uma “autorização” desse valor, podiam-se praticar quantos danos morais se quisessem e, no caso, o biografado fosse lamber sabão. Para não abrir um precedente fatal, a editora preferiu o processo, o qual resultou na proibição do livro por um ano, arrastou-se por outros 11 e foi danoso para todos, inclusive para as pobres filhas de Garrincha. Pela ferocidade do processo, que assustou muita gente, o craque deixou de inspirar muitos subprodutos que poderiam beneficiá-las.

Uma biografia se compõe do protagonista, de uns 20 personagens secundários e de 200 ou 300 terciários. Com a interpretação que a Justiça dá hoje aos artigos 20 e 21, qualquer um desses, por mais insignificante, pode alegar que “não autorizou” sua participação ou a de seu pai ou avô no livro, e partir para a extorsão.

A cada “autorização” pedida por um biógrafo, é a história do Brasil que rasteja e se humilha.

[Folha de S. Paulo, Opinião, hoje]

Blog do Décio atualizado. Não é estranho?

O jornalista Décio Sá foi brutalmente assassinado há pouco mais de um mês, quando se preparava para jantar em um bar e restaurante na avenida Litorânea, local que habitualmente frequentava. Um pistoleiro descarregou seis balas de uma ponto 40 em sua cabeça e tórax, numa história já por demais conhecida, de tão discutida, mais no início, nas horas e dias que se seguiram ao crime. Embora menos, o assunto ainda é pauta de veículos de comunicação e blogueiros independentes (aqui, no sentido de não vinculados, ao menos não diretamente, a qualquer desses veículos, sejam impressos ou eletrônicos), sobretudo pelo fato de, com mais de um mês, as investigações pouco ou nada terem avançado e o crime continuar sem elucidação e impune.

Muito se viu, ao longo dos dias, óticas as mais variadas sobre o assunto. Hipóteses, críticas ao governo, elogios e críticas à vítima, discussões as mais diversas sobre (a volta dos) crimes de pistolagem ao Maranhão, polêmicas sem qualquer sentido e até aproveitadores de plantão, disputando a audiência do blogueiro assassinado, como se leitores pudessem ler apenas um único blogue diariamente e tivessem a obrigação da fidelidade e de uma monovisão sobre os muitos assuntos que comporta a blogosfera maranhense, com ou sem talento, com ou sem diploma, com ou sem caráter.

Após alguns dias sem acessar a internet, hoje dou de cara com a polêmica já bastante repisada em que insistem em tornar vilão o advogado Luis Antonio Câmara Pedrosa, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Maranhão e, por outro lado, “santificar” Décio Sá, o jornalista assassinado, então funcionário do Sistema Mirante de Comunicação, de propriedade da família Sarney, da governadora Roseana Sarney Murad.

A falsa polêmica plantada já comentei (leia pelos links acima ou nos arquivos deste blogue). O que é estranho é que ela volta à carga em um texto de Haroldo Silva (quem é?), jornalista e radialista profissional, como assina, publicado ontem (domingo, 27) no… Blog do Décio. Não é estranho?

A pergunta se justifica: numa empresa como o Sistema Mirante de Comunicação, é muito provável que o setor de informática detenha informações como logins e senhas e outras de seus funcionários, não no sentido de vigiar-lhes 24h ou cobrar-lhes produtividade, “e aí, meninos e meninas?, estão escrevendo suas matérias do dia ou estão de trololó nos msns e gtalks da vida? O quê?, ‘tão atualizando seus facebooks pessoais e o trabalho atrasado?”, não, não é disso que falo.

Falo do seguinte: uma das primeiras hipóteses levantadas quando do assassinato de Décio Sá, seja pelo mais gabaritado especialista em segurança ou pelo mais leigo leitor/ouvinte/espectador comum que acompanharam o crime, foi a possibilidade de queima de arquivo. A tese seria a de que Décio possivelmente teria publicado algo que desagradou a alguém e foi, por isso, eliminado. Este blogue fica com uma das segundas hipóteses: a de que Décio teria sido eliminado por algo que ainda não havia publicado, alguma informação bombástica sobre sabe-se lá quem, certamente com alguma grana, fama e prestígio (seja lá o que signifiquem hoje e no Maranhão), informação cuja “noticiabilidade”, “interesse público” e outros fatores determinantes em jornalismo para sua veiculação ou não, ainda estavam em debate e/ou disputa (ou negociação).

Uma das chaves para sabermos que hipótese estaria/está/estará correta seria sua quebra de sigilo telefônico e eletrônico: as ligações que fez e recebeu no dia e dias antes de sua morte, as senhas de acesso a e-mails, conta do blogue e aparelhos tecnológicos outros. Confesso que não tenho acompanhado o caso com a mesma atenção e interesse de outros blogueiros, por motivos os mais diversos. Mas a morte de Décio Sá, qual um vídeo “para nossa alegria” no youtube ou fotos de Carolina Dieckman nua (nem de longe estou vulgarizando a primeira ocorrência, diga-se), é coisa que nos chega aos óculos mesmo que não queiramos, basta a leitura diária de jornais e blogues e as passadas d’olhos nos telejornais e quetais: invariavelmente ela estará lá, mesmo trazendo novidade nenhuma, mesmo trazendo abobrinhas desinteressantes, mesmo realimentando falsas polêmicas.

Quem tem alguns dos acessos que apresentamos acima como possibilidades sabe como ler (e apagar, se conveniente) comentários publicados ou não no blogue, e-mails, recados nas redes sociais etc. O texto postado ontem no Blog do Décio, mais de um mês após o seu assassinato, voltava a elogiá-lo e a atacar ferozmente, ainda que sem citar o nome, quem ousou colocar os pingos nos is. Até o momento em que clico em publicar, cá neste blogue, já havia recebido nove comentários, todos elogiosos a Décio Sá e/ou a Haroldo Silva (quem é?), autor dos elogios a ele, ou ainda criticando Pedrosa. Ou seja, possivelmente outros comentários passaram pelo crivo do moderador, que detém a senha de acesso ao blogue. Pergunto-me: seria publicado, ali, algum comentário pró-Pedrosa e anti-Décio e anti-Haroldo?

É ou não é estranho? Para dizer o mínimo…

Luta longa

RUY CASTRO

RIO DE JANEIRO – Mês sim, mês não, o caso volta ao noticiário: o processo movido há 20 anos por João Gilberto contra a gravadora EMI por esta ter espremido seus três LPs da Odeon num LP duplo (“O Mito”) e num CD simples (“The Legendary João Gilberto”), “apressando” algumas faixas para encurtá-las, adulterando sua sonoridade e alterando a ordem original para caberem naqueles formatos. Músicos foram chamados a ouvir esses discos e deram razão a João Gilberto.

Enquanto o processo não se resolve, os três discos -“Chega de Saudade”, 1959, “O Amor, o Sorriso e a Flor”, 1960, e “João Gilberto”, 1961- ficam impedidos de sair no Brasil, em CD ou no que for. Com isso, o país da bossa nova é o único proibido de ouvir os discos que formam o seu cânone. Equivale a proibir os meninos brasileiros de ler o Machado de “Dom Casmurro”, “Brás Cubas” e “Quincas Borba”.

Já na Europa qualquer selo se sente à vontade para lançá-los em qualquer suporte. O Él/Cherry, por exemplo, soltou os três LPs em CDs individuais, com as capas originais e enriquecendo-os com gravações raras da época, por outros cantores, todas do acervo da EMI.

É uma edição boa, mas não se compara à da Doxy, que os relançou em LPs mesmo, só que em vinil de 180 gramas (ou seja, virgem). O som é melhor que o dos próprios LPs originais (que a Odeon, na época, certamente prensou em vinil reciclado). E cada LP traz uma cópia-bônus em CD.

Os três discos de João Gilberto estão proibidos no Brasil, mas isso não se aplica ao seu conteúdo. Suas faixas podem ser “baixadas”, avulsas, por quem quiser -tanto as legítimas, que mudaram a história da música brasileira, quanto as adulteradas pela gravadora. Um dia já não se saberá qual é qual, e -isso é que é triste- talvez não faça muita diferença. João Gilberto terá lutado em vão.

[Outra da Folha de S. Paulo de hoje, por que o assunto vale muito a pena, Ruy Castro é autoridade no assunto e Ho-ba-la-lá – À procura de João Gilberto ainda ecoa em minha cabeça]

Neiva Moreira, a voz do povo

Impossível não lembrar imediatamente da queridamiga Micaela, filha do velho Neiva, uma das flores que brotou de seus galhos. A ela o abraço carinhoso com aquelas palavras, sinceras e surradas, sempre ditas em ocasiões como esta.

Ainda pela manhã, ao saber do falecimento de Neiva Moreira, lembrei também de mamãe, sempre sua eleitora. À procura de algo para publicar aqui à guisa de obituário, folheei, na biblioteca da Cáritas, uns exemplares dos Cadernos do Terceiro Mundo, publicação editada por ele há muito tempo. Nada achei que me servisse, apesar de muito conteúdo bom ali, nada era exatamente o que eu procurava.

De Ricarte Almeida Santos roubo a foto. De Wagner Cabral, a história, que eu não conhecia:

Neiva Moreira (1917-2012)

A VOZ DO POVO

Quando o meu amigo Neiva saiu para o exílio, fui ao aeroporto para despedi-lo, mas apenas o vi embarcando, cercado de agentes. Voltei muito triste e indignado. Fiquei com aquilo na cabeça e escrevi o “Meu samba é a voz do povo”, dedicado ao amigo e companheiro exilado. Escrevi a Neiva uma carta, já não me lembro em que país ele andava, enviando-lhe a letra do samba. Nela eu digo assim:

Eu sou a flor que o vento jogou no chão
Mas ficou um galho que outra flor brotou
As minhas folhas o vento pode levar
Mas o meu perfume fica boiando no ar.

Era uma linguagem figurada. Mas eu sei o que queria dizer. E muita gente, comigo, também sabia.

João do Vale

José Sarney e sua síndrome biográfica

José Sarney continua obcecado com a ideia de fraudar a história e reinventar sua biografia. A ladainha do mitômano já é conhecida. O livro de Regina Echeverria, por exemplo, lançado há um ano, foi uma evidente compilação de patranhas.

O último ato decorrente desta síndrome, veio à tona no último dia 27 de março. Nesta data, foi anunciado na TV Guará (repetidora da Record News, no Maranhão), a estreia do programa Avesso, trazendo “uma entrevista com José Sarney”, cuidadosamente divulgada (e depois repercutida) no sempre governista O Imparcial. O entrevistador, propagado com relativo estardalhaço, foi o escritor, cronista e teatrólogo Américo Azevedo Neto, confrade do entrevistado na Academia Maranhense de Letras (AML).

No discurso de Sarney, no lugar do ex-presidente da ARENA, aparece de súbito “um democrata”; em vez do afilhado e ex-correligionário de Vitorino Freire, surge um “oposicionista firme e corajoso”; o notório corrupto torna-se o intelectual de “prestígio internacional”; um inescrupuloso e burlesco Odorico Paraguaçu posa de “estadista”; o aliciador odiento e vingativo se disfarça numa figura “generosa” e “sem ressentimentos”; o aliado visceral de torturadores é “quase um comunista” e o protetor de latifundiários assassinos, quer se passar por um “cristão radical”, a “nossa” Madre Teresa de Curupu…

Quanto à tertúlia na TV Guará, a emissora do opulento Roberto Albuquerque (agora, bem cevado pelo governo Roseana e por “generosas” empresas), ninguém falou da famosa “universidade da fraude”, nas urnas de “Zé meu filho”, nas diabruras do desembargador Sarney Costa, nas velhas chicanas jurídicas, no golpe de 64, no AI-5, na construtora Mendes Junior, nos ilícitos junto ao Diário Oficial, no processo contra Ribamar Bogéa e Freitas Diniz, na Lei de Terras, nas baixarias do Jornal de Bolso, na brutal grilagem ocorrida no Maranhão, nos inúmeros assassinatos no campo, na Fazenda Maguari, na tortura, no atentado contra Manoel da Conceição, na inflação de quase 100% ao mês, no desastre da Nova República, na CPI da Corrupção, na distribuição de concessões de TV, no Caso Reis Pacheco, do Convento das Mercês, etc. etc. etc. etc. etc. etc. etc. etc. etc. etc. etc. etc.

A entrevista foi apenas uma sequência das velhas e surradas mentiras do entrevistado, que a TV Guará “esqueceu” ser hoje uma das figuras mais desmoralizadas do Brasil (uma chacota, de cabo a rabo do país). Ao final, não podia ser diferente, ficou tudo muito ruim… Num programa batizado como Avesso (o oposto, o outro lado), o que se viu nesta edição de estreia foi mais do mesmo: a velha propaganda sarneyista que não convence rigorosamente a ninguém.  Como disse o ex-senador Artur da Távola, sobre o discurso de Sarney no “Caso Lunus”: “A montanha pariu um rato…” E acreditem!: hoje, é bem possível que até Dona Marly tenha vergonha deste tipo de presepada do filho do desembargador…

E roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda peão…

[Editorial publicado no site do Vias de Fato. Detalhe curioso pra quem não tiver se ligado: Américo Azevedo Neto é pai de Emílio Azevedo, um dos editores do jornal, cuja edição de março já está nas melhores bancas da Ilha. Honra em colaborar com um jornal em que o departamento comercial não se sobrepõe à redação, em que laços políticos e/ou familiares não interferem na informação e na verdade; a charge de Nani eu já havia publicado aqui]

A arte de produzir ideias perigosas

REUBEN DA CUNHA ROCHA*

Guerrilhas, coletânea de artigos publicados por Flávio Reis na imprensa maranhense ao longo da última década, campo minado de fustigações sem centro, sobrevoa e permite ver, como numa fotografia aérea, um traço terminante da aventura de seu autor, figura de exceção entre nossos pensadores e professores – o cultivo radical da dissidência.

Permite ver, mas veja, não é que o torne visível, isso não passa batido aos leitores de suas outras obras (Cenas marginais e Grupos políticos e estrutura oligárquica no Maranhão), tampouco aos alunos do homem magro de fala digressiva segurando livros como facas, misturando dois ou três autores para ver se explode; ocorre que nessa recente investida os elementos sobem todos à mesa – temas, sim, e o território. Dança imprescindível a toda guerrilha, saber jogar com o espaço, pervertê-lo em arapuca, cemitério de engodos. No caso, é mesmo nossa imprensa que, invariável e totalmente comprometida, por mil golpes de astúcia deixou-se infiltrar pelos mordazes artigos desse livro, também o próprio território das ideias, no qual Flávio opera articulações vitais, nunca no interesse dalgum “campo” mas da erosão de nosso oco solo mental.

O olhar esclarecedor sobre as relações de força, a política e suas redondezas – descaso, cinismo, violência –, espaço antigo da reflexão do autor, que nunca cedeu ao apelo das conciliações típico de certa esquerda “prática” ou de cartilha, notadamente a universitária, incapaz de se desvencilhar do desejo de mandar adivinhado no esgoto exposto das alianças; a exímia capacidade de enredar fios de nossa história mal contada, pondo-nos à vista de nós mesmos (“Antes da MPM”, “O nó-cego da política maranhense”, “Oligarquia e medo” etc.); o mergulho em obras de arte desestabilizadoras ou no mínimo provocantes, cuja incidência sobre sua escrita é a bela mostra dum pacto com as potências da imaginação; mesmo as incursões pela psicanálise, disciplina cujas sugestões e descobertas fundamentais nunca frearam uma tendência fortemente ordenadora, cheia de andaimes cientificistas propícios ao folclore burguês – Flávio é mestre em transformar tais zonas em impulso de nutrição, aproximando-se disso ou daquilo conforme as contingências da balbúrdia.

Apenas não se confunda o prisma de temas que o autor encara com o pano surrado da interdisciplinaridade, escudo acadêmico que nunca serviu, a olho nu, para mais do que recheio de linguiça em formulários de não-sei-quantas vias. Aqui o caso é de pura indisciplina, do livre pensar e do gosto por uma boa briga.

Panorama de intervenções na parca discussão local, a mira em riste no rumo de nossa arena de ideias, o Maranhão persiste como ruído de fundo em cada tópico, sem contar que é o centro mobilizador na quase totalidade dos artigos. Começando por uma sequência de pauladas dadas no epicentro da querela em torno da fundação de São Luís, que na verdade é a discussão dos níveis inacreditavelmente obtusos, para não dizer mesquinhos, em que se deram e dão as reações ao trabalho de Maria de Lourdes Lauande Lacroix, passando pelas análises matadoras do emaranhado atávico entre política, desmando e miséria, das condutas paroquiais com relação ao poder, e da ofensiva de mídia, mercado e academia no comércio ridículo da cultura, esta insígnia a ser ostentada por uma intelectualidade (no fundo um punhado de funcionários de governo distribuídos entre repartições, instituições de saber e a “classe artística”) que a tudo vê como se a um grande curral, com narcisismo indisfarçável e característico.

Compõe-se quadro a quadro uma galeria em que figuram, por exemplo, certo juiz, personagem de Nascimento Moraes num livro de 1923, trazido à roda em Guerrilhas, juiz de faroeste a resolver tudo na bala ou no bogue, à luz do dia, em pleno centro da cidade em cenas inacreditáveis sobretudo porque poderiam ter ocorrido na tarde de ontem. Ou quem sabe se repitam amanhã, como de fato se repetiriam, na execução do professor Flávio Pereira pelo policial civil Olivar Cavalcante (o pistoleiro segue solto) e na do artista Geremias Pereira da Silva, o Gerô, espancado até a morte por uma gangue de policiais militares – à luz do dia, em pleno centro da cidade, cabeça do século XXI.

A história geral de nossa canalhice, quer se exerça pela violência elevada a valor, a distinção social, com a invariável impunidade que não cessa de adoecer nossa sensibilidade coletiva, quer se exerça pela constrangedora passividade a alimentar eternamente a estrutura de nossa sujeição, praticamente voluntária, demonstrando que a única reforma eleitoral que importa é o suicídio coletivo dos políticos.

Assistindo, como assistimos, a uma escalada do uso oficial da mentira enquanto narrativa dos “feitos” de uns e outros (nossa cota, parece, da escalada do fascismo em várias esferas da vida nacional – passarela em que desfila com o perigoso traje da falsa ausência), nem se pode afirmar que o autor, nas fissuras que causa, enfoque as coisas pelo avesso, ou se pelo avesso ele as encontra.

Flávio, claro, tem estômago. A atenção que dedica à casca grossa dos eventos não passa sem uma reversa escrita de precisão & excesso, que revela para desviar ou o contrário, dilatando pupilas, abrindo narinas, temperando perspectivas. Correm por aí, nutrindo os planos de fuga, figuras de Júlio Bressane, Elyseu Visconti, Bruno Azevêdo, Cesar Teixeira, Celso Borges e tantos meliantes cumplices de arruaça nos quais o autor ensina a ver os truques para se manter vivo, isto é, íntegro e mandando bala.

Seu fôlego de saque se trama justamente na capacidade de farejar em temas, textos e acontecimentos o cheiro dalguma pólvora. “Isso aqui não é pra entender, mas pra sentir o cheiro”, quantas vezes não ouvi de Flávio em sala de aula ou pelas salas do afeto, diante de questões fascinantes e árduas ante as quais o lance sempre foi fazer o que se pode. Disso não faltam mostras em seu texto ágil, cheio de toques analíticos jamais impostos à força de argumentações exaustivas, mas ofertados na fluência de caracterizações e imagens.

A condição do pensamento é a de estar nas curvas mais sem amparo, distante do que já se sabe e impõe-se como instância regulamentar. Não é para ordenar que se necessita de ideias. O resto são intelectuais de Sessão da Tarde, erguendo-se aqui e ali para constranger proposições de problemas (“se nada presta, que fazer?”), como se o nebuloso das respostas desmentisse a evidência das perguntas.

Que fazer, então? Sempre, apenas, o que se pode; muitas vezes se avacalha. Como Tom Zé, Rogério Sganzerla ou os Sex Pistols, Flávio Reis ensina que quaisquer ingredientes servem à feitura de bombas, desde que haja sacação, argúcia, inteligência e – sobretudo – que o sujeito não arregue. É chegado o tempo do arsenal contra o repertório.

*Reuben da Cunha Rocha é poeta e pesquisador. Edita, com Bruno Azevêdo e Celso Borges, a revista de poesia, artes gráficas & sacanagem Pitomba!.

&

Serviço: Flávio Reis lança Guerrilhas dia 16 (quinta-feira), às 19h. no Papoético (Chico Discos, Rua Treze de Maio, esquina com Afogados, sobre o banco Bonsucesso). Entrada franca. O livro custa R$ 20,00.

Pra não dizer que não falei de big brother

[Textinho nosso pro Vias de Fato de janeiro, já nas bancas]

CIRCO DOS HORRORES

POR ZEMA RIBEIRO

São Luís, capital do Maranhão. Local e data a escolha dos leitores e leitoras. Engarrafamento. Um motorista joga uma embalagem plástica pela janela. Em outro horário e local, outro motorista para no meio da pista, mesmo havendo acostamento. Pouco se importa com a fila de carros que se forma atrás de seu veículo. Em frente a uma escola, um grupo de crianças deseja atravessar a avenida. Parecem contentes com o fim de mais um dia de aulas, o sol a pino, a fome ao voltarem para casa. Uma delas resolve por o pé na faixa, como a sinalizar aos motoristas o desejo de chegar ao outro lado da via. Quase tem o pé esmagado por vários carros.

Chove e os condutores não reduzem a velocidade. Pedestres, espremem-se sob a proteção insuficiente do que deveria ser um abrigo no ponto de ônibus. A água suja lhes molha as roupas. Ouvem-se alguns gritos, palavrões, mas xingar, dá em nada, os motoristas estão “protegidos” por seus vidros fumês e ares-condicionados.

Um(a) motorista aciona rápido o botão do vidro elétrico de seu veículo (novo), que acabou de parar em um semáforo. Prefere isolar-se do contato com a criança ou o adolescente – um ser humano, enfim – que lhe pede para limpar os vidros em troca de uma moeda. Apesar do barulho infernal proporcionado pelo ronco dos motores – embreagens cerradas mesmo em terrenos planos –, o trânsito, enfim, àquela hora, mesmo com o vidro fechado, é possível ouvir o comentário de condutor e carona acerca de “comprar droga”. “Tou com fome, é para eu comer”, tenta argumentar o “de menor” – como os do interior do veículo e os dos interiores dos veículos de comunicação tratam os filhos de “gente pobre” –, embora a música (ruim) e o barulhinho (bom) do ar-condicionado lhes impeçam de ouvi-lo.

Uma “autoridade” (branca) destrata um vigilante (negro) na entrada de uma repartição. Ele engole em seco, nada diz. Mesmo tendo razão na advertência que fizera à primeira.

Uma música de qualidade duvidosa é emitida por caixas de som em um estabelecimento comercial. É uma loja de confecções. Além da péssima música, em volume ensurdecedor, vendedores batem palmas rente aos ouvidos dos passantes. Adiante, outra loja toca música tão ruim quanto. Na verdade, um restaurante. Um homem na porta anuncia pratos baratíssimos. Aos gritos. A depender do estabelecimento, podem estar vestidos de palhaços ou ter bundas postiças – desprovidos de qualquer graça. A música ruim é ubíqua, tanto faz venderem roupas, comidas, eletrodomésticos, utilidades do lar ou qualquer outra coisa. Se a loja vende aparelhos de som, várias músicas ruins saem de vários equipamentos (escapamentos?). De unanimidade só a “qualidade” da “obra” (sinônimo de excremento) veiculada.

A mesma música exalada por porta-malas a céu aberto, ensurdecendo antes a vizinhança e os “malas” que depois sairão cantando pneus anunciando seus dirigires embriagados. Mesmo que leis proíbam coisa e outra. Adiante, na base do “sabe com quem está falando” e algum trocado, o herdeiro, ainda que de terceiro grau (de parentesco, não de formação) de alguma autoridade (política, policial, jurisdicional ou outra) é liberado pela blitz, obviamente sem ter sido submetido ao teste do bafômetro.

Mais adiante, próximo a outro bar, outro motorista, sem qualquer gota de álcool no sangue, atropela um gato. É noite e o felino morre imediatamente. O condutor ouve algum barulho, mas não se importa. Talvez não se importasse mesmo em se tratando de um ser humano.

Um homem que bebe nesse bar, munido de um saco plástico, segura pelo rabo o gato morto e deposita-o no canteiro central. Lava as mãos e torna a entornar seus goles, despreocupado. Noutra mesa, um grupo comenta a rebelião no presídio, o que a tevê do recinto havia acabado de exibir. “Bandido tem mais é que morrer. Um bando de come-e-dorme, vivendo confortavelmente à custa do Estado”, bradou um mais eufórico, batendo o copo recém-esvaziado na mesa de plástico. Sua risada cínica e sádica fez mais barulho.

A maior obra da prefeitura é uma árvore de natal, metáfora perfeita para a dilapidação dos recursos públicos: passado o período, a árvore foi ao chão. A grande marca do governo é a propaganda: anuncia mesmo o que sua gestão não fará e/ou continuará adiando indefinidamente.

Num dia, dois jornais diferentes trazem o mesmo texto sobre o mesmo assunto. Noutro, estes mesmos jornais contam duas versões completamente diferentes acerca do mesmo acontecimento.

No trabalho, colegas comentam mais um capítulo da novela, do reality show, da minissérie. Reclamam da corrupção, do trânsito, dos preços, da vida, do trabalho. Comentam qualquer coisa acerca das eleições que se aproximam. Terminam o cafezinho e voltam a seus afazeres.

Vocês, leitores, leitoras, certamente já presenciaram e/ou ouviram falar de uma ou mais das situações descritas ao longo deste texto, cujo título tomo emprestado da música homônima de Josias Sobrinho. Quem carece da realidade fabricada e ensaiada de um Big Brother Brasil quando já se vive na realidade dura, nua e crua deste circo de horrores?

O engodo Paula Fernandes

(OU: A FALSA NINFETA)

“A marca registrada da mineira são os figurinos com cintura marcada, decotes e minissaias. Ela sabe o que isso provoca. “Paula sempre pede para encurtar a saia e apertar a cintura o máximo que puder”, conta Fabiola Senra, consultora de estilo da artista. Fora dos palcos, usa blusinha e calça jeans. “Ela já me disse que não gosta do visual ‘Barbie sertaneja’, mas são negócios”, diz o amigo e ex-assessor da cantora, Mauricio Santini. Gostando ou não, o fato é que Paula não está preocupada em ser cool. Ela representa o oposto das cantoras festejadas pelos críticos, como Tiê, Karina Buhr e que tais: usa de todo o seu arsenal para ser cada vez mais popular e ganhar dinheiro. Tem funcionado.”

Antes do vídeo, trecho da matéria Lady Paula, assinada por Ana Luiza Leal na revista Alfa [nº. 15, nov.2011, p. 78-79, Pelé na capa].

No vídeo, Paula Fernandes canta e dança um tema da novela global O Clone, recentemente reexibida [a ele chegamos, na busca do YouTube, através de dica em outro trecho da matéria, p. 80].

A confissão acerca do visual ‘Barbie sertaneja’, na modesta opinião deste blogueiro, traduz o que de fato é Paula Fernandes: um engodo. Antes, confesso: o er… an… crítico musical que aqui lhes escreve um dos que sempre que necessário elogia merecidamente estrelas como Tiê, Karina Buhr e não só, Céu, Mariana Aydar, Tulipa Ruiz, Juliana Kehl, Ceumar, Patrícia Ahmaral, Roberta Sá, Lena Machado, Tássia Campos e tantos outros nomes deste país de cantoras.

Quiçá não seja só o virual ‘Barbie sertaneja’ o que lhe desagrada: talvez Paula Fernandes sequer goste de música sertaneja, tendo caído de paraquedas no filão. Isto é, canta música sertaneja como poderia cantar qualquer outra coisa que esteja (ou estivesse) fazendo sucesso (forró, pagode, calipso etc.) e isso nada tem a ver com versatilidade. Se não, vejamos: ela estourou para o Brasil após um mise-en-scène em que era a ninfeta derramando-se para o “coroa” mais popular do país (em termos musicais, já que outro “coroa” superpopular estrela a capa de Alfa): Roberto Carlos. A partir daí tem sabido como ninguém explorar sua imagem, vide, novamente, as confissões da matéria (ou do trecho que recortamos para acá).

Ou seja, “a imagem sexy no palco e o vozeirão de mulher em contraste com o jeitinho virginal e meio moleca virou a cabeça dos homens” [Alfa 15, p. 76]. O que ela quer é capitalizar, discordo com o “vozeirão” (ela quase não abre a boca para cantar e isto está longe da naturalidade de, por exemplo, Marisa Monte). Paula Fernandes sabe que a beleza não dura para sempre, logo, o quanto puder ganhar em menos tempo, usando mais da beleza (fabricada?) que do canto (idem?), ganhará, para que, em poucos anos, passado seu boom, possa gozar uma confortável aposentadoria.

Em tempo: Paula Fernandes se apresenta hoje em São Luís, na Nova Batuque (Cohama), à caça de mais níqueis para atingir seu intento.

Guarnicê e(m) silêncio

Está previsto para acontecer entre os dias 3 a 7 de outubro o 34º. Festival Guarnicê de Cinema. Digo previsto, pois, às portas da semana que vem, a cidade ainda não fala nisso, o povo não respira cinema e as agendas culturais dos jornais ainda não ventilam o assunto, não necessariamente nessa ordem.

O festival, um dos mais antigos e importantes do país, vem diminuindo ano após ano, tendo, injustificadamente, deixado de acontecer no período junino – o que lhe justifica(va) o nome – e mudado de endereço: à guisa de suposta “interiorização”, o Guarnicê repete uma atitude condenável do poder público: o abandono do Centro Histórico ludovicense.

Se antes as sessões do Guarnicê ocupavam o Cine Praia Grande e os teatros do bairro homônimo, já tendo inclusive havido sessões no Convento das Mercês, em outro bairro do Centro Histórico, o Desterro, dialogando com a população local, hoje o festival está reduzido ao Campus Universitário do Bacanga, depois de uma passagem desastrosa pelo Centro de Convenções Governador Pedro Neiva de Santana.

Lá, por exemplo, o cineasta Frederico Machado lançou, ano passado, o premiado Vela ao crucificado, baseado em conto homônimo do teatrólogo Ubiratan Teixeira, para uma plateia de cadeiras – uma aqui, outra acolá carregava alguém no colo. Pouco público não é bom nem para o festival, nem para os realizadores, nem para a população.

Se ano passado o público era, mais que pequeno, quase inexistente, podemos arriscar uma repetição do esvaziamento das sessões no Guarnicê deste ano – não que torçamos por isso. Sua realização em um campus universitário pode levar a população a pensar em um evento “de universitários” ou “para universitários”, além dos problemas conhecidos: o eterno canteiro de obras instalado no Campus Universitário do Bacanga e o deficiente sistema de transporte público – mais fácil chegar ao Cine Praia Grande, com um terminal de integração “defronte”, que ao Centro de Convenções, pensado, como sua vizinha Assembleia Legislativa, para as elites que engarrafam cotidianamente a cidade caótica.

São Luís continua carente de salas de exibição que fujam aos ditames hollywoodianos com que trabalham os Boxes e Cinesystems da vida. Cumprem este papel, com todas as dificuldades que enfrentam, o Cine Praia Grande – atualmente administrado pela Lume Filmes, de Frederico Machado – e os festivais e mostras que têm pousado na Ilha: Festival Lume de Cinema, Maranhão na Tela, Mostra de Cinema e Direitos Humanos e Mostra de Cinema Infantil.

O Guarnicê deve cumprir o papel de mais um espaço de afirmação do cinema de qualidade, com quantidade, isto é, com salas cheias e todo o burburinho gerado por suas exibições – quer coisa melhor que enxugar umas cervejas comentando os filmes após a sessão? Manter a tradição por manter a tradição não serve: ou o Guarnicê se reinventa ou é melhor ficar na saudade, perdoem o fatalismo.

Seleção – Os documentários Aperreio, de Doty Luz e Humberto Capucci, e Awàka`apará, de Diego Janatã e Humberto Capucci, foram selecionados para a mostra competitiva Nego Chico Refestança, dentro da programação do 34º. Guarnicê.

Volto às deficiências do festival: este blogue só tem essas informações graças ao empenho dos realizadores supra, que, por e-mail e facebook têm feito contatos no sentido de darmos uma força na divulgação, chamar o público para ver estes filmes, que tratam da realidade contemporânea do Maranhão. Se algum dos poucos-mas-fieis leitores deste blogue perguntar pela programação completa, não sei, não vi, não tenho.

Fora os dois docs maranhenses, sei de outro curta-metragem na programação do Guarnicê: o catarinense Cerveja falada, cuja seleção me foi anunciada por e-mail pelo músico-cineasta Demétrio Panarotto [Banda Repolho]. Este último retrata em 15 minutos a história do Sr. Rupprecht Loeffler, de sua cervejaria, a Canoinhense, e a fabricação artesanal de uma iguaria que figura entre as preferências deste que vos bafeja.

Volto aos docs de Capucci, Janatã e Luz: têm importância fundamental na discussão de problemas do Maranhão contemporâneo. São filmes que põem o dedo em nossas feridas abertas: os desastres “naturais” das enchentes, que têm se repetido ano após ano, caso de Aperreio, e a violência contra povos tradicionais, no caso específico os indígenas Awa-Guajá em Awàka`apará. Só por isso, já deveriam ser assistidos pelo máximo possível de pessoas.

Ambos os filmes foram realizados por encomenda do movimento social maranhense, o primeiro pelo Comitê de Monitoramento das Políticas Voltadas às Vítimas das Enchentes no Maranhão, integrado por diversas organizações não-governamentais, o segundo pelo Conselho Indigenista Missionário – Regional Maranhão (Cimi/MA), mas não soam panfletários.

Filmes que podiam estar na mostra competitiva principal do Guarnicê e, sabe-se lá o porquê, não estão. Aperreio já levou o troféu de melhor documentário em duas ocasiões: Curta Carajás 2010 (Parauapebas/PA) e V Festival de Cinema na Floresta 2011. Fora estes certames, de que saiu vitorioso, já participou das mostras competitivas – as principais: Festival Pan Amazônico de Cinema – Amazônia Doc 2010, 22º. Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo – Curta Kinoforum e III Festival do Filme Etnográfico do Recife.

A seguir, Awàka`apará em três partes:

Aperreio pode ser assistido aqui, em duas partes.

Filmes que escancaram nossos olhos, com alguma dor e um quê de poesia, certamente seu maior trunfo. Talvez esteja faltando poesia ao Guarnicê. Talvez pelo fato de o Departamento de Assuntos Culturais (DAC) da UFMA ter um evento específico em seu calendário anual para a poesia.

Pitomba! e Resistência Cultural

Minha primeira reação é catar numa estante o segundo volume dos Ensaios reunidos [Topbooks, 2005] de Otto Maria Carpeaux, que há tempos comprei usado no sebo Papiros do Egito. Lá está a assinatura indicando-lhe o antigo dono: Lorêdo Filho, a quem não conheço pessoalmente mas aprendi a respeitar como grande leitor, já que além da obra citada, comprei vários outros usados seus, a preços quase sempre salgados, porém, em perfeito estado de conservação.

Amigo de Moema, a proprietária do Papiros, desde meus dez ou onze anos, quando fui morar na Rua de Santaninha e seu sebo se localizava na Rua dos Afogados (hoje fica na da Cruz, depois de herdar o nome do tempo em que funcionou na do Egito), uma ida até sua loja nunca é apenas o vasculhar de algum título e/ou sua compra: é sempre uma visita, quase sempre com longas conversas sobre os mais variados temas – das últimas vezes conversamos bastante sobre os usos úteis do facebook e ela, blogueira “novata”, contava-me de sua vontade de recontar a história de Pinheiro, sua cidade natal, sobre o que tem lido bastante e publicado, vez por outra.

Nessas visitas, sempre vi a indefectível assinatura de Lorêdo, acompanhada da data, nos livros usados que ele ali deixava – ou ainda deixa? – para que Moema os revenda. Minha curiosidade era despertada sobretudo pelo fato de os livros serem novíssimos, o que me fazia deduzir que ele, grande leitor, repito, não sofria do “acervismo” que me acomete – e agora olho para pilhas de livros, jornais e revistas espalhados no quarto enquanto escrevo, a ansiedade de minha esposa para que eu dê-lhes logo o destino e a plena arrumação do cômodo que chamo pretensiosamente de biblioteca.

Moema me dizia também que Lorêdo abriria uma livraria, o que me entusiasmava, já que São Luís padece da quase inexistência desses espaços – e não vi ninguém chorar o fechamento (espero que temporário) da Athenas. Alô, Arteiro! Caso tu leias isso, dá um alô que eu tou querendo falar contigo. Mas estou, como diria Luiz Gonzaga quando achava de contar causos em shows, entre as músicas, levando vocês na conversa. Soube, da pior maneira possível, que a livraria de Lorêdo, a Resistência Cultural, já está aberta e funcionando: num texto dele sobre a revista Pitomba!.

Embora se justifique, afirmando de cara que não defende um retorno a práticas medievais – de tortura, inclusive – Lorêdo evoca um “ordonnance” (decreto) de Carlos VI, rei da França, para comentar a revista Pitomba!, em que deu “uma breve folheada”.

Católico fervoroso, Lorêdo julga o todo pela parte e, a seu ver, a revista editada por Bruno Azevêdo, Celso Borges e Reuben da Cunha Rocha é simplesmente torpe, execrável, repugnante e depravada – para usar adjetivos colhidos ao longo de seu texto. O livreiro-editor, ao se reportar apenas aos quadrinhos Cuidado! Jesus vai voltar, esquece o trabalho de todos os envolvidos – ops! – na feitura do segundo número da publicação: as fotografias de Marilia de Laroche, os textos de Celso Borges e Flávio Reis, os poemas de Dyl Pires, os quadrinhos de Bruno Azevêdo, as traduções de Reuben da Cunha Rocha – o Sensacionalista certamente não hesitaria em dizer que os editores da Pitomba! temem a excomunhão.

A ação do trio Pitomba! despertou a ira – sei que é pecado capital, mas na falta de palavra melhor – de Lorêdo, que chega a sugerir que um conhecido mostre a revista ao arcebispo de São Luís, D. José Belisário, que a meu ver tem mais com o que se ocupar.

A reação de Lorêdo foi a pior possível: uma reação reacionária, com o perdão do trocadilho infame, com argumentos vazios – qual teria, aliás, sido sua reação se, em vez de com o catolicismo, o autor dos quadrinhos e os editores tivessem feito piada com, por exemplo, a umbanda ou o budismo? Desqualificar a revista, pura e simplesmente, não a mantendo nas prateleiras de sua livraria é agir como algumas igrejas: não ouvir música e/ou não ler literatura “do mundo”, como eles dizem, é apenas garantir um nicho de mercado.

Sou católico, vou à missa uma vez por semana e creio mesmo que meu trabalho ajude – ou tente ajudar – a construir mundo e sociedade mais justos, um dos propósitos, aliás, de Nosso Senhor Jesus Cristo, com quem nem de longe quero me comparar, mas cujos ensinamentos procuro seguir.

Como leio Cuidado! Jesus vai voltar? Como uma piada, livre de patrulhamentos, quiçá uma crítica à fé cega que permite que o povo “se deixe enganar por falsos líderes”, contrariando a letra de Zé Geraldo. Talvez a piada-crítica seja direta demais – algo a que não estamos (tão) acostumados – e choque. Nada que ainda assuste a quem já tenha assistido a um episódio de South Park, por exempo.

O tiro de Lorêdo vai terminar saindo pela culatra: seja pelo título equivocado de seu post, Pitomba neles! – afinal de contas, ele ‘tá vendendo a revista ou queimando-a em praça pública? – seja pela reprodução das três páginas da revista ocupadas pelos quadrinhos de Rafael Rosa, a mente criativa de Cuidado! Jesus vai voltar.

Lorêdo erra ainda ao dizer que o trio de editores quer apenas “lavar a burra”, sinônimo de “encher os bolsos”: quem ganha alguma coisa vendando 500 exemplares de Pitomba!? Prazer e sensação de missão cumprida são as moedas de seus salários. Ao menos em uma coisa Lorêdo acerta: quando afirma que eles “bem ou mal, estão criando numa terra onde as ideias em geral jamais vicejam” (aqui em grafia já atualizada de acordo com o novo acordo ortográfico).

Assim, resta-nos desejar vida longa à Pitomba! e à livraria-editora Resistência Cultural, de preferência com Pitomba!s em suas prateleiras.

São Luís e os outros 400

“Cidade és minha paisagem / feita de tempo e de mim / de tudo aquilo que somos / e o que seremos, enfim”.
 
O que será que lateja no coração de uma cidade às vésperas de se tornar quatrocentona, cercada de celebrações que não disfarçam uma disputa sem precedentes ou pudores pela sua direção política para os próximos anos? O que será que anda nas cabeças e nas bocas dos seus habitantes, confinados no breu da escuridão da cidadania, reduzida a manifestação solitária de uma cabine eleitoral, por meio de uma convocação obrigatória a cada quatro anos?
 
“Debaixo da ponte há um mundo / feito de gente esquecida / crianças queixando infâncias / infâncias queixando a vida”.
 
É desta cidade que não está nos postais destinados aos turistas que nos visitam, nem nas propagandas milionárias pagas com dinheiro público veiculadas a cada minuto nos meios de comunicação privados, que falamos. Da cidade dos becos e ladeiras, das palafitas e palmeiras, dos subúrbios e sobrados, que insistem em compartilhar a geografia humana de outros desenhos urbanos, excluídos das pranchetas dos planejadores do seu destino, para mergulhá-la numa insana especulação imobiliária, verticalizando a vida, entregue a sanha desenfreada dos automóveis.
 
“Um mundo dentro da ponte / desafiando a cidade / amarga sobre os instantes / as suas necessidades”.
 
A São Luís de um milhão de habitantes, que comemora oficialmente esta semana seus 399 anos, é uma cidade, sobretudo, excludente e desigual; despossuída do mínimo de políticas públicas voltadas para os grandes problemas que afligem a imensa maioria de sua população. O transporte de massas, decente e seguro, o saneamento básico e a água de qualidade, disponíveis principalmente para a população que vive nos grandes aglomerados urbanos que circundam a cidade, com toda a certeza, são os maiores desafios a exigirem urgentes soluções.
 
“A ponte que une dois lados / separa muitos caminhos / por cima, uns vão pisando / debaixo, outros sozinhos”.
 
A qualidade de vida nestas circunstâncias, até mesmo dos abastados é duvidosa, que dirá da imensa maioria dos habitantes da Ilha de Upaon-Açu, excluída dos processos decisórios e da condução dos seus próprios destinos, diante da falência das formas de representação política que já não representam mais nada no plano institucional, a não ser os interesses econômicos de gestores e parlamentares cada vez mais enterrados no mar de lama da corrupção, com seus tentáculos abarcando todas as entranhas dos podres poderes da nossa República Federativa.
 
“Calçando os pés com a esperança / agasalhada no escuro / entrando na fila imensa / que espera pelo futuro”.
 
E por falar em representação política, em recente artigo publicado na Folha de São Paulo, na edição de 19/6/2011, intitulado Você no Parlamento, Oded Grajew, presenteou os leitores com a seguinte e notável reflexão:
 
“Os países que possuem os melhores indicadores de qualidade de vida são aqueles em que a democracia participativa mais avançou, nos quais a sociedade e as organizações sociais mais participam nas decisões e no acompanhamento das políticas públicas, fazendo prevalecer o interesse público acima dos interesses corporativos”.
 
Manchete do Jornal Pequeno deste último domingo, 04/09: Brasileiros organizam nas redes sociais ‘O DIA DA INDIGNAÇÂO’, programado para o 7 de setembro próximo. Quem sabe, poderá se transformar num grande momento para expressarmos nas ruas e avenidas deste País todo descontentamento da população contra o perigoso rumo que a nação está tomando, ajoelhada e perplexa diante do caos da corrupção; uns, acomodados pelo conformismo do discurso apocalíptico, enquanto outros justificando suas omissões pela inevitabilidade do particularismo de suas conveniências.
 
Nestas circunstâncias, cabe lembrar e fazer valer o providencial e atualíssimo discurso do líder negro e religioso Martin Luther King:
 
“O que mais preocupa não é o grito dos sem-caráter, dos sem-ética. O que mais preocupa é o silêncio dos bons”.
 
[Com o texto acima, de Joãozinho Ribeiro, publicado na edição de segunda-feira (5) no Jornal Pequeno, este blogue presta sua homenagem à capital maranhense, tão maltratada pelos gestores públicos. Terá a Ilha-capital algo a comemorar? Os trechos em negrito-itálico são de poema (o livro Paisagem feita de tempo) e música (o choro Milhões de uns) do poeta-compositor-colunista]