Ponte Bahia-Maranhão: o axé de Mariene de Castro

Mariene de Castro levou a plateia ao delírio, ontem (6), na Praça Maria Aragão. Foto: Zema Ribeiro

Sem meias palavras: a apresentação de Mariene de Castro, ontem, na Praça Maria Aragão, foi um arrebatamento. “O sino da igrejinha faz Belém/ dêm/ dêm”, adentrou ao palco cantando, após ser chamada pelo prefeito Eduardo Braide (Podemos) em pessoa (quase sempre errado, acertou a mão na programação de aniversário da cidade, e na noite anterior já tinha usurpado o papel do cerimonialista ao chamar ao palco o jamaicano Eric Donaldson).

Era a noite dedicada às religiões de matriz africana e a escolha da baiana Mariene de Castro (Bahia e Maranhão têm as maiores populações afrodescendentes do país) revelou-se mais que acertada. Sua trajetória coerente já revelava sua devoção e reverência às nossas heranças ancestrais e o show parecia estreitar essas relações, com seu repertório de pontos, sambas, chulas e suingueira, que incluiu peças como “O vira” (Luhli/ João Ricardo), sucesso do grupo Secos e Molhados, e “Mamãe Oxum”, tema de domínio público popularizado por Zeca Baleiro e Chico César.

Se a ponte Bahia-Maranhão não foi construída por Mariene de Castro, ela certamente enfeitou-a, embelezou-a, tornando o caminhar mais aprazível. Ela mesmo disse, durante o show, que a noite de ontem era “um divisor de águas”. Um marco não só em sua carreira, mas na de grande parte do público presente, que não esquecerá tão cedo do que ou/viu e certamente terá neste um dos grandes shows da vida.

Atriz e cantora coabitam pacificamente uma artista que é pura ginga, e logo no início, após umas poucas rodopiadas dela pelo palco, entendi porque ela fez questão de citar o nome de seu figurinista (Wilson Ranieri) na entrevista que ela me concedeu: seu vestido (depois de rodopiar à vontade, ela tirou a capa) parece ter vida própria, um espetáculo à parte, com seu esvoaçante bailado alegre. Sem falar no painel, “de Alaíde e Alaído Almeida, mãe e filho, que desenharam a nossa gente nordestina”.

Se o povo de santo, os fiéis das religiões de matriz africana, parecem não ter motivos para festejar, vítimas cotidianas de discursos e práticas de ódio, as milhares de pessoas presentes à praça ontem, certamente têm em Mariene de Castro uma embaixatriz, alguém que não se cala diante de violências e injustiças e tampouco separa arte de política por conveniência. Pelo contrário: seu show demarca uma posição, num tempo em que esta é exigida, sobretudo a artistas, estes formadores de opinião sempre tão violentados em tempos fascistas e autoritários.

Mariene de Castro não citou o nome de nenhum dos primeiros colocados nas pesquisas eleitorais, mas não se incomodou com os cantos pró-Lula e contra Jair Bolsonaro que a plateia entoou ao longo de sua apresentação. Engrossou o coro, falando em mudanças e transformações. Citou o Nelson Cavaquinho que não cantou: “isso tudo vai passar e o sol vai brilhar mais uma vez”.

Depois de “Alguém me avisou” (Dona Ivone Lara), “Sonho meu” (Délcio Carvalho/ Dona Ivone Lara) foi interrompida: uma fã conseguiu driblar a segurança para anunciar, aos prantos, no palco, que havia se perdido da filha criança. Apesar do susto, Mariene pediu calma à mulher e à segurança, e repetindo o nome da criança ao microfone; logo várias mãos apontaram-na e, com mãe e filha se reencontrando, “Sonho meu” acabou ficando mesmo pela metade. “Eu sou mãe, fiquei nervosa. Que nenhuma mulher precise mais chorar a dor da perda de um filho”, rogou, referindo-se, talvez, a quem perdeu parentes para a pandemia de covid-19, mas não só. Entoou uma Salve Rainha, acompanhada por grande parte da plateia, lição prática de sincretismo. Seguiu com a sequencia com que homenageava a centenária Dona Ivone Lara, cantando “Um sorriso negro” (Adilson Barbado/ Jair Carvalho/ Jorge Portela).

“Eu sou contra qualquer interrupção dos direitos humanos”, ousou dizer, sempre sem meias palavras. “Contra a homofobia, o racismo, o feminicídio, a intolerância religiosa”, bradou.

A determinada altura, seus percussionistas encararam a parelha do tambor de crioula. “Cheguei, cheguei, cheguei com a minha turma, cheguei”, cantou o famoso refrão de Mestre Felipe. Noutra altura o percussionista maranhense Mariano tocou caixa e eles cantaram juntos um medley do Cacuriá de Dona Teté: “Choro da Lera”, “Jabuti/Jacaré” e “Assa cana”.

Voltou ao palco aos gritos de mais um e recebeu das mãos do prefeito um buquê de rosas brancas e vermelhas. “Nunca um prefeito tinha visto um show meu inteiro de cima do palco”, agradeceu. Sim, Eduardo Braide surfa na onda da popularidade dos artistas que fazem a festa da cidade – na véspera, beijava a primeira-dama enquanto aparecia no telão dançando agarradinho com ela “Cinderella”, primeira “pedra” que Eric Donaldson cantou ao subir ao palco na noite regueira do aniversário da Jamaica brasileira. 

Ela distribuiu ao público quase todas as flores, antes de receber no palco a representação de sete orixás, um a um saudados por ela. Por fim, saudou os erês fechando a conta com “O que é, o que é?”, clássico de Gonzaguinha, deixando o público com gosto de quero mais, apesar de ter cantado por aproximadamente duas horas. Puro axé, que volte logo e sempre!

O axé político de Wado

Ivete. Capa. Reprodução
Ivete. Capa. Reprodução

 

Artista catarinense/alagoano remonta às origens do axé em Ivete, seu nono disco, recém lançado. Ele conversou com o blogue

Alagoano nascido em Santa Catarina Wado acaba de lançar o nono disco de sua carreira, descontada uma coletânea. O título, fina e ousada ironia, Ivete [independente, 2016]. Sim, uma homenagem a Ivete Sangalo, musa do axé, gênero a que o álbum presta uma espécie de tributo – ligeiro, o disco todo não tem 25 minutos.

São 15 anos de carreira desde a estreia com O manifesto da arte periférica [2001]. Ouvintes mais atentos – os que lhe acompanham a trajetória desde sempre – encontrarão links entre Ivete e Atlântico negro [2009], no som, na estética e no forte componente político dos álbuns – aliás, todos os álbuns de Wado estão disponíveis para download gratuito e legal em seu site.

Alabama (Wado e Thiago Silva), com seu “sangue nas folhas, sangue na raiz”, primeira música de trabalho do disco novo, remete ao açoite e linchamentos denunciados pelos versos de Abel Meeropol (sob o pseudônimo de Lewis Allan) em Strange fruit [1939] – o “fruto estranho” de que se apropria a letra, entre outros versos – gravada por, entre outras, Billie Holyday.

Acompanhado por Vitor Peixoto (guitarra e voz), Rodrigo Peixe (bateria), Dinho Zampier (teclado e programações), Bruno Rodrigues (contrabaixo), China Cunha (percussão) e Luciano Brandão (percussão), o axé de Wado (guitarra e voz) não soa estranho, isto é, não soa alheio ao conjunto de sua obra. Quer dizer: é axé, mas continua sendo Wado. Não tem “tira o pé do chão” ou “mexe a bunda para lá ou para cá”.

O axé de Wado, mesmo homenageando Ivete Sangalo no título do disco, remonta às origens do gênero, e seu tom de denúncia social, sobretudo contra o racismo e de exaltação à negritude, logo desvirtuado pela indústria, que fabricou ídolos tão descartáveis quanto despolitizados.

Em meio às 10 faixas do disco, releituras do hit Jesus é palestino (Carlinhos Brown, Gerônimo Santana e Alain Tavares), citada em meio a Terra santa (Jesus é palestino) (Wado, Junior Almeida e Dinho Zampier), Filhos de Gandhi, homenagem de Gilberto Gil ao bloco baiano de carnaval homônimo, e Um passo à frente (Moreno Veloso e Quito Ribeiro). As guitarras em profusão, desde o segundo inicial de Alabama, remetem ao Armandinho dos primeiros álbuns solo do também baiano Moraes Moreira, outra influência confessa.

Também desfilam parcerias por Ivete: Thiago Silva (Alabama e Sexo), Zeca Baleiro (em Mistério e Nós), Momo e Marcelo Camelo (em Você não vem, autores também de Samba de amor, sem Wado) e Beto Bryto (em Amanheceu). Sobre o disco, Wado conversou com exclusividade com Homem de vícios antigos.

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Foto: Alzir Lima/HollyShot

Wado, você foi um dos primeiros artistas, de qualquer geração, a disponibilizar seus discos para download gratuito, logo no lançamento. O que te levou a esta postura e a mantê-la?
Acho que a música tem de chegar nas pessoas. Acho que até agora há pouco, antes das plataformas de streaming, essa era a melhor forma de chegar nas pessoas. Dinheiro ganhamos nos shows.

Como surgiu a ideia de um disco sobre o universo do axé?
É uma coisa que faz parte da minha formação, ouvi muito isso em Maceió no meio dos anos oitenta. É meio que um axe utópico de dentro da minha cabeça, adoro a estética, os temas.

E o título, Ivete?
Ele é um lance bem humorado mas respeitoso. É como se fosse uma tentativa de ser ela, sabendo que não chegaremos nunca lá. Como é um disco de axé e ela é um ícone, achei divertido e corajoso o título.

Sua música não soa nem pretende fácil como o axé, digamos, comercial. Reside aí uma fina ironia. É de propósito?
Acho que é verdadeiro em tentar ser, mas, também, verdadeiro em ser consonante com as minhas coisas. Ele é axé respeitando o gênero e sou eu também.

O repertório tem um forte componente político, inclusive nas regravações de Jesus é palestino e Filhos de Gandhi, meio que como uma volta às origens do axé. O gênero foi desvirtuado pela indústria?
Acho que nos anos noventa ele foi pra uma coisa super pop, mas a cultura é assim volátil. É bom que seja, mas o nosso foi bastante inspirado no início do gênero.

Outra referência citada no texto que apresenta o disco em teu site são os primeiros discos solo de Moraes Moreira. Terá o axé nascido ali?
Eu também fico pensando isso. O Moraes é um mestre da música festiva do Brasil e nesse primeiro disco solo dele já tinha Armandinho na guitarra baiana.

É um disco de axé, mas é um disco de Wado, no sentido de isso poder ser percebido, de cara, na primeira audição do disco. Alabama, primeira música de trabalho, remete a Strange fruit, retomando o elo do gênero predominantemente baiano com questões raciais e sociais. De algum modo, se lembrarmos Atlântico negro, mas não só, o axé e a política sempre estiveram presentes em teu trabalho, não é?
Sim, você pegou bem. Esse é meio que um desdobramento do disco Atlântico negro.

Quanto dessa preocupação social deriva do fato de você ser jornalista?
Deve ter isso sim embutido, nós somos esponjas, né?

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Ouça Alabama: