Morre João Donato, aos 88 anos

Com o buquê recebido na mão, João Donato saúda o público que lhe cantou os parabéns, após show em São Luís. Fotosca: Zema Ribeiro (17/8/2018)

Quando o alemão Marc Fischer (1970-2011) esteve no Brasil, “à procura de João Gilberto”, subtítulo de seu “Ho-ba-la-lá” (Companhia das Letras, 2013), entrevistou uma pá de gente ligada a um dos papas da bossa nova, entre eles o acriano João Donato (17/8/1934-17/7/2023).

Foi recebido pelo pianista e compositor em seu apartamento, trajando uma vistosa camisa florida e um cigarro entre os dedos. Fischer percebera que o consumo de tabaco havia diminuído bastante no Brasil e não deixou de observar: “nossa, você deve ser o último brasileiro que ainda fuma”, disse. Ao que Donato respondeu: “e provavelmente o último ainda vivo”.

Após o encontro, que cito de memória, João Donato entregou-lhe um baseado, onde escreveu o nome de João Gilberto (1931-2019), desejando-lhe sorte em seu intento.

A descontração era uma das marcas de um dos arquitetos que ajudou a revolucionar a música popular brasileira. Desde que chegou ao Rio de Janeiro e passou pelo obrigatório, à época, Beco das Garrafas, trocou o acordeom pelo piano, ajudou a inventar e consolidar a bossa nova, ganhou o mundo e o resto é história.

Aos 88 anos esbanjava uma jovialidade que só a música é capaz de proporcionar e explicar. João e o piano pareciam uma coisa só. Tocava e cantava sorrindo. Parecia estar pura e simplesmente se divertindo, embora saibamos que para atingir seu nível são necessários anos de estudo e dedicação.

Estreou em disco com “Chá Dançante” (Odeon, 1956) e em 1970 lançou “A Bad Donato”, que representava uma guinada em sua trajetória, apontando seu caminho a partir dali: fazer música sem rótulos nem preconceitos. Embora seja reconhecido como bossa-novista, sua extensa obra abarca uma série de gêneros, ao longo de discos e parcerias com nomes como Bud Shank (1926-2009), Carlos Lyra, Emílio Santiago (1946-2013), Eumir Deodato, Gilberto Gil, Joyce Moreno, Marcos Valle, Paula Morelenbaum, Paulo Moura (1932-2010), Roberto Menescal, Rosinha de Valença (1941-2004), Wanda Sá e seu filho Donatinho.

Seus trabalhos mais recentes são “Síntese do Lance” (Rocinante, 2012), com Jards Macalé, e “Serotonina”, lançado ano passado, cujo título é a possível tradução do que a música significa/va para João Donato e seu grande fã-clube: serotonina é um neurotransmissor relacionado aos sentimentos de satisfação e bem-estar.

Tive a oportunidade de entrevistá-lo duas ou três vezes, a mais recente com Gisa Franco em setembro passado, no Balaio Cultural, na Rádio Timbira, justamente por ocasião do lançamento de “Serotonina” (relembre a seguir).

Em 2018 estive em seu aniversário de 84 anos. Visitei-o no camarim antes do show que ele fez na edição daquele ano do Lençóis Jazz & Blues Festival, única ocasião em que assessorei o evento (com Vanessa Serra) produzido por Tutuca Viana. Sua apresentação, dia 17 de agosto, terminou com todo o ótimo público presente à Concha Acústica Reinaldo Faray (Lagoa da Jansen) cantando-lhe o “Parabéns a você”.

João Donato faleceu hoje (17) em decorrência de uma série de problemas de saúde. Recentemente ele teve uma infecção nos pulmões e foi internado na Casa de Saúde São José, onde estava intubado desde semana retrasada. O velório acontecerá nesta terça (18), no Theatro Municipal, em horário a confirmar. O corpo será cremado na sequência, no Memorial do Carmo.

*

Ouça “Síntese do Lance”:

Ouça “Serotonina”:

O cabaré musical de uma estrela

Cabaré Star. Capa. Reprodução

 

Edy Star demorou 43 anos entre seu solo de estreia, Sweety Edy [Som Livre, 1974] e Cabaré Star [Saravá Discos, 2017], segundo disco de sua carreira. Aos 80 anos recém-completados, é o único remanescente do antológico pastiche Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10, clássico maluco que dividiu com Miriam Batucada, Raul Seixas (autor do bolero-título, cantado por Edy) e Sérgio Sampaio em 1971.

“Há muito tempo/ eu vivo dividido entre Caetano e Raul”, cita os conterrâneos em Rock’n’roll é fodaço (Edy Star), que brinca com A bossa nova é foda, do primeiro.

Baiano de Juazeiro, Edy Star é uma espécie de fênix da música popular brasileira. Com Ney Matogrosso, então de cara pintada e à frente do Secos & Molhados, cultivou a androginia, num período de maior conservadorismo (será?), abrindo veredas para todos/as os/as que viriam depois, com ou sem polêmicas (vazias).

Ney, Caetano e Raul – um trecho de entrevista abre O crivo (Waldir Serrão e Mauricio Almeida), que fecha o disco –, além de Angela Maria, Emílio Santiago, Felipe Catto e Zeca Baleiro (que divide a produção com Sérgio Fouad) estão no disco, como a recuperar o tempo perdido.

“É o maior barato […], é incrível”, elogia-o Raul. Caetano Veloso canta em Se o cantor calar (Zé Rodrix e Maria Lúcia Viana) e Merda, dele. Ney Matogrosso se/nos diverte em Peba na pimenta (João do Vale, José Batista e Adelino Rivera). Emílio Santiago deixou sua participação gravada antes de falecer em Ave Maria no morro (Herivelto Martins). Em Perdi o medo (Odair José), Edy Star recebe a visita de Felipe Catto. Já Zeca Baleiro participa de Dezessete vezes, de sua autoria, aberta por citação de Tango pra Tereza (Evaldo Gouveia e Jair Amorim), interpretada à capela por Angela Maria.

Há uma diversidade de temas, gêneros e gerações em Cabaré Star – marca de Edy desde a estreia. Os outros parceiros de Sociedade da Grã-Ordem Kavernista também comparecem: Sérgio Sampaio é o autor de O que será de nós e Miriam Batucada de Você é seu melhor amigo. Eu fiz pior, de Lula Côrtes, abre o disco, com estrofes bem humoradas sobre os bastidores do show business: “Meus parceiros, entre aspas/ meus cúmplices de nada/ cem críticos de arte que nem tinham emprego/ chegavam nos jornais/ com papo de manchete/ achando que uma enquete me faria medo”, canta Edy.

“A vida é um cabaré/ foi assim que eu aprendi/ sonho, emoção e prazer/ você escolhe o que quer/ se vai sorrir ou sofrer/ seja lá homem, mulher/ só interessa o viver/ na noite de cabaré”, canta em A vida é um cabaré (versão de Edy Star e Zeca Baleiro para Y’a la rumba dans l’air, de Alain Souchon), devolvendo elegância ao ambiente, também espaço de fruição artística, em oposição à visão pejorativa, porém rentável, de letras típicas do breganejo e da sofrência – “há muito tempo/ não ouvia tanta shit na MPB”, voltamos à letra de Rock’n’roll é fodaço.

O disco traz ainda Procissão, talvez a faixa mais conhecida do disco: é o clássico lançado por Gilberto Gil em 1967, cuja parceria só foi reconhecida em 2008 – de lá para cá, todos os discos lançados com a música trazem-na com os devidos créditos também a Edy Star.

Ele é acompanhado por Adriano Magoo (piano, teclados e acordeom), Tuco Marcondes (guitarra), Fernando Nunes (contrabaixo) e Kuki Stolarski (bateria e efeitos), além das participações especiais de Emílio Martins (percussão), Hugo Hori (saxes), Tiquinho (trombone e tuba de Bauru), Jorge Ceruto (trompete e voz de cafetão cubano em A vida é um cabaré), Zeca Baleiro (violão “peba” em Peba na pimenta), Swami Jr. (violão sete cordas e arranjo em Ave Maria no morro) e Webster Santos (violão, violão sete cordas, cavaquinho e bandolim em Procissão e Merda).

“Se no nosso país houvesse respeito ao talento e à dignidade de nossos artistas, o nosso Edy seria visto como um artista superior. Seria não, ele é!”, atesta o folclorista e produtor musical Roberto Sant’Ana (pai do músico Lucas Santtana), em texto no encarte de Cabaré Star.

“Edy é uma antologia que anda, sabe tudo de música brasileira e outras bossas o rapaz, um pé no rock e na transgressão, outro no cabaré e na reverência à tradição. […] Tudo com alma teatral, farsesca ou, como ele gosta de dizer, cabareteira”, arremata Zeca Baleiro, produtor e parceiro.

*

Veja o lyric video de Rock’n’roll é fodaço (Edy Star):