Conflitos maranhenses

Em busca do bem viver. Capa. Reprodução

 

Com grata satisfação, vi hoje (31), mais uma vez, o Cine Praia Grande (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, Praia Grande) lotado para a exibição de mais um documentário produzido no Maranhão. Desta vez, Em busca do bem viver, com roteiro, edição e direção de Murilo Santos, papa do cinema documental maranhense, tendo sido mesmo um de seus pioneiros. O filme foi realizado por encomenda das Pastorais Sociais do Maranhão, braços sociais da Igreja Católica.

O filme remonta à 12ª. Romaria Estadual da Terra e das Águas, realizada em Chapadinha/MA, em 2015. Este é o ponto de partida para um passeio nada agradável por todo o Maranhão, em todas as suas regiões. Situações de conflito e luta pela terra, com a batalha desigual de comunidades contra o capital, seja o agronegócio, as irmãs mineração e siderurgia ou a exploração de gás, entre outras.

Em busca do bem viver traça um panorama do Maranhão desde que grandes projetos começaram a se instalar no estado – por exemplo o Projeto Grande Carajás, com a estrada de ferro homônima –, sob as bênçãos da Lei Sarney de Terras, promulgada pelo governador de plantão, que não à toa dá nome à lei, que acabaria por transformar a zona rural do Maranhão numa terra sem lei, gênese de grande parte das questões que sobreviveriam às décadas seguintes.

Perpassa ainda as histórias de mártires como Flaviano Pinto Neto, liderança da comunidade quilombola de Charco, em São Vicente Férrer, ou Elias Zi, liderança sindical do município de Santa Luzia, ambos assassinados a tiros, em 2010 e 1982, respectivamente. Este, tema do documentário curta-metragem Quem matou Elias Zi? (1986), de Murilo Santos, o que o torna uma autoridade em se tratando de conflitos agrários – e do uso do cinema como ferramenta de documentação e denúncia – no Maranhão, sendo autor de pelo menos mais um filme fundamental sobre o assunto: o clássico Bandeiras verdes (1988), narrado por Paulo César Pereio.

Por falar em narração, quem empresta a voz aos relatos de Em busca do bem viver é a cantora Lena Machado, que divide o tempo entre a carreira artística e o Secretariado Executivo na Cáritas Brasileira Regional Maranhão. Na trilha sonora, o filme de Murilo Santos une Joãozinho Ribeiro, compositor cuja vida e obra são marcadas pela denúncia de arbitrariedades, e Zé Vicente, poeta popular fortemente ligado ao catolicismo.

No entanto, nem tudo é tragédia ao longo dos 52 minutos de Em busca do bem viver. Estão postas ali as estratégias de resistência, avanços e a conquista da terra e de direitos de algumas comunidades. Que, como de resto o próprio filme, sirvam de exemplo para a continuidade das lutas das demais.

Serviço

O dvd Em busca do bem viver pode ser adquirido nas sedes da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) Regional Nordeste 5 (Rua do Rancho, Centro), Cáritas Brasileira Regional Maranhão (Rua do Alecrim, 343, Centro), Conselho Indigenista Missionário (Cimi/MA, Rua do Pespontão, 99, Centro) e Comissão Pastoral da Terra (CPT/MA, Rua do Sol, Centro), em São Luís/MA.

O poder transformador

Mulheres que transformam a ilha. Cartaz. Reprodução

 

A estreia do documentário Mulheres que transformam a ilha lotou duas sessões no Cine Praia Grande (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, Praia Grande), na noite de hoje (30). Não é pouca coisa.

Temas urgentes, empoderamento, autonomia e protagonismo femininos são levados à tela de maneira didática, com pitadas de bom humor e muita sabedoria: em um filme majoritariamente feito por mulheres, as mulheres têm vez e voz.

Filme feito por mulheres, mas não (apenas) para mulheres: nós, homens, temos muito o que aprender ali. O documentário de 32 minutos é tecido a partir das percepções e falas de empreendedoras sociais que atuam em São Luís, em diversos segmentos.

“Ser mulher e ser negra é ser vista por dois véus: o véu do machismo e o véu do racismo”, aponta, de cara, uma das entrevistadas. Outra comenta o risco pedagógico da desistência: se uma empreendedora desiste, não está apenas desistindo, pode estar fazendo outras mulheres desistirem, deixarem de acreditar em seu potencial. “Eu estou com 66 anos, eu faço o que eu quero, o que eu gosto, eu me governo”, afirma outra.

Há relatos tristes, como o de uma mulher, em um município do interior do Maranhão, que foi impedida pelo marido de continuar em uma atividade nos moldes das reveladas pelo filme, pois isto estaria prejudicando os afazeres domésticos. O equilíbrio na divisão de tarefas advogado pela representante da ONU entrevistada poderia resolver essa questão, realidade infelizmente ainda mais comum do que se imagina.

Mulheres que transformam a ilha tem direção e roteiro de Monique Moraes, bacharel em Administração pela UFMA. A equipe técnica do filme se completa com Quilana Viégas (fotografia), Ingrid Barros (fotografia) e Luiza Fernandes (edição e roteiro).

A exemplo das mulheres, negócios e histórias trazidos à tela, Mulheres que transformam a ilha envolveu uma rede de colaboradores para sua realização, incluindo parcerias. A TV Assembleia (uma das parceiras) deveria exibi-lo, ampliando seu alcance (o filme será disponibilizado no youtube, no canal Su casa, mi causa), pois é um filme que merece ser visto por mais gente.

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Veja o teaser:

Terra de Ford, terra de ninguém

Divulgação

 

Voraz leitor de Tex Willer desde a infância, é em algo comum nas histórias do ranger que penso imediatamente ao ver Fordlândia [Brasil, 2008, 49 min.], documentário de Marinho Andrade e Daniel Augusto.

Nas HQs presenciamos constantemente o surgimento e abandono de vilarejos, principalmente ao redor da exploração de ouro e da instalação de ferrovias. O filme conta a história de uma cidade construída por Henry Ford na década de 30 do século passado, em pleno Pará, palco de outro Eldorado de triste memória.

Para tanto, a dupla de cineastas faz vir dos Estados Unidos Charles Townsend, nascido em Fordlandia, filho de um funcionário da Ford. O filme acompanha esse reencontro – a cena em que ele cumprimenta América, sua babá, com tapas no ombro e um abraço, é comovente para personagens (que vão às lágrimas) e espectadores. Fordlândia ainda tem uns poucos moradores, mas é o espírito de cidade fantasma que lhe habita.

A estratégia de Ford, que gastou alguns milhões de dólares na empreitada, era ter seu próprio seringal, para suprir a necessidade crescente de sua produção – no Brasil o ciclo da borracha já havia se encerrado, mas o empresário americano, dono da então maior indústria do planeta, acreditou que era possível revivê-lo artificialmente. Deu-se mal: uma praga dizimou os milhões de seringueiras, antecipando a derrocada. Famílias foram embora abandonando casas, móveis e talheres.

Fordlândia dá muito pano pra manga. A partir dele é possível pensar temas caros para a nossa sociedade, inclusive levando em conta a égide golpista, tendo em vista o incentivo ao desmatamento amazônico garantido pelo governo ilegítimo. Enriquecido por depoimentos do sempre combativo jornalista Lúcio Flávio Pinto, temas como urbanismo, planejamento urbano, capitalismo, migrações, trabalho e cultura – reparem num insólito bumba meu boi – passeiam pela geografia paraense, onde um dia se tentou produzir látex em modo fordista.

Bons documentários, como este de Marinho e Andrade, não se fazem em série. Este torna-se único ao abordar tema inusitado sob perspectiva idem.

Serviço

Fordlândia será exibido amanhã (22), às 18h, no auditório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (Uema, Rua da Estrela, Praia Grande), com entrada franca. Após a sessão haverá debate com o diretor Marinho Andrade, com mediação do professor Frederico Lago Burnett.

 

Veja o trailer:

Laerteficando

 

Laerte é uma das mais instigantes artistas brasileiras em todos os tempos. Em mais de 40 anos de carreira, sua obra, diversa, sempre dá o que pensar, sobretudo no campo político – identificada com a esquerda, já percorreu uma ditadura militar, diversos passaralhos e agora o golpe em curso no Brasil. Está sempre em mutação. Ou melhor dizendo: em evolução.

Artista e obra confundem-se, sobretudo a partir de quando ela revelou-se crossdresser. O grande trunfo de Laerte-se, de Eliane Brum e Lygia Barbosa da Silva [documentário, Brasil, 2017, 100 min.], primeiro longa-metragem brasileiro do Netflix, é justamente não tentar explicá-la, nem rotulá-la. O que redundaria em simplificá-la.

É Laerte na intimidade, entre um cotidiano prosaico – brincar com os netos, as gatas, passar café, a reforma da casa, visitas ao filho Rafael Coutinho –, lembranças da infância, pontuadas por vídeos caseiros, o trabalho – a artista desenha diante das câmeras e algumas tiras e cartuns clássicos aparecem – e o corpo – ensaios fotográficos, compra de roupas e depilações são também mostrados, sem exageros ou sensacionalismo.

Além de desenhista consagrada – e sempre decisiva – já há algum tempo Laerte arrisca-se na televisão: apresenta o Transando com Laerte no Canal Brasil, programete de entrevistas de 15 minutos. Em Laerte-se, ela experimenta o outro lado. Percebemos certa timidez, não ensaiada. O filme começa com uma troca de e-mails entre ela e Eliane Brum, ela tentando fugir de uma sessão de gravações, até que a documentarista convence-a de que não era adiar que ia deixá-la mais à vontade.

E é assim que a encontramos, em geral, ao longo da hora e 40 de documentário: sentada no sofá de casa, conversando, ou entre pincéis e lápis, usados em diferentes tipos de papel ou no corpo – lápis de sobrancelha, delineador, batom.

Ao depoimento de Laerte somam-se trechos de entrevistas, debates, protestos e a Ocupação dedicada à sua obra, no Itaú Cultural, em que ela desfila suas opiniões – também em construção. Além de em evolução, estamos diante de uma artista em descoberta, em autodescoberta, sempre honesta: “eu demorei a fazer isso. Foram 60 anos. Que risco eu corro a esta altura?”, indaga(-se) numa passagem.

Ao transgredir convenções e levar sua própria vida para suas tiras e cartuns – vide o personagem Hugo/Muriel –, além de em evolução, Laerte tornou-se também uma artista em experimentação. Mesmo que ela considere tardio ou fácil, talvez por pura modéstia, é ousado, sim. São alarmantes os índices de violência contra mulheres, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais e Laerte, com sua atitude, mesmo sem querer, acaba se transformando em ícone da luta por empoderamento destes segmentos.

Em Laerte-se também não se tenta santificar sua protagonista: ela reconhece, por exemplo, sem perder o bom humor, que permeia o filme, já ter protagonizado alguma hostilidade a homossexuais, do que hoje se arrepende e se envergonha, para voltarmos ao quesito evolução.

Já imagino o discurso preconceituoso e raivoso dos que preferem ter excrescências como mito, mas ao contrário do que algumas mentes doentias possam imaginar, o imperativo do título não indica uma aula de como mudar de gênero ou coisa que o valha. Laerte-se é uma aula de diversidade, transgressão, afeto e bom humor. Basta estarmos dispostos a aprender um pouco.

Denis Carlos lança documentário em sessão gratuita hoje (27)

 

Penetrar o desconhecido e mágico território do sagrado. É o que faz o documentarista Denis Carlos em Iemanjá pela última vez [Brasil, 2016, 31 min.], que conta a história de Allana Karoline, que durante alguns anos vestiu-se para celebrar Iemanjá, nas festas devotadas à divindade no Terreiro da Fé em Deus, conduzido por Mãe Elzita – fotografada por Márcio Vasconcelos em Zeladores de voduns.

A pequena e febril Karol teve uma visão. Era um chamado e logo o mal-estar foi embora. A partir de então, uma demonstração prática e bonita de sincretismo cultural e religioso: a procissão de Nossa Senhora da Conceição, além de anjos, tinha agora a rainha do mar.

Denis Carlos faz valer a máxima que se tornou um clichê – e seu filme passa longe de qualquer clichê –, uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, para acompanhar o último ano de Karol como Iemanjá, como entrega o título. Não é um salto no escuro, o documentarista tem domínio da situação, deixa suas personagens à vontade – inclusive um gato que encara a câmera para depois se afastar como se nada tivesse acontecido –, num filme bonito em sua simplicidade, como o terreno pelo qual se aventura.

O toque de mina, o cântico católico, o samba “profano”, a banjo, saxofone e trombone, e a prova de que é possível o convívio harmônico entre os diferentes, num tempo em que o ódio é uma espécie de vírus propagado pelo ar e pelas ondas.

Há solenidade e emoção quando outra garota assume o papel de Iemanjá. Onde às vezes tudo o que se exige é respeito, Denis Carlos vai além e dá uma importante contribuição para o cinema do Maranhão, as religiões de matriz africana e a superação de preconceitos, sem ser panfletário, com a beleza e leveza que queremos ver quando vamos ao cinema.

Serviço

Iemanjá pela última vez será lançado em sessão hoje (27), às 19h, no Cine Teatro da Cidade de São Luís (antigo Cine Roxy, Rua do Egito, Centro), com entrada gratuita.

Do Maranhão ao Arizona

Sobrenatural. Capa. Reprodução
Sobrenatural. Capa. Reprodução

Em Sobrenatural: Impressões sobre os Lençóis Maranhenses e o Grand Canyon [2016], o fotógrafo Meireles Jr. volta às paisagens dos Lençóis Maranhenses, já abordado por suas lentes em Descobrindo os Lençóis Maranhenses [2003]. Desta vez, o maranhense viajou também até o Grand Canyon americano e os dois parques, dois dos cenários naturais mais impressionantes do mundo, são o objeto deste seu novo livro.

Conhecemos causos (verídicos) em que o clássico Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, foi parar nas estantes de botânica, ou que os poemas do Manual de pintura rupestre, de Fernando Abreu, foram parar em artes plásticas. Convém, portanto, alertar o leitor: Sobrenatural é basicamente um livro de fotografias de paisagens. Obviamente, em se tratando do Grand Canyon americano e dos Lençóis Maranhenses, estamos diante de algo sobrenatural, isto é, “superior à natureza”, em uma das acepções do termo. Mas isto não explica tudo.

“No Canyon, ora perdido, uma índia nativa sugeriu que nós […] a seguíssemos até o lugar de meu destino naquela noite fria no estado do Arizona. Não hesitei. Pareceu-me um gesto seguro e generoso. Seguimos seu carro sem perdê-lo de vista um só instante até pararmos, mas, para o nosso espanto, quando fomos lhe agradecer, inacreditavelmente não era mais a índia que nos oferecera ajuda, mas sim um senhor velho e soturno que saíra do carro. Arrepiamo-nos todos, pensativos e silenciosos. Senti, a partir desse evento inusitado e até agora inexplicável, que o livro só poderia se chamar Sobrenatural”, explica o autor, em texto no livro.

Realizado com patrocínio da Fribal através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura do Maranhão, Sobrenatural começou a ser produzido em 2013, quando o autor participou da Wedding and Portrait Photography Conference & Expo, a WPPI, na sigla em inglês, Conferência e Exposição de Fotografia de Casamento e Retrato, em tradução livre – entre um livro e outro, Meireles Jr. é um dos fotógrafos maranhenses mais requisitados para casamentos, batizados e eventos similares.

Sobrenatural traz encartado um dvd, documentário/making of, dando ideia da dimensão do trabalho. Para chegar ao resultado final, Meireles Jr. fez mais de 54 mil imagens entre o Maranhão e o Arizona.

Veja o documentário:

Filhos de Freud

Documentário traça rico painel da psicanálise no Brasil

[O Imparcial, ontem] 

 

Hestórias da psicanálise. Cartaz. Reprodução
Hestórias da psicanálise. Cartaz. Reprodução

A princípio, o título Hestórias da psicanálise – Leitores de Freud [documentário, Brasil, 2016, 96 minutos; em cartaz no Cinépolis São Luís Shopping] pode afastar espectadores que não se julguem conhecedores da obra do pai da psicanálise, mas o que vemos no filme de Francisco Capoulade, ele também psicanalista, é um desfile de depoimentos sobre diversos aspectos da obra e vida do importante pensador austríaco.

Sérgio Paulo Rouanet, que empresta nome à controversa lei federal de incentivo à cultura, sancionada quando ele era secretário da Cultura do governo Collor, inicia aproximando o universo de Freud do de Machado de Assis, quando relata ter recomendado a alguém, ao fim de uma palestra, livros do bruxo de Cosme Velho, insistindo na dica quando é aprofundado o recorte: “mas eu estava falando de psicanálise”, disse sua interlocutora, ao que ele repete, “Machado de Assis”.

É uma espécie de senha para o elogio da linguagem em Sigmund Freud. Não são poucos os relatos dos que se apaixonaram pelo autor pela forma como ele escreve, a despeito de, a princípio, não terem entendido nada – não é um filme baseado em achismos, estamos diante de autoridades quando o assunto é o legado freudiano, uma espécie de mapa psicanalítico do Brasil, cujas belas paisagens, ao lado de Áustria e Alemanha, ligam os diversos capítulos que formam a película, passeando, além do personagem lido, por temas como cultura, história e tradução – não à toa o trocadilho do título do filme, que começa com o vai e vem da maré e vozes sobrepostas dialogando em alemão, língua em que Freud escreveu toda a sua obra.

É uma espécie de desnudamento de Freud – autor para o qual o sexo, “assunto popular”, é tão caro – para iniciados ou não, a partir de particularidades do pensamento brasileiro, em que o autor é, de algum modo, popular, mesmo entre os que nunca o leram ou nunca frequentaram um divã. Impossível não lembrar o “Freud explica” com que Zé Ramalho pontua sua Chão de giz, quase um dito popular.

Depoimentos, entre outros, de André Carone (filósofo e tradutor), Christian Dunker (psicanalista e escritor), Cristiana Facchinetti (psicanalista e historiadora da psicanálise), Hannes Stubbe (psicólogo e escritor), Joel Birman (psicanalista), Lúcia Valladares (psicanalista e historiadora da psicanálise), Luiz Alberto Hanns (psicanalista e tradutor), Lya Luft (escritora), Mário Eduardo C. Pereira (psicanalista e psiquiatra), Paulo César de Souza (germanista e tradutor), Ricardo Goldenberg (psicanalista e escritor) e Terêncio Hill (psicanalista e pensador) ajudam a compor um rico – e brasileiríssimo – painel sobre a importância, pluralidade, popularidade e atualidade de Freud.

É um documentário convencional e um pouco cansativo, os depoimentos seguindo-se, um após o outro, na montagem do rico painel. Necessário para, desta vez, em vez de algo ser explicado por Freud, tentar entendê-lo.

Veja o trailer:

Fazendo do mundo um lugar mais legal pra viver

Fábrica de Animais. Capa. Reprodução
Fábrica de Animais. Capa. Reprodução

 

Melhor nome de banda desde a Isca de Polícia do saudoso Itamar Assumpção, a Fábrica de Animais acaba de lançar seu segundo disco, pelo mítico selo Baratos Afins, de Luiz Calanca. O álbum, a exemplo do de estreia, leva apenas o nome da banda, inspirado no romance que o ator e escritor Edward Bunker escreveu quando de sua passagem pela penitenciária americana de San Quentin.

A máxima dos Stones se aplica perfeitamente à banda paulista: é só rock’n roll, mas eu gosto. Na verdade é mais que rock: Flávio Vajman (gaita), Cristiano Miranda (bateria), Fernanda D’Umbra (voz), Caio Góes (contrabaixo) e Sérgio Arara (guitarra) fazem um rock vigoroso, com pitadas de blues e letras de alta voltagem poética.

Seguindo a trilha das referências, umas mais, outras menos explícitas – capa e ilustrações são assinadas por Angeli –, Hendrix é a primeira palavra que ouvimos no disco, em De quando lamentávamos o disco arranhado (Beatriz Provasi/ Fábrica de Animais), sua faixa de abertura. Um delicioso rock’n roll sobre o fim de um relacionamento e seus símbolos.

Jogo de dardos (Marcelo Montenegro/ Cristiano Miranda) também é sobre separação: “saca só o tamanho do estrago/ o que tá escrito na fita não é o que tá gravado/ pode levar o Crumb/ eu só quero ficar com esse jogo de dardos”.

Tudo errado (Fernanda D’Umbra/ Fábrica de Animais) é um blues visceral sobre um amor impossível e cita Roberto Carlos de raspão: “eu sei, eu tô acostumada a sair sem pagar/ voltar de madrugada pro mesmo lugar/ passar os dias latindo em frente ao seu portão/ tá tudo errado”.

Noite daquelas (Marcelo Montenegro/ Sérgio Arara/ Fábrica de Animais) dialoga com Diversão (Sérgio Britto/ Nando Reis), hit dos Titãs: “posso até te ligar pra te convidar/ mas só de ouvir meu alô, você vai sacar/ que hoje não tem jogo nem beijo de novela/ pois hoje o que eu preciso/ é de uma noite daquelas”. A atriz band leader encarna a personagem protagonista da faixa numa interpretação de total entrega, afinal uma marca da grande cantora que é, e precisa urgentemente ser descoberta por mais gente Brasil afora – torço para que De carona com Fábrica de Animais (veja trailer ao fim deste post), documentário de Edson Kumasaka (autor da foto da banda no encarte do disco), tenha sucesso no In-Edit Brasil e cumpra esse papel.

Se bem observarmos, o amor permeia todo este Fábrica de Animais, o disco. Erro (Sérgio Arara) talvez seja um de seus nomes possíveis, não dizem que ele é cego? “Tem um erro encravado na parede da sala/ que atravanca minha vida/ que me fode em nome do amor”, dispara a letra, para arrematar: “erro, tente esquecer/ aceite sua sorte/ encare sua morte/ tenha ele o nome que for”.

A esperançosa Tarde demais (Cristiano Miranda/ Rubens K), uma das mais “tranquilas” do álbum, é sobre o amor possível: “tarde demais você falou algumas coisas banais/ não importa o que aconteça/ tarde demais você falou algumas coisas legais/ e era o que eu mais precisava”.

A irônica Água salgada (Fernanda D’Umbra/ Fábrica de Animais) evoca melodicamente Raul Seixas e toda a pré-história do rock, de nomes como Carl Perkins, W. Penniman e Neil Sedaka, entre outros, lembrada pelo baiano em 30 anos de rock (1973). “No meio do mar não adianta chorar/ o que não falta aqui é água salgada”.

Em Ritalina (Fernanda D’Umbra/ Sérgio Arara) a quase homônima Rita Lee é citada: “não vou mais ouvir Rita Lee/ vou tomar ritalina”, diz a letra, citando a droga hoje bastante popular, em meio a “prestar atenção nos detalhes desse mundo chato” e suas coisas aparentemente simples.

Som cafona (Sérgio Arara) é uma espécie de blues abolerado, mais uma faixa sobre fim de relacionamento e o balanço natural a que normalmente são levados os que passam por isso.

Nervosa, Bossa nóia (Sérgio Arara) fecha o disco em meio a mais um fim de relacionamento, e talvez a vontade de voltar, dialogando com Malandragem (Cazuza/ Frejat), sucesso de Cássia Eller: “princepezinho virou sapo, tchau!/ tem chulé meu sapato de cristal/ no truco nunca serei ás de paus/ essa vida é engraçada/ quando alguém sonha com fadas/ tem-se a sensação de não viver/ só que a minha fada é foda”.

Fechar o disco é modo de dizer: uma faixa escondida, sem título, explode num rock alucinante, escancarando o modus operandi punk da Fábrica de Animais. “Eu não tenho dinheiro”, repetem o verso carma, o que nunca foi uma desculpa para deixar de fazer, enquanto desconstroem símbolos do conforto da classe média.

Violentar o status quo foi desde sempre uma tarefa que coube ao bom e velho rock’n roll. “Vou prestar atenção nos detalhes desse mundo chato”, voltamos à letra de Ritalina, a Fábrica de Animais subvertendo-os e ajudando a tornar este mundo um lugar menos chato pra viver.

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Assista trailer de De carona com Fábrica de Animais, documentário de Edson Kumasaka:

Mostra universitária revela uma nova geração do cinema do Maranhão

Realizadores, debatedores e professores ao fim da jornada cinematográfica da Estácio. Foto: divulgação
Realizadores, debatedores e professores ao fim da jornada cinematográfica da Estácio. Foto: divulgação

 

Na noite da última segunda-feira (5) participei, na condição de debatedor, de uma jornada cinematográfica promovida pela Faculdade Estácio de São Luís. A convite da professora Márcia Alencar, dividi a mesa com a antropóloga Rose Panet, o jornalista Gilberto Mineiro e o diretor do Cine Praia Grande – que abrigou o evento – Raffaele Petrini, sob mediação do jornalista Paulo Pelegrini, também professor da instituição.

Entre 20h e 21h30 vimos seis documentários de curta-metragem realizado por estudantes da Estácio – os filmes eram frutos de trabalhos acadêmicos apresentados à disciplina Linguagem e Roteirização para Audiovisual, ministrada por Márcia Alencar.

Os 120 lugares do cinema foram poucos para abrigar tanta gente que foi prestigiar os trabalhos. Cada filme abordou um aspecto diferente (de parte) da história (da ilha) de São Luís.

Comida de terreiro abordou o aspecto gastronômico, sua variedade, riqueza e delícia, como parte integrante e importante de rituais em casas de culto afro, com depoimento de pai e filha de santo, antropóloga e nutricionista.

No caminho do Piranhenga, com uma pegada de filme publicitário, revela um ponto turístico pouco conhecido pelos ludovicenses, apesar de bastante próximo do Centro da cidade e com acesso relativamente fácil, inclusive de ônibus: o sítio que dá nome ao documentário. São abordados aspectos históricos e arquitetônicos, perpassando as histórias dos proprietários e o período da escravidão – a equipe mostrou  a casa grande, a senzala onde os escravos ficavam confinados e os poços usados para o abastecimento da propriedade, quando ali funcionava uma fábrica de cal.

Bondes de São Luís resgata a história do antigo meio de transporte, desde a tração animal até ser completamente abolido, dando lugar principalmente a ônibus, com todos os problemas do serviço de transporte público da capital maranhense, e carros novos – o transporte particular, quase sempre individual, acaba sendo uma das principais maneiras de se buscar fugir do caos, no entanto contribuindo para problemas como os constantes engarrafamentos em determinados horários e locais da ilha. Destaque para o depoimento do professor Henrique Borralho, do departamento de História da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Impossível aos espectadores não imaginar como seria hoje um passeio de bonde pelo Centro Histórico de São Luís, valorizando o turismo e colaborando para a solução de (parte dos) problemas de mobilidade urbana.

Timbuba – a vida no shopping guarda, já no título, uma irônica surpresa: antes de ver o filme o espectador é levado a pensar no ambiente climatizado de um shopping center, mas o shopping a que se referem os protagonistas é o lixão de Timbuba, na cidade balneária de São José de Ribamar. É como os próprios catadores de materiais recicláveis referem-se a seu local de trabalho, revelando o que Cesar Teixeira já havia cantado em Shopping Brazil [2004] e um bom humor inimaginável para quem trabalha em ambiente e com materiais e condições tão adversos. Personagem principal do documentário, o senhor Ribamar, xará do padroeiro, estava na plateia e foi aplaudido pelos presentes.

Casa das tulhas conta parte da história da secular Feira da Praia Grande, mais antigo comércio do tipo em São Luís. A equipe entrevista o folclórico Corintiano, feirante famoso por sua devoção ao Corinthians Paulista e ao Sampaio Correa – ele dá seu depoimento trajando uma camisa com os escudos dos dois times do coração – e pelas cachaças que ele mesmo tempera e batiza com nomes hilariantes: fogosinha, fogozada e fura-ferro, entre outras, que diz serem afrodisíacas. Junto a Timbuba é o documentário em que fica mais evidente o envolvimento das equipes na realização dos filmes, com pitadas de making of tornando-se, também, conteúdo emocionante. Casa das tulhas foi completamente filmado com o uso de smartphones.

Fotografia e barbárie parte do impacto psicológico causado por cliques em fotógrafos: como estes profissionais reagem a determinadas situações cruéis – em geral cadáveres de vítimas de homicídios, latrocínios, linchamentos, acidentes etc. – captadas por suas lentes, em nome do ofício. O filme tem depoimentos do professor e cineasta Murilo Santos, papa da área, e do fotojornalista Francisco Silva – poderia ter sido enriquecido com depoimentos de mais profissionais, o que deve ser aprofundado quando da realização do trabalho de conclusão de curso de uma das autoras, conforme ela revelou.

Saí satisfeito com a organização do evento – incluindo todos os professores citados mais Poliana Ribeiro, João Paulo Furtado e Lila Antoniere, coordenadora do curso de Comunicação Social – e a qualidade do debate e dos filmes apresentados – superaram em muito o “trabalho acadêmico” e, com uns ajustes aqui e acolá, podem ter êxito no circuito brasileiro de festivais, não se restringindo aos círculos universitários.

Que os estudantes peguem gosto e realizem mais. A julgar pelo que vimos na noite de anteontem, o cinema do Maranhão tem assegurada a manutenção da qualidade que marca a obra de Murilo Santos, Francisco Colombo e Frederico Machado, nomes fundamentais em qualquer antologia local de cinema que se preze.

O cinema

O húngaro Bela Tarr, um dos entrevistados de Walter Carvalho. Frame. Reprodução
O húngaro Bela Tarr, um dos entrevistados de Walter Carvalho em Um filme de cinema. Frame. Reprodução

 

O abandono de uma antiga sala de cinema na Paraíba natal de Walter de Carvalho é o cenário poético que emoldura Um filme de cinema [documentário, Brasil, 2015, 108 min.], uma verdadeira aula de cinema, aliás, um curso completo. Engana-se quem pensa em obviedade ao ler o título, já que em tese, todo filme é de cinema. Aula, na melhor acepção da palavra, que às vezes uma ótima não carece de sala para acontecer. Curso, que cada depoimento é uma aula. Ali estão o que torna uma aula única: paixão e exemplos.

São vários nomes envolvidos com a produção cinematográfica, principalmente diretores, mas não só, falando com simplicidade e propriedade de seu ofício, dando exemplos, ou do que falam ou do que lhes despertou a tal paixão. “Por que você faz cinema?” é uma das perguntas que orientam o documentário.

São emocionantes os informais depoimentos de Andrzej Wajda, Ariano Suassuna, Asghar Farhadi, Bela Tarr, Bence Fliegeuf, Gus Van Sant, Hector Babenco, José Padilha, Júlio Bressane, Karim Aïnouz, Ken Loach, Lucrecia Martel, Ruy Guerra, Salvatore Cascio e Zhang-ke Jia, belo panorama do cinema contemporâneo colecionado ao longo das últimas duas décadas por Walter Carvalho, ele próprio uma espécie de enciclopédia do cinema nacional, com o nome em fichas técnicas de filmes como Amarelo manga (fotografia), Carandiru (fotografia), Cazuza – O tempo não para (direção, com Sandra Werneck), Central do Brasil (fotografia), Febre do rato (fotografia), Lavoura arcaica (direção de fotografia), Madame Satã (fotografia) e Terra estrangeira (direção).

Ruy Guerra, diretor de Quase memória, comenta por exemplo, a vontade que teve de ser escritor um dia. José Padilha, de Tropa de Elite e Robocop, comenta os conflitos entre blockbusters e cinema autoral em Hollywood. A argentina Lucrecia Martel desenha para explicar melhor determinada ideia. Ariano Suassuna (O auto da compadecida) lembra o primeiro filme que assistiu, “nunca mais vi algo tão ruim, passei um tempo resistente a cinema por conta dele”, e o dia em que levou uma tia para ver um filme de terror no cinema, para gargalhada geral da plateia. Salvatore Cascio lembra, no local em que foi filmado, a sorte de ter sido escolhido, entre 250 candidatos, para atuar em Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore. Bela Tarr tece comentários sobre a liberdade, necessária ao ofício dos atores.

Os diretores comentam aspectos mais técnicos, como planos, sequências, enquadramentos e outras convenções cinematográficas. Fugindo delas – “mesmo o não convencional é uma convenção”, adverte Júlio Bressane – Walter Carvalho se vale da pluralidade de cenários, câmera na mão, garantindo certo nervosismo, talvez uma metáfora para nos lembrar de que estamos diante de alguns dos maiores nomes do cinema brasileiro e mundial.

Um filme de cinema pré-estreia no Maranhão na Tela, em sessão gratuita e aberta ao público no próximo dia 23 de março (quarta-feira), às 20h30, no Cine Praia Grande.

Homem de vícios antigos assistiu ao filme a convite da produção do festival.

Bandeira de aço: documentário sobre o disco é disponibilizado no youtube

No dia 28 de maio de 2013 vários artistas subiram ao palco do Teatro Arthur Azevedo para celebrar os 35 anos de Bandeira de aço, antológico disco de Papete, lançado pela gravadora Discos Marcus Pereira, em 1978. A iniciativa era do Festival BR 135, capitaneado pelo casal Criolina, leia-se, Alê Muniz e Luciana Simões.

No disco, vencedor de enquete do jornal Vias de Fato, Papete cantou nove músicas, os primeiros registros fonográficos das vastas, importantes e belas obras de Cesar Teixeira, Josias Sobrinho, Ronaldo Mota e Sérgio Habibe.

Por ocasião do espetáculo, um documentário foi exibido, contando a(s) história(s) do disco, destacando sua importância, e botando o dedo em feridas. O filme tem depoimentos dos quatro compositores e do intérprete, além de nomes como Chico Saldanha (compositor que fez chegar a fita com as canções às mãos e ouvidos de Marcus Pereira) e Zeca Baleiro, entre outros.

Com roteiro de Celso Borges e Andréa Oliveira, o documentário (finalmente) foi disponibilizado pela produção, na íntegra, no youtube. Assista:

Obituário: Apolônio Melônio

 

Apolônio Melônio (23 de julho de 1918 – 2 de junho de 2015) tinha poesia até no nome. Nenhum outro bumba meu boi tinha nome mais apropriado para (res)guardar os seres mágicos que habitavam aquela Floresta, em especial os cazumbás. Tamanha foi sua devoção à Floresta que o grupo tanto era chamado Boi da Floresta como Boi de Apolônio. Faleceu na noite de ontem (2), aos 96 anos, vítima de insuficiência renal após duas semanas internado.

Dessa vez é verdade, após duas barrigadas: uma há poucos dias, fruto do irresponsável jornalismo nosso de cada dia, que publica sem checar; outra, há muito tempo, em 1954, quando um jornal listou-o entre as vítimas do Maria Celeste, navio em que trabalhava – foi estivador –, que afundou após um incêndio.

“Mestre Apolônio havia escapado espetacularmente, prendendo o fôlego e mergulhando por metros e metros sob a superfície do mar em chamas. Nos intervalos do fogaréu sobre as águas, emergia para respirar. Assim conseguiu alcançar a Beira Mar”, lembrou recentemente o cineasta e professor universitário Murilo Santos, em uma rede social.

Nascido em São João Batista – outra predestinação, nascer em lugar com nome de santo junino – Mestre Apolônio veio para São Luís em 1939. Há 42 anos fundou o Boi da Floresta. Antes, com o saudoso Coxinho, foi um dos fundadores do Boi de Pindaré, do mesmo sotaque do grupamento que agora perde seu líder.

“Apolônio foi muito grande em tudo. Fez um trabalho lindo na Floresta, que segue. Tem que ter investimento no bumba meu boi o ano todo, para gerar renda, lazer, turismo, conhecimento”, defendeu a jornalista Giselle Bossard, diretora e roteirista de Brincando na floresta [Brasil, 2014, 30 min.], que ilustra este obituário, documentário curta-metragem sobre o boi e seu amo. Ela é favorável à garantia de um auxílio-saúde e um valor mensal para os mestres de cultura popular a partir de determinada idade. “Estes mestres precisam, levam uma vida pesada”, defende.

Em 2007 Mestre Apolônio foi um dos contemplados com o Prêmio Culturas Populares Mestre Duda 100 anos de Frevo, concedido pelo Ministério da Cultura (MinC). Traduzindo as necessidades apontadas por Bossard, à época, o dinheiro do prêmio custeou um tratamento de saúde do artista.

Desmistificando Bezerra

 

Pouca gente sabe, mas é o pernambucano Bezerra da Silva (Recife, 23 de fevereiro de 1927 – Rio de Janeiro, 17 de janeiro de 2005) quem toca percussão no disco de estreia de Zé Ramalho (descontado o Paêbirú, lançado três anos antes, dividido com Lula Cortes), que abre com Avôhai, Vila do Sossego e Chão de giz, levando-nos a crer que estamos diante de uma coletânea.

Era 1978 e, qual o paraibano Zé, “vige, como tem Zé na Paraíba”, como cantaria Jackson do Pandeiro, o próprio Bezerra da Silva um José de batismo, era um nordestino radicado na Cidade Maravilhosa, e assim seguiu até falecer, então um especialista em cocos e outros gêneros tradicionais do Pernambuco natal. Só depois é que Bezerra cairia no samba, no partido-alto e particularmente no que pejorativamente passaram a chamar de “sambandido”, injustiça pura.

Bezerra da Silva identificou-se com os marginais: biscateiros, desempregados, operários, ambulantes e toda sorte de moradores das favelas cariocas, acima de tudo compositores, embora não vivessem (nem vivam hoje) de música. Foi sua melhor voz.

Parte desta galeria desfila em Onde a coruja dorme [documentário, Brasil, 2012, 72 min., direção: Marcia Derraik e Simplicio Neto], gravado com Bezerra ainda vivo, ele nos guiando pelo título, as ladeiras, vielas e habitações simples de morros cariocas, mina que guardava seus fornecedores de obras-primas, de temas e personagens os mais variados: drogas, caguetes, malandros, otários, policiais, delegados, políticos, sogras e o que mais lhes desse nas cucas. “Como é que eu vou cantar o amor, se eu nunca tive?”, indaga Bezerra em determinada altura do documentário.

O filme joga luz ao repertório de Bezerra, desmistificando a pecha de “cantor de bandido”, dando nomes e rostos a autores de clássicos até hoje cantados e regravados como Malandragem, dá um tempo [de Adezonilton, Popular P e Moacyr Bombeiro] e A semente [de Felipão, Roxinho, Tião Miranda e Walmir da Purificação], entre inúmeras outras.

Se por um lado, com sua interpretação definitiva, Bezerra da Silva praticamente ofuscou os compositores que gravou – com um intérprete desses, quem se interessa em saber quem compôs o quê? –, por outro, seu repertório caiu tão no gosto popular que às vezes é possível pensar que esta ou aquela é de domínio público.

Eis aí o trunfo de Onde a coruja dorme: apresentar alguns dos fornecedores de matéria-prima, sambas da melhor qualidade, aos discos de Bezerra. Comparecem 1000tinho (sic), Adezonilton, Barbeirinho do Jacarezinho, Cláudio Inspiração, Juarez da Boca do Mato, Moacyr Bombeiro e Nilson Reza Forte, entre outros. A etimologia de seus engraçados nomes “artísticos” dariam outro documentário.

Em meio às dificuldades cotidianas, prevalece o bom humor. A música desta galeria – e de Bezerra, portanto – sempre foi baseada em fatos reais. Lembrá-los, causos e músicas, em meio a rodas de samba e algumas garrafas, garante boas risadas a personagens e espectadores.

Futebol, política e rock n’ roll em debate

 

No geral, nada importa mais para o brasileiro médio que o futebol. Por causa do esporte se morre e se mata, num fanatismo inexplicável. Não à toa o tricampeonato mundial da Seleção Brasileira, no México, em 1970, com Pelé e companhia, foi usado como um reforço ao “ame-o ou deixe-o” travestido de civismo – e cinismo – da ditadura militar. Anos depois, o fim daquela década deu início ao maior movimento de contestação do regime dos generais em um clube de futebol: a Democracia Corinthiana.

O auge se deu em 1982 – quando a ditadura militar brasileira chegava à maioridade – e 83, com o Corinthians ganhando um bicampeonato paulista, com sobras de talento, futebol-arte, elegância e coesão. “Ganhar ou perder, sempre com democracia” era o slogan.

Paraense de nascimento, médico de profissão, socialista por opção, filósofo Brasileiro de batismo, Sócrates era o comandante da guinada à esquerda dentro do clube paulista, em que tudo passou a ser decidido coletivamente, reagindo a outra ditadura que ali se perpetuava, ganhando outras dimensões e conotações.

Os tempos eram outros, o rock brazuca, em seu nascedouro, ainda tinha algo a dizer, estádios não eram arenas, o futebol ainda não era apenas um esquema globalizado de jogadores com salários de cifras incontáveis, fora a publicidade, e ninguém tinha nada a ver com a vida privada dos craques.

Uma fala do apresentador Serginho Groisman sintetiza Democracia em preto e branco – futebol, política e rock n’ roll [Brasil, documentário, 90 min., direção: Pedro Asbeg], filme que resume bem essa história: estão ali os três assuntos do subtítulo, que em geral somos ensinados a não discutir – certamente por ranço da ditadura –, o último por mera questão de gosto (cada um tem o seu). Às vezes a conta era fechada com religião, outro assunto indiscutível – ouvi a advertência muitas vezes na infância e adolescência.

Narrado por Rita Lee e fartamente ilustrado pelo nascente brock e por golaços corintianos da época – torça-se ou não pelo alvinegro do Parque São Jorge, é inegável a categoria daquele elenco –, o filme traz depoimentos de músicos, jornalistas, jogadores de futebol e políticos, para contar um capítulo importante da história recente do Brasil, sob uma ótica bastante original.

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Acontece hoje (24), às 16h, no auditório Mário Meireles (Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal do Maranhão), a sessão de abertura da mostra Cinema Pela Verdade, que em 2015 chega à sua quarta edição.

Após a sessão, gratuita e aberta ao público em geral, este que vos perturba participa do debate com os professores Luiz Eduardo Lopes (História/ UFMA/ Pinheiro) e Adriana Facina (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/ Museu Nacional/ UFRJ), coordenadora pedagógica do projeto.

Ditadura militar em debate no Circuito Universitário de Cinema

Hoje (29), no Colégio Universitário (Colun/UFMA), às 13h15, este que vos perturba dialoga com estudantes sobre Setenta [Brasil, documentário, 96min., direção: Emilia Silveira]. O título do documentário, que encontra e entrevista diversos deles, alude aos 70 militantes de esquerda exilados, trocados pelo embaixador suíço Giovanni Enrico Burcher, sequestrado pela resistência à ditadura militar.

A exibição integra o Circuito Universitário de Cinema, que está acontecendo em todas as capitais brasileiras e, em São Luís, tem como agente mobilizadora Nadia Biondo, estudante de Comunicação da UFMA. O circuito é realizado pela MPC & Associados e tem patrocínio da Petrobras. Suas sessões são gratuitas e abertas ao público.