
Sem meias palavras: a apresentação de Mariene de Castro, ontem, na Praça Maria Aragão, foi um arrebatamento. “O sino da igrejinha faz Belém/ dêm/ dêm”, adentrou ao palco cantando, após ser chamada pelo prefeito Eduardo Braide (Podemos) em pessoa (quase sempre errado, acertou a mão na programação de aniversário da cidade, e na noite anterior já tinha usurpado o papel do cerimonialista ao chamar ao palco o jamaicano Eric Donaldson).
Era a noite dedicada às religiões de matriz africana e a escolha da baiana Mariene de Castro (Bahia e Maranhão têm as maiores populações afrodescendentes do país) revelou-se mais que acertada. Sua trajetória coerente já revelava sua devoção e reverência às nossas heranças ancestrais e o show parecia estreitar essas relações, com seu repertório de pontos, sambas, chulas e suingueira, que incluiu peças como “O vira” (Luhli/ João Ricardo), sucesso do grupo Secos e Molhados, e “Mamãe Oxum”, tema de domínio público popularizado por Zeca Baleiro e Chico César.
Se a ponte Bahia-Maranhão não foi construída por Mariene de Castro, ela certamente enfeitou-a, embelezou-a, tornando o caminhar mais aprazível. Ela mesmo disse, durante o show, que a noite de ontem era “um divisor de águas”. Um marco não só em sua carreira, mas na de grande parte do público presente, que não esquecerá tão cedo do que ou/viu e certamente terá neste um dos grandes shows da vida.
Atriz e cantora coabitam pacificamente uma artista que é pura ginga, e logo no início, após umas poucas rodopiadas dela pelo palco, entendi porque ela fez questão de citar o nome de seu figurinista (Wilson Ranieri) na entrevista que ela me concedeu: seu vestido (depois de rodopiar à vontade, ela tirou a capa) parece ter vida própria, um espetáculo à parte, com seu esvoaçante bailado alegre. Sem falar no painel, “de Alaíde e Alaído Almeida, mãe e filho, que desenharam a nossa gente nordestina”.
Se o povo de santo, os fiéis das religiões de matriz africana, parecem não ter motivos para festejar, vítimas cotidianas de discursos e práticas de ódio, as milhares de pessoas presentes à praça ontem, certamente têm em Mariene de Castro uma embaixatriz, alguém que não se cala diante de violências e injustiças e tampouco separa arte de política por conveniência. Pelo contrário: seu show demarca uma posição, num tempo em que esta é exigida, sobretudo a artistas, estes formadores de opinião sempre tão violentados em tempos fascistas e autoritários.
Mariene de Castro não citou o nome de nenhum dos primeiros colocados nas pesquisas eleitorais, mas não se incomodou com os cantos pró-Lula e contra Jair Bolsonaro que a plateia entoou ao longo de sua apresentação. Engrossou o coro, falando em mudanças e transformações. Citou o Nelson Cavaquinho que não cantou: “isso tudo vai passar e o sol vai brilhar mais uma vez”.
Depois de “Alguém me avisou” (Dona Ivone Lara), “Sonho meu” (Délcio Carvalho/ Dona Ivone Lara) foi interrompida: uma fã conseguiu driblar a segurança para anunciar, aos prantos, no palco, que havia se perdido da filha criança. Apesar do susto, Mariene pediu calma à mulher e à segurança, e repetindo o nome da criança ao microfone; logo várias mãos apontaram-na e, com mãe e filha se reencontrando, “Sonho meu” acabou ficando mesmo pela metade. “Eu sou mãe, fiquei nervosa. Que nenhuma mulher precise mais chorar a dor da perda de um filho”, rogou, referindo-se, talvez, a quem perdeu parentes para a pandemia de covid-19, mas não só. Entoou uma Salve Rainha, acompanhada por grande parte da plateia, lição prática de sincretismo. Seguiu com a sequencia com que homenageava a centenária Dona Ivone Lara, cantando “Um sorriso negro” (Adilson Barbado/ Jair Carvalho/ Jorge Portela).
“Eu sou contra qualquer interrupção dos direitos humanos”, ousou dizer, sempre sem meias palavras. “Contra a homofobia, o racismo, o feminicídio, a intolerância religiosa”, bradou.
A determinada altura, seus percussionistas encararam a parelha do tambor de crioula. “Cheguei, cheguei, cheguei com a minha turma, cheguei”, cantou o famoso refrão de Mestre Felipe. Noutra altura o percussionista maranhense Mariano tocou caixa e eles cantaram juntos um medley do Cacuriá de Dona Teté: “Choro da Lera”, “Jabuti/Jacaré” e “Assa cana”.
Voltou ao palco aos gritos de mais um e recebeu das mãos do prefeito um buquê de rosas brancas e vermelhas. “Nunca um prefeito tinha visto um show meu inteiro de cima do palco”, agradeceu. Sim, Eduardo Braide surfa na onda da popularidade dos artistas que fazem a festa da cidade – na véspera, beijava a primeira-dama enquanto aparecia no telão dançando agarradinho com ela “Cinderella”, primeira “pedra” que Eric Donaldson cantou ao subir ao palco na noite regueira do aniversário da Jamaica brasileira.
Ela distribuiu ao público quase todas as flores, antes de receber no palco a representação de sete orixás, um a um saudados por ela. Por fim, saudou os erês fechando a conta com “O que é, o que é?”, clássico de Gonzaguinha, deixando o público com gosto de quero mais, apesar de ter cantado por aproximadamente duas horas. Puro axé, que volte logo e sempre!


