“Só o que não se cansa é a gente se querer bem”

"Para viver um grande amor" (Vinícius de Moraes e Toquinho), às vezes é preciso olhar o retrovisor - foto: Zema Ribeiro
“Para viver um grande amor” (Vinícius de Moraes e Toquinho), às vezes é preciso olhar o retrovisor – foto: Zema Ribeiro

O título deste texto (ridículo, como toda carta de amor, não é, Fernando Pessoa?) é verso de “Nossa canção” (Ana Terra e Danilo Caymmi), sucesso de Nana Caymmi (1941-2025), não por acaso a música que abre a playlist “Depois daquela dança”, que alimentamos constantemente desde a dança que precedeu nosso primeiro beijo.

“O que fazer com este beijo represado há 20 anos?”, perguntei, ousado, logo após nossos lábios se encontrarem pela primeira vez. Tudo começou há 20 anos, na plateia de uma apresentação de Elomar — a música sempre presente — no finado Circo da Cidade (mais precisamente dia 19 de agosto de 2005), que assistimos em cadeiras lado a lado.

Apresentados por um amigo comum, eu me apaixonei, mas um coquetel de álcool, juventude (leia-se inexperiência) e lerdeza me impediu de perceber os sinais da reciprocidade, à época.

Como a vida é uma peça de teatro que não permite ensaios, “nossos destinos foram traçados na maternidade” (Cazuza, Leoni e Ezequiel Neves) — com distâncias geográficas e temporais mínimas: ela nasceu na Maternidade Benedito Leite e eu na Santa Casa de Misericórdia, ambas no Centro de São Luís/MA, com apenas 15 dias de diferença.

Mas desde o citado show de Elomar, quis o acaso que “as retas mais curvas que o mundo tem” (Chico Maranhão) nos provassem, na prática, a teoria de Vinícius de Moraes (1913-1980): “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro nessa vida”.

Vivemos: acertamos, erramos, fomos felizes e tristes, pertos e distantes, mas sempre amigos, com gostos parecidos, posturas políticas semelhantes e vez por outra, entre “encontros e despedidas” (Milton Nascimento e Fernando Brant), nos esbarrando aqui e acolá, em agendas de “festa, trabalho e pão” (Gilberto Gil e Capinan), bem menos do que gostaria, é verdade, admito.

Mas já dizia Paulo Leminski (1944-1989), outro poeta-músico de nossa predileção: “um bom poema leva anos/ cinco jogando bola,/ mais cinco estudando sânscrito,/ seis carregando pedra,/ nove namorando a vizinha,/ sete levando porrada,/ quatro andando sozinho,/ três mudando de cidade,/ dez trocando de assunto,/ uma eternidade, eu e você,/ caminhando junto”.

É um poema sobre seu próprio ofício poético e sobre maturação, para além da poesia, também do amor: o nosso levou 20 anos para poder ser vivido plenamente. E está apenas começando, embora sempre estivesse ali, pulsando quietinho. “Ah, infinito delírio chamado desejo/ essa fome de afagos e beijos/ essa sede incessante de amor” (Gonzaguinha); “não dá mais pra segurar/ explode coração” (idem).

Quando nos conhecemos, logo apelidei-a, carinhosamente, “menina de olhos amendoados”, estas duas petecas cor de mel que me espelharam e abriram as portas da paixão, a primeira coisa que me chamou a atenção. “Quando vi você me apaixonei” (Chico César), para logo depois cantar o Djavan de “Um amor puro”: “te adoro em tudo”.

Quando nos reencontramos, até tentamos, mas foi impossível conter a explosão: “nós somos fogo e gasolina” (Carlos Rennó e Pedro Luís). Sempre me refiro à nossa história, que adoro contar, como “um caso de loucura e mágica” (Ritchie e Antonio Cicero).

“O futuro já sabia, mas a gente ainda não” (Barro e Ed Staudinger): a dona dos olhos amendoados é hoje, finalmente, a “dona da minha cabeça” (Fausto Nilo e Geraldo Azevedo).

Volto ao show de Elomar, tendo-o como um marco: 20 anos não são 20 dias. Pensei em escrever algo sobre tudo isto, aproveitando a efeméride, e dei de cara com um poema, escrito também há 20 anos, uma singela quadrinha, com algum poder de síntese, já estava tudo lá: “teus olhos, duas pedras raras/ me deixam mudo/ com tua beleza me calas/ e se sou teu, tenho tudo”.

*

para Diana Melo

Ilha, 20 de agosto de 2025

O bloco de Ney Matogrosso

O cantor Ney Matogrosso. Foto: Patrícia Castro
O cantor Ney Matogrosso. Foto: Patrícia Castro

Já se vão 50 anos desde que Ney Matogrosso despontou no cenário artístico brasileiro, com o rosto pintado e trejeitos no palco que desagradavam os generais de plantão, à frente do grupo Secos e Molhados.

Ontem (18) ele se apresentou em São Luís, no Pavilhão de Eventos do Multicenter Sebrae, para deleite do ótimo público presente, produção da 4Mãos. O show da turnê “Bloco na Rua” durou cerca de hora e meia em que o cantor atestou porque é, desde sempre e ainda, um dos mais interessantes artistas brasileiros em atividade.

A quem achar pouca a duração do show, é música o tempo inteiro. E dança. Com uma projeção emuldurando. Ney Matogrosso não conversa nem desconversa. Fora cantar ao longo de todo o show (parece redundância, mas não é), deu apenas boa noite, anunciou o fim do show, voltou para o bis e disse o quanto era incrível cantar para aquela plateia.

Um espetáculo e tanto, aberto por “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”, do capixaba Sérgio Sampaio (1947-1994), de onde vem o título do show e do álbum lançado por Ney Matogrosso em 2019.

O roteiro do show demonstrou a versatilidade que marca a trajetória do artista, que sempre gravou o que quis, sem se prender a rótulos ou escolas: continuou por pérolas do rock brasileiro, como “Jardins da Babilônia” (Lee Marcucci/ Rita Lee) e “O Beco” (Bi Ribeiro/ Herbert Vianna), as três primeiras cantadas na mesma sequência do álbum.

Performer nato, Ney Matogrosso tem pleno domínio do palco, é senhor da situação. O figurino de Lino Villaventura, o mesmo com que aparece na capa de “Bloco na Rua”, fazia esvoaçar uma espécie de saia de franjas ao longo da apresentação. Seu balé particular está a serviço de sua música e vice-versa e sua excelência está em ambos.

Ney Matogrosso estava acompanhado por Sacha Amback (direção musical e teclado), Marcos Suzano (percussão), Felipe Roseno (percussão), Dunga (baixo), Tuco Marcondes (guitarra), Aquiles Moraes (trompete) e Everson Moraes (trombone).

“Já Sei” (Alice Ruiz/ Alzira E./ Itamar Assumpção), “Pavão Mysteriozo” (Ednardo), “Tua Cantiga” (Chico Buarque), “A Maçã” (Marcelo Motta/ Paulo Coelho/ Raul Seixas), “Yolanda” (versão de Chico Buarque para composição de Pablo Milanés), “Postal de amor” (Fausto Nilo/ Raimundo Fagner/ Ricardo) e “Ponta do Lápis” (Clodo Ferreira/ Rodger Rogério) formaram outro bloco na mesma sequência do álbum, continuada por “Corista de Rock” (Luiz Sérgio/ Rita Lee), “Já Que Tem Que” (Alzira E./ Itamar Assumpção), “O Último Dia” (Billy Brandão/ Paulinho Moska), “Inominável” (Dan Nakagawa), “Sangue Latino” (João Ricardo/ Paulinho Mendonça) – única do Secos e Molhados que compareceu ao repertório do show –, e “Como dois e dois” (Caetano Veloso”), que praticamente fechou o show, dando um pequeno pulo em relação ao repertório do álbum.

Das poucas vezes em que falou, Ney Matogrosso anunciou o fim do show, repito: “foi um prazer inenarrável cantar para todos vocês”, disse, antes de emendar “Poema” (Cazuza/ Frejat) e seu maior hit, “Homem Com H” (Antonio Barros). Ao ser chamado para o bis, educadamente disse: “já cantamos tudo o que havíamos ensaiado, mas eu vou cantar mais duas porque eu gosto”, e mandou “Roendo as Unhas” (Paulinho da Viola) e “Rua da Passagem” (Arnaldo Antunes/ Lenine).

Das não poucas vezes em que chorei ao longo da apresentação, prefiro não revelar e salgar o jornalismo e misturá-lo a questões pessoais, como as lembranças de minha avó Maria Lindoso (1939-2020), fã declarada que não chegou a ver um show ao vivo, mas me ensinou a admirar Ney Matogrosso.

*O jornalista assistiu ao show a convite da produção.

Doc didático reconta história do rock brasileiro, ainda que de forma superficial

Rock brasileiro – História em imagens [documentário, Brasil, 2009, 70min., direção: Bernardo Palmeiro], exibido ontem (9) no Maranhão na Tela, traça um panorama da cena rock no Brasil desde o seu início até os dias atuais. Do nascimento, entre a Jovem Guarda e a Tropicália, com Roberto e Erasmo Carlos, Gilberto Gil e Os Mutantes, passando por Novos Baianos e Raul Seixas – talvez o nome mais importante do gênero no Brasil até aqui –, até a falta de rebeldia e excesso de emotividade de nomes contemporâneos como Fresno e NX Zero.

É um filme linear e extremamente didático, perfeito para iniciantes no assunto – o filme foi feito para uso em escolas, fico sabendo depois da sessão. A montagem tem seus defeitos, com excesso de branco nos cortes e “colagens” das imagens anunciadas no título – fala-se, por exemplo, em Secos & Molhados, e fotos de Ney Matogrosso, João Ricardo e Gerson Conrad, integrantes do revolucionário conjunto, sobrepõem-se umas às outras, tentando em vão uma unidade. Incomodam também as capas de discos de Raul Seixas passando em frente ao depoimento de Charles Gavin (ex-baterista de Ira! e Titãs, responsável pelo relançamento em cd de discos fundamentais da música brasileira, hoje apresentador de programas sobre música no Canal Brasil).

Outro defeito pode ter sido justo a falta de recorte: impossível cumprir a promessa do título em pouco mais de uma hora de filme. O assunto dá muito pano pra manga e nomes importantes são esquecidos ou subestimados. Tim Maia, por exemplo, tem sua importância para o rock nacional, seja ao ensinar Roberto e Erasmo a tocar violão, seja ao influenciar Os Mutantes – “Qualquer semelhança com Tim Maia é mera coincidência”, nos avisam Rita e os irmãos Baptista no encarte do Jardim Elétrico (1971) –; Chico Science parece ser apenas mais um, surgido nos anos 1990. Não é. Francisco Ciência – como o chamaria um radical Ariano Suassuna – é o responsável pelo último movimento da música brasileira, o manguebeat, uma personalidade importantíssima no panorama da música brasileira recente.

Pitty, num depoimento que soa meio arrogante, diz algo como “não é por eu ser baiana que eu tenho que colocar um berimbau no rock”, referindo-se ao hibridismo que muitos tentaram, sem sucesso – ou com sucesso e sem qualidade. Acerta a moça ao dizer que na Nação Zumbi isso soa(va) natural, sem forçar a barra – eu acrescentaria aí o mundo livre s/a, para ficar apenas em mais um nome do movimento pernambucano. Lobão e Lulu Santos, gostemos ou não, são outros dois nomes simplesmente “esquecidos”. Vivas à lembrança de Júlio Barroso e sua Gang 90.

Embora o filme não traga imagens raras não deixa de ser pelo menos engraçado analisar o figurino de astros como Cazuza – com uma calça coladíssima num Rock in Rio – e/ou as bermudas e camisas coloridas d’Os Paralamas do Sucesso – noutro. Ou no mesmo. Ou num Hollywood Rock, sei lá.

Embora reconheçamos as dificuldades para se conseguir falar com determinados artistas, a voz em off do narrador é recurso que poderia facilmente ser dispensado com mais depoimentos. Os de Liminha são um capítulo à parte: tendo tocado com Os Mutantes, produziu discos d’Os Paralamas do Sucesso, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Nação Zumbi, entre outros. Ele, quase a própria história do rock brasileiro.