Cristóvão Colombo da Silva

POR CESAR TEIXEIRA*

Um compositor que não precisou descobrir a América para ganhar fama, já trazia dentro de si a nau inspirada com que recriava o mundo todos os dias, e de improviso. Neste 12 de outubro, Dia das Crianças, completaria 100 anos, se estivesse vivo. O nome dele é Cristóvão / Sobrenome: Alô Brasil.

Alô Brasil no bar. Fotos: Acervo Cesar Teixeira. Reproduções

– Alô Brasil! Era a saudação de mouros e cristãos agrupados nas calçadas, nos botecos ou nas portas das casas quando ele passava, e logo respondia: “Aquele abraço!”.

Se fosse tempo de carnaval, transitava amanhecido com a fantasia da Turma do Quinto ou dos Fuzileiros da Fuzarca. De outra feita, era o chapéu de palha ou feltro, geralmente enfeitado com uma flor ou uma pena sobrevivente, quase um enxerto da batucada em sua cabeça. Era magro, de olhos graúdos e semiabertos que pareciam sonhar o tempo todo.

Caso estivesse fardado de funcionário da Secretaria de Transportes e Obras Públicas (Setop, hoje Sinfra) e sem o chapéu, podia-se ver sua cabeleira cheia, penteada rigorosamente à moda Orlando Silva, espécie de ídolo do compositor, daí o inseparável pente Flamengo no bolso de trás da calça.

O autor do perfil, ladeado por Cristóvão e Antonio Vieira

Invariavelmente, subia e descia as ruas da Madre de Deus todos os dias, obedecendo a um relógio interior, as longas pernas arqueadas como se cavalgasse uma nuvem, até finalmente encostar na quitanda do Seu Alfredo Louzeiro para a hora extra. Foi lá que eu conheci de perto, no início da década de 1970, a obra do compositor e amigo navegante Cristovam Colombo da Silva – conforme reza sua carteira de identidade –, que na gramática do samba foi rebatizado Cristóvão “Alô Brasil”.

O nome de pia era homenagem ao descobridor da América, e o apelido ganhou depois de ter na época participado do programa Alô Brasil, Aquele Abraço, apresentado por Lúcio Mauro na Rádio Globo, do Rio de Janeiro, depois de chegar com um dia de atraso para uma participação no Chacrinha.

Em 1982, foi ao programa de Flávio Cavalcante – Boa Noite Brasil –, da Rede Bandeirantes, em São Paulo, como convidado especial do produtor Renato Barbosa, que estivera em São Luís para ser apresentador do 1º Festival de Verão da Música Popular Maranhense, por ocasião dos festejos de 370 anos da cidade, em setembro daquele ano.

“Santo Cristo”, como era reverenciado por alguns familiares, então mostrou para todo o Brasil a sua arte de improvisar, o que fez aumentar mais ainda a sua popularidade, tendo no copo a sua cruz e o solovox da fraternidade. “Palavras que me comovem”, repetiria.

O compacto “Velhos moleques”, produzido por Chico Saldanha, Giordano Mochel e Ubiratan Souza. Capa. Reprodução
“Alô Brasil”. Capa. Reprodução

Ao lado de Caboclinho (José Assunção Gomes), integrou em abril de 1986 o Projeto Pixinguinha, do qual já havia participado três anos antes. João Nogueira e Marília Medalha estavam lá. No mesmo ano, gravou com Antonio Vieira, Lopes Bogéa e Agostinho Reis o compacto “Velhos Moleques”, e, em 1999, o cd “Alô Brasil”, com a participação de vários intérpretes maranhenses.

UNIVERSIDADE DE BAMBA

A quitanda do Alfredo, na Madre de Deus, era uma espécie de pontifícia universidade do samba, a cachaça tinha prioridade sobre os livros e não havia censura prévia, depois era entender-se com a medicina e tentar um fiado nas farmácias do bairro, restando as alternativas do boldo, espinheira santa e folha de mamão.

Entre os catedráticos que a frequentavam estavam Sapinho, Henrique Reis, Paletó, Luís de França, Caboclinho, Biné do Banjo, Vavá, Patativa, Dedinho e Veríssimo (Cuíte), todos compositores. Careca, Virador, Penicilina e Caraolho já eram falecidos.

Vez por outra, por lá passavam os violonistas Paquinha e Mascote, além de Nazinho, pescador e banjoísta que transformava segundas-feiras em domingos após longos dias no mar, entre charutos e doses de alcatrão para manter o voto de silêncio, enquanto Reinaldo mostrava a picardia na cabaça, Zé Leão no pandeiro, Dedinho na retinta…

Bem, na quitanda tudo virava instrumento: as portas, os mochos e até um inocente tonel de querosene encostado na parede, que servia de marcação. Sapinho fazia variações na bomba de lata que puxava o combustível, soprando-a como se fosse um saxofone.

Cristóvão ali era o coringa que iniciava o samba, com pulmão de Noel Rosa, outro artista que admirava. Dava o tom, descendo e subindo uma escala maior, para depois atacar com uma voz sibilada, devido aos dois únicos dentes na boca, segundo ele “para abrir as garrafas”:

Silêncio, vou ler um aviso:
É hora de começar a batucada…

O samba esquentava, convencendo Seu Alfredo a jogar uma pá de camarão seco sobre o balcão para absorver a aguardente do peritônio da rapaziada. “Se tivesse dinheiro, eu comprava um anel pra ser doutor de samba”, costumava dizer Cristóvão. Não sabia que já estava dando uma aula.

Cheguei a levar muitos desses compositores para um programa chamado “Pitacos” gravado e transmitido pela Rádio Timbira nos finais de semana, numa produção do Laborarte, entre 1972 e 1973. Não havia patrocinador, nem cachê. Às vezes partilhávamos uma garrafa e as passagens de ônibus, mas quase sempre a volta para a Madre de Deus era a pé. “Eu acho é bom!”, dizia Cristóvão.

Junto com o compositor participei de vários espetáculos nos palcos da cidade, e como já tinha o costume de acompanhá-lo no violão ou no cavaquinho pelas rodas de samba, quase não havia ensaio. Ele improvisava de lá e eu de cá. Lembro com saudade a apresentação que fizemos do Teatro Praia Grande [hoje Teatro Alcione Nazaré] ao lado de Henrique Reis e Patativa.

NOTÍCIAS DE JORNAL

Em 1984, Cristóvão foi fazer um show para ser gravado pelo Projeto Pró-Memória/SPHAN, que funcionava na rua das Barrocas, nº 125. Chegamos lá com uma garrafa de pinga embrulhada numa folha de jornal no horário marcado para as 19 horas. A secretária viu aquilo e não nos deixou entrar. “Pois bem, então vamos beber em outro lugar”, disse-lhe.

Já estávamos dobrando a esquina, quando um esbaforido Ivan Sarney, diretor do programa gritou da porta: “Voltem, voltem, o auditório está cheio! Podem entrar com a garrafa!” Foi uma noite memorável, com muito tema para improviso e estrondosas gargalhadas da plateia.

“Alô Brasil” costumava dizer, e cantar, que tinha samba na cabeça “como letra no jornal”. Isso denunciava o seu hábito pela leitura, que incluía os livrinhos de bolso. No final do expediente da Sinfra, onde foi contínuo e porteiro, ele reunia os jornais diários que por ali passavam, dobrando-os meticulosamente num pacote retangular amarrado com barbante.

Esse pacote ficava guardado debaixo dos balcões e prateleiras dos bares enquanto durasse a farra e a batucada, quando o carregava para casa. Lia até anúncio. No dia seguinte estava por dentro dos fatos, mesmo sem perceber as armadilhas criadas pelos feitores da informação, quase sempre ruins da cabeça e doentes do pé.

Cristóvão, porém, tinha um espírito puro, que através da música lhe permitia o dom da ubiquidade, assumindo as dores e alegrias dos outros. Fez samba para Dedinho (Eu moro no morro do Esqueleto / com a minha Nega Teresa…) e para Tabaco (Se você desceu de lá / por favor me dê notícias da mina Nega Joana…) como se fosse eles cantando. Mas fez também para si próprio:

Foi no dia 12 de outubro de 22
que nasceu na Madre Deus
mais um sambista,
o resto eu conto depois…

Nasceu no Dia das Crianças, que tanto adorava. Por isso, repetia que se pudesse nasceria de novo, pois estava ficando “velho e encolhidinho”. Aí conjeturava que alguém poderia pensar: “Será que ele está virando criança outra vez?” Quase chega lá, não fossem as complicações de uma hérnia, que o levou à morte em 20 de agosto de 1998.

Fui ver pela última vez meu grande amigo no Hospital Carlos Macieira, onde jazia sobre o mármore, embrulhado em lençóis. Lembrei-me do pacote de jornais, que ele não iria mais colecionar, nem leria ansioso a notícia da própria morte. Isso não seria mais necessário para quem tirou de letra a vida como um passeio distraído pela rua.

No cemitério, antes que o pedreiro vedasse com tijolos o mausoléu de família, consegui jogar-lhe uma flor, para que não esquecesse de por no chapéu quando encontrasse com os outros sambistas já embriagados de aurora.

O BATENTE DO SAMBA

Caricatura de Érico Junqueira

Cristovam Colombo da Silva nasceu em São Luís, na rua do Passeio, em 12 de outubro de 1922, numa casa ao lado do extinto Cine Rialto. De lá foi ainda criança para a rua de São Pantaleão, nº 1.275, próximo ao Hospital Geral, para onde também se mudou, em 1941, o bloco Fuzileiros da Fuzarca, fundado cinco anos antes na rua de São João, com o envolvimento de toda a sua família.

E não era pouca gente. Seus pais, José Bonifácio da Silva e Mercedes Ramos da Silva, tiveram oito filhos: Amélia, Sandoval, Astrogildo, Cristovam, Manoel, Lenir, Noca e Teresa, somando-se uma infinidade de descendentes. Dona Mercedes foi uma espécie de esteio dos Fuzileiros durante cerca de 20 anos, até o seu falecimento no início da década de 1960, quando o bloco se mudou para o coração da Madre de Deus.

Foi então que Cristóvão pode se dedicar à Turma do Quinto, escola de samba da qual foi um dos fundadores, mas tinha uma participação quase clandestina por causa da predileção da família pelos Fuzileiros da Fuzarca.

Quando a escola foi criada, em 1940, ele já era operário têxtil cardador da Fábrica São Luís, que processava fios de algodão, mudando-se dali para a Cânhamo, onde durante 28 anos ocupou como fiandeiro uma das máquinas que fabricavam sacos de estopa para a indústria e o comércio locais.

Depois do trabalho, Cristóvão ainda encontrava disposição e tempo para tocar pandeiro e cantar suas músicas em gafieiras, clubes e cabarés, sobretudo na Zona do Meretrício, onde se apresentava com a orquestra de Pedrão e no Jazz Irakitan. Assim, matava a sede da boemia e alimentava a magra renda.

Em 1968, conseguiu um emprego na Secretaria de Viação e Obras Públicas (SVOP), que depois se tornou SETOP, e, por último Sinfra. Lá exerceu os cargos de contínuo e agente de portaria, que para ele era o nome moderno de vigia. “Mas não vigio nada, nem ninguém”, dizia.

Na verdade, Cristóvão gostava de servir a todos e não se furtava de qualquer tipo de empreitada, desde as filas de banco até entregar no horário exato o almoço dos executivos, que o consideravam um funcionário exemplar. Era o primeiro a chegar e o último a sair da repartição, contrariando o estereótipo da malandragem que pesa sobre os sambistas.

Isso lhe valia uns bons trocados para as suas esticadas pelos botecos das redondezas, antes de chegar na Madre de Deus e de lá seguir para o Bairro de Fátima, para onde se mudara no início dos anos 1970. “Ele acordava às seis horas, tomava café e ia por um atalho até a Madre de Deus, e de lá para o São Francisco, atravessando a ponte, todos os dias”, conta Dona Vanda, a viúva, hoje com 72 anos [à época da publicação original do texto].

Vanderlisa da Silva relata que conheceu Cristóvão na porta da Cânhamo por volta de 1946, quando tinha apenas 14 anos e ele 24. Por ser muito branca, era chamada de “loura” ou “americana” pelos colegas operários. Logo chamou a atenção do compositor, que, a princípio, brincava muito com ela, mas era esnobado.

“A brincadeira virou coisa séria”, lembra Dona Vanda. Tiveram uma convivência de mais de 50 anos, no início cheia de altos e baixos, pois ambos gostavam de brincar – ela nos bailes e ele nas rodas de samba. Dessa paixão, em 1951 nasceu o único filho, Orlando Silva (poderia ser outro?), depois veio o neto, Rafael, herdeiros de uma grande fortuna: o samba inspirado e irretocável de Alô Brasil.

*Cesar Teixeira é jornalista e compositor. Perfil originalmente publicado no Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante, nº. 66, em 2006, então quinzenalmente encartado no Jornal Pequeno, aqui reproduzido com pequeníssimas modificações

A música é a arte dos encontros

Joãozinho Ribeiro autografa hoje Milhões de uns – vol. 1 no Bip Bip, em Copacabana. Foto: Paulo Caruá

 

Mesmo de férias, o compositor Joãozinho Ribeiro não baixa a guarda. Explico: funcionário público federal, ele está no Rio de Janeiro, acompanhado da musa Rose Teixeira, a quem dedicou, entre outras, Te gruda no meu fofão, tema de espetáculo homônimo encenado pelo Laborarte em tempos idos. Pois se o funcionário público goza férias, o artista não. Ou ao menos não completamente: poeta e musa estarão hoje (20) à noite no mítico Bip Bip, na rua Almirante Gonçalves, em Copacabana, onde o primeiro autografa Milhões de uns – vol. 1 para cariocas e turistas que aparecerem.

Alfredinho, proprietário do mítico Bip Bip. Foto: Dario de Dominicis/ CartaCapital

A escolha não poderia ter sido mais apropriada e é cercada de coincidências. Tanto o Bip Bip quanto Joãozinho Ribeiro são menos conhecidos do que deveriam, dadas suas importâncias, um para a boemia carioca, outro para a música produzida no Maranhão, ambos para a cultura brasileira de modo geral. O bar foi fundado em 13 de dezembro de 1968, data da promulgação do famigerado Ato Institucional nº. 5, que acirrou as trevas da ditadura militar brasileira, de que o artista foi bravo combatente, destacado militante da greve da meia passagem, em São Luís do Maranhão, setembro de 1979.

As coincidências não param por aí: tanto João Batista Ribeiro Filho, o artista, quanto Alfredo Jacinto Melo, atual proprietário do bar, que adquiriu em 1984, são conhecidos por diminutivos. Outra coincidência reside no futebol: tanto Joãozinho quanto Alfredinho atualmente frequentam a segunda divisão, com seu “glorioso” Botafogo.

Como todas as noites (o bar abre às 19h30), a de hoje será pautada pela arte, cultura e solidariedade, além da confiança mútua entre proprietário e frequentadores, desta feita somada à do artista que, aproveitando um passeio, resolve estreitar os laços entre a cidade maravilhosa e a ilha magnética.

A noite de autógrafos de Joãozinho Ribeiro no Bip Bip tem entrada franca. Milhões de uns – vol. 1 será vendido por R$ 20,00 na ocasião.

O lirismo de Paulo Mendes Campos revisitado

O amor acaba. Capa. Reprodução

O título O amor acaba [Companhia das Letras, 280 p., 2013] pode soar pessimista, mas ao leitor menos avisado, que não conhece o autor, ou dele não lembra, será quase certeza do contrário: amor à primeira leitura, o amor começa.

Um dos “quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse”, como classificou o amigo Otto Lara Resende – um deles – sobre grupo completado por Hélio Pelegrino e Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos é desde sempre um dos maiores cronistas do Brasil.

Talvez dizer isso hoje soe fácil, a crônica, este brasileiríssimo gênero, caindo em desuso; mas não o era quando o mineiro ocupou redações cariocas, tempos de Antonio Maria, Rubem Braga, de Drummond e dos próprios colegas citados, para ficarmos em poucos – e grandes – exemplos.

As “crônicas líricas e existenciais” – o subtítulo – do volume (leia três textos, incluindo a crônica-título) revisitam um Paulo Mendes Campos entre o amor, o cotidiano, a boemia, o futebol, a poesia. Poesia, aqui, deixemos claro, tanto o escrever em verso responsável pela estreia literária do autor, quanto seu texto em prosa – as crônicas deste volume carregadas de… poesia!

Selecionadas por Flávio Pinheiro – que assina a apresentação do volume. Ivan Marques assina o posfácio –, as crônicas deste O amor acaba foram publicadas originalmente em jornais e revistas entre 1951 e 1990, a maioria em Manchete, mas também no Correio Paulistano, Diário Carioca e Jornal do Brasil, além dos livros Homenzinho na ventania (1962), Os bares morrem numa quarta-feira (1980) e Diário da Tarde (1981) – recentemente relançado pelo Instituto Moreira Sales, no formato pensado pelo autor, assunto para outra resenha. Como também merece outra resenha O mais estranho dos países – Crônicas e perfis (2013), também publicado pela Companhia das Letras.

Com sua leveza e lirismo, Paulo Mendes Campos permanece atual e sua leitura tem muito a nos ensinar, de estudantes do ensino fundamental – onde o conheci em livros de gramática e paradidáticos – a jornalistas, mas não só. A quem se interessa pela vida e pelo que de mais prosaico esta tem. Ou a quem precisa, vez por outra, dar um tempo no corre corre para observar o que realmente importa: o canto de um passarinho, o sorriso de uma criança, um boteco com os amigos, um beijo em quem se ama, uma crônica de Paulo Mendes Campos.

Obituário: Retão

O Retão: saudades e lembranças, após mais de 30 anos de serviços prestados à boemia da Ilha

Localizado na Avenida Vitorino Freire (entre Camboa e Areinha), na altura da Vila Passos, o Restaurante Retão era um espaço por que tínhamos muito carinho, onde costumeiramente íamos beber, eu e minha esposa – que chegou a comemorar um aniversário no recinto –, nós e os pais dela, mamãe e alguns amigos iniciados em nosso particularíssimo roteiro de baixa gastronomia – às vezes este grupo inteiro somado, de uma vez.

“E aí, meu patrão?!”, sempre me saudava o garçom da noite, logo que eu lhes pisava a calçada, onde em geral ficávamos fugindo da parte interna, sempre mais abafadiça e barulhenta – a exceção eram as noites de chuva (o Retão sempre funcionava à noite, algo em torno de entre 18h e meia noite). Depois dos apertos de mãos e abraços, tanto faz termos ido ali ontem ou há muito sem aparecer, já devidamente instalados em uma mesa ao vento, saltava o pedido: “o de sempre!”. E cervejas começavam a ser enfileiradas enquanto o tira-gosto era preparado.

Espaço simples, mas muito agradável, sua calçada e vento era o que havia de bom na região, com sua cerveja gelada e tira-gosto de vitamina B3, os três bês de bom, bonito e barato – sempre ótimas pedidas seus pratos de alcatra, frango e carne de sol, entre outros, porções “consideradas”, sempre acompanhadas de batatas fritas, salada e farofa. As contas, trazidas por seus garçons oficiais, os dois únicos que se revezavam nas noites, sempre nos assustavam. “Só isso?”, indagávamo-nos entre os comensais, sempre esperando uma conta mais cara, diante de tantas garrafas vazias enfileiradas aos pés da mesa e um ou mais pratos já recolhidos por Humberto e George, eles, os dois garçons no revezamento noite após noite.

A música não era o seu ponto forte e o aparelho de DVD podia exalar tanto um forró de plástico da pior qualidade quanto uma coletânea “momentos de amor” anos 70-80 e até mesmo apresentações de manifestações juninas de nossa cultura popular, ao longo dos festejos de São João.

Era, às vezes, nossa esticada natural após fazer a feira semanal, nas noites de quinta. Ou a parada obrigatória na sexta, para um papo qualquer, extensão do trabalho ou apenas bobagens para descontrair e aliviar a seriedade da vida, sempre tão corrida, após mais uma semana de missão cumprida. Canto de matar o calor que castiga a Ilha cotidianamente, mesmo quando a noite já caiu.

Depois de mais de 30 anos de serviços prestados à boemia da capital maranhense, o Retão fechou as portas. Sem maiores detalhes, Humberto confidenciou-me prejuízos que sua mãe, proprietária do local, estaria tendo. O espaço está lá, fechado e bem localizado. Torço para que renasça feito Fênix pelas mãos de alguma alma bondosa que queira ver contentes alguns habitués dali. Do contrário, restarão boas lembranças e saudade – as que me ocorrem todo dia, toda vez que passo ali em frente. Como hoje, com este obituário já escrito, quando parei defronte para tirar a fotografia que o ilustra.