O bloco de Ney Matogrosso

O cantor Ney Matogrosso. Foto: Patrícia Castro
O cantor Ney Matogrosso. Foto: Patrícia Castro

Já se vão 50 anos desde que Ney Matogrosso despontou no cenário artístico brasileiro, com o rosto pintado e trejeitos no palco que desagradavam os generais de plantão, à frente do grupo Secos e Molhados.

Ontem (18) ele se apresentou em São Luís, no Pavilhão de Eventos do Multicenter Sebrae, para deleite do ótimo público presente, produção da 4Mãos. O show da turnê “Bloco na Rua” durou cerca de hora e meia em que o cantor atestou porque é, desde sempre e ainda, um dos mais interessantes artistas brasileiros em atividade.

A quem achar pouca a duração do show, é música o tempo inteiro. E dança. Com uma projeção emuldurando. Ney Matogrosso não conversa nem desconversa. Fora cantar ao longo de todo o show (parece redundância, mas não é), deu apenas boa noite, anunciou o fim do show, voltou para o bis e disse o quanto era incrível cantar para aquela plateia.

Um espetáculo e tanto, aberto por “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”, do capixaba Sérgio Sampaio (1947-1994), de onde vem o título do show e do álbum lançado por Ney Matogrosso em 2019.

O roteiro do show demonstrou a versatilidade que marca a trajetória do artista, que sempre gravou o que quis, sem se prender a rótulos ou escolas: continuou por pérolas do rock brasileiro, como “Jardins da Babilônia” (Lee Marcucci/ Rita Lee) e “O Beco” (Bi Ribeiro/ Herbert Vianna), as três primeiras cantadas na mesma sequência do álbum.

Performer nato, Ney Matogrosso tem pleno domínio do palco, é senhor da situação. O figurino de Lino Villaventura, o mesmo com que aparece na capa de “Bloco na Rua”, fazia esvoaçar uma espécie de saia de franjas ao longo da apresentação. Seu balé particular está a serviço de sua música e vice-versa e sua excelência está em ambos.

Ney Matogrosso estava acompanhado por Sacha Amback (direção musical e teclado), Marcos Suzano (percussão), Felipe Roseno (percussão), Dunga (baixo), Tuco Marcondes (guitarra), Aquiles Moraes (trompete) e Everson Moraes (trombone).

“Já Sei” (Alice Ruiz/ Alzira E./ Itamar Assumpção), “Pavão Mysteriozo” (Ednardo), “Tua Cantiga” (Chico Buarque), “A Maçã” (Marcelo Motta/ Paulo Coelho/ Raul Seixas), “Yolanda” (versão de Chico Buarque para composição de Pablo Milanés), “Postal de amor” (Fausto Nilo/ Raimundo Fagner/ Ricardo) e “Ponta do Lápis” (Clodo Ferreira/ Rodger Rogério) formaram outro bloco na mesma sequência do álbum, continuada por “Corista de Rock” (Luiz Sérgio/ Rita Lee), “Já Que Tem Que” (Alzira E./ Itamar Assumpção), “O Último Dia” (Billy Brandão/ Paulinho Moska), “Inominável” (Dan Nakagawa), “Sangue Latino” (João Ricardo/ Paulinho Mendonça) – única do Secos e Molhados que compareceu ao repertório do show –, e “Como dois e dois” (Caetano Veloso”), que praticamente fechou o show, dando um pequeno pulo em relação ao repertório do álbum.

Das poucas vezes em que falou, Ney Matogrosso anunciou o fim do show, repito: “foi um prazer inenarrável cantar para todos vocês”, disse, antes de emendar “Poema” (Cazuza/ Frejat) e seu maior hit, “Homem Com H” (Antonio Barros). Ao ser chamado para o bis, educadamente disse: “já cantamos tudo o que havíamos ensaiado, mas eu vou cantar mais duas porque eu gosto”, e mandou “Roendo as Unhas” (Paulinho da Viola) e “Rua da Passagem” (Arnaldo Antunes/ Lenine).

Das não poucas vezes em que chorei ao longo da apresentação, prefiro não revelar e salgar o jornalismo e misturá-lo a questões pessoais, como as lembranças de minha avó Maria Lindoso (1939-2020), fã declarada que não chegou a ver um show ao vivo, mas me ensinou a admirar Ney Matogrosso.

*O jornalista assistiu ao show a convite da produção.

Amores, im/permanência e maturidade

[release]

Inspirada estreia solo de Carolinaa Sanches (vocalista dos grupos Caburé Canela e Pisada da Jurema), “Curva de rio” chega às plataformas de streaming dia 8 de abril (sexta-feira)

Curva de rio. Capa. Reprodução

Após disponibilizar dois singles, a cantora Carolinaa Sanches lança no próximo dia 8 de abril (sexta-feira), o álbum “Curva de rio”, sua estreia solo – ela integra os grupos Caburé Canela e Pisada da Jurema, além de ser artista visual e uma das gestoras da editora artesanal Grafatório, cujas obras-primas lançadas garantem a felicidade de quem ama livros.

O trabalho reafirma seu talento e maturidade artística. “Curva de rio” abre com “Cantar” (Carolinaa Sanches), o segundo single apresentado ao público, que conta sobre o mágico, difícil e sagrado ofício do verbo que lhe empresta o título. Ela se acerca de gerações distintas de cantores, nas presenças da veterana Alzira E., além de Gustavo Galo (da Trupe Chá de Boldo) e Isabela Lorena, também da Pisada da Jurema.

“Quando você chegou/ eu quis comemorar/ eu quis dançar até o amanhecer/ eu quis beijar você”, segue “Instante” (Carolinaa Sanches/ Layse Moraes), segunda faixa do álbum. A esta altura o ouvinte já está envolvido e bem poderia ser ele, ela, qualquer um de nós, devolvendo à Carolinaa a declaração. Cantada a seis vozes – além de Carolinaa e a parceira, Caruh Spisla, Francesco Mugnari, Guilherme Kirchheim e Mariana Franco –, um clima samba-jazzy se instala, no diálogo entre contrabaixo (Mariana Franco), teclado (Lucas Oliveira) e bateria (João Bolognini).

“Curva de rio” é delicado, bonito, gostoso de ouvir. Um alento nestes tempos trevosos. Letras inteligentes dialogam com melodias que convidam à dança. Carolinaa Sanches literalmente põe o coração na voz. “Cartas claras sobre a mesa/ desfrutar dos nossos sóis/ e a gente de peito aberto/ cada vez chega mais perto/ de entender o que é nós”, como diz na letra de “Nós” (Carolinaa Sanches), canção de amor que se equilibra entre o xote e o jazz, pontuada pelos contrabaixos de Mariana Franco (que também canta na faixa), a bateria de Paulo Moraes e o clarinete de Pedro José – os três, seus colegas de  Caburé Canela.

Ao longo do disco, Carolinaa revela-se, desnuda-se, derrama-se, entrega-se por completo. “Entre uma palavra e outra/ entra uma palavra noutra/ nenhuma boca chama assim meu nome/ nenhuma boca deixa em chama assim”, começa a letra de “Primeira primavera” (Carolinaa Sanches/ Barbara Blanco), cantada em dueto com Fernanda Branco Polse. Sim, o amor (e suas declarações) permeia(m) “Curva de rio” – um rio que transborda amores –, mas aqui o mais universal (e manjado) dos temas de música e poesia é cantado de forma extremamente original.

Se “amar é um elo entre o azul e amarelo”, como diria o conterrâneo Paulo Leminski – ele curitibano, ela londrinense –, a cantora e compositora dialoga com o universo do poeta em “Profundo amarelo” (Carolinaa Sanches), outra faixa em que baixo e clarinete se destacam. Versos como “não fosse tanto era quase/ não fosse isso era menos” invertem o título do famoso livro do artista multimídia (antes de o termo ser inventado), o que ela também é, mantendo o diálogo, o respeito e fazendo merecida reverência.

Em “Órbita” (Carolinaa Sanches), a canção mais experimental do disco, ela canta, em quarteto com Pedro José, Mariana Leon e Mariana Franco: “sentir seu coração/ faz-me entrar em outra constelação / e mesmo sem entrar em órbita/ eu já consigo tirar meus pés do chão/”. O ouvinte é tripulante da nave musical, viagem sem volta tanto a quem já conhecia a artista dos grupos que ela integra quanto àqueles a quem será apresentada por este lançamento.

Primeiro single lançado, em fevereiro passado, e primeira faixa a ganhar videoclipe, “Petricor” (Maria Thomé), literalmente o cheiro da chuva, é canção ensolarada – e não reside aí nenhuma contradição –, espécie de arco-íris do disco. O baião, de autoria da percussionista da Caburé Canela, reafirma a estreita ligação de Carolinaa Sanches com a cultura popular nordestina, algo percebido ao longo de todo “Curva de rio”.

O inspirado disco termina com “É” (Carolinaa Sanches), canção de despedida com os dois pés nos terreiros das religiões de matriz africana, infelizmente ainda alvos de tanta discriminação e violência. A faixa reflete sobre o individual e o coletivo, reivindicando o respeito aos seres humanos, mais que independentemente de suas diferenças, mas para além e também por causa delas. É faixa quase exclusivamente feminina, a que comparecem Thais Hamer (alfaia e voz), Maria Thomé (tambor de mão e voz), Edna Aguiar (voz), Guilherme Kirchheim (voz), Isabela Lorena (voz), Naná Souza (voz), Thunay Tartari (voz) e Mariana Franco (voz). “Junto ser único”, palavra de ordem.

Carolinaa Sanches não anda só; além de aqui e acolá seus colegas de bandas comparecerem, ao álbum plural se fazem presentes mais de 20 artistas, entre autores, intérpretes e instrumentistas. Artista de raro talento, em seu solo ela está muito bem acompanhada, como a subverter o dito popular: Gabriel Kruczeveski (flauta transversal, efeitos, violão e voz), João Bolognini (bateria), Lara Moratto (flauta transversal), Lucas Oliveira (teclado), Maria Thomé (tambor de mão, caxixi, zabumba, triângulo e voz), Mariana Franco (contrabaixos, violão e voz), Paulo Moraes (bateria) e Pedro José (clarinete, viola caipira e voz) formam sua banda base.

Essa soma de talentos e a entrega de cada um/a a cada nota, garantem uma diversidade de timbres que mantém o disco distante de qualquer sintoma de monotonia. “Curva de rio” foi gravado em Londrina, no Toqô Estúdio, por Gabriel Kruczeveski, que assina também sua mixagem e masterização. A direção musical é de Mariana Franco. A capa é assinada pela própria Carolinaa Sanches, sobre foto de Paula Viana.

Carolinaa Sanches resume o conceito por trás do título do disco: “A princípio pensava na curva de rio como um espaço onde as “coisas” param. No meio do processo fui entendendo que as coisas param por um tempo, pois o rio está sempre em movimento e as leva para outros lugares. Então as coisas passam pela curva. As “coisas”, nesse trabalho, dizem respeito mais às “pessoas” mesmo. Como é um trabalho que envolve muitos anos, envolve diferentes amores em que me inspirei para as músicas, e também, foi um álbum construído a muitas mãos. Tenho pensado que a curva sou eu. O espaço que permitiu que outras acessassem e conhecessem essa parte do rio. Aceitando a impermanência e também a permanência das relações. A curva de rio pode ser vista de cima e também de dentro, mergulhada nos amores profundos, que mesmo que findem, ficam”.

“Curva de rio” tem patrocínio do Promic (Programa Municipal de Incentivo à Cultura da Prefeitura de Londrina). Ouça sem moderação!

A cantora, compositora e artista visual Carolinaa Sanches. Foto: Paula Viana

Serviço: “Curva de rio”, álbum de Carolinaa Sanches. Disponível nas plataformas de streaming na próxima sexta-feira (8). Siga a cantora nas redes sociais e plataformas digitais: instagram, spotify, youtube, deezer e apple music. Faça a pré-save:

Livre que só ele

Edvaldo Santana conversou com Homem de vícios antigos sobre Só vou chegar mais tarde, disco que acaba de lançar, política e arte

O cantor e compositor Edvaldo Santana. Foto: Juvenal Pereira
O cantor e compositor Edvaldo Santana. Foto: Juvenal Pereira

São Luís e o tambor de crioula eram citados na letra de Jataí (2014), faixa-título do penúltimo álbum de Edvaldo Santana. Naquele ano ele chegou à capital maranhense, quando se apresentou em novembro, na semana da Feira do Livro de São Luís, no Teatro da Cidade (antigo Cine Roxy). O mote do show eram as comemorações de seus 40 anos de carreira.

Como arte e vida não são ciências exatas, esta matemática também não: as comemorações do artista se prorrogaram. Como ele diz em 40, faixa que abre Só vou chegar mais tarde (2016), “quando resolvi sair de casa pra cantar de vez/ já faz mais de muitos anos”.

Só vou chegar mais tarde. Capa. Reprodução
Só vou chegar mais tarde. Capa. Reprodução

O cantor e compositor conversou por e-mail com Homem de vícios antigos. Só vou chegar mais tarde aprofunda algumas características do trabalho de Edvaldo Santana, por exemplo o trânsito entre ritmos nordestinos e o blues americano.

A faixa de abertura é coalhada de referências. Entre outros, estão lá a Matéria Prima, sua banda inaugural ainda na década de 1970, passando por Tom Zé, com quem chegou a tocar, o poeta Ademir Assunção (o Pinduca), Arnaldo Antunes, Paulo Lepetit e Haroldo de Campos, cujo Galáxias, musicado por Caetano Veloso em Circuladô de fulô, é evocado na letra: “e não me peça nunca que eu te guie/ eu não nasci pra fazer teste”.

Edvaldo Santana (voz e violão) é acompanhado por banda base formada por Luiz Waack (banjo, violão, guitarra e cavaquinho), Reinaldo Chulapa (contrabaixo) e Leandro Paccagnella (bateria). A estes somam-se instrumentos ocasionais, como a sanfona e teclado de Adriano Magoo (em Retorno do cangaço; ele toca ainda piano elétrico em Dom), a gaita de Bené Chireia (em Sou da quebrada, Dom e Arte depura), a tuba de Eliezer Tristão (na faixa-título e em Retorno do cangaço), a sanfona de Antonio Bombarda (em Ando livre e Gelo no joelho), o piano de Daniel Szafran (em Predicado e Fazendo pra aprender; ele toca órgão em Domínio), além de naipe de sopros em 40 e Gelo no joelho.

Edvaldo Santana é autor solitário das 13 faixas. As exceções são Gelo no joelho (parceria com Luiz Waack) e Canção (poema provençal de Guillaume de Poitiers versionado por Augusto de Campos e musicado por Edvaldo Santana).

O disco passeia por temas como futebol (Gelo no joelho e Dom, homenagem ao ídolo Sócrates), viagem e liberdade (Ando livre, com participação especial de Rita Benneditto, em que São Luís volta a aparecer, na citação ao Bar do Léo), tecnologia e o vazio de relações virtuais (Predicado), a competição capitalista e um dar de ombros do autor na faixa-título, tema que volta a aparecer em Retorno do cangaço, em que tece críticas também ao mercado da fé televisionado e o jogo sujo da política em geral, com suas propinas e traições como regra.

Em Sou da quebrada outro tema caro a Edvaldo: a homenagem a pessoas simples, como seu Valdemar, protagonista de A poda da rosa, do disco anterior. Fazendo pra aprender é uma canção romântica, com ecos de filme de faroeste e do desaparecido Belchior. Em Arte depura cita Judite, sua mãe, e Divino maravilhoso (Gilberto Gil/ Caetano Veloso), anteriormente citada pelo cearense na antológica Apenas um rapaz latino-americano (Belchior). Domínio é uma homenagem a São Miguel Paulista e Cabeça na mesa tem a participação especial de Alzira E.

Edvaldo Santana conversou com Homem de vícios antigos. Foto: Milton Michida
Edvaldo Santana conversou com Homem de vícios antigos. Foto: Milton Michida

Homem de vícios antigos – Você esteve em São Luís em 2014, quando realizou um show de voz e violão em que comemorava os 40 anos de carreira. 40, faixa que abre Só vou chegar mais tarde, traz inúmeras referências a teu próprio trabalho e artistas de tua influência e convívio. Em que medida este disco é a continuação destas comemorações?
Edvaldo Santana – Sim, 40 é uma música que procura falar dessa trajetória das influências e referências nessa estrada de 40 anos, mas Só vou chegar mais tarde e as outras canções desse álbum estão em sintonia com o presente, refletem o que vivo e penso no momento, sem esconder o aprendizado que o caminho da arte possibilita. Celebrar a arte tem que ser uma constante na nossa vida. Minha estada em São Luís foi muito proveitosa.

Por falar em São Luís, Ando livre, que conta com a participação especial de Rita Benneditto, fala no Bar do Léo, que você visitou quando esteve aqui. Fale um pouco de suas impressões do lugar e de como se deu este encontro com a cantora maranhense.
Pois é, fiquei muito impressionado quando conheci o Bar do Léo, através de você,  uma mistura de diversas formas de artes: plástica, música, literatura, dança, diversão e um cara, o dono do bar, muito interessante, de papo bom e cordial. Ando livre é uma música que escrevi refletindo as observações da viagem que fiz pelo nordeste em 2014, passando pelo sertão do Piauí, pelo Rio São Francisco, na divisa da Bahia com Pernambuco, pelo Ceará e pelo Maranhão. Já conhecia a Rita, de quando ela morou em São Paulo, sempre gostei muito de sua voz e de seu jeito de cantar. Como queria convidar uma cantora pra dividir os vocais, que tivesse uma ligação com a letra, não titubeei em convidá-la pra cantar comigo esse bolero. Conversei com sua irmã Elza Ribeiro, enviei uma gravação e Rita depois de ouvir, aceitou meu convite. Como ela mora no Rio tivemos o auxílio luxuoso do amigo e grande artista Lenine, que acionou seu filho Bruno Giorgi, que colocou seu estúdio à disposição, para que pudéssemos registrar a voz dessa cantora genial. Momento muito feliz, onde a amizade e a tecnologia contribuíram generosamente para que esse encontro artístico fosse concretizado.

Você é paulistano, descendente de piauiense: a geografia e a genealogia fazem de você o artista brasileiro que melhor reprocessa certa sonoridade americana, isto é, você faz o que podemos chamar de brazilian blues, contrariando a tristeza típica do gênero. Ao longo de Só vou chegar mais tarde, há autorreferências que citam, entre outros, teu álbum Reserva de alegria. Apesar de tudo, o Brasil ainda é a terra da alegria?
Sou paulistano da periferia, do bairro chamado São Miguel Paulista, filho do piauiense Félix e da pernambucana Judite, que já partiram para outra esfera. Desde pivete que as sonoridades da gaita e da sanfona vivem dialogando no coração e na mente, trazendo melancolia. Talvez um dos motivos sejam as dores e as alegrias do povo nordestino e do povo negro americano, que apesar de todas as dificuldades conseguem doar para o planeta uma música primorosa. Sim, gosto demais do jazz, do blues, da salsa, do reggae, como adoro samba, xote, moda de viola, e essas virtudes sonoras transitam pelas minhas ideias, aguçando a sensibilidade. Nesse disco tem um ingrediente do dixieland, uma das últimas misturas entre a música africana e a europeia no começo do século passado. Pra você viver num mundo contrariado, só com muita reserva de alegria e com o auxilio luxuoso do suingue sofisticado que a música negra brasileira, americana, cubana, caribenha, nascida do povo nos dá de graça.

Por falar em teus pais, uma característica marcante de tua poética é a revelação das pessoas comuns como heróis, de uma professora ou um jardineiro serem teus ídolos, e aí podemos citar Judite e seu Waldemar, entre outras personagens. Ao risco de fazer música a partir de uma poesia hermética, posto que, em tese, só a entenderia quem conhecesse as personagens, você fala de sentimentos que todo mundo entende. A seu ver, por que mais gente não faz isso?
Apesar dos seres serem diferentes, acredito que quando você fala de sua aldeia, das pessoas comuns, você acaba falando pra todo universo, os sentimentos de respeito, bondade, amor, dignidade, são virtudes essenciais na vida do planeta. Outros artistas já fizeram isso muito bem: Jackson do Pandeiro, Bezerra da Silva, cantando os heróis e os vilões de suas comunidades.

Você é autor de músicas definitivas sobre o universo do futebol, embora, infelizmente, menos falado que nomes como Chico Buarque e Jorge Benjor. Em Só vou chegar mais tardeGelo no joelho e Dom se somam a O jogador e O goleiro, para citarmos algumas. Nas duas deste disco você fala de sua própria experiência como praticante do esporte e homenageia o ídolo Sócrates. O futebol é uma boa lente para observarmos o Brasil?
Futebol tá no sangue, faz parte da minha vida e acredito que de boa parte da população brasileira. Além de jogar, eu e meus irmãos fundamos um time de futebol na adolescência. Jogo minha bolinha até hoje. Vira e mexe gosto de cantar músicas que falam do jogador de futebol. O Sócrates é uma figura especial que, além de jogar muito bem, sempre se colocou ao lado da população mais desfavorecida, comprou briga com a imprensa marrom, defendendo suas ideias. Fui convidado para fazer a trilha sonora do seu doc, que acabou não rolando, e fiz esse samba em sua homenagem, que registrei nesse novo trabalho. O futebol às vezes é muito passional, como está enraizado no coração das pessoas, pode sim servir de lente para observar o Brasil.

Por falar na politização de Sócrates, algo raro entre jogadores de futebol em qualquer tempo: em meio a esta entrevista acaba de consumar-se a cassação do mandato da presidente da república Dilma Rousseff. Como você recebeu a notícia e qual a sua percepção do processo?
Estou muito triste e injuriado com esse momento funesto, apesar de saber que não teria volta. O Brasil interessa pra muita gente e depois da votação na Câmara os picaretas não iam largar o poder. Novamente tomamos um chapéu do xaveco, temos que aprender que a comunicação é um instrumento a serviço do capital, que não se interessa por igualdade, amizade. O momento é de reflexão e ação imediata. Ficou claro, mais uma vez, que acordo onde o inimigo dá as cartas, nunca deu certo. Vamos à luta, não temos tempo de temer a morte

“Não temos tempo de temer a morte”, verso de Divino maravilhoso, parceria de Caetano e Gil, além de traduzir bem o atual momento por que passa o país, é citado em Arte depura. “A arte existe por que a vida não basta”, já disse Ferreira Gullar. Só a arte salva?
A minha vida foi salva pela arte. Seguir o caminho da música foi fundamental. Quando percebi o definhamento da escola pública e que ficar batendo cartão para ganhar uma mixaria, que não custeava as despesas, poderia ter escolhido o caminho do crime,  mas o coração falou mais alto e no começo dos anos 1970,  resolvi cair na estrada e estou vivo traçando minha trajetória com alegria e respeito.

Outra convidada neste disco é Alzira E., que de algum modo demarca, digamos assim, tua ligação com a vanguarda paulistana. Pra você, o que significou a participação e aquele momento, liderado por nomes como Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção?
Alzira também é uma amiga de muitos anos. Quem me falou desse seu lado mais rock foi Luiz Waack, ele disse que seria legal convidá-la. Fiquei feliz com sua participação em Cabeça na mesa, ela tem um timbre diferente. Pois é, sou contemporâneo dessa safra do Arrigo, do Itamar. No começo dos anos 1980 em Pinheiros, Zona Oeste, havia o [Teatro] Lira Paulistana, que se tornou o espaço alternativo que abrigava diversas formas de manifestações artísticas. Nessa mesma época em São Miguel, Zona Leste, havíamos fundado o MPA, o Movimento Popular de Arte, que agregava também várias manifestações artísticas na periferia de São Paulo, ocupando praças, ruas, galpões, anfiteatros. Era um momento de ebulição, processo de abertura política em andamento. Essa estética paulistana é uma referência muito forte no meu trabalho.

A seu ver o atual momento político brasileiro contribuirá para uma maior espontaneidade artística, isto é, artistas voltando a se reunir em coletivos, a tocar em atos públicos, de protesto, a uma maior participação política, que de algum modo acaba por ter reflexos na estética de um período ou de um grupo?
Acredito que é a democracia que contribui para a construção de novas estéticas. O que pode acontecer daqui pra frente já é fruto de você poder experimentar, de você saber que pode fazer o que quiser, que ninguém vai te cercear. A liberdade é o grande alicerce da arte. Já estavam acontecendo encontros substanciais nesses últimos anos. Esse momento político adverso mexe com a sensibilidade e vai contribuir para a potencialização da produção artística.