
Certas coisas, de tão mágicas, não têm explicação. “As retas mais curvas que o mundo tem” parecem convergir em uma só direção. O sarau de encerramento da temporada 2022 do projeto RicoChoro ComVida na Praça, idealizado e coordenado por Ricarte Almeida Santos, é um destes acontecimentos. A coincidência geográfica e temporal, para celebrar um disco atemporal: a comunidade do Desterro, no Centro Histórico da capital maranhense, celebrava Nossa Senhora do Desterro e a procissão chegou em meio aos paralelepípedos quando o dj Jorge Choairy já preparava o terreno – modo de dizer, que a agricultura de seu set list já colhia os frutos plantados desde algum tempo –, numa convergência saudável e respeitosa entre o sacro e o profano. Exatamente como aconteceu há 44 anos, quando Chico Maranhão e o Regional Tira-Teima, a convite da gravadora Discos Marcus Pereira, ocuparam a sacristia da Igreja do Desterro para registrar o antológico elepê “Lances de agora”, de cuja “Ponto de fuga” pinço as aspas com que quase abro este texto.
O lance de agora era a homenagem que o cantor Cláudio Lima prestaria a Chico Maranhão, compositor que chegou aos 80 anos neste agosto, cantando quase a íntegra do citado disco e duas pérolas de outros momentos da carreira de Francisco Fuzzetti de Viveiros Filho, nome de pia do homenageado: “Rapaziada, o tempo mudou” e “Diverdade”. “Eu sei que você fica preso no ar quando eu canto”, diz a letra desta última, metáfora possível para a apresentação do cantor.
Acompanhado do Quarteto Crivador, Cláudio Lima era pura entrega no palco. Brincava, mas trabalhando sério, como é de seu feitio, com a própria voz e com a obra de Chico Maranhão. Prendia a atenção do público presente, devotos da boa música tal qual os admiradores das obras de Chico Maranhão, de Cláudio Lima e de choro em geral.

O nome do grupo anfitrião, tomado emprestado de um dos três tambores da parelha de tambor de crioula, parecia também remeter a outra fase da carreira de Chico Maranhão, quando ele comandou a Turma do Chiquinho, registrado em sua “Ópera Boi – O sonho de Catirina”, de meados da década de 1990. Rui Mário (sanfona e direção musical), Tiago Fernandes (violão sete cordas), Marquinhos Carcará (percussão) e Wendell de la Salles (bandolim) – que se lamentou quando em meio à apresentação inicial do grupo, arrebentou uma corda de seu instrumento, o que nem de longe tirou o brilho do espetáculo – trajaram de personalidade tanto o repertório instrumental do primeiro bloco de sua apresentação, quanto o acompanhamento luxuoso que prestaram a Cláudio Lima e sua convidada especial, a cantora Dicy – que cantou sozinha “Ponta d’areia” e dividiu com ele os vocais em “Vassourinha meaçaba”.
Em respeito às tradições e à religiosidade do local, a passagem de som atrasou. Mas até isso parecia contribuir para o brilho da noite: quem chegou no horário, acabou ouvindo Cláudio Lima cantar “Meu samba choro”, entrada de um delicioso cardápio musical. O público aplaudiu, antes mesmo de o show começar. Era o coroamento de uma ideia que começou há algum tempo: Cláudio Lima, o mesmo cantor e compositor que estava ali, no palco, é designer de formação e assina a capa e o tratamento de imagens do livro “Lembranças, lenços, lances de agora: memórias e sons da cidade na voz de Chico Maranhão” (Palavra Acesa, 2022), que o poeta e jornalista Celso Borges autografou na mesma ocasião. Foi a partir da pesquisa que o multi-artista mergulhou de cabeça no universo do filho de dona Camélia. O resto é história que ficará na memória dos presentes.
Em meio a tudo isso, ainda teve o poeta Fernando Abreu, brindando a plateia com um poema (“Ladainha”, que cita Allen Ginsberg e Chico Maranhão e suas lágrimas com novos poemas e canções) de seu novo livro, “Esses são os dias” (7Letras, 2022), que terá lançamento muito em breve.
Para não dizerem que não aponto defeitos: a temporada foi curta e só retorna às praças da ilha ano que vem.




