Quando o carteiro chegou e meu nome gritou com uma carta na mão

Divulgação

Uma das figuras mais marcantes de minha infância certamente é Araújo, carteiro na cidade de Rosário/MA, onde morei até os sete anos. Percorria a cidade inteira numa bicicleta cargueiro, a sacola de correspondências no bagageiro da frente, de onde ele habilmente as tirava e entregava aos destinatários, após gritar “Correios!”, a anunciar-se de porta em porta.

Conhecia pelo nome e era conhecido idem pela cidade inteira. Uma tia, que fazia pedidos nos antigos catálogos Hermes, costumava servir-lhe água, para aplacar o calor e o suor que sempre empapavam seu fardamento azul e amarelo, numa época em que as cores da bandeira eram motivo de orgulho, e não da vergonha de terem sido usurpados pelo neofascismo tupiniquim.

Ao lado de professores, carteiros estão entre os profissionais por quem mais nutro respeito. Ou admiração. Ninguém é nada sem os primeiros, com raríssimas e honrosas exceções; os segundos sempre foram motivo de alegria, quando batem palmas, tocam a campainha ou, como um outro dia, telefonam, para não serem obrigados a devolver uma encomenda, dada a dificuldade em entregá-la, visto que moro em prédio sem porteiro.

Não raros são os carteiros que já viram meus olhos brilhando quando da chegada de alguma aguardada encomenda, em geral livros ou discos.

O anúncio da vitória da privatização da estatal na Câmara dos Deputados, ontem (5), por 286 a 173 (placar nada apertado), entristeceu-me profundamente. Trata-se de uma empresa pública, eficiente e lucrativa. Os que caíram na balela de que cobrar bagagem baratearia passagens aéreas ou que a reforma trabalhista ajudaria a gerar empregos, agora caem na esparrela de que a privatização (ou desestatização, no dizer de eufemistas em conversas para boi dormir) vai “modernizar” os Correios.

Ora, é justamente o fato de ser uma empresa pública – com toda a responsabilidade social efetiva (em vez de mera jogada de marketing) que isso implica – que permite aos Correios atender todos os mais de cinco mil municípios brasileiros, com tarifas justas. Que permite, por exemplo, a um sebista, enviar um livro cobrando um frete de menos de 10 reais, num prazo razoável (há opções mais caras para quem desejar agilizar o recebimento de suas encomendas).

É lógico que não esqueci a imagem que circulou e, por ocasião da triste notícia de ontem, tornou a aparecer nas redes sociais: funcionários da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) fardados queimando a bandeira do Partidos dos Trabalhadores (PT), defendendo o voto em Jair Bolsonaro, nas eleições de 2018. Não foi falta de aviso, mas não gosto de pensar em vingança, embora espere que tenham aprendido a lição – obviamente, também, é impossível generalizar ou atribuir responsabilidades a toda uma categoria pela irresponsabilidade (ou crueldade ou masoquismo) de alguns.

O que é impossível é compreender o patriotismo entreguista de um governo com pulsão de morte, que revelou o pior do brasileiro: como conceber um negro racista (há um na presidência da Fundação Palmares), uma mulher misógina (outra é titular do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos) ou um homossexual homofóbico?

“Faça chuva ou faça sol, o carteiro sempre cumpre o seu dever”, ouvíamos dizer um deles em um desenho animado. A privatização não mais permitirá: se o carteiro, este artista merecedor do Nobel, do Grammy ou do Oscar na arte de ir aonde o povo está, chegava aonde Judas perdeu as botas, gastando as suas, os funcionários concursados de uma empresa pública passarão, como empregados do setor privado, a ir tão somente aonde o lucro (da empresa, não dos carteiros) permitir-lhes.

Pessimismo? De jeito nenhum! Não conhecer o mínimo de História é estar fadado a repetir erros do passado, vide o espetáculo grotesco em que se transformou a política no Brasil, em que um presidente da República chama o presidente de um tribunal superior de “filho da puta” (aqui sem os pudicos asteriscos ou reticências da grande mídia). Não regozijo-me, no entanto, usando de escudo o “não foi falta de aviso” ou o “eu avisei”. O buraco é mais embaixo e nele acabamos todos, afinal. “Não há abismo em que o Brasil caiba”, como afirma o título do mais recente disco do mestre Jorge Mautner.

O placar de ontem não é o resultado final deste jogo bufão. Mas, realista, pouco espero do congresso nacional, que se apequena a cada dia, ao permitir ao despresidente continuar seu script de perversidades e falta de respeito com qualquer um/a.

Cachorros são mais dignos e coerentes: tidos como inimigos número um dos carteiros, os cães em geral são mais fiéis a seus donos que o centrão, cujo fisiologismo permite fidelidade a quem pagar melhor. O que infelizmente ajuda a explicar muita coisa neste país.

O professor me ensinou fazer uma carta de amor, mas muito em breve, a depender do endereço, ela poderá não mais ser entregue.

Subversão, um balanço

No mês que hoje finda fui escalado pela direção da Rádio Timbira AM para substituir o jornalista e historiador Marcus Saldanha no semanal História em debate, apresentado por ele aos sábados, às 10h.

Acompanho com entusiasmo a trajetória do colega na emissora desde pelo menos o Timbira Debate, que ele conduzia diariamente pelas manhãs, noutra época – certa vez cheguei a ser o entrevistado do programa, então na condição de presidente da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), já se vão alguns anos.

Disse e repeti, à direção da emissora, ao próprio Marcus Saldanha, e várias no ar, durante o desenrolar de meu papel, ao longo dos últimos cinco sábados: “difícil e honrosa missão” a de substituí-lo. Sou jornalista como ele, mas não sou historiador; e isto, para o História em debate, faz toda diferença.

Quem não tem cão caça como gato, diz o dito popular. Era preciso subverter, não a história, como querem alguns, não a verdade, como querem os mesmos. Desafio posto, eu precisava encarar (acabei, por tabela, assumindo também a vaga da Rádio Timbira AM na bancada do Giro Nordeste, às quintas-feiras). O jeito foi nadar em minha praia.

Tentei trazer, para o História em debate, ao longo do mês, a experiência acumulada em cinco anos de Balaio Cultural, com Gisa Franco, e o aproximadamente ano e meio que fizemos, eu e Suzana Santos, o Radioletra, um extinto programete semanal de 15 minutos em que basicamente entrevistávamos escritores/as.

O programa poderia ter passado a se chamar, ao menos temporariamente, Literatura em debate: conversei com seis escritores nos cinco programas, li mais de 800 páginas (dos livros mais recentes dos autores) para produzi-los, e costurei, a partir de suas obras, uma conversa que tentava perpassar a história do Brasil (e do mundo), entre temas como a ditadura militar brasileira, o governo neofascista de extrema-direita (não sei sinceramente se isto é uma redundância) de Jair Bolsonaro e sua política continuada de destruição e lesa-humanidade, o holocausto da Alemanha nazista, a pandemia de covid-19, assunto inevitável etc.

Passaram pelo História em debate, nos últimos cinco sábados, o escritor mato-grossense Joca Reiners Terron, que lançara recentemente a distopia “O riso dos ratos” (Todavia, 2021); o jornalista e escritor cearense Xico Sá, um dos textos mais elegantes do jornalismo brasileiro, o homem que encontrou no exterior PC Farias, o foragido tesoureiro do ex-presidente Fernando Collor; Gustavo Pacheco e André Nigri, que organizaram o belo volume “O conto não existe” (Cepe, 2021), reunindo entrevistas e ensaios de Sérgio Sant’Anna (1941-2020); a jornalista e escritora portuguesa Isabel Lucas, que lança semana que vem (3 de agosto) “Viagem ao país do futuro” (Cepe, 2021), um exercício ousado de tentar entender o Brasil através de sua literatura; ela passa uma temporada no Brasil, percorrendo paisagens e vidas de personagens dos lugares em que se passam livros de Euclides da Cunha, Machado de Assis, Miró da Muribeca e Dalton Trevisan, entre outros; e hoje (31), fechando, com chave de ouro, a paulista Noemi Jaffe, filha de imigrantes sobreviventes dos campos de concentração da Alemanha nazista, cujo livro mais recente, “Lili – novela de um luto” (Companhia das Letras, 2021), é uma declaração de amor à sua mãe, falecida ano passado.

Foram conversas inspiradoras e de muito aprendizado. A quem acompanhou ou deseja rever/reouvir as conversas, deixo a seguir os vídeos, agradecendo a confiança dos que me delegaram a missão e o carinho da audiência. A trabalheira intensa vale muito a pena por vocês. Com o fim do mês acabam as férias de Marcus Saldanha e, com o titular absoluto de volta ao gramado, o reserva recolhe-se ao banco, de onde seguirá espectador atento e colaborador eventual.

Uma masterclass de responsa

Divulgação

Cansado de telas, com a vida se resumindo a lives e que tais, acabo esquecendo de ver shows, debates, peças, filmes, olimpíadas, seja de gente amiga, seja de artistas de minha admiração, quando não as duas coisas juntas.

Tela, tela, tela sobre tela: a prorrogação indefinida do isolamento social decorrente da pandemia de covid-19 acabou, em certa medida, resumindo a vida a aparelhos de televisão, computadores e smartphones. É por ali que você fica sabendo de tudo, do noticiário sobre o novo (velho?) coronavírus, política, olimpíadas etc.

Até mesmo o chope após essas lives (isto quando não as perdemos), para aquela aguardada e merecida resenha com os amigos, tem sido mediado por uma tela: em geral, trocam-se mensagens comentando tal coisa, um amigo de um lado, outro de outro, cada qual bebericando o que mais lhe agrada no conforto de suas residências.

Já já – sei que escrevo em cima da hora –, às 15h, tem o lendário Otávio Rodrigues, vulgo Doctor Reggae, um de meus professores, de rádio, mas não só, no que eu chamaria de “aula-espetáculo”, sem nenhum receio de exagerar. A masterclass de Doc acontece na twitch @centroculturalolido, com acesso gratuito.

Para quem não conhece, Otávio Rodrigues é um dos pioneiros na divulgação e consolidação da música jamaicana no Brasil. Criou e apresentou programas como “Disco reggae” e “Bumba beat”, além do pioneiro “Roots rock reggae”, em 1982, o primeiro no dial brasileiro dedicado ao gênero from Jamaica, que foi ao ar pela Excelsior FM, de São Paulo, com direção de Maurício Kubrusly.

Foi Otávio Rodrigues quem grafou pela primeira vez na imprensa do Brasil a expressão “Jamaica brasileira”, com que São Luís viria a se tornar conhecida; em 1988 ele veio pela primeira vez ao Maranhão, onde acabaria morando uma época, escrever uma reportagem sobre o reggae por estas bandas para a revista Trip.

Na live de daqui a pouco, Doc vai rolar o fino, com alguns sons que ajudaram a escrever a história de quase cinco décadas de reggae no Brasil.

Que a pandemia seja superada e logo possamos voltar a frequentar os clubes de reggae como estávamos acostumados – até por que, aqui no Maranhão, se dança reggae agarradinho, algo que as regras de segurança sanitária ainda não permitem.

Jah bless!

*

Divulgação

p.s.: em tempo: por falar em reggae (e cultura negra), hoje, às 19h, no Giro Nordeste, estarei na bancada, representando a Rádio Timbira AM, integro a bancada do programa, que entrevista Lazzo Matumbi, que amanhã disponibiliza, nas plataformas de streaming, seu novo disco, “Àjò” (lê-se “Ajô”), com que celebra seus 40 anos de carreira. A transmissão do Giro Nordeste acontece pela TVE Bahia e um pool de emissoras públicas nordestinas.

Um catálogo de responsa

A exuberante Bárbara Lennie em cena de "Maria (e os outros)". Reprodução
A exuberante Bárbara Lennie em cena de “Maria (e os outros)”. Reprodução

A plataforma de vídeo sob demanda Belas Artes à La Carte existe desde antes da pandemia de covid-19 e o isolamento social decorrente desta acabou por modificar e aprofundar as relações entre cinéfilos e uma das salas de cinema de rua mais charmosas e queridas do Brasil, o Cine Petra Belas Artes.

Dispondo atualmente de um catálogo com mais de 400 títulos nos mais variados gêneros, entre lançamentos e clássicos, a plataforma acaba funcionando também como uma espécie de curadoria para além de algoritmos.

São os casos das mostras “Volta ao Mundo: Espanha” e “Cine Clube Italiano”, em cartaz desde ontem (3) e hoje, respectivamente.

A primeira tem uma seleção de filmes da terra de Carlos Saura, cineasta homenageado em “Saura(s)” [Espanha, 2017, documentário, 86 minutos], de Felix Viscarret, constante do catálogo.

Em “Volta ao Mundo: Espanha” destaca-se também o ótimo “Maria (e os outros)” [Espanha, 2016, drama, 90 minutos], de Nely Reguera, que acompanha a trajetória da personagem-título (interpretada por Bárbara Lennie), entre cuidar do pai em tratamento de um câncer, o golpe do anúncio do novo casamento dele, conflitos com os demais irmãos, a ilusão do sexo sem amor, o trabalho em uma pequena editora e a escrita de um romance.

“Maria (e os outros)” é inédito em salas de cinema brasileiras e foi indicado ao Goya, mais importante prêmio do cinema espanhol, nas categorias melhor direção e melhor atriz (para a protagonista). É a estreia de Nely Reguera como diretora de longa-metragem; ela foi assistente de direção de “Perfume: a história de um assassino”, de Tom Tykwer, baseado no livro de Patrick Süskind. Lennie protagonizou também “Uma espécie de família” (2017), de Diego Lerman.

A edição deste mês do Cine Clube Italiano, parceria do Belas Artes à La Carte com o Instituto Italiano de Cultura de São Paulo, apresenta “De volta para casa” [Itália, 2019, drama, 107 minutos], que poderá ser assistido até o dia 10 de junho por assinantes e não assinantes do serviço de streaming.

O filme de Cristina Comencini aborda, de maneira interessante, as relações de Alice (Giovanna Mezzogiorno e Beatrice Grannò na adolescência da personagem) com seu próprio passado, ao retornar, por conta do funeral de seu pai, à casa onde passou a infância e a adolescência.

A trama costura a insurgência de Alice contra a opressão do pai militar e sua rigidez excessiva na criação das filhas, embora a opressão (e, por que não dizer, violência) não estivesse apenas dentro de casa. Em seu retorno, ela reencontra o sombrio Marc (Vincenzo Amato), que obsessivamente acaba por embaralhar o jogo da memória, com lacunas, dúvidas e tensão.

Na próxima quarta-feira (9), às 18h30, haverá um bate-papo ao vivo sobre o filme, com o crítico de cinema Miguel Barbieri Jr. e o gerente de inteligência do Belas Artes Grupo Léo Mendes.

De volta ao microfone da Timbira

Operador de áudio da emissora desde 2011, ele produzirá e apresentará “Tambores do Maranhão”, que vai ao ar aos sábados, às 21h

Luiz Barreto volta à programação da Rádio Timbira. Foto: Leno Edroaldo. Divulgação

Neste sábado (5), às 21h, a Rádio Timbira AM (1290KHz) estreia, em sua grade, mais um programa voltado à cultura. Trata-se de “Tambores do Maranhão”, que marca o retorno do operador de áudio Luiz Barreto ao microfone da emissora da Rua da Montanha Russa.

O programa se soma aos esforços de valorização da cultura pela emissora, que já tem em sua grade “Coisa Nossa” (de segunda a sexta, às 17h, com José Raimundo Rodrigues), “Balaio Cultural” (aos sábados, das 13h às 15h, com Gisa Franco e este repórter), “Baião de dois” (domingos, ao meio-dia) e “Forró para todos” (domingos, das 13h às 15h), estes dois últimos em cadeia com a Educadora FM baiana e outras emissoras públicas nordestinas, repetindo molde e êxito do Giro Nordeste, com foco na música popular produzida na região.

Luiz Barreto começou a trabalhar na emissora em 2011, como estagiário da Faculdade Estácio São Luís, onde estudou jornalismo. Firmou-se na função e desde 2012 ele apresentou o “Timbira Amanhece”, depois “Viva nossa gente” e finalmente “Maranhão especial”, até meados de 2015. Vem daí o apelido-bordão “o seu camarada”, que o acompanha até hoje.

No programa de estreia, Barreto entrevistará o violonista e cantor Roberto Ricci, que aproveita a ocasião para lançar seu novo disco, “Mágica visão”. O programa terá ainda um quadro, intitulado Poesia à beira-mar, dedicado a poetas consagrados e revelações e deve ir além de manifestações como o bumba meu boi e o tambor de crioula, abrindo espaço para nomes da nova geração, dos mais variados estilos.

Também cantor e compositor, com experiência em grupos de bumba meu boi e blocos tradicionais, Luiz Barreto conversou com exclusividade com Homem de vícios antigos.

ZEMA RIBEIRO – O que significa para você, operador de áudio da Rádio Timbira, voltar a apresentar um programa voltado à cultura popular do Maranhão?
LUIZ BARRETO – É motivo de grande satisfação e alegria, já que tenho 20 anos dedicados à cultura popular como cantor e compositor, ou seja, me identifico bastante com nossas manifestações, além do que, o tempo em que apresentei o “Viva nossa gente”, que depois passou a se chamar “Maranhão especial”, foi um momento importante, quando novamente pude contribuir com a cultura de nosso estado, desta vez na comunicação social. Vejo essa nova oportunidade como um reencontro com os apreciadores e fazedores de cultura popular no Maranhão.

ZR – “Tambores do Maranhão” é um ótimo nome. Como você chegou a ele? Alguma influência d'”Os tambores de São Luís”, clássico de Josué Montello?
LB – Sim. Teremos um quadro de poesia no programa, apresentando poetas maranhenses já consagrados e abrindo espaço para novos poetas mostrarem seu trabalho. Sem falar que nossa cultura tem enorme influencia dos tambores indígenas e dos negros escravizados, portanto, “Tambores do Maranhão” me pareceu um nome bastante sugestivo.

ZR – Roberto Ricci é o entrevistado do programa de estreia, uma estreia com o pé direito. Qual a importância deste inspirado violonista para a cultura popular do Maranhão?
LB – Ricci é um ícone da nossa música e da cultura popular maranhense. Um cara que já cantou nos principais grupos de bumba meu boi, nos sotaques de orquestra e matraca, como Axixá e Maracanã. Vários blocos tradicionais já venceram carnavais com sambas compostos por ele. Enfim, fico muito feliz de poder entrevistá-lo no primeiro programa, oportunidade em que será lançado seu novo cd, intitulado “Mágica visão”.

ZR – O que mais o teleouvinte da Timbira pode esperar de “Tambores do Maranhão”?
LB – Muita música, entrevista, poesia, dicas, sempre com muito alto astral. Teremos um quadro que já pensei, estamos elaborando para ir ao ar, mas não posso dar detalhes ainda. É surpresa, mas prometo que será muito bacana.

ZR – “Tambores do Maranhão” tem como foco a cultura popular do Maranhão, mesma pauta do “Coisa Nossa”, de José Raimundo Rodrigues. Qual será o diferencial, além do dia e do fato de ser semanal e da duração?
LB – Zé Raimundo é um ícone da comunicação. Eu cresci vendo essa grande mestre se destacar em tudo que fez, ele é referência para muita gente, e não teria como não ser pra mim também. Aliás, sinto orgulho enorme em hoje em dia, tê-lo como colega de profissão, e estar ao lado dele de segunda a sexta no “Coisa Nossa” da Timbira, onde sempre tento colaborar com o repertório ou uma ideia. Para o “Tambores do Maranhão” estamos preparando um programa bem dinâmico, sempre com um entrevistado para falarmos de cultura popular e buscando, a cada sábado, novidades para atrair os ouvintes.

ZR – “Tambores do Maranhão” se alia a programas culturais consolidados, como o “Coisa Nossa”, apresentado por José Raimundo Rodrigues, o “Balaio Cultural”, que eu faço com Gisa Franco (e é invariavelmente operado por você), e os programas “Baião de dois” e “Forró para todos”, que a emissora realiza em cadeia com a Educadora FM baiana e outras emissoras públicas nordestinas. O Nordeste acabou se tornando um foco de resistência cultural diante do desmonte sistemático de políticas públicas para o setor pelo governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro, a começar pela extinção do Ministério da Cultura. O que você tem a declarar sobre o assunto?
LB – É, de fato, lamentável a forma como nossa cultura tem sido tratada, mas como você mesmo disse na pergunta, o nordestino é resistente, e eu garanto que resistiremos, e permaneceremos, enquanto eles passarão.

Era uma vez em streaming

Robert De Niro é Noodles em “Era uma vez na América”; clássico de Sergio Leone está disponível em streaming no Belas Artes à La Carte. Reprodução

Obra-prima de Sergio Leone (1929-1989), o épico “Era uma vez na América” (“Once upon a time in America”, EUA/Itália, 1984, 229 minutos) é uma espécie de romance de formação de uma gangue, acompanhando a formação e firmação de um grupo de moleques desde pequenos golpes na vizinhança até roubos monumentais, com doses de ação, tensão e violência que agradam seus apreciadores em telas de qualquer tamanho.

O filme é ambientado em Nova York, na quadra histórica localizada entre a lei seca americana e seu fim, mas mais que acompanhar planos e suas execuções, entre saques, perigos e prazeres, aborda relações de afeto, amizade e amor.

Último filme de Sergio Leone, que faleceria cinco anos depois de seu lançamento e, 12 anos antes, havia recusado a proposta de dirigir “O poderoso chefão” (Francis Ford Coppola, 1972), do que viria a se arrepender, se vale do uso de flashbacks com habilidade, recurso que já tinha sido utilizado com maestria no segundo filme daquela franquia. O tema também evoca aquela recusa: é um filme de gangsters, em que um deles, judeu, volta ao local onde se iniciou na criminalidade para lidar com seu passado, entre fantasmas, dúvidas e arrependimentos.

Presença constante em listas de melhores filmes de todos os tempos, “Era uma vez na América” tem cenas memoráveis, daquelas que conseguem sobreviver para além dos filmes em que estão inseridas, sempre lembradas por cinéfilos, que também não cansam de apontar as atuações exuberantes de Robert De Niro (David Aaronson, o Noodles) e James Woods (Maximilian Bercovicz, o Max) e a trilha sonora de Ennio Morricone.

Para além da brutalidade do contexto narrado no filme, há generosas doses de delicadeza, mesmo – ou deveria dizer justamente? – em meio à violência. Um clássico absoluto que merece ser visto por neófitos e revisto por apreciadores da sétima arte.

Serviço: “Era uma vez na América” está disponível a partir de hoje (27) no Belas Artes à La Carte, serviço de streaming do Cine Petra Belas Artes. Criado no fim de 2019, já conta com cerca de 400 títulos em catálogo. Também estão disponíveis a partir de hoje na plataforma os seguintes títulos: “Henrique V” (The chronicle history of King Henry the Fifth with his battell fought at Agincourt in France, Reino Unido, 1944, direção: Laurence Olivier), “Humor à italiana” (Risate all´italiana, Itália, 1964, direção: Camillo Mastrocinque e Registi Vari) e “Os frutos da paixão” (Les fruits de la passion, França/Japão, 1981, direção: Shuji Terayama).

Amabile, gentile, adorabile

Meu sol iluminado por outro. Retrato: ZR

Obviamente ela não é São Francisco de Assis, tampouco devota, mas destina especial atenção a plantas, cachorros e passarinhos, que cria soltos, vindo estes pousar e bicar em bebedouros que pendura nas janelas do apartamento – conversa com todos eles.

A que, com apreço especial pelo rock’n’roll desde a infância e juventude, em parte passadas na Itália, tem se descoberto igualmente apreciadora de música popular brasileira, com predileção pelo “Clube da esquina”, o disco que Milton Nascimento e Lô Borges lançaram juntos em 1972 – e especialmente pela canção “Um girassol da cor de seu cabelo” (Lô Borges/ Márcio Borges), disparada sua preferida no universo comumente envolvido pelo rótulo MPB –, e por Vanguart, discos que invariavelmente cata em meio à minha (hoje nossa) modesta coleção e bota para tocar por iniciativa própria.

A que, aqui e acolá, se pega cantarolando “quando cheguei, tudo, tudo, tudo estava virado/ apenas viram, me viram” e eu boto todo o “Acabou chorare” (não por acaso lançado no mesmo ano do “Clube da esquina”) para tocar, enquanto lembro que foi isso mesmo: “quando vi você me apaixonei”.

A que às vezes devora livros e HQs que me chegam antes mesmo de eu conseguir folheá-los. A perfeccionista que nunca consegue fazer uma única foto ou sempre acha que um vídeo pode ficar melhor – eu, geralmente sem paciência, quero sempre enviar o primeiro, por força de algum compromisso profissional.

Ano passado, no dia de seu aniversário, estávamos confinados, naquele que até então achávamos que seria o momento mais difícil da pandemia. Escritórios armados em casa, entre trabalho, testes de receitas e muitas fotos das experiências em grupos de família, “loucura, chiclete e som”.

Um ano depois, cá estamos nós, quase na mesma, talvez um pouco mais experientes, sem dúvidas mais conscientes das escolhas que fizemos e fazemos cotidianamente: das séries que maratonamos no streaming a questões menos prosaicas, o equilibrar-se no slackline das finanças.

Mas “o novo sempre vem” e eu espero que o “compositor de destinos” nos permita todos os aniversários juntos e a possibilidade de comemorações menos restritas.

Feliz vida, minha doce Guta!

Tribo futurista, a tribo de um presente urgente

Rita Benneditto e Beto Ehong em colagem sobre fotos de Márcio Vasconcelos e Emílio Sagaz. Divulgação

A “Tribo futurista” em que Beto Ehong e Rita Benneditto se encontram é, na verdade, uma tribo do presente, ou, antes disso, uma tribo da urgência. Mais que a soma de dois enormes talentos, o encontro de dois artistas compromissados com a arte para além de mero entretenimento. Que não se eximem de suas responsabilidades de artistas enquanto formadores de opinião e tocam os dedos nas feridas. A sonoridade de mina eletrônica dando voz a minorias e rebelando-se contra discursos de ódio que se tornaram corriqueiros em nossos tristes tempos precisa reverberar entre as paredes das cidades atravessando as cabeças ocas de quem insiste em negar o óbvio. Som para dançar com a cabeça e pensar com o corpo inteiro. Tambores que batem dentro do peito e eriçam cada pelo: arrepio de quem não perdeu a capacidade de se emocionar diante do belo – apesar de toda tragédia que nos cerca. Coisas de que somente são capazes aqueles que realmente manjam dos paranauês.

*

Escrevi o textinho acima a pedido do cantor, compositor e produtor Beto Ehong. O single “Tribo futurista” pode ser ouvido nas plataformas de streaming.

O videoclipe será lançado no próximo dia 22 de abril e você poderá assistir abaixo, na data:

O testamento de Judas 2021

por Cesar Teixeira, jornalista e compositor

Foto: Luiz Barreto

Outra vez sou enforcado
num tribunal ignaro,
mas meu crime prescreveu,
diz um pergaminho raro.
Quem exterminou Jesus
e botou culpa no SUS
foi Messias Bolsonaro.

Quando chegar no Inferno
ele não terá guarida,
pois o Diabo não aceita
gente de língua comprida
com barriga de jumenta,
cabelo de cu na venta
e fama de genocida.

Deixo ao Profeta do Caos
bula do Billy the Kid,
pois, quando bota ministro
na Saúde, há quem duvide:
– Será Marcelo Queiroga
um novo tipo de droga
que vem no Kit-Covid?

O tratamento precoce
é fim que não principia,
mais parece uma garrafa
de aguardente vazia.
Só traz insuficiência
renal e resiliência
da alma em hemorragia.

Deixo pro Ricardo Salles,
que a natureza atazana,
os restos mortais do gado
que acreditou no sacana.
Jogou no abismo a boiada,
que passa, desgovernada,
achando que a Terra é plana.

Para a ministra Damares,
que só trepa em goiabais,
vou deixar o Kama-Sutra
dos traumas celestiais.
Pra massagear o ego
de um pobre Judas cego,
deixo os órgãos genitais.

Deixo na Universidade
o cordel do ABC.
Hoje em dia estudante
só consegue o que dizer
na voz dos mestres Foucault,
Walter Benjamin, Nivô,
Apolônio e Bordieu.

Antes que o Testamento
se torne monografia,
uma camisa-de-força
deixarei para o Messias,
pois agora o rei está nu
entubado pelo cu,
de onde caga ideologia.

Vou deixar uma vacina
de cereais e verduras
pro nosso Mao-Tsé-Tung
não desabar das alturas
ao subir no Sputnik,
depois de um piquenique
com muito doce e gordura.

Para não cair partido
em Rocha capitalista
deixo a foice e o martelo
de cravar nazifascista
e, sem disparar um tiro,
enterrar mais um Vampiro
da corte terraplanista.

Pro ex-ministro Sérgio Moro
da Lawfare se salvar
eu vou deixar o triplex
com sua “conge” em Guarujá.
Pato já virou boneco,
agora é a vez do marreco
cantando Edith Piá.

Deixo para o Presidente,
doutor em Necrofilia,
o cadáver da Amazônia
cujos pulmões esvazia.
E o verde, se despindo,
de luto vai se vestindo,
numa triste asfixia.

Pagar na mesma moeda
em Aurizona eu pretendo,
pois lá a Equinox Gold
o terror vem promovendo.
Leva o ouro pra Gaudéria,
deixa a lama da miséria
em cada cova escorrendo.

É preciso demarcar
nossa herança por inteiro,
interditar o garimpo
e algemar fazendeiro.
A Funai não auxilia,
é pior que epidemia
para o índio brasileiro.

Deixo a Flávio Bolsonaro
a mala de um mascate
para esconder a grana,
sem que Queiroz o delate
por crime de peculato,
lavando dinheiro a jato
em pia de chocolate.

Na Assembleia deixarei
emenda legislativa
que impede o deputado,
em corrupção ativa,
pular cerca da vizinha
pra comer a rachadinha
da amiga Patativa.

Pois cabaço, meus amigos,
hoje é sigilo fiscal
que no Brasil ninguém quebra
se for presidencial,
por isso a mulher do Arruda
vai proteger a Papuda
do governo federal.

Deixo pras Forças Armadas
a batina dos vigários.
Não há generais rebeldes,
pois, muito pelo contrário,
a velada demissão
é a farsa do escorpião
no cangote de otário.

Assumiram Três Patetas,
no cinema um sucesso.
Para o filme “Bolsotralha
e os Três Porquinhos Perversos”
deixo esquadras de papel,
caminhões de carretel
e uma FAB de processos.

Para Kátia Abreu entrego
um cabresto em Testamento
pra botar o ex-chanceler
Ernesto pastando ao vento.
Nos restaurantes da China
carne que tem vitamina
é a carne de jumento.

Bolsonaro é repetente
desde seu Grupo Escolar,
e foi gazeando aula
que se tornou militar.
No quartel só lhe convinha
brincar de explodir bombinha,
e acabou por se queimar.

Na defesa, Braga Netto,
Paulo Guedes, o zagueiro;
no ataque, Bolsonaro,
Augusto Heleno, goleiro.
Com esse time oficial,
que só tem perna-de-pau,
o Brasil tá no atoleiro.

Ele não toma vacina
nem bota anel de tucum.
Na mão de Chico Gonçalves
não terá Direito algum.
Bozo tem medo é de agulha,
da seringa que borbulha
apontando o seu bumbum.

Deixo pro Fernando Cury
um sutiã de mamão
para ficar apalpando
seis meses de suspensão.
Essa pena é pequena,
em respeito a Isa Penna
caberia a cassação.

Para a amiga Rosa Reis
entrego meu borderô,
mantendo o Cacuriá
na UTI do Labô.
Messias pode surtar,
mas temos que vacinar
nosso Jacaré Poiô.

Vou deixar no Laborarte
minha máscara de linho.
No Inferno não tem vírus,
mas o Cão não tá sozinho.
Lá já se espalhou o mito
da língua do Nélson Brito,
herdada pelo Nelsinho.

Deixo para Joãozinho
enfrentar o lockdown
um litro de catuaba
pra de mim não falar mal.
Também deixo um ingresso
pra ele fazer sucesso
dançando no Xirizal.

No Planalto já deixei
a ceia do Capitão:
patê de ivermectina,
azitromicina, pão,
cloroquina e Leite Moça.
Já lavaram até a louça,
que não tem licitação.

Deixo orelhas de burro
nessa ave de rapina,
que negou o Butantan
por causa de uma vacina.
Fez do Brasil um velório
pra vender supositório
de hidroxicloroquina.

Insumos quero deixar
pra ajudar a Fiocruz,
oxigênio em Manaus,
farinha d’água e cuscuz.
Mas, para o mito bandido
deixo um pequi roído
no cocho dos urubus.

O curral não quer tomar
a vacina comunista.
Vitor Hugo e Zambelli
fazem parte dessa lista.
Por isso, deixo a mimosa
vacina de aftosa
pro gado bolsonarista.

A imprensa, que viveu
no AI-5 amordaçada,
por um louco outra vez
está sendo censurada.
Vou botar uma chupeta
com remédio tarja preta
nesse Boca de Privada.

Vou deixar na CCJ
da Câmara Federal
um despacho pra afastar
o atraso, a dor e o mal.
Incentivando motim,
Bia Kicis é pra mim
um verme no lamaçal.

Se há um ministro escroto
é o da Tecnologia,
viu que a Terra é redonda
sem informar a Chefia.
Deixo um foguete da Nasa
pra bem longe desta casa
despachar Jair Messias.

Nas paredes de Alcântara
já colei o personagem,
com o chapéu do Tio Sam
Bolsonaro fez chantagem.
A distribuição de título
foi mais um falso capítulo,
a mais pura maquiagem.

Deixarei a própria corda
que hoje me decide a sorte
de herança aos editores
que publicam minha morte.
Ganhando dinheiro fácil,
me esculhambam no prefácio
sem me dar vale-transporte.

Auxílio Emergencial
deixo até o fim do ano
para os artistas da Feira
que estão se esforçando,
fazendo até hora extra
entre a segunda e a sexta
no bar do Corinthiano.

Em ano de lockdown
e quarentena de Judas
todos querem fazer live,
virou um “deus nos acuda”.
Mire o seu QR Code,
ou então me compre um bode,
no final tudo é ajuda.

Pra acabar com a pandemia
temos que participar
das batalhas contra o golpe
que espalha cepas no ar.
Contra a fome e a impunidade,
o manjar da liberdade
é o Impeachment, Já!

FIM?

Croniqueta em tempos de pandemia

De den’do hospital ela me fotografa à sua espera. Foto: Guta Amabile

Um segurança do hospital impediu minha entrada, em nome das restrições impostas pela prolongada pandemia. Fiquei do lado de fora, em pé, envergando o tijolo “Menino sem passado”, do Silvano Santiago. Havia cadeiras vazias, que o distanciamento social e as marcações recomendavam não usar. Encostei-me no corrimão da rampa por onde sobem veículos e pedestres e lia, enquanto táxis, ubers, carros de passeio e ambulâncias deixavam e levavam passageiros e pacientes.

Um homem cuja idade era difícil precisar, trajando máscara, camisa do Flamengo e luvas, entregou-me um papel. Desavisado, peguei, mesmo contra a recomendação dos protocolos de segurança sanitária. Interrompi a leitura para ler: era um apelo para ajudá-lo a construir sua casa, ele, mudo de nascença, como dizia no pequeno pedaço de papel, como aqueles que inspiraram Valêncio Xavier em “Rremembranças da menina de rua morta nua e outros livros”. Indicava os valores de um, dois ou três reais para a contribuição. Enquanto ele distribuía e recolhia dos outros acompanhantes, devolvi-o quando de sua passagem, sem colaborar. Eu realmente estava sem trocado nem lenço, nos bolsos só havia documentos.

Uma senhora encostou a meu lado, aproveitando uma pausa na leitura para checar o celular. Por ele me comunicava com ela, lá dentro fazendo os exames. “Seu celular faz ligação para qualquer operadora?”. “Sim”, respondi imediatamente, me arrependendo tão ou mais rápido e pensando: “ela vai pedir o celular para ligar para alguém e eu vou ter que pegar de volta, sem álcool em gel. E se ela estiver com covid?”, perguntei-me, paranoico – ou não. Bingo! “O senhor pode fazer uma ligação para minha filha? É para ela pedir um uber pra mim, eu saí de casa e esqueci o celular”. Já ia entregar-lhe o aparelho quando ela mesmo sugeriu: “o senhor mesmo liga” e me deu o número e o nome da filha. Liguei um par de vezes e em ambas a ligação caiu na caixa postal. “A senhora vai pagar o uber em dinheiro?”. “Sim”. “Posso pedir um para a senhora”, ofereci-me, no que ela concordou, me passando o endereço. Aguardamos o carro, de que lhe indiquei modelo, cor e placa, apontando-lhe quando ele chegou. Ela agradeceu e me estendeu um papel, com 50 centavos. “Se o moço aparecer o senhor entrega para ele”, pediu e me agradeceu mais uma vez. Fiquei vendo-a pegar o uber de volta para casa com o marido adoentado e esperei mais um pouco por ela, que terminava de coletar sangue para os exames.

O homem não voltou e não o alcancei, mesmo lançando meu olhar a 360 graus, procurando-o. Quando ela saiu, descemos a rampa até onde o carro estava estacionado. Coloquei o papel amarrotado no bolso de trás da calça idem e paguei o flanelinha com os 50 centavos. “Obrigado e vá com Deus!”, ainda consegui ouvir antes de subir o vidro da janela e ela ligar o rádio.

Pena capital ao genocida

Em memória dos mais de 255 mil brasileiros vítimas da covid-19 e da irresponsabilidade do presidente genocida de extrema-direita Jair Bolsonaro

“O que é roubar um banco comparado a fundar um banco?”
Bertolt Brecht

“Se números frios não tocam a gente/ espero que nomes consigam tocar”
Bráulio Bessa/ Chico César

Uma estaca cravada no prepúcio
ainda é pouco pra este genocida.
Se a facada não lhe tirou a vida
é preciso tirar-lhe já o poder.
Quantos ainda precisarão morrer
no Brasil, hoje sinônimo de desgraça?
Bolsonaro, vá embora e leve a sua raça!
Meu povo não aguenta mais sofrer.

Uma corda em volta de seu pescoço,
um patíbulo, um grito desumano:
será que ao morrer faria o gesto insano
da arminha e elogio a torturador?
Quero que Bolsonaro saiba o que é dor
pra que enfim, acabe de vez a nossa.
Que o Brasil volte a ser o país da bossa,
do samba, do carnaval e não mais do horror.

Um tiro no meio de sua testa
distanciando seus olhos de facínora
sem empatia, cujo significado ele ignora.
Haverá quem chore por este desgraçado?
Milhares de corações dilacerados
pelas mortes de pais, mães, filhos e avós.
Precisamos, e logo, desatar os nós
da cilada em que nos meteu seu gado.

Cínicos, uns dizem “eu não sabia”.
Não foi falta de aviso, digo e repito.
Todos sabíamos no que daria falso mito
em lugar que deve ser ocupado por gente,
não por falso herói nada eloquente.
Faltará borracha pra apagar tamanho erro
e aqui e acolá ainda se ouve o berro
do gado que aplaude quem fode a gente.

Impeachment é nada e cadeia é pouco:
Bolsonaro merece passagem só de ida
para sofrer por toda eterna vida
em companhia de ídolos como Hitler e Ustra.
Nem no inferno o diabo quer esses filhos da puta
que tanto mal fizeram à humanidade.
Nem na lata de lixo da história lhes cabe.
Contra suas fake news, eis a verdade absoluta.

Morre o último beat

O poeta Lawrence Ferlinghetti era um beat que não se considerava como tal, embora sua livraria/editora, a City Lights, tenha sido imprescindível para a difusão das ideias do movimento que reuniu nomes como Jack Kerouac, Gregory Corso, William Burroughs e, entre outros, Allen Ginsberg – Ferlinghetti chegou a ser preso em 1956 após sua editora publicar “Uivo”, do último, sendo posteriormente absolvido pela corte norte-americana, após provar que o poema não é obsceno.

Não sei se Ferlinghetti, homem de esquerda, chegou a tomar conhecimento de Jair Bolsonaro e do desastre que o genocida representa não apenas para o Brasil e penso nisso ao reler uma entrevista do poeta ao colega de ofício brasileiro Rodrigo Garcia Lopes. Na conversa, publicada no volume “Vozes e visões: panorama da arte e cultura norte-americanas hoje” (Iluminuras, 1996), ele não usa eufemismos ao se referir aos presidentes americanos Ronald Reagan (“um zero em matéria de ecologia”), Richard Nixon (“o que Nixon fez ultrapassou a mais paranóica das imaginações”) e George Bush (“de uma completa ignorância e estupidez. É um idiota”).

Na mesma entrevista, Ferlinghetti diz achar “que neste século a biografia, assim como a entrevista, acabou virando uma nova forma de arte”, e, referindo-se à própria biografia, escrita por Barry Silesky: “essa biografia é pura ficção. Biografia virou ficção”.

Pacifista convicto, Ferlinghetti serviu à marinha americana na segunda guerra mundial, tendo estado na invasão da Normandia e visitado Nagasaki uma semana após a explosão da bomba atômica. “Era como um par de quilômetros quadrados cobertos de nada, mas com cabelo humano e ossos saindo, algo horrível de se ver”, afirmou em depoimento ao Public Broadcasting Service (PBS), em 2002.

Em 2012, coerente com suas convicções, o poeta recusou um prêmio húngaro de mais de 64 mil dólares, o Prêmio Internacional de Poesia Janus Pannonius; à época, ele disse que “se o prêmio é em parte financiado pelo governo húngaro, e as políticas de direita deste regime tendem ao autoritarismo e o consequente cercear das liberdades de expressão e civis, penso ser impossível, para mim, aceitá-lo”, conforme matéria de Carolyn Kellogg, dos Los Angeles Times Books, traduzida por este repórter na ocasião.

Seu “Poesia como arte insurgente” (2007) – uma de suas obras mais recentes, no prelo pela Editora 34, em tradução de Fabiano Calixto – foi escrito e reescrito por mais de 60 anos e é uma coleção de aforismos ferinos, pílulas de dicas para poetas e escritores, mas não só. “Se você quer ser um poeta, crie obras capazes de responder aos desafios dos tempos apocalípticos, mesmo se isso soar apocalíptico”, recomenda (aqui em tradução de Léo Gonçalves), no livro.

Na mesma obra é também certeiro: “A guerra contra a imaginação não é a única guerra. Usando o desastre das torres gêmeas do onze de setembro como desculpa, os Estados Unidos iniciaram a terceira guerra mundial, que é a guerra contra o terceiro mundo” (idem). E finalmente: “Resista mais, obedeça menos” (ibidem).

Reuben da Cunha Rocha, que também traduziu alguns destes poemas curtíssimos, classificou o livro de Ferlinghetti como um “exercício desbragado de contradição, como toda definição do que seja poesia”.

Ainda no livro e na tradução de Reuben, algumas definições de poesia, por Ferlinghetti: “a ficção suprema”; “graffiti eterno no coração de cada um”; “gíria de anjos e diabos”; “a anarquia dos sentidos fazendo sentido”; “o perfume da resistência” e “o poeta um batedor de carteiras da realidade”; em suma, “poesia não vale nada e por isso não tem preço”.

No Brasil, Ferlinghetti foi traduzido também por nomes como Paulo Leminski, Nelson Ascher, Eduardo Bueno e o recém-oitentão Leonardo Fróes.

Sua crítica ao capitalismo, incompatível com a democracia, segundo ele, comparece a poemas como, por exemplo, “Autobiografia” (de “Um parque de diversões na cabeça”, originalmente publicado em 1958): “li as Seleções de Reader’s Digest/ de cabo a rabo/ e notei a perfeita identificação/ entre os Estados Unidos e a terra prometida/ já que em todas as moedas está impresso/ confiamos em Deus/ mas nas notas de dólar não há inscrição alguma/ porque são deuses elas próprias” (tradução de Eduardo Bueno, L&PM, 2007).

“Lawrence Ferlinghetti nasceu em Nova York a 24 de março de 1919. Filho de um imigrante italiano, foi criado por uma tia francesa. Passou seus primeiros cinco anos de vida em Strasburg, França; outro bilíngue na beat. Antes de servir no exército, foi jornalista esportivo e pescador; já publicava contos”, anota Claudio Willer em “San Francisco” (in: “Geração Beat”, L&PM, 2009).

Continua o “beat”ólogo: “com uma bolsa para veteranos de guerra, graduou-se e fez mestrado em Columbia e doutorou-se em literatura na Sorbonne, antes de estabelecer-se em San Francisco em 1953, atuou como ponte entre a literatura americana e a francesa, surrealismo inclusive. Tanto é que entre os primeiros títulos da City Lights estavam coletâneas de textos de Antonin Artaud e Jacques Prévert. É autor de “A coney island of the mind (Um parque de diversões na cabeça)”, outro livro de poesia que já vendeu milhões de exemplares; a reunião de poesias “Endless life (Vida sem fim)”; “The secret meaning of things (O significado secreto das coisas)”; a prosa poética de “Her (Dela)”, textos políticos como “Tirannus Nix?” e tantos outros. Também é pintor. Sempre esteve presente no front político, incluindo suas viagens a Cuba em 1960, à Nicarágua sandinista nos anos 1980 e, mais recentemente, em apoio aos zapatistas mexicanos”.

Lawrence Ferlinghetti, o último poeta beat, faleceu hoje, aos 101 anos. Seu filho Lorenzo confirmou a informação ao Washington Post, atribuindo a uma doença pulmonar a causa da morte.

*

Leia também a entrevista de Lawrence Ferlinghetti a Jotabê Medeiros, reproduzida pelo Farofafá.

As Independências do Brasil

Toque de avançar – Destino: Independência. Capa. Reprodução

Às vésperas dos 200 anos da proclamação da independência do Brasil, o jornalista e escritor Flávio Paiva publica “Toque de avançar – Destino: Independência” [Armazém da Cultura, 2020, 120 p.], em.que remonta a história brasileira se valendo, aqui e ali, das tintas da ficção. 

Paiva parte do acontecimento histórico para investigar a origem do lugar onde nasceu, em 1959: o município de Independência, no Ceará.

Numa prosa que transforma referências bibliográficas, frutos de extensa pesquisa do autor, em relatos soprados à sombra de oiticicas. As aventuras têm o som do pife como trilha sonora – a parceria de Paiva com o compositor paulista Edvaldo Santana, filhos de nordestinos, na faixa homônima, trilha do livro, está disponível para audição nas plataformas de streaming.

Paiva transforma-se num herói sem nome, que, munido de seu instrumento musical, curiosidade e bravura, narra e participa dos feitos que levaram a adesões tardias à independência na região – além do Ceará, a história se passa também no Piauí e Maranhão.

As ilustrações de Válber Benevides, em acrílica aquarelada e nanquim sobre tela, são um espetáculo à parte, nesta obra multimídia em essência, que revela que a independência do Brasil foi um processo para além do grito de Dom Pedro às margens do Ipiranga, imortalizado no famoso quadro de Pedro Américo, fartamente reproduzido em livros escolares.

“Dente por dente” e a podridão dos poderosos

Juliano Cazarré em cena de Dente por dente. Divulgação

Uma sequência de assassinatos com as mesmas características é o mote do suspense “Dente por dente” [Brasil, 2021, 85 minutos], dirigido por Júlio Taubkin e Pedro Arantes: após a morte todas as vítimas têm seus dentes extraídos de forma brutal. O curioso é que o serial killer por detrás dos assassinatos não some com os cadáveres – a extração das arcadas dentárias poderia servir para sua não identificação.

Juliano Cazarré interpreta Ademar, o guariteiro-sócio de uma empresa terceirizada que presta serviços de segurança privada a uma grande construtora. Numa atmosfera pesadelar, ele acaba fazendo às vezes de detetive, ao descobrir a primeira vítima – enquanto mortes não param de acontecer: seu sócio Teixeira (Paulo Tiefenthaler), esposo de Joana (Paolla Oliveira), filha de Valadares (Aderbal Freire Filho), um delegado corrupto que tem que fingir que investiga o assassinato do próprio genro. O filme exige do espectador a montagem de uma intrincada teia de corrupção e traições, deixando algumas pontas em aberto – o roteiro de Arthur Warren com colaboração de Michel Laub não entrega tudo de bandeja.

A trama é pano de fundo para expor e debater uma triste realidade brasileira: o conluio entre os poderosos – os que são donos do dinheiro e os que ocupam cargos em qualquer escalão, prontos a abocanhar sua parte em esquemas fraudulentos ou mesmo para tentar passar a perna nos próprios pares e abocanhar tudo sozinho. No fim das contas é um filme sobre ganância e a consequente falta de escrúpulos dela advinda, escancarando a falta de ética que permeia as relações político-empresariais no Brasil.

Para ver sair do papel seus novos megaempreendimentos imobiliários de alto padrão, a indústria da construção civil não aceita empecilhos: pouco se importa com quem estava antes e há quanto tempo em determinado terreno, afinal, famílias inteiras de gente pobre não podem ser obstáculo ao surgimento de novos blocos de apartamentos luxuosos com suas áreas de lazer gentrificadas e suas varandas gourmet. Ao menos até a insurgência dos que estão na Encruzilhada.

*

Veja o trailer:

A beleza caliente do novo clipe de Betto Pereira

O cantor e compositor Betto Pereira acaba de lançar o videoclipe de “Maldito amor”, single composto em parceria com o poeta Félix Alberto Lima – música que ele canta em dueto com Zeca Baleiro. Para além da participação especial o clipe conta com as ilustres presenças, entre outros, do dj Ademar Danilo, das cantoras e cantores Alcione, Beto Ehong, Flávia Bittencourt, Glad Azevedo, do torcedor boliviano Fumaça e de bailarinos do Grupo de Dança Afro Malungos (GDAM).

“Maldito amor”, o clipe, tem direção de Vicente Simão Jr. (Fábrika) e seu ritmo caliente é envolvido pela beleza das paisagens ludovicenses – o Centro Histórico visto da Avenida Ferreira Gullar ou passeado pela praça João Lisboa e a Feira da Praia Grande, a Escadaria do Beco do Silva, recém-repintada pelo artista Gil Leros, e o Point Magno Roots, no Bairro de Fátima.

“No toca-fitas do meu carro/ uma canção me faz lembrar você”, diz a famosa canção hoje tida por cafona, a que nos remete o ar vintage garantido por uma fita cassete – quando a música começa no videoclipe. Um elemento tragicômico é a cereja do bolo.

*

Assista “Maldito amor”: