Jota P – foto: Fabiana Serra/ Ascom Lençóis Jazz e Blues Festival
Alice Caymmi e Eduardo Farias – foto: Fabiana Serra/ Ascom Lençóis Jazz e Blues Festival
JJ Thames com Igor Prado ao fundo – foto: Diana Melo
Para deleite do público, Hermeto Pascoal (1936-2025) não foi o único homenageado da 16ª. edição do Lençóis Jazz e Blues Festival, encerrado ontem (1º.) na Avenida Beira-Rio, em Barreirinhas. À homenagem anunciada desde a identidade visual do evento somaram-se outras, a Maria Bethânia, Djavan e Nana Caymmi (1941-2025), nos shows de Luciana Pinheiro, Vanessa Moreno e Alice Caymmi, respectivamente.
O show de Vanessa Moreno não foi dedicado exclusivamente ao repertório do alagoano. Além de Djavan, acompanhada pelo guitarrista Tarcísio Santos, ela desfilou temas como “Refazenda” (Gilberto Gil), “Bananeira” (Gilberto Gil e João Donato), com direito a participação especial da flautista Morgana Moreno — que se apresentou ao lado de Arismar do Espírito Santo, num dos shows representativos dos “hermetismos pascoais”; o outro foi o do saxofonista Jota P, que integrou o grupo de Hermeto Pascoal por 10 anos.
O baixista, que estava na plateia vendo a apresentação, não se fez de rogado quando recebeu o convite de Vanessa e, com Morgana e o guitarrista, fecharam a apresentação com “Emoriô” (Gilberto Gil e João Donato).
Jota P (saxofone, flauta e flautim) estava acompanhado pelos jovens Luiz Gabriel (trompete e flugelhorn), Tom Sickman (guitarra), Gabriel Biel (baixo) e Luiz Gustavo Rocha (bateria) e abriu sua apresentação literalmente com “Xeque mate”, faixa autoral que abre seu ótimo “Baile dos língua preta” (2023) — na sequência, alguém da plateia se levantou e foi até ele, entregar-lhe uma peça de xadrez, que ele agradeceu dizendo que iria guardar com muito carinho o presente.
No bloco em homenagem a Hermeto Pascoal, Jota P tocou “Santo Antônio” (Hermeto Pascoal) e “Florescer” (Jota P), além de “Hermeto me avisou” (Jota P), segundo ele baseada em fatos reais. Sua inspirada apresentação no Lençóis Jazz e Blues Festival, marcada pelo clima descontraído e pela capacidade de improvisação, foi encerrada com outra autoral, outra homenagem, “Airto e Flora” — flores em vida ao casal formado pelo percussionista Airto Moreira e pela cantora Flora Purim —, que fecha o citado álbum.
Alice Caymmi fez um show comovente, “Para minha tia Nana”, de levar às lágrimas boa parte da plateia, acompanhada apenas pelo piano de Eduardo Farias. Já disse a que veio ao iniciar sua apresentação com “Resposta ao tempo” (Aldir Blanc e Cristóvão Bastos), seguida por “Acalanto” (Dorival Caymmi) — “essa meu avô compôs quando minha tia nasceu” — e “A noite do meu bem” (Dolores Duran).
Não faltaram “Atrás da porta” (Chico Buarque e Francis Hime), “Derradeira primavera” (Tom Jobim e Vinícius de Moraes) e “Sabe de mim” (Sueli Costa). Fez troça ao anunciar “Mentiras” (João Donato e Lysias Enio): “essa é da época em que ela [Nana Caymmi] era casada com João Donato (1934-2023), agora vocês tiram como é que era isso”.
Cantou ainda “Sem você” (Tom Jobim e Vinícius de Moraes), “Meu menino” (Danilo Caymmi), “Cais” (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos), “Tens (Calmaria”) (Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Souza) — “ninguém conhece, mas é linda” —, “Dora” (Dorival Caymmi), “Só louco” (Dorival Caymmi) e “Suave veneno” (Aldir Blanc e Cristóvão Bastos). Fechou com “Não se esqueça de mim” (Roberto Carlos e Erasmo Carlos).
A homenagem de Alice a Nana superou questões políticas que mantiveram afastadas sobrinha e tia nos últimos anos, num espetáculo que nada tem de oportunista e que demonstra que a Caymmi, como qualquer família brasileira, não está imune a eventuais divergências.
O festival foi encerrado com a apresentação vibrante da americana JJ Thames acompanhada da Prado Brothers Band, que colocou boa parte do público para dançar no gargarejo. A programação de alto nível dificulta o exercício de eleger apenas um como melhor show.
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A reportagem se hospedou na Pousada e Ponto de Cultura Sítio Paraíso do Caju, onde foram realizadas as jam sessions do Lençóis Jazz e Blues Festival este ano.
O cantor e compositor Vicente Barreto – foto: Zema Ribeiro
Eu devia ter uns 14 ou 15 anos. Estava em um bar, tomando refrigerantes e vendo uma apresentação do violonista rosariense Fran Gomes. À época eu já tinha um conhecimento razoável de música, adquirido fuçando as coleções de vinis de meus avós, pais e tios. Naquela tarde fiz do músico uma espécie de jukebox – algo que hoje condeno, obviamente – e desdenhava de algo que eventualmente ele não sabia cantar ou tocar.
Foram tantos “toca Zé Ramalho”, “toca Zé Geraldo”, “toca Geraldo Azevedo”, “toca Fagner”, “toca Gilberto Gil”, “toca Chico Buarque”, “toca Caetano Veloso”, “toca Belchior”, “toca Djavan” e toca tudo que eu conhecesse, sem falar do infaltável “toca Raul!”, que ele retrucou: “eu vou cantar uma que tu não conhece”. A letra me pegou na hora – é até hoje uma de minhas canções prediletas em toda a MPB – e ao fim ele perguntou quem era e eu não soube responder. Era “A notícia”, parceria de Celso Viáfora e Vicente Barreto: “O New York Times não deu uma linha/ a BBC de Londres nem uma palavra/ mas ontem no Xingu um índio se afogou/ e um guarda-marinha se atirou nas águas/ para salvar a sua vida/ Na mesma hora um favelado da Rocinha/ que tinha sete filhos, arrumou mais um/ era um menino loiro de olho azul/ que tinha sido abandonado nu/ numa avenida/ Gente má, gente linda/ dia vem, noite finda/ em todo lugar”. A música é tão marcante que digito sua letra consultando apenas a memória.
Quase 30 anos depois do episódio que me apresentou a obra de Vicente Barreto – porque depois do maravilhamento que foi ouvir Fran tocá-la e descobrir um artista que eu então não conhecia, ir atrás de outras composições, discos etc., foi um pulo. Aquele moleque de 14 ou 15 anos se tornou jornalista, perdeu a empáfia e teve a oportunidade de entrevistar o artista baiano, por ocasião de seu álbum mais recente, “Na força e na fé” – hoje finalmente conheci-o pessoalmente, por ocasião de entrevista que concedeu ao Timbira Cult, com Gisa Franco, na Rádio Timbira FM (95,5), quando contei-lhe a história com que abro este texto.
Parceiro de nomes como Alceu Valença (“Tropicana”, “Cabelo no pente”, “Pelas ruas que andei”), Tom Zé (“Hein?”, “Lá vem cuíca”, “Na parada de sucesso” e “Esteticar” – esta também com Carlos Rennó), Celso Viáfora (a citada “A notícia”, “A cara do Brasil”, gravada por Ney Matogrosso), Paulo César Pinheiro (“Capitão do mato”, gravada por Maria Bethânia), Chico César (“Ilusão retada”) e Zeca Baleiro (“Saudades de te ver, Paraíba”), Vicente Barreto se apresenta hoje (12) e amanhã (13), às 20h, no Miolo Café Bar (Av. Litorânea, 100, Calhau). O cantor e compositor maranhense Djalma Chaves faz o show de abertura.
A cantora Célia Maria – foto: Zeqroz Neto/ divulgação
A cantora Célia Maria adotou seu nome artístico para fugir da vigilância dos pais e conseguir cantar (escondida) em programas de auditório em rádios maranhenses. Nos anos 1960 circulou pelo eixo Rio-São Paulo e conviveu com figuras como Cartola (1908-1980), Nelson Cavaquinho (1911-1986), Zé Keti (1921-1999) e o conterrâneo João do Vale (1934-1996).
Considerada a voz de ouro da música do Maranhão, Célia Maria só viria a gravar um álbum, o homônimo Célia Maria, em 2001, com arranjos de Ubiratan Sousa, incluindo o choro “Milhões de Uns”, de Joãozinho Ribeiro, que angariou troféu no Prêmio Universidade FM daquele ano. Nada disso, no entanto, foi capaz de dar a ela o merecido reconhecimento: trata-se de uma das maiores cantoras brasileiras em qualquer tempo.
Só voltaria a gravar em 2022, por iniciativa de admiradores: lançou o EP Canções e Paixões (ouça acima), cujo repertório traz, entre outras, o “Bolero de Célia”, que Zeca Baleiro compôs especialmente para sua interpretação. É a música do conterrâneo que dá título ao show que a artista apresenta nesta sexta-feira (29), às 21h, no Miolo Bar e Café (Av. Litorânea, nº. 100, Calhau).
Na apresentação, Célia Maria será acompanhada do Regional Seis Por Meia Dúzia (nome tomado emprestado de um choro de Luis Barcelos), que está longe de ser qualquer coisa ou mais ou menos, formado especialmente para a ocasião: Rui Mário (sanfona e direção musical), Wendell de La Salles (bandolim), Gustavo Belan (cavaquinho), Gabriela Flor (pandeiro), Chico Neis (violão) e Mano Lopes (violão sete cordas).
A noite contará ainda com as luxuosas participações especiais de Claudio Lima e Dicy. Os ingressos já estão esgotados. No repertório, além de canções de Célia Maria e Canções e Paixões, a que comparecem nomes como Antonio Maria (1921-1964), Antonio Vieira (1920-2009), Cesar Teixeira, Chico Buarque, Edu Lobo, Chico Maranhão e Luiz Bonfá (1922-2001), entre outros, além de um passeio por clássicos da música popular brasileira, com destaque para boleros, choros e sambas-canções.
“Bolero de Célia”, o show, tem produção de RicoChoro Produções e apoio cultural de Maxx, Potiguar, Gênesis Educacional, Bira do Pindaré, Pró Áudio e Turê.
divulgação
Serviço
O quê: show “Bolero de Célia” Quem: Célia Maria e Regional Seis Por Meia Dúzia. Participações especiais de Claudio Lima e Dicy Onde: Miolo Bar e Café (Av. Litorânea, nº. 100, Calhau) Quando: dia 29 (sexta-feira), às 21h Quanto: ingressos esgotados Produção: RicoChoro Produções Apoio cultural: Maxx, Potiguar, Gênesis Educacional, Bira do Pindaré, Pró Áudio e Turê
A fama de Nelson Ned era tão grande que, em 1985, quando foi levar os filhos para pedir autógrafos para os Menudos, Ricky Martin disse “minha mãe te ama” e ele deu autógrafos aos porto-riquenhos. Foto: Acervo pessoal de Monalisa Ned/ Reprodução
“Ponha-se no lugar do Nelson. Imagina como é acordar todo dia e ter os problemas dele. Não deve ser fácil ser Nelson Ned [1947-2014]”, disse o cantor e então vereador Agnaldo Timóteo (1936-2021) a um de seus assessores, numa fase em que o colega a que se refere já amargava o ostracismo, após anos de extrema popularidade, não apenas no Brasil.
“Tudo Passará: A Vida de Nelson Ned, O Pequeno Gigante da Canção”. Capa. Reprodução
O episódio é um dos muitos contados por André Barcinski em “Tudo Passará: A Vida de Nelson Ned, O Pequeno Gigante da Canção” (Companhia das Letras, 2023, 249 p., R$ 79,90). O autor de “Barulho” e “Pavões Misteriosos” conta a história de Nelson Ned sem apelar para espetacularizar a vida privada do cantor e compositor, o que seria um caminho mais fácil, dada a profusão de episódios, desde o diagnóstico de nanismo, ainda na infância, até relações conturbadas com mulheres, álcool, drogas e o alto escalão do narcotráfico.
Não que Barcinski não os aborde, mas sua opção parece dialogar com a do artista diante de sua própria condição, de sua família e o modo com que sempre encarou o nanismo – a mãe desafiou os preconceitos vigentes e decidiu manter o filho na escola após episódios de bullying, antes mesmo de o termo ser inventado. “Ele terá de aprender a viver no meio das outras crianças, como uma criança normal. Vou criar meu filho para o mundo, e não um mundo para meu filho”, disse, sem imaginar que dali a pouco Nelson Ned começaria, ainda criança, a encantar plateias e auditórios com seu vozeirão.
A quem porventura achar que o subtítulo da biografia é apelativo, este era o apelido com que Nelson Ned era tratado no meio artístico, entre as jogadas de marketing típicas da época em que reinou como um grande vendedor de discos, páreo para Roberto Carlos e sucesso absoluto na América Latina, Estados Unidos e países como Angola e Moçambique.
Era um personagem contraditório. O jornalista e treinador de futebol João Saldanha (1917-1990) certa vez disse a Nelson Ned: “Você só não é perfeito porque nunca gravou uma música do Chico Buarque”, e recebeu como resposta: “Deus me livre, gravar música deste comunista de merda!”, recebendo réplica do comunista histórico, que só não conduziu a seleção brasileira ao tricampeonato mundial em 1970 justamente por não aceitar interferências dos generais de plantão na escalação de seu time.
Nelson Ned também afirmava nunca ter se apresentado em Cuba por não cantar para ditadores, aludindo a Fidel Castro (1926-2016), que governava a ilha. Morreu sem cantar lá, mas “na Colômbia, chefões dos cartéis de Cali e Medellín o contratavam para shows particulares. Baby Doc (Jean-Claude Duvalier [1951-2014]), o sanguinário ditador haitiano, chorava ao ouvir Nelson cantar” e visitou o artista no camarim, após um show no país “que controlava (…) à custa de repressão policial e execuções de adversários”. Nelson Ned chegou a presentear o general João Figueiredo (1918-1999), último presidente da ditadura militar brasileira, com uma Colt .45, que, por sua vez, havia recebido de presente de Arturo Durazo Moreno, vulgo El Negro, chefe de polícia na Cidade do México entre 1976 e 1982, preso em 1984 acusado de corrupção, extorsão, evasão fiscal, contrabando e posse de armas ilegais e cocaína.
Nada escapa ao olhar atento, à pesquisa minuciosa e à escrita envolvente de Barcinski, que dá conta ainda do plágio de que foi alvo a canção que dá título ao livro, da questão que ele fazia de aparecer de corpo inteiro nas capas dos discos, para não esconder sua condição física, até sua decadência, fruto dos excessos cometidos ao longo dos tempos, quando passou a cantar exclusivamente hinos e louvores para atender ao mercado gospel ao se tornar evangélico.
Já se vão 50 anos desde que Ney Matogrosso despontou no cenário artístico brasileiro, com o rosto pintado e trejeitos no palco que desagradavam os generais de plantão, à frente do grupo Secos e Molhados.
Ontem (18) ele se apresentou em São Luís, no Pavilhão de Eventos do Multicenter Sebrae, para deleite do ótimo público presente, produção da 4Mãos. O show da turnê “Bloco na Rua” durou cerca de hora e meia em que o cantor atestou porque é, desde sempre e ainda, um dos mais interessantes artistas brasileiros em atividade.
A quem achar pouca a duração do show, é música o tempo inteiro. E dança. Com uma projeção emuldurando. Ney Matogrosso não conversa nem desconversa. Fora cantar ao longo de todo o show (parece redundância, mas não é), deu apenas boa noite, anunciou o fim do show, voltou para o bis e disse o quanto era incrível cantar para aquela plateia.
Um espetáculo e tanto, aberto por “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”, do capixaba Sérgio Sampaio (1947-1994), de onde vem o título do show e do álbum lançado por Ney Matogrosso em 2019.
O roteiro do show demonstrou a versatilidade que marca a trajetória do artista, que sempre gravou o que quis, sem se prender a rótulos ou escolas: continuou por pérolas do rock brasileiro, como “Jardins da Babilônia” (Lee Marcucci/ Rita Lee) e “O Beco” (Bi Ribeiro/ Herbert Vianna), as três primeiras cantadas na mesma sequência do álbum.
Performer nato, Ney Matogrosso tem pleno domínio do palco, é senhor da situação. O figurino de Lino Villaventura, o mesmo com que aparece na capa de “Bloco na Rua”, fazia esvoaçar uma espécie de saia de franjas ao longo da apresentação. Seu balé particular está a serviço de sua música e vice-versa e sua excelência está em ambos.
Ney Matogrosso estava acompanhado por Sacha Amback (direção musical e teclado), Marcos Suzano (percussão), Felipe Roseno (percussão), Dunga (baixo), Tuco Marcondes (guitarra), Aquiles Moraes (trompete) e Everson Moraes (trombone).
“Já Sei” (Alice Ruiz/ Alzira E./ Itamar Assumpção), “Pavão Mysteriozo” (Ednardo), “Tua Cantiga” (Chico Buarque), “A Maçã” (Marcelo Motta/ Paulo Coelho/ Raul Seixas), “Yolanda” (versão de Chico Buarque para composição de Pablo Milanés), “Postal de amor” (Fausto Nilo/ Raimundo Fagner/ Ricardo) e “Ponta do Lápis” (Clodo Ferreira/ Rodger Rogério) formaram outro bloco na mesma sequência do álbum, continuada por “Corista de Rock” (Luiz Sérgio/ Rita Lee), “Já Que Tem Que” (Alzira E./ Itamar Assumpção), “O Último Dia” (Billy Brandão/ Paulinho Moska), “Inominável” (Dan Nakagawa), “Sangue Latino” (João Ricardo/ Paulinho Mendonça) – única do Secos e Molhados que compareceu ao repertório do show –, e “Como dois e dois” (Caetano Veloso”), que praticamente fechou o show, dando um pequeno pulo em relação ao repertório do álbum.
Das poucas vezes em que falou, Ney Matogrosso anunciou o fim do show, repito: “foi um prazer inenarrável cantar para todos vocês”, disse, antes de emendar “Poema” (Cazuza/ Frejat) e seu maior hit, “Homem Com H” (Antonio Barros). Ao ser chamado para o bis, educadamente disse: “já cantamos tudo o que havíamos ensaiado, mas eu vou cantar mais duas porque eu gosto”, e mandou “Roendo as Unhas” (Paulinho da Viola) e “Rua da Passagem” (Arnaldo Antunes/ Lenine).
Das não poucas vezes em que chorei ao longo da apresentação, prefiro não revelar e salgar o jornalismo e misturá-lo a questões pessoais, como as lembranças de minha avó Maria Lindoso (1939-2020), fã declarada que não chegou a ver um show ao vivo, mas me ensinou a admirar Ney Matogrosso.
*O jornalista assistiu ao show a convite da produção.
O cantor e compositor Marconi Rezende. Foto: Danielle Vieira/ Divulgação
“O meu pai era paulista/ meu avô pernambucano/ o meu bisavô mineiro/ meu tataravô baiano/ meu maestro soberano/ foi Antonio Brasileiro”. Os versos que abrem “Paratodos”, canção que abre e intitula o disco que Chico Buarque lançou em 1993, dão a genealogia familiar e musical do compositor, que completou 79 anos em junho passado.
“Paratodos” é o título escolhido por Marconi Rezende para o show que apresenta no próximo dia 12 de agosto (sábado), às 19h, no Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB, Rua Conde D’Eu, 560, Centro), em Fortaleza/CE. O maranhense é um dos maiores covers do autor de verdadeiros hinos da música popular brasileira, como “Construção”, “Apesar de Você”, “Vai Passar” e “Cotidiano”, entre outras.
O espetáculo tem entrada franca. Na ocasião, Marconi Rezende (voz e violão) estará acompanhado por Adriano Oliveira (piano), Luciano Franco (contrabaixo) e André Benedect (bateria). O repertório faz um passeio por clássicos da lavra buarqueana e lados b.
“Chico Buarque é um dos maiores artistas deste país e tem uma obra tão extensa quanto versátil. A gente pretende oferecer ao público todas as facetas do cantor, compositor, dramaturgo e escritor, referência em todas as vertentes por onde se aventurou”, promete Marconi Rezende.
Autodidata, o músico maranhense lapidou na noite ludovicense sua escolha criteriosa de repertório. Se Chico Buarque é seu inegável artista preferido, ele também costuma apresentar pérolas de outros mais de 100 compositores, ofício no qual ele mesmo é um talento: “Estrelando” (2009), seu disco de estreia, apresenta esta faceta de Marconi Rezende, que também será lembrada durante o tributo ao carioca.
Tamanha é sua identificação com a obra de Chico Buarque, com suas execuções charmosas e impecáveis, que Marconi Rezende se viu liderando um movimento espontâneo intitulado Clube do Chico, marcado por constantes celebrações à obra deste craque da MPB, que chegou a ter até sede fixa durante um tempo.
Ano passado, quando Chico Buarque se apresentou na capital alencarina com a turnê “Que Tal Um Samba?”, Marconi Rezende estava na caravana de maranhenses que foi até lá prestigiar o ídolo. “Tem saudades do Ceará”, como o mesmo diz na letra de “Iracema Voou”, e por isso mesmo, vai até lá.
Atualmente Marconi Rezende trabalha em um novo projeto autoral, incluindo parcerias com o conterrâneo Zeca Baleiro. Após Fortaleza, Marconi Rezende levará a homenagem a Chico Buarque em “Paratodos” a outras capitais nordestinas.
Serviço
O quê: show “Paratodos – Especial Chico Buarque” Quem: o cantor, compositor e violonista maranhense Marconi Rezende Quando: 12 de agosto (sábado), às 19h Onde: Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB, Rua Conde D’Eu, 560, Centro, Fortaleza/CE) Quanto: entrada franca
“Quero ficar no teu corpo feito tatuagem”. Os versos iniciais da clássica “Tatuagem” (Chico Buarque/ Ruy Guerra), com que Zeca Baleiro abriu o show “Fado Tropical”, ontem (25), no Teatro Arthur Azevedo, bem traduzem a relação do maranhense com seu público, consolidada em 26 anos, se contarmos apenas a partir de sua estreia fonográfica, com “Por Onde Andará Stephen Fry?” (MZA Music, 1997).
Por falar em 26 anos, chegou hoje às plataformas de streaming “Você Goza Com Dinheiro” (Zeca Baleiro), segundo single de uma série com que o artista está celebrando a inusitada efeméride.
Como ele mesmo contou, para gargalhadas do ótimo público presente: “quando eu lancei meu primeiro disco, me ligaram e disseram que tinham conseguido botar uma música minha na nova novela do Manoel Carlos, “Por Amor”; eu sempre fui noveleiro, sabia tudo, elenco, ficha técnica, trilha sonora, ficava disputando com minha irmã Lúcia [Santos, poeta] para saber quem tinha mais conhecimentos novelísticos; eu voltei a assistir novela e fiquei esperando, mas os capítulos passavam e nada da música; lá pelo capítulo 45, eu já quase desistindo de acompanhar, achando que não ia rolar, o personagem de Antônio Fagundes deu um beijo de cinema na Cássia Kis e a música tocou por dois minutos e meio, um tempão para televisão, no horário nobre; eu fiquei emocionado, chorei, mas depois a música nunca mais tocou, pois o personagem de Antônio Fagundes trocou a Cássia Kis pela Regina Duarte; tinha o dedo podre, o Fagundes”. E atacou de “Bandeira” (Zeca Baleiro), com o público cantando junto.
Acompanhado por Rui Mário (piano e sanfona), Lui Coimbra (violoncelo) e Luiz Cláudio (percussão), Baleiro desfilou um repertório de clássicos. De sua autoria e de Ruy Guerra, parceiro de Chico Buarque na música que intitulou o espetáculo, e de quem o próprio Zeca tornou-se parceiro recentemente, ao compor a trilha sonora do musical “Dom Quixote de Lugar Nenhum”, de autoria do brasileiro nascido em Moçambique.
O show foi montado para promover a peça, que estreia em junho no Teatro Oi Casagrande, no Rio de Janeiro, e após temporada no Sudeste, circulará pela região Nordeste no segundo semestre – “incluindo São Luís”, como Baleiro fez questão de frisar. Ele mesmo salientou que aquele era um show único, já que não há perspectiva de se repetir para além da sessão extra, realizada ontem mesmo, fruto da grandiosidade e generosidade do artista. Explico: a sessão de 20h seria apenas para convidados e para o Instituto Cultural Vale, que patrocina a realização de “Dom Quixote de Lugar Nenhum”. Baleiro não via muito sentido em fazer um show fechado em sua própria terra e fez distribuir ingressos para o público em geral, mediante a troca por um quilo de alimento não perecível. Não deu para quem quis e após reclamações gerais e algum tumulto, a produção do artista e a direção do TAA conseguiram garantir uma sessão extra, às 22h.
Baleiro estava à vontade, literalmente em casa e entre amigos. Presença ilustre na plateia, o ator Mateus Nachtergaele, a quem o cantor se referiu como “um dos maiores atores brasileiros de todos os tempos”, e a convite dele, de seu lugar, anunciou “Processo de Conscerto do Desejo”, que apresentará domingo (28), às 19h, no TAA. Nachtergaele sintetizou o espetáculo: “minha mãe morreu quando eu tinha três meses de idade. E deixou uma pasta com poemas, muito bonitos. Ela tinha 22 anos quando se suicidou e hoje eu estou feliz em poder trazer isso a público”. Baleiro perguntou-lhe o porquê de São Luís e o ator não titubeou: “por que esse é um dos teatros mais bonitos do mundo”, elogiou.
Baleiro brincou com as intérpretes de Libras, reconhecendo a importância da acessibilidade cultural em espetáculos. Revelou se interessar mais pela língua brasileira de sinais que por inglês, mas que ainda não tinha tido tempo de estudar. Com uma delas, repassou a letra de “Quase Nada” (Alice Ruiz/ Zeca Baleiro) – que cantou com citação de “Sangue Latino” (Paulo Mendonça/ João Ricardo). “Tem poesia isso aí, o gestual dela”, arrematou.
Zeca Baleiro prestou ainda uma comovente homenagem ao parceiro Celso Borges (1959-2023). “Foi um dos maiores incentivadores da minha carreira e de muitos artistas daqui. Foi um cara que se envolveu com tudo, música, poesia, rádio… São Luís fica um pouco mais triste sem sua presença. Nós fizemos mais de 30 canções juntos e eu gravei algumas poucas. Vou cantar a mais conhecida”, disse, antes de cantar “A Serpente (Outra Lenda)”, esquecendo-se de citar o terceiro parceiro, o percussionista argentino Ramiro Musotto (1963-2009).
“Bárbara” (Chico Buarque/ Ruy Guerra), “Babylon” (Zeca Baleiro), “Ana de Amsterdã” (Chico Buarque/ Ruy Guerra), “Não Existe Pecado Ao Sul do Equador” (Chico Buarque/ Ruy Guerra), “Banguela” (Zeca Baleiro), em arranjo caliente, e “Fado Tropical”, incluindo a sífilis (“que todo general devia ter àquela época”, ironizou Baleiro) censurada pela ditadura militar, foram alguns outros clássicos presentes ao repertório.
Ao fim da apresentação, parte do elenco de “Dom Quixote de Lugar Nenhum” subiu ao palco para apresentar algumas canções da trilha sonora do espetáculo e anunciar o cortejo que acontecerá hoje (26), às 17h, nas imediações da Praça Nauro Machado (Praia Grande). Nesse momento, Zeca Baleiro e Lui Coimbra se juntaram à trupe tocando instrumentos de percussão.
Ainda com atores e atrizes em cena, à guisa de bis, Baleiro anunciou que ia fazer “Telegrama” (Zeca Baleiro), para delírio da plateia, que cantou junto. Após pouco mais de hora e meia o dito popular “tudo que é bom dura pouco” parecia demonstrar sua validade, mas o show precisava terminar para o acesso do público para a segunda sessão, também lotada.
“Apesar de você, amanhã há de ser outro dia” (Chico Buarque)
“É pena eu não ser burro; eu não sofria tanto” (Raul Seixas)
“Meu coração não se cansa de ter esperança”, como cantou o recém-oitentão Caetano Veloso. Ao longo dos últimos quatro anos não foram poucas as vezes em que alertei parentes, amigos e conhecidos – ou deveria chamá-los todos/as de ex? – acerca do bolsonarismo, cuja máquina de mentir é tão perversa que acaba transformando seus próprios entusiastas em vítimas do próprio esquema.
Ainda em 2018 fui tachado por um par de parentes de “fanático”, adjetivo que acompanhava palavras como lulista, petista, dilmista, esquerdista ou comunista. Logo eu, que nunca deixei de fazer justas críticas ao PT e seus líderes enquanto o partido esteve no poder – ao contrário de quem, após um mandato inteiro de desmandos de Jair Bolsonaro, segue aplaudindo-o desavergonhada e acriticamente.
Falo de gente pobre, gente como eu. Não é nem gente remediada, que diante de qualquer emergência possa fazer um saque em uma poupança e resolver um imprevisto. Gente que se nega a perceber que é inaceitável o retorno do Brasil ao mapa da fome, sendo o país um dos maiores produtores de alimentos do mundo; gente que se nega a perceber que é impossível pagarmos tão caro por combustíveis fósseis, sendo o país um dos maiores produtores de combustíveis fósseis do mundo. A quem me lê agora e não simpatiza com Jair Bolsonaro e sua família, peço perdão pelas repetições e redundâncias, mas estas são necessárias, vocês sabem o porquê.
É claro que é muito mais fácil receber uma figurinha engraçada, um meme, um vídeo curto e imediatamente repassar por aplicativos de mensagens e redes sociais em geral. Mas nem sempre o mais fácil é o melhor ou o correto. Ler dá trabalho, interpretar texto dá trabalho, pesquisar dá trabalho – ter consciência de classe, então, nem se fala. Checar, então, se uma notícia é verdadeira ou não, mesmo que isto custe apenas perguntar a algum conhecido, dá muito trabalho.
“Mas esta checagem deveria ser papel dos próprios jornalistas”, uns podem argumentar, não sem razão. Sim, deveria: mas muitos de meus colegas de profissão sucumbiram ao bolsonarismo, mesmo que o líder neofascista seja uma ameaça ao exercício crítico e livre de nossa profissão, além de à nossa própria existência. Fora que não são apenas jornalistas que usam redes sociais, estas ferramentas que têm suas vantagens, mas também deram voz a uma legião de imbecis, como ainda teve tempo de afirmar Umberto Eco (1932-2016).
Um presidente da república é uma referência política, moral e cultural. Para o bem ou para o mal – e esta antítese está bem desgastada, quando a extrema-direita se posiciona como “o bem” para derrotar “o mal” (seja o comunismo, o lulismo, o petismo, a esquerda, os vermelhos), mesmo pecando, ao usar o nome de Deus em vão, para mentir. Cristianismo e bolsonarismo são doutrinas absolutamente incompatíveis.
Jair Bolsonaro se elegeu com a cantilena vazia do pseudocristianismo escondido em um de seus slogans de campanha: “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, esgarçou o versículo bíblico do evangelho de São João. Na prática a teoria é outra e qualquer investigação sobre si ou sua família é colocada em sigilo de 100 anos.
Faço questão de escrever este texto puxando as coisas apenas pela memória, sem consultar links ou reler matérias – fosse citar exemplos cotidianos, uma carta aberta não seria suficiente, melhor seria escrever logo um livro, mas já há excelentes publicações revelando as entranhas do bolsonarismo e seu modus operandi, desde o processo que resultou em sua ida à reserva do Exército até a relação dele e sua família com as milícias cariocas.
O Partido dos Trabalhadores está fora do poder há seis anos e qualquer verdade dita a um simpatizante de Jair Bolsonaro ainda é invariavelmente rebatida com um “e o PT?”, “e o Lula?”, “e a Dilma?”. Em meio a isso, a prisão, covarde, pois injusta, pois sem provas, do maior líder político vivo da América latina, pelas mãos de um juiz e procuradores corruptos, o lavajatismo a serviço do bolsonarismo, cujos objetivos eram tirar das eleições de 2018 o então líder em todas as pesquisas de opinião e alimentar o antipetismo.
Mentiras têm pernas curtas: a farsa caiu, a casa dos golpistas caiu, e o governo Bolsonaro, quatro anos depois de eleito, nada tem para mostrar que tenha beneficiado a vida de qualquer brasileiro, a não ser a do próprio nanopresidente, de seus familiares e aliados de ocasião, cujas burras nunca enchem.
Vivemos há dois anos e meio uma crise sanitária global, com distintos comportamentos em relação a seu combate ao redor do mundo. A opção do Brasil governado pelo neofascismo foi retardar a compra de vacinas enquanto tentava negociar propinas e as sórdidas mentiras de toda ordem do Hitler tupiniquim que acabaram por colaborar para o inchaço do número de óbitos, hoje em mais de 700 mil, muitos dos quais poderiam ter sido evitados, se o adorador de Ustra tivesse agido em prol do povo, em vez de ficar imitando gente morrendo por falta de ar. Tudo indica que a história se repetirá com a varíola dos macacos, infelizmente.
Por vários motivos, diversos gênios da criação artística brasileira faleceram nos últimos anos: Agnaldo Timóteo (1936-2021), Aldir Blanc (1946-2020), Cassiano (1943-2021), Dona Inah (1935-2022), Flávio Migliaccio (1934-2020), João Gilberto (1931-2019), Letieres Leite (1959-2021), Mário Luiz Thompson (1945-2021), Moraes Moreira (1947-2020), Nelson Sargento (1924-2021), Paulo Diniz (1940-2022), Paulo Gustavo (1978-2021), Rubem Fonseca (1925-2020), Sérgio Sant’Anna (1941-2020), Tarcísio Meira (1935-2021). Em nenhum caso o ocupante do Palácio do Planalto decretou luto oficial, lançou nota de pesar ou sequer publicou qualquer coisa em redes sociais, manifestando condolências a familiares e fãs-clubes.
“Que diferença faria?”, poderão me perguntar. É o simbólico que nos diferencia dos animais. E este profundo desprezo pelas artes – tidas como coisa de esquerdistas – é um dos símbolos do fascismo.
Por falar nisso, apesar de este texto se intitular “Carta aberta a parentes e amigos bolsominions”, outra categoria poderia estar no título: não perdoo artistas bolsonaristas. É uma contradição em termos. O desmonte sistemático das políticas culturais – e do próprio Ministério da Cultura – já seria motivo suficiente para que o candidato à reeleição não encontrasse apoio entre a classe. E particularmente acredito que artistas, “as antenas da raça” no dizer de Ezra Pound (1885-1972), sejam bem maiores que bobagens como “mamata da Rouanet” ou “caixa preta do BNDES”.
Falando em mamata, por que é mesmo que quem se indigna com a corrupção só se indigna com a corrupção do PT? Os governos de Lula e Dilma, além dos investimentos em órgãos de controle e fiscalização, criaram o Portal da Transparência e nunca interferiram em aparelhos como a Polícia Federal a fim de livrar quaisquer de seus quadros em investigações. Lideranças petistas foram condenadas, presas, perderam cargos. Ou seja: foram punidos por seus crimes. Resumindo: cortaram na própria carne.
Apesar do desejo de alguns, no Brasil (ainda) não existe pena de morte – quer dizer, até existe informalmente, fora da lei, para a população negra, moradores de periferias e pequenos traficantes. Então o que explica o cinismo de quem até hoje se revolta com uma tapioca comprada com cartão corporativo, mas não se revolta com os milhões torrados diariamente pelo atual mandatário da república, sob a proteção dos sigilos centenários?
Volto aos artistas: aqueles que se respeitam e nutrem respeito por seu público têm lado e assumem. E não se trata de ser petista, lulista, dilmista ou beneficiário de leis de incentivo à cultura através de renúncia fiscal. Trata-se de assumir uma postura diante da encruzilhada civilização x barbárie, autoritarismo x democracia, alegria x tristeza, humanidade x desumanidade. O Brasil é o país da alegria e grande parte dela nos é dada por artistas – imaginem o que teria sido do isolamento social sem as lives, os streamings ou quaisquer outras formas de arte e entretenimento. Como podem artistas apoiarem quem representa a tristeza e a morte? Ou, a esta altura do campeonato, aferrarem-se a uma suposta neutralidade? “Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”, já diria o Nobel da Paz Desmond Tutu (1931-2021).
Polarização existia nos tempos em que Lula e Dilma disputavam eleições contra Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, José Serra e, entre outros, Geraldo Alckmin. Ora, se Alckmin entendeu a necessidade de alianças para livrar o Brasil do neofascismo e do neonazismo, qual é a sua dificuldade em entender?
Há uma barbárie em curso no Brasil, basta acompanhar o noticiário: do capoeirista Moa do Katendê (1954-2018), entre o primeiro e o segundo turnos da eleição de 2018, ao campeão mundial de jiu-jítsu Leandro Lo (1989-2022) no último fim de semana, passando pela vereadora Marielle Franco (1979-2018) e o motorista Anderson Gomes (1978-2018), o bolsonarismo mata. “Ah, mas o presidente não apertou o gatilho em nenhum destes casos”, apelará um/a bolsonarista, que deve, no entanto, acreditar na facada desferida por Adélio Bispo durante (te)at(r)o de campanha de Bolsonaro em 2018. De fato não puxou o gatilho, mas reiteradamente incentiva o ódio e a eliminação física de opositores em discursos, além de ter facilitado o porte e a posse de armas à população em geral, colaborando para o ambiente de terror e guerra civil que o Brasil, mais do que nunca, vive (ou morre?).
Qual terá sido o peso da postura de artistas contrários à ditadura militar brasileira instaurada em 1964 para o fim do regime de exceção em 1985? Obviamente é difícil calcular. Mas sua recusa em calar, que os levou a prisões, torturas, exílios, desaparecimentos e censuras, certamente colaborou para que o pesadelo acabasse. Não há clima, tempo, espaço, nem motivo para neutralidade. Goste-se ou não de Lula, do PT, ou de quaisquer nomes e partidos postos à disputa.
Não é preciso sentir dor para se indignar com a dor alheia. Não é preciso passar fome para se indignar com a fome alheia. Não é preciso ser negro para lutar contra o racismo. Não é preciso ser homossexual para lutar contra a homofobia e a violência que dela decorre. Não é preciso ser indígena para ser contra o desmatamento e o garimpo ilegais na floresta. Não é preciso ser mulher para se indignar contra os assustadoramente crescentes números de estupros e feminicídios. Basta ser humano e ter alguma empatia e alguma consciência de que o estímulo à lei da selva, por ação ou omissão, não nos serve nem nos representa.
Esta singela missiva é um último chamado à razão a parentes, amigos e artistas bolsonaristas. Errar é humano e não é vergonhoso admitir erros. Antes tarde do que nunca. Ainda é tempo de reconstruir o Brasil. Ou ao menos de não deixar terminarem de destruí-lo. Nem simpatizantes e defensores de Bolsonaro aguentariam um eventual segundo mandato deste governo da necropolítica e da destruição sistemática. Até por que, caso esta tragédia aconteça, sequer existirá Brasil. E quem diz/ia que foi enganado em 2018 não vai ter desculpa dessa vez.
Vez por outra o noticiário chama atenção para episódios ultraviolentos, como as infelizmente costumeiras chacinas em escolas dos Estados Unidos (mas não só). É este o mote do delicado “Se algo acontecer… te amo” (“If anything happens, I love you”, 2020, 12 minutos), curta-metragem de animação escrito e dirigido por Will McCormack e Michael Govier, disponível em streaming na Netflix.
Um casal faz uma refeição numa mesa comprida, cada qual numa ponta. A cena revela o esfriar do relacionamento e o consequente distanciamento de marido e esposa após terem perdido o amor comum, a filha, como saberemos adiante, para a facilidade do porte indiscriminado de armas de fogo, infelizmente não mais um privilégio norte-americano.
A partir daí, “Se algo acontecer… te amo” corre em feedback e não tem um final feliz: triste e comovente, é impossível para o espectador não se emocionar ao descobrir a origem do título do filme (o deste texto é verso de “Pedaço de mim”, de Chico Buarque, que ali também canta que “a saudade é o revés de um parto/ a saudade é arrumar o quarto/ do filho que já morreu”), mas também se propõe a refletir sobre a violência, esta chaga de nosso tempo, infame, triste, doido e doído. No fundo, é sobre superação, mas engana-se quem imaginar encontrar a água com açúcar típica de quem tenta vender fórmulas para quem deseja ser feliz – como se elas existissem.
Do nascimento da filha, ao aniversário de 10 anos, passando por boas lembranças entre viagens, brincadeiras, objetos e um gato, a força de “Se algo acontecer… te amo” reside também na ausência de diálogos – tudo se resolve no traço dos animadores Youngran Nho (que assina a direção de animação), Haein Michelle Heo e Julia Gomes Rodrigues e na música.
Max Silva e Marcê Porena se entregam a Chico Buarque. Foto: Zema Ribeiro
Que Chico Buarque de Holanda é um dos maiores gênios da chamada música popular brasileira disso ninguém tem dúvida. Quer dizer, num país em que a ignorância dita as regras e o whatsapp virou noticiário, alguns têm dúvida, sim. Mas, na verdade, Chico nunca foi unanimidade, basta lembrarmos a recorrente pergunta: “Chico ou Caetano?”.
Depois de mais de 50 anos de carreira e o mesmo período alinhado a ideais de esquerda, filho de sociólogo, amigo pessoal de Lula, autor de músicas censuradas durante a ditadura militar iniciada com o golpe de 1964 e ativo personagem na campanha pelas Diretas Já!, um punhado de fãs (ou ex-fãs?) descobriu que o coração de Chico é vermelho como o sangue que pulsa em suas veias, da cor que costumeiramente representa o espectro político que se alinha do lado em que sempre esteve o compositor. Ou seja: atualmente, Chico é menos unanimidade ainda.
Chicólatras são tão fanáticos quanto raulmaníacos. Prova disso foi o que fez o público presente à apresentação do duo Nu’zs, ontem (9), no Teatro Alcione Nazaré (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, Praia Grande): apesar de mais de três quartos das canções apresentadas pelo ex-integrante dO Terço Max Silva (guitarra e programações) e Marcê Porena (voz) fazerem jus ao título do espetáculo – Chico Buarque: um outro olhar – a plateia cantou junto, bateu palmas, vibrou, pediu mais um.
Max e Marcê trajam ternos sóbrios e as novas roupagens com que vestem as músicas literalmente desconstroem o que por vezes está configurado em nossa memória afetiva, no inconsciente coletivo. A pegada eletrônica leva o público a outro olhar, outra audição.
O duo é um casal, para além do palco, o que garante a intimidade no ponto certo, sem vulgaridade, para alguns exercícios teatrais, para além da música, em canções como Terezinha, O meu amor, Folhetim, Sob medida. Em pouco mais de uma hora de apresentação o que não faltam são clássicos.
“Foi difícil escolher o repertório. A gente começou com 13 canções, mas não havia como não aumentar isso. A questão é que Chico Buarque só tem clássicos”, revelou Max. “Esse show é para inspirar vocês a beijar na boca. Pra mim bastou uma música do Chico e hoje eu sou casada e estou no palco com alguém que ama Chico”, Marcê revelou a intimidade.
Às vezes a guitarra de Max parecia ofuscada pela programação eletrônica, mas ele compensou o problema, por exemplo, na versão voz e guitarra de As vitrines. Em História de uma gata (versão de Chico Buarque para a música de Luis Enriquez Bacalov e Sergio Bardotti), da trilha sonora de Os saltimbancos, Marcê deitou no chão e evocou a felina personagem com seus miados. Dedicou a canção a Miúcha, irmã de Chico, uma das vozes da gravação original, recém-falecida.
Um dos maiores momentos do espetáculo foram as releituras de Apesar de você e Cálice (parceria de Chico com Gilberto Gil), cantada no bis, à capela, por uma Marcê deitada no palco, com alusões a uma provável queda da atual ditadura que governa o país.
Antes de cantar a saideira, perguntaram à plateia, que não decepcionou: “vamos cantar a única parceria de Chico Buarque com Sivuca, sabem qual é?”, e foram de João e Maria, após a resposta. Encerraram a apresentação aos gritos, vindos do palco e da plateia, de “Fora Bolsonaro!”, “Lula livre!” e “Viva Flávio Dino!”.
Marcê ainda entoou os versos iniciais de Carcará (João do Vale e José Cândido), reafirmando sua adoração por João do Vale, n/o que também se relaciona com Chico Buarque. Quem precisa de unanimidade quando se está ao lado de quem importa?
Serviço
O duo Nu’zs apresenta o espetáculo Chico Buarque: um outro olhar hoje (10), às 20h30, no Teatro do Boi (R. Rui Barbosa, 339, Matadouro), em Teresina/PI.
A estreia nacional de O processo, aguardado documentário de Maria Augusta Ramos, acontece hoje (17), em todo o Brasil. Em São Luís o filme será exibido no Cine Lume (Edifício Office Tower, Renascença). Por enquanto, o filme tem apenas quatro exibições garantidas na sala: hoje e amanhã, às 18h20 e às 20h40. Sua continuidade em cartaz depende de seu desempenho e fica aqui o puxão na orelha esquerda: melhor ir ver um filme declaradamente de esquerda que ficar a torto e à direita pedindo boicote ao Netflix, ao Padilha e aO mecanismo, não é?
Dito isto, devo dizer mais: O processo é um filme ao mesmo tempo doloroso e hilariante. Doloroso por comprovar a farsa que foi o processo, o impeachment, o golpe, a tomada do poder pelos golpistas. Hilariante por mostrar o quão ridícula e mesquinha é a direita brasileira. E olha que Maria Augusta Ramos fez o filme por dentro do time de defesa de Dilma, isto é, o acesso privilegiado da cineasta foi à esquerda, tomando partido, enterrando de vez a balela da imparcialidade, se é que alguém ainda acreditava nisso.
Mas é um filme honesto. Justamente por isso. Aliás, para ser melhor, talvez apenas se em vez de O processo se chamasse O veredito: ora, só os que insistem na cantilena de que não foi golpe não creem que o destino, não de Dilma Rousseff, presidenta legitimamente eleita, mas o do país, já estava traçado, em um jogo de cartas marcadas. Havia o remédio, era preciso inventar a doença.
Tecnicamente, O processo é um filme relativamente fácil de fazer. Um filme que acompanha os bastidores de figuras de proa na defesa não de Dilma Rousseff, mas da Constituição Federal, da democracia brasileira e das instituições que por elas deveriam zelar. Além da direção e roteiro de Maria Augusta Ramos cabe destacar o trabalho da montadora Karen Akerman.
Às imagens feitas propriamente para o filme, unem-se imagens de arquivos de emissoras de tevês, sobretudo públicas, mostrando o ridículo de votos pró-impeachment como os de Jair Bolsonaro (que dedicou-o a Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido torturador de que a própria Dilma Rousseff foi vítima quando presa política) e Eduardo Cunha (“que Deus tenha misericórdia dessa nação”), o choro cínico de Janaína Paschoal (advogada autora da peça inicial do processo), ao pedir desculpas à presidenta, e a nobreza e elegância de Chico Buarque, presente à sessão de depoimento de Dilma ao Senado, a dar mais uma prova de que o compositor sempre esteve do lado certo da História.
Como bons brasileiros, o ex-Ministro da Justiça e ex-Advogado Geral da União José Eduardo Cardozo, a senadora Gleisi Hoffmann e o senador Lindberg Farias riem no melhor estilo “seria cômico se não fosse trágico”, no decorrer do filme, o que lhes torna mais humanos e portanto mais próximos da parcela de eleitores/espectadores que verá O processo.
Eis um trunfo do trabalho de Maria Augusta Ramos, merecidamente premiado nos festivais de Berlim (terceiro lugar no prêmio do público de melhor documentário), Visions du Réel (Suíça, melhor longa-metragem) e IndieLisboa (melhor longa-metragem, júri popular, em Portugal), entre outros.
Linear e quente, O processo estreia hoje no Brasil, após iniciar uma trajetória bem-sucedida na Europa, citando fatos ocorridos mês passado, com o país sob a égide do golpe político-jurídico-midiático. No meio disso tudo, Dilma Rousseff denuncia o caráter machista e misógino do enredo kafkiano que a destituiu do poder, devolvendo o Brasil à linha da pobreza e transformando-o de potência em piada no cenário internacional.
Michel Temer, o ilegítimo, na cadeira que não lhe pertence desde o início do teatro do golpe, amargando o mais alto índice de impopularidade de um presidente desde a redemocratização (se é que podemos falar nisso no Brasil), não aparece no filme. Uma sacada inteligentíssima de Maria Augusta Ramos, que antecipa o exercício que a História fará muito em breve: colocá-lo no seu devido lugar, de personagem insignificante, apesar de tudo.
Momentos de Chico, eu e Buarque. Fotos: Clarissa Anfevi e Louise Mendes/ Divulgação
Dividido em três atos, o espetáculo de dança Chico, eu e Buarque – Fragmentos poéticos é um mergulho no vasto universo do compositor Chico Buarque, cujos versos de enfrentamento à ditadura militar brasileira nunca ficaram datados, seja por sua genialidade poética em si, seja pelo Brasil nunca ter acertado contas com o passado e vivermos a iminência (?) da repetição da história como tragédia.
Idealizado pelo diretor do Teatro Arthur Azevedo Celso Brandão, dirigido e coreografado por Anderson Couto e realizado pelo Núcleo de Arte Educação (NAE) do TAA, parceria das Secretarias de Estado de Educação (Seduc) e Cultura e Turismo (Sectur), Chico, eu e Buarque marca um novo momento nas artes cênicas do Maranhão e na história do próprio TAA, quando a casa, além de receber espetáculos e produções, produz seus próprios feitos – além deste espetáculo de dança, também o maravilhoso João do Vale – O musical.
11 bailarinos em cena: 10 do corpo do NAE – André Lima, Calina Rubim, Daniel Lima, Geisa dos Anjos, Heide Cabral (que deu nome ao espetáculo nos estudos que o precederam), Isabella Sousa, Kleverson Froz, Weber Bezerra, Miriam Martins e Nuiliane Lago – mais a professora Débora Buhatem, que surge sozinha e leve, para “ficar em teu corpo feito tatuagem”, após a explosão de Geni em Geni e o zepelim, fechando o primeiro ato.
O espetáculo se abre com Construção/Deus lhe pague (1971), em que cenário e luzes simulam o trânsito apressado de operários brasileiros, com todos os bailarinos do NAE em cena. É o bloco das músicas de protesto, longe de panfletos datados: seguem-se Cálice (Gilberto Gil e Chico Buarque, 1978), na interpretação de Chico e Milton Nascimento, Apesar de você (Chico Buarque, 1978), O que será (À flor da terra) (Chico Buarque, 1976), novamente cantada em dueto com Milton, Geni e o zepelim (Chico Buarque, 1979) e a versão instrumental de Tatuagem (Chico Buarque e Ruy Guerra, 1973).
O segundo ato traz à cena o Chico romântico, valorizando trios e pas de deux: Samba e amor (Chico Buarque, 1970), Terezinha (Chico Buarque, 1977), João e Maria (Chico Buarque e Sivuca, 1977) e Todo sentimento (Chico Buarque e Cristóvão Bastos, 1987), quando as flores do cenário descem quase ao chão e uma dançarina brinca com elas, antes de fazê-las novamente voar, alusão ao “sopro do criador” de que falava outro compositor, aqui mais um motivo para celebrar o Chico criador de alguns dos momentos mais sublimes de nossa vasta música popular.
O ato final marca o diálogo da obra de Chico Buarque com os ritmos da cultura popular do Maranhão. Os bailarinos saem de longas fitas – evocando os chapéus dos caboclos de fita do bumba meu boi – nas cores da bandeira jamaicana (afinal de contas celebra-se Chico Buarque na Jamaica brasileira). Ou seria a bandeira do Sampaio Correa aludindo ao tricolor carioca por que torce o compositor?
Neste ato, novas gravações e arranjos (de Rovilson Pascoal) para a obra de Chico Buarque, inserindo os tambores de crioula e mina e o bumba meu boi, a provar que o universo buarqueano é mais vasto e aberto do que sonha a nossa vã filosofia.
Nessa pegada, seguem-se Cotidiano (Chico Buarque, 1971), Paratodos (Chico Buarque, 1993) e Roda viva (Chico Buarque, 1968) – cujo uso a TV Cultura teve desautorizado na abertura do programa homônimo, após a emissora veicular uma entrevista com o ilegítimo Michel Temer (não havia contrato formal com a emissora para uso da canção, mas um acordo verbal entre o autor e o produtor Fernando Faro, falecido em abril de 2016).
Chico, eu e Buarque é um espetáculo político e não poderia deixar de ser, em se tratando do homenageado, autor da trilha sonora. O corpo fala e no palco está mais livre do que nunca, para reinterpretar a riqueza de um verdadeiro craque da canção brasileira – interpretações erradas de uma entrevista que ele deu ao jornalista Fernando de Barros e Silva, para a Folha de S. Paulo, em dezembro de 2004, levaram muita gente a acreditar que Chico Buarque teria decretado “a morte da canção”.
Mas voltemos ao espetáculo, que fecha com outra canção de protesto, cantada até hoje em plenos pulmões carnavais afora: Vai passar (Francis Hime e Chico Buarque, 1984). A arte imita a vida e tudo termina em samba. Que fique o alerta e nossa pátria mãe tão distraída pare de ser subtraída em tenebrosas transações. E a tragédia brasileira deixe de se repetir. Para Chico Buarque seguir atual por outros motivos.
Há vários pontos de interseção entre Carminho canta Tom Jobim [Biscoito Fino, 2016] e Até pensei que fosse minha [MP,B, 2016], discos mais recentes lançados pelos portugueses Carminho e António Zambujo, respectivamente. Ambos, de algum modo, são artistas de exceção: embora entre um círculo restrito, são conhecidos no Brasil, que em termos de música e artistas portugueses, com raras exceções, quase sempre para no Roberto Leal que serve de trilha sonora para danças portuguesas no período junino.
São dois dos maiores compositores brasileiros em todos os tempos relidos por uma das maiores intérpretes da terra de Fernando Pessoa e por um cantor e compositor idem bastante interessante. Ambos já haviam mostrado seus talentos em participações em discos de artistas do lado de cá do Atlântico.
Tanto no disco dela quanto no disco dele há participações especiais de brasileiros: Chico Buarque comparece a ambos (como intérprete e compositor), enquanto ela, além dele (em Falando de amor), recebe Marisa Monte (em Estrada do sol) e Maria Bethânia (em Modinha); já Zambujo tem, além do compositor tributado (em Joana francesa), Roberta Sá (em Sem fantasia) e a conterrânea Carminho (em O meu amor).
Até pensei que fosse minha. Capa. Reprodução
Em Carminho canta Tom Jobim, ela é acompanhada pela brasileiríssima Banda Nova: Paulo Jobim (violão), Daniel Jobim (piano), Jacques Morelembaum (violoncelo) e Paulo Braga (bateria). Em Até pensei que fosse minha – título tirado de um verso de Até pensei –, Zambujo é acompanhado por um time que mescla portugueses e brasileiros. Entre os virtuoses de cá estão Ronaldo do Bandolim, Zé Paulo Becker (violão) e Marcelo Gonçalves (violão sete cordas, divide com Ricardo Cruz a produção e assina a direção musical e arranjos), mais conhecidos como Trio Madeira Brasil, além de Marcelo Caldi (acordeom) e Paulino Dias (percussão).
Os tributos fogem do óbvio, vão além do superficial. As seleções de repertório, por exemplo, ultrapassam o mero “o melhor de”, e as releituras não desconstroem músicas já cristalizadas no imaginário do brasileiro. Em Carminho canta Tom Jobim, entre outras, Inútil paisagem, Triste, Sabiá, Luiza e A felicidade; em Até pensei que fosse minha, Futuros amantes, Injuriado, Cecília, Cálice, Januária, João e Maria, Tanto mar e Valsinha.
Com estes dois discos, Portugal redescobre um pequeno e importante pedaço de Brasil. Espero que o Brasil (re)descubra Portugal, para além deste comprovadamente talentoso par de artistas. E além: que o Brasil, cada vez mais, (re)descubra o Brasil.
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Veja o videoclipe de João e Maria (Chico Buarque/ Sivuca), com António Zambujo:
De gerações distintas, são dois craques da música brasileira. Um, gênio da composição, letrista e melodista esmerado, que também interpreta; outro, instrumentista inventivo e habilidoso, renovador de seu instrumento, inventor do bandolim de 10 cordas, que também compõe.
Dois de Holanda, ambos cariocas, o tributado Chico Buarque, e Hamilton, que lhe presta homenagem. O encontro – literal, já que o homenageado canta em duas faixas – não poderia ser diferente do ousado Samba de Chico [Biscoito Fino, 2016].
Se por um lado, a quem lê o repertório na contracapa, antes de ouvir o disco, pode parecer o que de fato é, um best of Chico Buarque, com todas as músicas por demais conhecidas e bastante assobiáveis – com exceção da faixa que dá título ao disco, da lavra de Hamilton de Holanda –, é justamente aí que mora o perigo, explicado em texto no encarte: “o desafio foi grande e agradável. Gravar um disco de músicas com letra, todas bastante conhecidas, sem letra, instrumental. O objetivo era encontrar um novo caminho para chegar ao mesmo destino: a emoção”. Missão cumprida.
Chico Buarque é autor solitário de quase todo o repertório. Em parceria apenas Piano na Mangueira (com Tom Jobim), Atrás da porta e Trocando em miúdos (ambas com Francis Hime). Ele próprio volta a temas que há tempos não cantava e afaga as mãos que lhe homenageiam: empresta sua voz a A volta do malandro e Vai trabalhar, vagabundo, endossando o álbum.
No geral mantendo-se fiel aos arranjos originais, Hamilton de Holanda (bandolim 10 cordas e direção musical) é acompanhado por Thiago da Serrinha (percussão), Guto Wirtti (contrabaixo acústico) e André Vasconcelos (contrabaixo acústico). Além do homenageado outros convidados são o pianista italiano Stefano Bollani (em Piano na Mangueira e Vai trabalhar, vagabundo) e a cantora catalã Silvia Perez Cruz (em Atrás da porta e O meu amor), garantindo charme extra com seu português com sotaque.
O projeto gráfico de Samba de Chico tem um mercado como locação. “Claro que não foi uma fácil escolha de repertório, daria pra gravar vários discos com sambas de Chico”, adverte o mesmo texto. Não faça ouvidos de mercador a esta seleção, eis o cofo com as escolhas de Hamilton de Holanda, no ano em que se celebram seus 40 anos de vida e os 100 anos de samba.
João Miguel na pele do jornalista Ernesto. Frame. Divulgação
Quase memória [drama, Brasil, 95 min.] é caminhar no pântano: nem sempre se pode confiar onde se está pisando. Será verdade tudo o que lembramos?
O filme de Ruy Guerra baseado no romance de Carlos Heitor Cony é esta tensão entre o claro e o escuro, lembranças vívidas e lapsos, lacunas, o que o título nos entrega de bandeja.
Quase memória, o livro, é, em termos de vendagem, título brasileiro raro, quase na casa do meio milhão de exemplares vendidos.
O filme é uma livre adaptação, em que Carlos Campos (espécie de alter-ego cinematográfico do escritor) conversa consigo mesmo neste exercício de reconstrução da memória. Ele é Tony Ramos – em estupenda interpretação – e Charles Fricks, num longa que conta ainda com atuações de João Miguel e Mariana Ximenes.
O Carlos velho ouve no rádio o decreto do ato institucional nº. 5, em 13 de dezembro de 1968, o que deixaria a ditadura ainda mais dura, perdoem o trocadilho infame; o Carlos jovem vê na tevê a notícia da morte do piloto brasileiro de fórmula 1 Ayrton Senna em 1º. de maio de 1994.
Sem compará-los são dois momentos trágicos da vida pública nacional, estopim para o diálogo que Carlos terá consigo mesmo ao longo de uma noite e uma madrugada. O relógio bate seis vezes marcando a hora da Ave Maria e o início do diálogo e, dia amanhecendo, garrafa de uísque vazia, seis vezes anunciando a chegada da manhã.
Jornalista, Cony é filho de jornalista, e livro e filme acabam sendo, também, uma declaração de amor ao ofício cada vez mais avacalhado nestes tempos sombrios – se o blogueiro parece pessimista, a adaptação não.
Há humor nas lembranças que Carlos tem do pai em diversos momentos marcantes de Quase memória, mesmo os trágicos, como o crítico de teatro Mário Flores (Júlio Adrião), que morre vítima de infarto ao saber de sua demissão por notícia do jornal em que havia dedicado três décadas a óperas e que tais. Noutra passagem, Ernesto (João Miguel), pai de Carlos, é promovido a autor da coluna de obituários, após imaginar (e publicar) o discurso de um padre – que acabou morrendo sem proferi-lo.
Parceiro de Chico Buarque em músicas como Tira as mãos de mim, Bárbara, Fado Tropical, Ana de Amsterdam, Tatuagem e Não existe pecado ao sul do Equador, Ruy Guerra já havia adaptado ao cinema um livro do escritor: Estorvo [2000].
Quase memória pré-estreia na abertura da oitava edição do festival Maranhão na Tela, com exibição gratuita e aberta ao público dia 21 de março, às 19h, no Teatro João do Vale (Rua da Estrela, Praia Grande).
Homem de vícios antigos assistiu o filme a convite da produção do festival.