O Quinteto Violado no palco do Teatro Sesc Napoleão Ewerton, ontem (15) – foto: Zema Ribeiro
Ver o Quinteto Violado ao vivo no palco é confirmar o que atestou Gilberto Gil há mais de 50 anos: eles fazem o free nordestino, abreviando e aludindo ao free jazz, a sonoridade encorpada do grupo com liberdade total para a improvisação e para aglutinar elementos da música popular, da música erudita e de folguedos da região nordestina, celebrada pelos seis músicos no espetáculo “Sertão”, apresentado ontem (15), em São Luís, no Teatro Sesc Napoleão Ewerton.
Não, você não leu errado (como um deles disse, ontem, durante o show: vocês não estão vendo errado): com o reforço do violeiro Waleson Queiros, um “viola heroe”, o Quinteto Violado é, atualmente, um sexteto, o que só reforça o groove de seu free.
Em entrevista exclusiva a este repórter, Marcelo Melo, voz e violão firmes aos 79 anos, ressaltou a disciplina como elemento fundamental para eles terem chegado onde chegaram. O cantor, compositor e violonista é o único remanescente da formação original, com o grupo tendo chegado aos 54 anos de estrada — há 10 não vinham à São Luís.
O grupo se completa com Dudu Alves (voz e teclado), Deri Santana (flauta), Sandro Lins (baixo) e Roberto Medeiros (voz e bateria). Em determinados pontos do espetáculo todos têm a oportunidade de exibir seu virtuosismo aos instrumentos. No bis, quase uma jam session, o improviso uniu temas que foram de “Baião” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) a “O trenzinho do caipira” (Heitor Villa-Lobos, Ferreira Gullar e Edu Lobo).
Elegantemente vestidos em roupas cujos tecidos bordados fazem referência ao gibão de couro tornado famoso por Lampião (1898-1938) e Luiz Gonzaga (1912-1989), os músicos estavam super à vontade no palco, entre o repertório, causos, histórias da trajetória e um depoimento gravado do segundo destacando a importância do Quinteto Violado para a música brasileira (o que também tinha me antecipado Marcelo Melo).
Além de Gonzaga — “Asa branca” (parceria com Humberto Teixeira), “A volta da Asa branca” (parceria com Zé Dantas) e “Acauã” (de Zé Dantas, sozinho) —, o repertório trouxe temas autorais — “Vaquejada” (Toinho Alves, Marcelo Melo e Luciano Pimentel), “Palavra acesa” (José Chagas e Fernando Filizola) —, além de nomes como Gilberto Gil — “Lamento sertanejo” (parceria com Dominguinhos) —, Milton Nascimento — “Notícias do Brasil (Os pássaros trazem”, parceria com Fernando Brant —, Alceu Valença — “Morena tropicana” (parceria com Vicente Barreto) —, e Paulo Diniz — “Pingos de amor” (parceria com Odibar) —, entre outros. A última antes do bis foi “Leão do Norte” (Lenine e Paulo César Pinheiro), uma espécie de síntese da nordestinidade.
Merece destaque também a menção ao paraibano Geraldo Vandré, cuja importância Marcelo Melo destacou, lembrando do encontro com o conterrâneo na França, quando ajudou-o a gravar “Das terras de benvirá” (1973), seu último álbum. “A ditadura militar não gostava de suas músicas e ele, como muitos intelectuais, foi obrigado a se exilar”, lembrou, para ouvir gritos de “sem anistia!” da plateia, e depois cantar “Pra não dizer que não falei as flores (Caminhando)” e “Disparada” (parceria com Théo de Barros).
Um espetáculo impecável que dá conta de reafirmar a importância da região Nordeste para a música e a cultura brasileiras, propósito de “Sertão” (que vai virar o próximo álbum do grupo), além da força do groove do free nordestino do Quinteto Violado. Vida longa!
A tirinha da Laerte (publicada na Folha de S.Paulo do último dia 3), que me levou a terminar de escrever este texto, começado há algum tempo…
O dj Victor Hugo, querido amigo, foi adotado pela avó de uma amiga: ele ia para a casa dela, levava uma vitrolinha e uns discos de vinil, que punha para tocar, ganhando da simpática velhinha umas cervejinhas, que brindava com a neta.
Até hoje eles mantêm a tradição de, anualmente, se encontrarem, sempre na data do aniversário da avó dela, com os vinis e a vitrolinha, além das cervejas, é claro, agora pagas por eles mesmos, para celebrar sua memória. Achei a história comovente.
Minha avó fumou a vida inteira e parou uns meses antes de falecer, vitimada por um câncer de pulmão, aos 80 anos, há quase cinco — já sofria também de Alzheimer. Era uma figura. Lembro de alguns de seus ditos, que já pensei em compilar. Tomo café sem açúcar há bastante tempo. Ela gostava com. “De amargura já basta as que eu passo na vida”, dizia, fazendo graça.
Maria Lindoso, seu nome, não tinha papas na língua: dizia o que tinha de dizer na cara, sem meias palavras, doesse a quem doesse. Para o bem e para o mal. Meu avô Antonio Viana, com quem foi casada por quase 50 anos, até seu falecimento, 13 anos antes, costumava adverti-la: “Maria, tu ainda vai levar uma bolacha”, referindo-se ao seu jeito despachado de ser. A gente se divertia com as tiradas e ri ao lembrar.
Depois que me separei da mãe de meu filho, ela manifestou seu descontentamento. Apresentei-lhe companheiras, posteriormente, sempre recebidas com o muxoxo: “ainda não é esta”.
Diana, cuja nossa história de amor e reencontro minha meia dúzia de leitores já conhece, tem, entre suas tatuagens, três frases de expoentes das letras brasileiras: Ferreira Gullar (1930-2016), Guimarães Rosa (1908-1967) e Clarice Lispector (1920-1977).
São elas, respectivamente: “Voai comigo sobre continentes e mares” (do “Poema sujo”), “O que a vida quer da gente é coragem” (do Grande sertão: veredas”) e “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome” (de “Perto do coração selvagem”).
Suas escolhas para marcar na pele dizem muito do ser que é, com quem aprendo todos os dias, que tenho finalmente a alegria de dividir. Pode soar piegas dizer, mas esperei por isso a vida inteira, mesmo quando eu não sabia.
Conversando sobre avós, ela me contou da sua também saudosa dona Mary Benedita, mãe de sua mãe, caxiense da Cabeceira dos Cavalos, que radicou-se em Pedreiras após casar, e não se conformava de ver a neta com os joelhos ou cotovelos ralados por se juntar aos meninos em brincadeiras menos delicadas, típicas de uma época em que as telas não eram realidade.
“Desse jeito nenhum homem vai querer casar contigo”, advertia a vovó, primeira porta de entrada ao feminismo que Diana estuda, pratica e, por que não dizer, (me) ensina.
Nossas mães, também já avós, se conheceram e se deram super bem. Nossas avós não tiveram a oportunidade, nem mesmo nós, de conhecer as avós um do outro.
Gosto de pensar que elas tenham se encontrado onde quer que estejam e nos vendo de cima, tenham tido o seguinte diálogo:
“Finalmente Diana encontrou alguém que quisesse casar”.
“É, finalmente é essa”.
Selfie na plateia do show de Mônica Salmaso no último dia 6 de setembro, no Teatro Arthur Azevedo
Sábado passado (27) o Reviver Hostel (Rua da Palma, Praia Grande) foi palco do show de lançamento de “O Homem Que Virou Circo” (2023), novo álbum do cantor e compositor Marcos Magah, produzido pelo conterrâneo Zeca Baleiro.
O trabalho encerra uma trilogia, iniciada com o álbum de estreia “Z de Vingança” (2012) e continuada com “O Inventário dos Mortos (Ou Zebra Circular”) (2015). “O Homem Que Virou Circo” conta com participações especiais de Odair José (em “Estação Sem Fim”) e Bárbara Eugênia (em “As Coisas Mais Lindas do Mundo”, parceria dele com Celso Borges [1959-2023]).
Entre a doçura e a revolta, como salienta o produtor, o terceiro álbum de Magah preserva suas características essenciais, que tem marcado sua trajetória solo – o cantor integrou a banda Amnésia, com que ajudou a consolidar uma cena punk em São Luís, a partir do bairro do Cohatrac – com seu passeio desenvolto entre o punk, o rock e o brega, com letras inteligentes e instigantes.
Na véspera do show de lançamento, que acabei perdendo (por motivos de força maior), acompanhei um pedaço do último ensaio no Estúdio 2F Sonato (Vinhais). Na ocasião, a convite da produção, conversei com Marcos Magah e Zeca Baleiro – e por motivos idem, só agora consigo postar a conversa.
Fotos: Patrícia Castro
ENTREVISTA: MARCOS MAGAH E ZECA BALEIRO
ZEMA RIBEIRO: Antes de Baleiro ir se aventurar em São Paulo em busca do sonho de viver de música, teve uma trajetória aqui por barzinhos na noite de São Luís, que era mais ou menos a mesma época em que o Magah ajudou a consolidar ali a cena punk, a partir do Cohatrac, com a banda Amnésia. Naquela época vocês já se encontravam? Como é que era essa relação na década de 1980? MARCOS MAGAH: Rapaz, a gente se via, cidade pequena, a gente chegou inclusive a dividir palco, acho que em 1990. É 89, 90, no festival São Luís Rock Show e a gente dividiu no Coqueiro [bar], que era o festival muito louco de rock and roll [risos], e a gente dividiu o palco lá uma vez, nesse festival que eu me referi agora. São Luís, cidade pequena, todo mundo acaba se olhando em algum momento. Lá na frente, a gente acabou se encontrando novamente no filme do Neto Borges, que foi o “Ventos Que Sopram”, quando a gente começou a pensar em trabalhar junto.
ZR: Baleiro, você sempre teve uma atenção muito grande, voltada sobretudo para artistas do teu lugar, São Luís, do Maranhão, e ao longo desses anos de carreira, 26 já, isso se contarmos só a partir do disco de estreia, e você sempre deu uma força, colaborou, produziu, enfim, ajudou também a colocar nomes aí no radar. O que te chamou a atenção na obra de Magah que você resolver produzi-lo? ZECA BALEIRO: Bom, e aí, Magah? Falo a verdade ou minto? [risos]. Só te corrigindo: não era sonho, não, era desespero mesmo. Quando eu saí daqui para São Paulo era uma tentativa de alargar os horizontes, e falo isso sem desabonar a cidade que eu amo, que eu adoro e tal, mas eu tava num momento pessoal muito confuso, muito conturbado e numa vibe muito sexo, drogas e rock and roll, mais drogas do que sexo na verdade [risos]. Eu fui para buscar outros caminhos, para me aventurar, para buscar crescimento, desenvolvimento para mim, como pessoa, como artista e por outras demandas também que não vêm ao caso. Lá no meu bairro, no Monte Castelo, tinha uma turma também, Ricardo, me ajuda aí a lembrar [pede para Magah], que eram de uma banda, ali perto da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, a turminha que se reunia ali se correspondia com Arnaldo Baptista. Tu [apontando para Magah] era da Amnésia, tinha a Ânsia de Vômito, os nomes eram maravilhosos [risos], e eu era amigo deles, assim, amigo de bairro, da gente se encontrar e tal. Naquele tempo, não só em São Luís, no Brasil de uma maneira geral, essas prateleiras da música eram muito essa segmentação, era até de uma natureza mais social, a galera do rock não se misturava com a galera do samba, que não se misturava com a galera da chamada MPB, que quiseram chamar de MPM aqui, e eu era aberto. Eu gostava de música popular, me interessava por música popular de uma maneira geral, então eu era tanto amigo de Joãozinho Ribeiro, que é um cara que cultua a Velha Guarda, Noel [Rosa, compositor (1910-1937)] e tal, como podia ser amigo de Ricardo e de Magah, de outros caras. Masa gente não foi de fato, assim, amigos. A gente era ali contemporâneo, olhava ali com o interesse aquela cena, a gente esteve juntos nesse festival, eu lembro até que eu entrei com a minha banda, todos pintados, e todo mundo ficou “estão pensando que são os Secos e Molhados?”.Mas era uma brincadeira, uma provocação. Depois, o Magah esqueceu de contar, que ele perambulou por São Paulo e nessa época o Fernando Abreu, parceiro, poeta parceiro comum dos dois, escreveu: “Zeca, te lembra de Magah? Ele tá em São Paulo”. Eu tava na época viajando muito, a gente não conseguiu se encontrar, mas ele mandou três letras por e-mail. Uma delas virou a nossa primeira parceria, “Eu Chamo de Coragem”, está no “O Amor no Caos – volume 2“, aí veio o documentário, a gente se aproximou, ele mostrou umas canções e eu falei “pô, vamos fazer repertório”, e foi assim.
ZR: Agora depois dessa tua ida para São Paulo tu acabou te tornando uma espécie de embaixador, né? ZB: Eu detesto esse negócio de embaixador.
ZR: É, detesta, mas assim, é porque tu nunca negou a mão a quem precisou. ZB: É porque é amor mesmo, cara. O cara pode ser capixaba também, e eu aliás fiz, por sinal, com a obra de Sérgio Sampaio. Naturalmente, tem que ter um entendimento da vivência do cara, que pode ser Magah ou pode ser Antonio Vieira (1920-2009), da dificuldade dos meios de produção, que mesmo hoje São Luís ainda é uma cidade com muita dificuldade, como é Aracaju, como é Maceió, como é qualquer cidade menor assim, né? Não é uma metrópole como Rio, São Paulo, Belo Horizonte. Agora essa coisa de embaixador, desculpa, até posso ter sido descortês, mas é porque isso de embaixador passa um pouco uma ideia de oficialidade, sabe? E eu detesto qualquer tipo de oficialidade [risos]. Eu não sou embaixador de nada. Eu posso gostar do cara sendo maranhense, piauiense ou cearense. Naturalmente eu não me afastei, como outros artistas fizeram um afastamento, às vezes até normal, né? Por exemplo, Alcione, de quem eu sou muito fã, hoje é mais associada à cultura musical do Rio, à Mangueira do que aqui, embora ela nunca vá deixar de ser maranhense, profundamente maranhense. Por uma natureza minha mesmo, assim, pessoal, eu gosto de estar aqui, sinto um pertencimento, me sinto fazendo parte de uma coisa, me sinto inserido nisso aqui como o meu lugar, mesmo que eu vá morar na Romênia. Uma vez dividindo os microfones, o palco, a cena com Ferreira Gullar (1930-2016), um programa que o Tony Bellotto tinha, não sei se tem mais, na TV Cultura, “Afinando a Língua”, juntou o Ferreira Gullar e eu, e a gente conversando e o cara perguntou pro Gullar: “a origem importante, Ferreira Gullar?”, e ele falou: “rapaz, tudo que a gente tem, a única coisa que a gente tem, é a origem, é onde a gente nasceu, de onde a gente veio, o lugar ao qual a gente pertence, todo o resto é incerto, agora a origem é definitiva”. Eu achei isso lindo. Eu repito isso como um mantra. Eu nunca neguei minha origem.
ZR: Sábio Gullar. Esse reencontro no decorrer do processo feitura do documentário do Neto Borges, o “Ventos Que Sopram”, eu até acompanhei parte das gravações aqui em São Luís, é impossível a gente não lembrar de um parceiro comum também de vocês, Zeca até fez a devida homenagem no show de ontem, a Celso Borges. Queria um depoimento de vocês sobre essa figura tão importante para todos nós. MM: Rapaz, eu conheci Celso quando eu tava em São Paulo, essa ida a que Zeca se referiu há pouco. Aquela história da cidade pequena, que todo mundo se vê e tal. Mas às vezes não tem contato, uma intimidade, então. E aí em São Paulo, eu fui chamado para fazer uns shows que era eu, ele e o poeta Reuben, o CavaloDada. E aí nós fizemos uma série de quatro shows juntos lá e nessa história de fazer show, o Reuben, eles estavam os dois trabalhando, eu me lembro bem dessa cena, principalmente esses dias aí, e ele me chamou, o Reuben, né? Eles iam fazer uma história lá que eles recitavam poesia e eu cantava as canções, aquelas divisões que se faz, né? E o CavaloDada falou para ele assim, “cara, tu precisa olhar as letras do Magah”, e ele falou para mim assim: “então recita aí alguma coisa”, aí eu falei uma dessas letras que eu faço [risos] e ele ficou assim, gostou muito, e aí era para ser só um show e a gente acabou fazendo quatro e surgiu o lance da amizade. E a amizade da gente era uma coisa muito bacana, porque Celso era muito mais novo do que [risos]. Ele tinha uma energia, um espírito assim, eu me lembro de uma vez a gente fazendo uma canção chamada “Camboa” e ele escreveu um verso, a gente escrevia um de frente para o outro, cada um com seu papelzinho assim, e ele escreveu um verso, ele ficou tão feliz, cara, que ele subiu na janela. E eu ficava dizendo “Celso, desce daí”, eu preocupado, era uma pessoa mais velha [risos]. Então era assim, cara, era uma relação realmente intensa, e também da mesma forma, tínhamos discussões maravilhosas. Para mim é bem complicado essa coisa de pensar que Celso não tá mais aqui. Ele foi um cara muito importante para mim porque ele nunca se dava por contente. Eu mostrava algo para ele, ele dizia “não, tu faz melhor, estica isso para cá, leva pr’ali”, ele tinha essa coisa, né? E aquela coisa de um bom humor, que jogava a gente para frente. E tava sempre disposto, qualquer projeto que eu dava o toque, vamos fazer, às vezes as minhas propostas absurdas para testar a paciência dele, ele falava “eu topo”, e eu dizia “pô, esse cara é mais maluco do que eu, mano”. É um amigo e parceiro assim, cara, que realmente… as nossas conversas, que iam para muito além das questões artísticas, de criação e tal, coisa de amizade mesmo, de falar sobre coisas, amor, dinheiro principalmente. A gente falava muito de dinheiro, porque a gente não tem nenhum. Quem não tem dinheiro geralmente só fala de dinheiro e a gente conversava muito sobre isso. Meu amigo querido, meu irmão. ZB: Pra mim ainda é um pouco difícil falar sobre Celso porque ainda estou muito sob o efeito do choque. Toda morte é, de certa maneira, chocante, por mais até previsível que seja, e no caso da do Celso tomou todos nós de surpresa. Foi muito imprevisível e essas pessoas que têm uma vitalidade, uma intensidade muito grande no viver, a gente demora a acreditar. Eu perdi alguns amigos ao longo desses últimos anos e alguns deles eu até hoje não realizei, é difícil realizar. É difícil vir a São Luís, por exemplo, e imaginar que eu não vou encontrar Celso, que a gente não vai se provocar mutuamente, às vezes até brigar como a gente brigava, porque era uma relação de irmão mesmo. “Baleiro, esse disco aí eu tou achando ele meio repetitivo”, “ah, vai se foder, e esse teu último livro aí é o quê, porra?”. Então era assim, era amor mesmo, uma relação de amor, porque não era superficial, era profunda, a gente falava o que tinha que falar. Celso é muito importante na minha trajetória musical, do Nosly, de muita gente. O Celso era um fazedor, né? Quando ele foi diretor da Rádio Mirante ele criou um programa, eu ainda estudava, tinha 14 anos, estudava no Colégio Batista, e a primeira vez, 14, 15 anos, que eu toquei uma música minha. Eu era muito tímido. O Nosly, que era meu vizinho de bairro, ali, de rua, no Monte Castelo, era um pouco mais atirado, foi meu primeiro parceiro, falou: “Zeca, tem um programa na Rádio Mirante, chama “Contatos Imediatos”. Você vai, toca, aí três caras concorrem na noite, e aí as pessoas telefonam, anos 1980, 83, 84, e o vencedor, quem tiver mais votos ganha uma máquina tira-teima da Kodak e um ticket para comer na Churrascaria O Laçador. Aí eu fui, lembro que nessa noite Nosly foi me acompanhando, dois violões, um baiãozinho, chamava “Sem Pé Nem Cabeça”, foi a primeira vez, e Celso “pô, interessante essa pegada e tal, vamos encontrar”. Ele que coordenava, dirigia o programa, “vamos!”. E aí foi uma saraivada, a gente fez oito músicas em sequência, eu, ele e Nosly, que deu origem ao nosso primeiro show, “Um Mais Um”. É um cara que tá na origem de toda a nossa história. Eu lembro que a primeira vez que eu ouvi Fauzi [Beydoun, vocalista da Tribo de Jah] foi nesse programa, tocando “Neguinha”, nem era um reggae ainda, era uma balada. Acho que César Nascimento também, a primeira vez que eu vi o César foi assim. Era um cara que abria muitas portas, tinha essa coisa meio visionária. Quando eu comecei na música, Celso já tinha um certo sucesso, já era uma personalidade, já aparecia na tevê, já tinha uma aparição aqui e acolá, um programa, a Revista Guarnicê, ele já era uma personalidade pública e eu tinha simpatia pela figura dele, pelas coisas que ele fazia, nos aproximamos. Nossas histórias se cruzaram em São Paulo também, ele foi um pouco antes, quando eu cheguei em São Paulo, ele me falou: “Zeca, conheci um cara aí da Paraíba, não tem nada a ver contigo, mas tem tudo a ver contigo, tu vai entender. Chama-se Chico César, trabalha na revista Elle, a gente se conheceu aqui na Rádio Gazeta, ele veio gravar um programa, vocês dois vão se amar”. Aí eu cheguei em São Paulo. Fui de carro, com a Solange, minha companheira na época, e no caminho o amplificador, nos sacolejos das estradas do Piauí, a gente passou 20 dias viajando num Fiat Uno, chegou quebrado em São Paulo e eu precisei de amplificador. Liguei para os amigos e Celso disse: “rapaz, liga para aquele cara, ele deve ter, o Chico César, liga para ele”. Ele me deu o telefone, liguei para o Chico, nos encontramos lá na Paulista, na frente da TV Gazeta, fui até a casa dele, no meu carro, lá em Santo Amaro, que era longe para cacete, passamos a noite tocando, eu, ele e Celso tocando e ele me emprestou o amplificador. Enfim eu pude fazer o show, importante, passamos a noite tocando e realmente ficamos encantados um com o outro. Entendi exatamente o que o Celso queria dizer. Éramos diferentes, mas éramos muito afins. E ele estava tão certo que a nossa amizade permanece até hoje, inclusive vai resultar num disco até o fim do ano, início do ano, a gente vai lançar. Então o Celso é um cara muito importante, tem essa coisa de agregar pessoas. Isso é muito importante na cena cultural de qualquer lugar.
ZR: Curioso essa essa memória de vocês de Celso, essa intensidade com que ele vivia e produzia. Quer dizer, partiu fisicamente ainda no auge da capacidade criativa e está presente no disco mais novo do Magah, “As Coisas Mais Lindas do Mundo”. Queria agora focar um pouquinho no álbum, eu lembro que quando tu lançaste o “Z de Vingança”, há mais de 10 anos, já falava numa trilogia, né? Que depois veio “O Inventário dos Mortos” e agora “O Homem Que Virou Circo”. Acho que isso demonstra uma organização muito grande. Queria que você falasse um pouco desse processo, de criação do álbum, de composição. Como é que foi isso? MM: Rapaz, eu vinha escrevendo. Eu tinha a ideia de lançar esse disco, inclusive Celso foi comigo uma vez no estúdio, até para registrar algumas canções. Eu tinha a ideia do disco, o tema, algumas canções como “Ela Nunca Teve Ninguém”, eu já tinha algumas canções, “O Homem Que Virou Circo” e tal. E eu tinha ideia de registrar, de fazer esse disco. O problema é que toda vez que eu entrava no estúdio eu não achava uma liga com um produtor. O cara achava esquisito aquilo ali, queria me propor uma outra coisa lá e eu falava: “não cara, eu quero fazer isso aqui, independente de [qualquer opinião que] não, que isso aqui não vai dar certo”. Eu falei: “não, cara, eu não eu não dei certo até agora, eu não estou preocupado com isso, não, velho. Eu tô querendo registrar o disco, não interrompe a minha felicidade” [risos]. E aí eu tentava sempre, três tentativas com produtores diferentes e tal, até que encontrei com o Zeca e a gente começou a falar sobre o disco, que tem uma coisa que eu e ele, a gente gosta de coisas parecidas, assim, a gente não vê muito fronteira de música e tal. E quando a gente começou a pensar o disco eu remodelei muitas canções. Essa parceria minha com Celso, eu adoro essa música, sabe?, eu gosto demais dessa música. Eu chamei ele, essas coisas do Celso, é impossível não contar alguma coisa, “eu quero fazer uma música assim”, e ele me perguntou pelo telefone “onde é que tu tá?”; aí eu digo: “cara, eu tô aqui na casa tal”; ele: “me aguarda que eu tô chegando aí!” [risos]. Isso era Celso. E aí eu comecei a remodelar as canções, ia amostrando para Zeca, algumas coisas, “isso aqui tá bom, isso aqui não e tal”. E acabou virando esse disco. Eu fiquei muito satisfeito assim com o resultado, porque eu gravei exatamente o que eu queria gravar, não sei se eu tô respondendo tua pergunta. Mas outro dia eu vi uma coisa engraçada, o cara disse que eu que eu me vendi e tal. Eu digo: “pô, eu preciso olhar o comprador”, não tenho ideia de quem me comprou até agora, que eu fiz concessão. Pô, cara, se tu for escutar o disco, eu não entendo, não tem concessão, ali eu fiz exatamente o que queria, a gente nunca conversou sobre “não, vamos mudar isso aqui”, não. A gente não é bobo, né,cara? Não faria sentido. Não tinha porquê. Umas coisas assim engraçadas, quando a gente tava fazendo o disco, talvez valha o registro, é que vem eu e Zeca dentro do carro e eu falei assim, “pô, Zeca, eu quero te dizer uma coisa; rapaz, eu gostaria que tu não cantasse no disco”. E ele falou: “bicho, eu estou pensando a mesma coisa” [risos].
ZB: Todo disco que eu produzo eu canto e eu desde o início falei: “Magah, acho que nada a ver, vamos buscar outras pessoas, tentar o Odair José, Fernando Mendes, alguém com quem você tenha uma afinidade”. Eu preferi tocar, toquei teclado, percussão, assobiei no disco, criei as linhas de baixo, mas cantar, não [risos]. Eu cantar era um caminho fácil, óbvio. MM: Nós dois estávamos pensando a mesma coisa.
ZR: Como é que foi a costura das participações especiais de Bárbara Eugênia e Odair José? ZB: O Magah mostrou as músicas e tal, eu mandei as quatro que tinham esse acento mais brega descarado, embora o brega do Magah seja muito sofisticado, mas tem esse flerte com essa música mais popular, então mandei quatro e falei: “ouve aí, Odair!”, e ele falou: “eu gostei dessa, essa aqui é a minha cara”. E o desgraçado do Odair é tão talentoso, bicho, é aquela coisa, a gente cola no clichê, na lenda que se forma em torno do cara, às vezes deixa de ver o real, o cerne da coisa. Ele mandou a música transformada. Para melhor! Ele deu uma melhorada, a música já era boa.
ZR: Quase vira parceiro. ZB: Quase vira parceiro. É. Eu até falei: “Odair, você não quer? Você fez o arranjo”. “Não, eu não quero, é só como eu li a música. Eu gostaria que vocês gravassem assim”. O Magah falou: “porra, ficou demais”. Ele releu a música, se identificou, pegou o violão e fez. Mostrei, falei: “vamos fazer exatamente o que o Odair fez, só que com banda: bateria, baixo, guitarra e órgão”. Ficou aquilo. Gênio, né? O cara que tem um entendimento da música, da canção, como poucas pessoas. E a Bárbara eu tava produzindo o disco dela, calhou de, no mesmo tempo. O disco do Magah durou uns três anos, porque a gente começou em janeiro do ano da pandemia. 2020, né? A gente gravou as primeiras bases de voz e violão no Estúdio Zabumba aqui, levei. E aí a pandemia veio e ferrou tudo, né? Fez a gente postergar tudo. Aí fui fazendo devagarinho, voltei, fizemos mais uma bateria de canções, foi mudando também o repertório. Magah dizia: “ah, eu fiz uma nova safra aqui que eu acho que tem mais a ver” e assim foi. E a Bárbara estava justo em processo, ele falou: “adoro ela, cara, adoro o timbre dela. Vamos achar uma música?”. Quando ele mandou a parceria com Celso, eu falei: “é essa aí, vai ficar linda na voz dela”; ele não queria nem cantar [risos]; “tá tão bonita que eu não vou nem cantar”, ele me disse; o disco é teu, tem que cantar; e ficou lindona, né? Parece uma música assim, um folk americano dos anos 50, 60, tem um traço especial.
ZR: Quando a gente ainda estava esperando Baleiro, eu estava vendo um pedaço do ensaio e vocês falaram numa coisa de não fazer concessões, de não pensar na coisa de transformar o trabalho do Magah para ser palatável. E aí teve uma mudança na banda e, “ah, agora tá soando como Magah”; e eu disse: pode botar Magah com a Filarmônica de Berlim que sempre vai ter uma coisa brega e punk ali, que é o traço dele. Isso facilitou a produção do disco, essa coisa de não ter que repensar muita coisa? ZB: Não. Dificultou [risos]. É o seguinte: tem dois tipos básicos de gente no mundo: o cara que mesmo certo tá errado e o cara que mesmo errado tá certo. Magah é do segundo time. Então, assim, musicalmente falando por exemplo, ele tem uma forma de respirar, uma compreensão do ritmo da música, muito particular. Tem outros artistas que são assim: Chico. Chico César, tocar com ele é super difícil, porque ele tem umas coisas que não são óbvias, de compasso, ele mete os compassos, e é intuitivo, coisa de origem, atávico, quebra a matemática, bota um compasso de 5 por 8 no meio de um 4 por 4, é um negócio assim, e Magah tem, a seu modo também, com essa viagem roqueira que ele tem, faz compasso muito louco. Teve uma música lá que eu falei assim: “essa aqui a gente não vai conseguir botar metrônomo, botar um clique para poder depois a banda gravar”. Então o que que eu fiz? É aquela “Eu Gosto de Ler a Bíblia”. Eu falei: “grava aí do teu jeito, respira do teu jeito, canta do jeito que tu acha, o povo lá que se foda, a banda lá”; aí a gente foi, passamos uma noite lá, o Kuka [Stolarski], baterista, ficou contando os compassos, “não, aqui tem um compasso de cinco, aqui tem um compasso de três”; eu falei: “escreve a partitura aí, bicho, trabalha”; aí ele fez todo o mapinha, mas ficou sensacional, porque ficou do jeito que ele faria mesmo. A gente não tentou fazer caber numa quadratura mais careta, mas conservadora, mais lógica. Não teve isso. O rock dele tá preservado. Agora, talvez até porque o cara tá ficando um senhor, as canções, tem uma canção ou outra com uma certa doçura, tem uma raiva, uma revolta aqui, mas tem uma doçura ali, faz parte também. Mas não tem esse negócio de concessão, isso é besteira. O rock precisa também, os amantes do rock, desse imaginário rock, precisam dessa coisa meio antissistêmica, assim, “você se vendeu”. Eu lembro, vou contar um episódio. Quando eu gravei o Charlie Brown Jr., que inclusive era rock, mas uma galera mais assim, ficou, teve um happening punk, assim, lá em Recife, o pessoal no carnaval se virou de costas na hora que eu toquei a música, eles queriam que eu tocasse “Vô Imbolá”, “Heavy Metal do Senhor”, essa faceta mais atrevida, mais rítmica, pós-mangueBit, aquela coisa. E quando eu toquei eles se viraram. E outro garoto em Londrina falou assim: “me decepcionei com você, bicho, você se vendeu para o mercado”. Aí eu falei: “cara, não, rapaz, você não tá entendendo o que é isso, isso é outra coisa”. Aí eu voltei lá três anos depois, ele tinha me perdoado com “Pet Shop Mundo Cão” (2002) [risos]. “Tá perdoado, tá perdoado”. Então tem essa coisa, faz parte, “o cara se vendeu”,a gente também tinha isso quando jovem, curtia uns caras, aí de repente, Rita Lee (1947-2023) era isso, era uma loucura com Mutantes, com o Tutti-Frutti, depois entrou Roberto de Carvalho, só com o tempo que você vai avaliar, aquela obra também é fantástica. Era mais pop, era mais radiofônica, era mais comercial. Mas ainda assim era brilhante, era sensacional. Então, essas avaliações fazem parte também desse imaginário do rock. É bom até, né? Tem uma cena maravilhosa no documentário do Jards Macalé. Perguntam ao [cantor e compositor Gilberto] Gil: “Gil, mas o quê que você acha, Macalé, esse artista que nunca fez concessão?”. “Nunca fez concessão, é? Eu não conheço ninguém que nunca tenha feito concessão”. Não tem como viver sem fazer concessão. Mas não é o caso aqui.
ZR: Magah em estado bruto, mas de algum modo também, lapidado. MM: Bruto, porém nem tanto. ZB: Os brutos também amam [risos]. Essa coisa da produção, eu não sou assim um produtor, no sentido tecnológico do termo, como Liminha é, como Brian Eno é e tal. Eu sou produtor no sentido de arregimentar, de orientar, de dar um caminho. E de respeitar o que o cara é, porque se for pra descaracterizar, então, ele que arranje outro. É para extrair o melhor dele, se eu puder fazer, ajudar nisso, eu tô dentro. Se for para estragar, arranje outro. MM: Tem uma coisa que perde o sentido, porque o que, no caso, atraiu um produtor como Zeca, foi aquilo que os caras acham que você deveria como produtor, descaracterizar. Se o que te atraiu foi aquilo, é aquilo que deve ser preservado, é o coração. ZB: Lapidação era um termo mais técnico, de fazer, de botar bons músicos tocando, bons técnicos mixando, masterizando, dando timbres, esse cuidado com timbres, mas eu acho um disco rock pra cacete. Você não acha, não?
ZR: Sim, acho. Baleiro precisa ir para o cortejo [parte do elenco de “Dom Quixote de Lugar Nenhum”, musical de Ruy Guerra com trilha sonora de Baleiro, faria um cortejo àquela tarde, na Praia Grande], Magah precisa continuar o ensaio. Vamos fechar falando do show de amanhã, o lançamento d“O Homem Que Virou Circo”, no Reviver Hostel. Banda, participações especiais, e reforçar o convite para a rapaziada que tá assistindo a gente [esta entrevista foi gravada em vídeo, mas problemas técnicos impediram o upload no youtube]. MM: Pois é, a gente vai estar lançando agora, sábado, 27, amanhã, né?, “O Homem Que Virou Circo”, cheio de participações especiais. Em primeiro lugar, eu quero citar aqui a minha banda, a Magahdelic Band, é uma banda assim, é quase a The Band, tu tá entendendo?, só que no Maranhão [risos], então acompanhado da minha banda, a gente vai ter a Vanessa Serra, DJ que eu gosto pra caramba, o amor que ela tem pelo vinil, as coisas que ela põe lá.
ZR: Fala os nomes da banda. MM: Sim, citar os integrantes da banda. O Eduardo Pinheiro na guitarra, assim que eu olhei ele tocando, cara, primeira vez eu imediatamente chamei ele, “chega aqui, cara, vamos tocar ali”, ele já conhecia meu trabalho e tal e ficou contente para caramba, então o Eduardo na guitarra; o Gus Mendes que é um baixista também que eu olhei assim, garotão da noite. É só garoto, né? De idoso só tem eu. Eu só pego garoto!
ZR: A galeria do amor. MM: [risos] Quando eu lancei o “Z”, a canção que abria o show era esta, né, “Galeria do Amor” [do repertório de Agnaldo Timóteo (1936-2021)], e ficou todo mundo assim, esse cara, e ficou muito bonito. Aquilo ali é rock, aquela linguagem maravilhosa, libertária, linda. O Gus Mendes no baixo, o Diogo nos teclados e efeitos e meu querido Taylor na bateria. Essa é a Magahdelic Band, uma banda que tem uma facilidade para fazer concessão, então é a banda perfeita pra mim. ZB: Concession Band. MM: É, Concession Band [risos], a gente vai mudar o nome. E é isso, cara, se eu estiver esquecendo alguma coisa o Baleiro vai completar aqui a parada de sucesso. ZB: Nada mais a declarar. Só dizer que fico muito feliz de ter feito essa parceria com Magah. Peço desculpas pela demora na entrega do trabalho, mas a gente vai falar todo mundo ainda, que tem uma lista de agradecimentos. O show tem a produção de Aziz Jr., Samme Sraya, Tiago Máci, que também é nosso parceiro. MM: A participação da Dicy, cantando comigo “As coisas mais lindas do mundo”. Também vai ficar lindo com ela, cara, também sou fãzão. ZB: E é isso. Acho que a missão está cumprida, era fazer um disco, um disco genuíno, assim, não que os discos dele anteriores [não fossem], eu adoro os discos dele, mas quando eu ouvi as canções, falei, “poxa, eu sei exatamente o que fazer com isso, eu acho que sei exatamente o que fazer com isso”, sem também descaracterizá-lo, sem levar para um outro caminho, sem tentar fazer o que não é, porque as coisas são que são. O que não é o que não pode ser o que não é o que não pode ser o que não é, né? Aquela coisa lá [citando a música dos Titãs], então, eu ouço com o maior prazer esse disco, o que é um bom sinal, porque depois que eu produzo alguma coisa, eu passo um tempo assim, tenho um tempo de afastamento. Mas é um disco que eu ouço com muito prazer, boto, recebo amigos, boto para ouvir e as pessoas curtem muito as letras, né? Porque canção é mais do que só música, é a ideia também, né? E o Magah, nesse sentido, é um cara brilhante, tem ideias incríveis, originais e por isso ele é o que é.
A manchete nunca me saiu da cabeça, uma fala de Antonio Nóbrega quando capa da revista Caros amigos, uma entrevista há quase 20 anos. Foi a frase de que me lembrei quando fui avisar minha esposa e enteada do concerto que ele e a Orquestra Ouro Preto deram ontem (3), no Teatro Arthur Azevedo.
“Tirando a casaca” é um desses espetáculos que não se deve perder por nada.
De certa forma, o encontro de Nóbrega, ex-Quinteto Armorial (que Ariano Suassuna inventou há mais de 50 anos), com a orquestra regida pelo maestro Rodrigo Toffolo, é uma conexão (nunca de todo perdida) com as ideias do dramaturgo, defensor de uma arte genuinamente nacional, que deram origem ao Movimento Armorial, de que o quinteto foi um dos maiores expoentes: a realização de uma música de concerto com raízes profundas nas tradições e na cultura popular brasileira, particularmente do Nordeste.
Não faltam fôlego e disposição ao quase setentão Nóbrega – ele completa 70 anos no próximo dia 2 de maio: canta, toca violino, dança e se diverte enquanto diverte e deleita a plateia. Sentada a meu lado, minha esposa puxou-me a mão para sentir-lhe o arrepio quando ele cantou sua “Excelência”, título que bem poderia referir-se à qualidade do repertório levado ao palco, quase completamente autoral.
São Luís foi a segunda cidade a receber o espetáculo. A temporada 2022 da formação foi aberta na capital mineira, após dois anos de eventos sem plateia, em decorrência da prolongada pandemia de covid-19. Os ingressos a preços populares (R$ 30,00 para qualquer setor do teatro) certamente colaboraram para que o público lotasse a casa – antes do espetáculo, parte dos presentes se deparou com uma espécie de “overbooking”, com alguns lugares tendo sido vendidos em duplicata pelo sistema digital que operava a venda de ingressos, mas logo o problema foi resolvido; este repórter, com ingressos para uma frisa, acabou na plateia. A turnê tem patrocínio do Instituto Cultural Vale, através da Lei Federal de Incentivo à Cultura.
O que se viu foi uma verdadeira comunhão entre público e plateia: a alegria estampada nos rostos, duas violinistas cantarolando o repertório enquanto cumpriam suas funções, o público cantando os refrões quando provocado por Nóbrega, que chegou a se deitar no palco, tão à vontade estava, e mesmo a descer dele para cantar à altura do público. Quando solou uma peça acompanhado apenas de pandeiro e zabumba, chegou a desamarrar o cadarço do tênis do pandeirista e atirá-lo à plateia.
Tudo era literalmente brinquedo.
Nóbrega dedicou a apresentação a Mestre Zumbi Bahia, capoeirista, e ao antropólogo gaúcho Norton Correa, ambos adotados por São Luís. Foi comovente também ouvi-lo cantar “O trenzinho do caipira”, tema de Heitor Villa-Lobos que ganhou letra no “Poema sujo” do maranhense Ferreira Gullar.
O artista esbanjou versatilidade e aqui e acolá arriscou uns passos de frevo e maracatu, ritmos que dominam o repertório do concerto, passeando por várias fases de sua carreira, desde o Quinteto Armorial até temas quase inéditos, executados também na apresentação inaugural da turnê.
Todo brasileiro deveria ter um pandeiro. E poder ir, ao menos uma vez, a uma apresentação de Antonio Nóbrega.
O poeta e o gato a quem dedicou o livro Um gato chamado Gatinho. Foto: Ana Carolina Fernandes/ Folhapress
“Um vento velho e urgente/ sobrevoa a tarde que embala/ o rio Bacanga em São Luís do Maranhão/ um vento, um pedaço dele, um susto, um sopro, um barulho,/ passa sobre mim e desarruma os cabelos/ que penteei em casa hoje de manhã cedo/ em frente ao espelho, testemunha do meu zelo inútil/ Enquanto isso, na Academia Maranhense de Letras/ velam o que sobrou do poeta Ferreira Gullar”.
Com ecos de Uma fotografia aérea, o poeta Celso Borges escreveu o poema acima em 2001. Gullar post mortem foi publicado em seu livro-disco Belle Epoque, lançado em 2010 no Cine Praia Grande, com show do autor, acompanhado da banda Restos Inúteis. Ao fim do poema, uma vela acesa no palco, a voz de Gullar ecoava, recitando trechos de Notícia da morte de Alberto Silva, outro poema de Dentro da noite veloz: “Eis aqui o morto/ chegado a bom porto/ Eis aqui o morto/ como um rei deposto/ (…)/ De barba feita, cabelo penteado/ jamais esteve tão bem arrumado/ (…)/ Enfim este é o morto/ agora homem completo:/ só carne e esqueleto/ Enfim este é o morto/ totalmente presente:/ unha, cabelo, dente”. A gravação está no sublime Antologia poética, em que Gullar é acompanhado por Nivaldo Ornelas e Egberto Gismonti.
Naquela noite de autógrafos, o próprio Celso Borges contou a ocasião em que escreveu o poema: “Novembro de 2001. Este é o cenário: estou sentado diante da televisão, ligo a TV e olho de frente o poeta Ferreira Gullar, abrindo o programa político do Partido da Frente Liberal [o então PFL, hoje Democratas, tinha à época a ex-governadora do Maranhão Roseana Sarney – hoje no PMDB – como pré-candidata à presidência da República]. Ele dizia: “ela pertence a uma nova geração de políticos, não só por ser mulher, então ela está se colocando diante do país como uma mulher que tem a capacidade de administrar a coisa pública, mas ela é de uma outra geração, de uma outra experiência de vida, de uma outra experiência social, e é o que a gente percebe, que é uma geração que não vem à procura de usar o Estado em seu benefício, que é uma geração com o sentido social de interesse público”. Levanto, desligo a televisão e escrevo este poema”, contou.
O poema de Celso Borges revela, antes de tudo, sua admiração por Ferreira Gullar (10/9/1930-4/12/2016), cujo Poema sujo [1975] acabou por empurrá-lo para a poesia. Ex-militante do PCB, o hoje imortal da Academia Brasileira de Letras acabou dando, nos últimos anos de vida, uma guinada à direita. Prova disso foi a coluna dominical que manteve desde 2004 na Folha de S. Paulo, desde sempre uma trincheira anti-Dilma (de quem foi contra o impeachment), anti-Lula, anti-PT, anti-esquerda. Particularmente incluí-o no rol de artistas de que era preciso separar vida e obra para não cair no ódio burro e cego das “pessoas de bem” que boicotaram Aquarius [filme de Kléber Mendonça Filho] por recomendação de outro jornalista de direita.
Resumindo: independentemente de suas opções ideológicas, Gullar fez grande poesia até falecer, hoje (4), no Rio de Janeiro, onde vivia desde os anos 1950. Foi merecedor de todos os prêmios e honrarias com que foi laureado em vida – e com que certamente continuará sendo a partir de agora. Chamá-lo simplesmente poeta é insuficiente, tamanha foi sua importância no campo das artes no Brasil: além de poeta, foi crítico de arte, ensaísta, cronista, dramaturgo, tradutor, artista visual, letrista de música popular. É dele a voz que narra Cabra marcado pra morrer [1984], filme de Eduardo Coutinho batizado por poema seu. A película foi perseguida pela ditadura militar – como seu locutor – e só foi finalizada 21 anos após seu início.
Na música, fundamental para tornar sua obra mais popular, foi parceiro de Heitor Villa-Lobos [O trenzinho do caipira, trecho do Poema sujo cuja Bachianas brasileiras nº. 2 ditava o ritmo da leitura], Milton Nascimento [Meu veneno, Bela, bela], Fagner [Traduzir-se, Contigo, Me leve (Cantiga para não morrer)], Caetano Veloso [Onde andarás?], Paulinho da Viola [Solução de vida (Molejo dialético)] e Moacyr Luz [Poema obsceno], entre outros. Seu maior êxito é Borbulhas de amor (Tenho um coração), sua versão para Borbujas de amor, do dominicano Juan Luis Guerra.
Recentemente reli o Poema sujo, por ocasião do lançamento (na última quarta-feira, 30/11) de Visões de um Poema sujo [2016], a última grande homenagem a Gullar em vida: uma releitura fotográfica de Márcio Vasconcelos para o livro que muitos consideram a obra maior do poeta – em janeiro o fotógrafo inaugura exposição em São Paulo. Encontrei um trecho em que ele cita a Rádio Timbira, onde atualmente, com a queridamiga Gisa Franco, produzo e apresento o Balaio Cultural – Márcio e Celso Borges foram os entrevistados do programa na última terça-feira (29/11).
O trecho diz: “(Se tivesse me casado com Maria de Lourdes,/ meus filhos seriam dourados uns, outros/ morenos de olhos verdes/ e eu terminaria deputado e membro/ da Academia Maranhense de Letras;/ se tivesse me casado com Marília,/ teria me suicidado na discoteca da Rádio Timbira)”. Celso Borges imediatamente lembrou que Gullar havia sido locutor da rádio, antes de ir embora de São Luís, de onde foi demitido por ter se negado a ler um editorial contra determinada greve.
Era atualmente o nome mais importante da poesia de língua portuguesa no mundo. Sua morte deixa um vazio impreenchível. “Tu de nada suspeitas/ e te preparas para mais um dia no mundo./ Pode ser que de golpe/ ao abrires a janela para a esplêndida manhã/ te invada o temor:/ “um dia não mais estarei presente à festa da vida”./ Mas que pode a morte em face do céu azul?/ do escândalo do verão?”, escreveu em Morrer no Rio de Janeiro [2001].
“Mas sobretudo meu/ corpo/ nordestino/ mais que isso/ maranhense/ mais que isso/ sanluisense/ mais que isso/ ferreirense/ newtoniense/ alzirense/ meu corpo nascido numa porta-e-janela da Rua dos Prazeres/ ao lado de uma padaria/ sob o signo de Virgo/ sob as balas do 24º. BC/ na revolução de 30/ e que desde então segue pulsando como um relógio/ num tic tac que não se ouve/ (senão quando se cola o ouvido à altura do meu coração)”, escreveu durante o exílio em Buenos Aires.
Antes, no mesmo Poema sujo: “Corpo meu corpo corpo/ que tem um nariz assim uma boca/ dois olhos/ e um certo jeito de sorrir/ de falar/ que minha mãe identifica como sendo de seu filho/ que meu filho identifica/ como sendo de seu pai/ corpo que se para de funcionar provoca/ um grave acontecimento na família:/ sem ele não há José Ribamar Ferreira/ não há Ferreira Gullar/ e muitas pequenas coisas acontecidas no planeta/ estarão esquecidas para sempre”.
Vivo para sempre em sua obra monumental, Ferreira Gullar está morto – o Governo do Maranhão publicou nota de pesar e decretou luto oficial – e infelizmente não é apenas mais um poema.
Ouça Ferreira Gullar em Notícia da morte de Alberto da Silva:
Uma das fotografias de Visões de um Poema sujo. Márcio Vasconcelos
Quando Diógenes Moura desceu do táxi, na Praia Grande, de madrugada, deparou-se com o Poema sujo diante dos olhos, vivíssimo: “vi aquele homem agachado, despido, ali, sozinho, tornando públicas as suas entranhas antes de os dois bêbados me abordarem descendo ladeira abaixo e pedindo dinheiro porque precisavam de um pouco mais de loucura”, escreve em Carta número um para uma coisa de fato, seu texto em Visões de um Poema sujo [Vento Leste, 2016], uma carta a seu autor, Márcio Vasconcelos, no livro que ele lança hoje (30) – o terceiro em 2016 –, às 19h30, no Museu Histórico e Artístico do Maranhão (MHAM, Rua do Sol, Centro).
“O homem está na cidade/ como uma coisa está em outra/ e a cidade está no homem/ que está em outra cidade”, anota o então exilado Ferreira Gullar no Poema sujo, escrito entre maio e outubro de 1975 em Buenos Aires, Argentina.
Cada homem ou mulher lê e percebe a cidade de modo diferente. Diógenes Moura, que assina a curadoria e concepção editorial de Visões de um Poema sujo, percebeu, após Márcio Vasconcelos vencer o Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia em 2014, que ele já fotografava o Poema sujo há pelo menos 10 anos, expondo, como Gullar fez em versos, com o mesmo talento e olhar sensível, a beleza e a podridão – e nesta, a beleza – da cidade, do itinerário percorrido pelo poeta naquela que é considerada por muitos sua obra-prima.
A perspectiva de Márcio Vasconcelos é interessante: a algumas fotos realizadas antes de vingar a ideia de uma releitura fotográfica do Poema sujo, ele passou a imaginar-se exilado em Buenos Aires para fotografar a obra de Gullar. Este resenhista confessa: quando ouviu falar em Visões de um Poema sujo, antes de o livro existir, pensou tratar-se de uma espécie de Poema sujo ilustrado. Ainda bem que estava errado.
Não espere o leitor, portanto, uma tradução imagética da obra em versos. Quem leu o Poema sujo ora verá fotografias que remetem a determinados trechos do poema, ora se perguntará, talvez, por que determinada fotografia foi incluída no livro. A única constante no livro de Márcio Vasconcelos é a beleza, das imagens, cada uma por si e, obviamente, do conjunto – como o livro de Gullar, que teve trechos musicados e tem uns mais lembrados que outros, mas que é bonito por inteiro, mesmo quando chafurda no horrendo.
O poeta maranhense radicado no Rio de Janeiro prossegue: “mas variados são os modos/ como uma coisa/ está em outra coisa:/ o homem, por exemplo, não está na cidade/ como uma árvore está/ em qualquer outra/ nem como uma árvore/ está em qualquer uma de suas folhas/ (mesmo rolando longe dela)/ O homem não está na cidade/ como uma árvore está num livro/ quando um vento ali a folheia”.
Márcio Vasconcelos fotografa o livro-poema de Ferreira Gullar, mas uma chave de leitura errada, ou melhor, uma chave de olhar errado, é imaginar algum tipo de fidelidade entre as imagens e o poema, como minha crença inicial.
Visões de um Poema sujo. Capa. Reprodução
Visões de um Poema sujo é uma contribuição importante e, por que não dizer, poética, ao reconhecimento da força e atualidade do Poema sujo, recém-relançado pela Companhia das Letras [2016, 112 p.], “livro que é um dos mais importantes da língua portuguesa da segunda metade do século XX”, conforme atesta o poeta e jornalista Celso Borges em Outra cidade e a mesma, o outro texto do livro de Márcio Vasconcelos.
“Há um relâmpago nos versos gullarianos, mesmo quando ele fala do lado obscuro da cidade, sua lama e podridão, seus cheiros e mangues. O fotógrafo procura e desnuda essa sujeira luminosa”, prossegue Celso Borges, para arrematar: “Algo permanece eterno, independentemente do tempo. Este o milagre: reencontrá-la e reinventá-la”.
Márcio Vasconcelos confessa uma de suas intenções ao realizar Visões de um Poema sujo – título também da exposição com que ganhou o Marc Ferrez: chamar novamente as atenções para o poema de Gullar, deixando livres os sentidos dos leitores para suas próprias interpretações.
É Gullar quem arremata: “cada coisa está em outra/ de sua própria maneira/ e de maneira distinta/ de como está em si mesma// a cidade não está no homem/ do mesmo modo que em suas/ quitandas praças e ruas”.
Quando Cesar Teixeira lançou, em 2004, seu primeiro (e até aqui único) disco, Shopping Brazil, anotou em O lixo é nosso!, o texto de apresentação: “é pouco espaço pra tanto vodum”. Referia-se a mestres que reverencia, de um modo ou de outro, ali presentes e homenageados. O autor das fotos de capa, contracapa e encarte era Márcio Vasconcelos.
Pai Euclides em imagem do livro Zeladores de voduns do Benin ao Maranhão. Foto: Márcio Vasconcelos
Quando Pai Euclides faleceu busquei uma foto para ilustrar seu obituário. E não poderia ter encontrado uma melhor. O eterno líder espiritual da Casa Fanti-Ashanti sentado diante de um altar, em pose que deixa transparecer sabedoria, experiência, seriedade. “O hábito não faz o monge”, diz o dito popular, mas as vestes aproximam-no de um deus. Novamente o fotógrafo era Márcio Vasconcelos.
Agaxosa – Gloku Kosu Naeton (Ouidah – Benin), a fotografia usada na capa do livro. Foto: Márcio Vasconcelos
O retrato de pai Euclides e tantos outros Zeladores de voduns do Benin ao Maranhão [Pitomba!, 2016, 124 p.] integra o conjunto de fotografias de Vasconcelos reunido no livro, em que percorre casas de culto afro no Maranhão e no Benin – veja outras imagens no site do fotógrafo.
Dando valiosa contribuição para a preservação da memória dos voduns, o próprio Márcio Vasconcelos acaba se configurando também um zelador, dado o capricho com que exerce seu ofício e com que reúne o belo e o sagrado, para além do exótico a que são costumeiramente reduzidas estas manifestações que aliam religiosidade e cultura popular, campos em que tem vasta experiência e diversos prêmios nacionais – o próprio livro Zeladores de voduns foi contemplado no 1º. Prêmio Nacional de Expressões Culturais Afro-Brasileiras da Fundação Cultural Palmares do Ministério da Cultura (MinC), o que viabilizou sua publicação.
Mãe Elzita (São Luís) exibe seu retrato em Zeladores de voduns. Foto: Márcio Vasconcelos
Os textos que precedem as fotografias, do editor Bruno Azevêdo e dos antropólogos Sergio Ferreti e Hippolyte Brice Sogbossi, facilitam a compreensão, sobretudo para não iniciados, das configurações que aproximam Benin e Maranhão e tornaram nosso estado um dos principais centros das religiões de matriz africana no Brasil.
“O catolicismo está muito presente nesta religião uma vez que os escravos eram obrigados a tornar-se católicos e que o catolicismo era a religião oficial do país até fins do século XIX e oficiosa em grande parte do século XX”, anota Ferreti em A terra dos voduns, um dos três textos que abrem o volume. Com Sogbossi, beninense radicado no Brasil, Vasconcelos percorreu, ao longo de quase um mês, em 2009, diversas cidades do Benin. Além de São Luís, outras cidades maranhenses também foram visitadas pelo fotógrafo, fechando o conjunto. Nas fotografias, sobretudo as do lado de cá, é possível perceber este sincretismo, com imagens de santos da Igreja Católica frequentando os terreiros, um retrato do Papa João Paulo II pendurado na parede, “folhinhas” com imagens de santos, caixas do Divino, parelhas do tambor de crioula, a decoração típica dos festejos de São João e o bumba meu boi.
Mãe Mundica Estrela (São Luís) exibe seu retrato em Zeladores de voduns. Foto: Márcio Vasconcelos
Além de registrar diversas personalidades importantes para a perpetuação da religiosidade de matriz africana nas geografias em que se concentra, os cliques certeiros de Márcio Vasconcelos em Zeladores de voduns são uma homenagem a Pai Euclides e Mãe Deni Prata Jardim, última vodunsi da Casa das Minas, falecida há um ano. É também uma ótima oportunidade a interessados em geral de conhecer um pouco mais desta história e suas personalidades.
Sempre envolvido em vários projetos simultaneamente, o fotógrafo lançará este ano dois novos livros: Na trilha do cangaço, em que refaz os caminhos de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, no sertão nordestino, com curadoria e concepção da fotógrafa inglesa radicada no Brasil Maureen Bisiliat, será editado pela Vento Leste; pela mesma editora ele publicará, com curadoria de Diógenes Moura, Visões de um Poema Sujo, conjunto de fotografias inspirado no famoso livro-poema do maranhense Ferreira Gullar.
Vivendo Teatrodança – Investigações de uma artista maranhense para crianças de qualquer idade. Capa. Reprodução
A história do Grupo Teatrodança se confunde com a própria vida da artista – difícil enquadrá-la em apenas um ramo das artes – Júlia Emília, que o fundou em 1985 e o dirige desde então. Mas seu envolvimento com as artes começa bem antes.
Hoje (26), às 19h, no Centro de Pesquisa de História Natural e Arqueologia do Maranhão (Rua do Giz, 59, Praia Grande, próximo à Praça da Faustina), ela lança Vivendo Teatrodança – Investigações de uma artista maranhense para crianças de qualquer idade [2015, R$ 20,00 no lançamento], publicado através da seleção no edital de literatura de 2014 da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (Fapema), em que (re)conta parte dessa história. No lançamento Eline Cunha, Luciana Santos, Sandra Oka e Victor Vieira apresentarão intervenções originais sobre suas relações afetivas com o Grupo Teatrodança e temáticas da nova investigação em processo.
A própria Júlia Emília se apresenta, na orelha da obra: “Filha de família intelectualizada tive um pé na sapatilha clássica e outro nos terreiros das culturas populares maranhenses, sem populismo postiço”. Bem lhe traduz também um poema, não por acaso citado no livro, do dramaturgo alemão Bertolt Brecht: “Eu era filho de pessoas que tinham posses./ Meus pais puseram um colarinho engomado ao redor de meu pescoço/ E me educaram no hábito de ser servido/ E me ensinaram a arte de dar ordens./ Mas, mais tarde, quando/ Olhei ao redor de mim,/ Não gostei das pessoas de minha classe/ Nem de dar ordens, muito menos de ser servido./ E abandonei as pessoas de minha classe/ Para viver ao lado dos humildes”.
Sobre ela, assim se refere o poeta Ferreira Gullar: “Júlia é uma artista muito autêntica, trabalhando no resgate de um tipo de aproximação da cultura popular de maneira muito sensível”. O cantor e compositor Zeca Baleiro endossa: “É uma artista muito intensa, muito verdadeira”. O segundo musicou os versos de cordel do primeiro e ambos assinaram a trilha de Bicho solto buriti bravo, uma das investigações abordadas em Vivendo Teatrodança – longe de soar pedante, é realmente difícil classificar o trabalho de Júlia Emília como espetáculo de dança ou espetáculo de teatro. Simplesmente os rótulos não lhes comportam.
No livro, a autora remonta brevemente os 30 anos de história do Grupo Teatrodança, antes passeando por sua trajetória artística, confessando influências – Angel e Klauss Viana, Teresa D’Aquino, Stanislavski e Grotowski, entre outros – e vivências – o Teatro Ventoforte, o Centro de Criatividade do Méier, além do Laboratório de Expressões Artísticas do Maranhão (Laborarte) e do Estúdio Pró-Dança, entre outros. A obra se completa com os textos das investigações O baile das lavandeiras e Meninos em terras impuras e aborda desde a fundamentação das peças, elencos, apresentações, dramaturgias e partituras. Na música se misturam nomes como Apolônio Melônio – do bumba meu boi da Floresta, atualmente internado em estado grave –, Carlinhos Veloz, Chico Maranhão, autos do pastor maranhense e do pastoril pernambucano e, entre muitas outras referências, as bandas de pop rock R.E.M. e Coldplay. Também soam pelas páginas de Júlia Emília e palcos frequentados pelo Teatrodança, também devidamente listados na obra, os tambores de mina e crioula, o lelê de São Simão, a dança de São Gonçalo, a poesia da escritora Maria Firmina dos Reis e a lenda da serpente (ou a serpente da lenda), para citar algumas de nossas melhores tradições.
Mas não é – ou ao menos não deveria ser – só ao “povo” do teatro e da dança que interessa a obra de Júlia Emília (e do Grupo Teatrodança): ao longo destes 30 anos e, especificamente nas vivências abordadas em Vivendo Teatrodança, estão colocadas, de forma mais ou menos sutil, preocupações políticas e ambientais – a terceira investigação, “Meninos em terras impuras, dentro da noção de corpo ambiental foi escrito em 2011, para denunciar a degradação a que a área metropolitana da Grande Ilha está submetida”.
Retornamos ao texto da orelha, em que Júlia Emília admite não ter “vergonha de nascer em terra espoliada, de expor meus exercícios de aculturação, de registrar dramaturgias que nem sei se serão publicadas exatamente por acreditar que o texto eterniza a cena”. O lançamento de Vivendo Teatrodança é parte das comemorações de 30 anos do Grupo homônimo, que continuam ao longo de todo 2015 (e sobre as quais este blogue voltará, em momentos oportunos). Os que conhecem os trabalhos e batalhas do Teatrodança e de sua fundadora-diretora lhes desejarão vidas longas. Aos que não, terão hoje mais uma oportunidade. Cabe a pergunta: estão esperando o quê?
Cecília Leite demorou cerca de 10 anos entre um disco e outro. Em Enquanto a chuva passa, repete a opção de misturar compositores locais a nomes nacionais, dando sua contribuição para o fim das barreiras geográficas impostas pelo mercado fonográfico – o disco foi gravado no Rio de Janeiro.
A faixa-título é sua estreia como compositora e narra a vida de um casal que enquanto se separa e um tenta esquecer do outro, mais se lembram de momentos vividos a dois. “Enquanto me esqueço de ti/ lembro do amor/ tingindo as tardes do Rio/ com as cores da nossa leveza/ sorrisos, certezas/ dos meus nos teus passos/ lembro dos beijos de braços/ abraços de pernas/ nas horas eternas”, canta, no refrão.
A chuva que ajuda a batizar o disco volta a aparecer noutras faixas. Em Maré cheia, inspirado samba de Bruno Batista, o compositor veste uma persona feminina ao compor pensando na intérprete. “Por isso se eu mostrar minha alma/ levantem os olhos com calma/ e batam palmas para mim”. A dobradinha merece os aplausos, emoldurada – como de resto a voz de Cecília ao longo do disco – por Luís Filipe de Lima (violão sete cordas), Marcos Nimrichter (piano), Ney Conceição (contrabaixo), Edu Neves (sax) e Marcos Suzano (percussão).
Também chove em Tempo afora (Fred Martins), sucesso de Ney Matogrosso: “Onde mora a ternura/ onde a chuva me alaga/ onde a água mole perfura/ dura pedra da mágoa/ eu tenho o tempo do mundo, tenho o mundo afora”, começa a letra. Cecília Leite recria ainda outra música já gravada por Ney Matogrosso: Noite Severina, parceria de Pedro Luís e Lula Queiroga. A água ganha destaque no projeto gráfico de Claudio Lima, cantor e designer talentoso em ambos os ofícios, outra dobradinha do primeiro disco que se repete.
Ela recria ainda Por um fio (Marcelo Segreto), de O hábito da força (2011), primeiro disco da Filarmônica de Pasárgada, De todas as maneiras (Chico Buarque), hit de Maria Bethânia (de Álibi, de 1978), Seule, de Pixinguinha, com letra em francês de Vinicius de Moraes, trilha do filme Sol sobre a lama (de Alex Viany, de 1963) e, num medley emenda dois grandes nomes da poesia brasileira, maranhenses, um de adoção, outro de nascimento: Palavra acesa, de José Chagas, e Traduzir-se, de Ferreira Gullar. A primeira, musicada por Fernando Filizola, sucesso do Quinteto Violado; a segunda, por Fagner.
Falecido ano passado, é de Chagas, a propósito, a honrosa apresentação da cantora no encarte: “O canto em Cecília é tão visceral quanto nos pássaros, que cantam porque nisso está uma das razões da vida”.
Completam o disco Tem dó (Paulo Monarco e Zeca Baleiro), que o abre, falando na dor da despedida de maneira original; Arrastada (Patrícia Polayne), um martelo sobre o sofrimento e a emancipação feminina; Ainda mais (Eduardo Gudin e Paulinho da Viola), um samba sobre a esperança de reconciliação, com a típica elegância do portelense; Enquanto a chuva passa termina com Lembranças, outra vez Bruno Batista vestindo a persona feminina, competente qual um Chico Buarque, para citarmos dois dos compositores preferidos de Cecília, a propósito, os únicos que comparecem em ambos os discos – este, na estreia, fez uma versão em francês para Eu te amo (Dis-mois comment) e cantou com ela. “As lembranças que inventei…/e já gasta de mim, quis poder confessar/ o que me faz amarga e nua/ não sou minha… sem ser tua!”, termina a letra de Bruno.
Cecília equilibra-se com desenvoltura entre músicas (mais ou menos) consagradas e material inédito, num grandioso exercício de seleção de repertório – prévio, portanto, à gravação. Ela canta o que gosta, sem se prender a rótulos e gêneros. O resultado é o consistente trabalho que apresenta agora aos fãs e aos que certamente virão a tornar-se.
*
Cecília Leite apresenta hoje (10), às 19h30, no São Luís Shopping (segundo piso) um pocket show de pré-lançamento de Enquanto a chuva passa, com entrada franca. A noite contará ainda com exposição de fotos, exibição de videoclipe e lançamento de remix da faixa Arrastada, com os djs Alex Palhano e Macau. Confiram o teaser.
O blogueiro, de latinha na mão, com os poetaços Ademir Assunção e Marcelo Montenegro (Foto: Igor de Sousa, o DP)
Como se árvores brotassem por entre os paralelepípedos, a 7ª. Feira do Livro de São Luís rendeu bons frutos. A começar pelo convite, prontamente aceito, de assumir uma página mensal neste Atual, imensa honra. É o Maranhão falando para o Brasil, depois de ter ouvido o mundo falar durante a #7FeliS.
Sérgio Cohn é poeta-autor-editor cujo trabalho acompanho há bastante tempo, proprietário da editora Azougue, responsável por tanta coisa boa no mercado editorial brasileiro nos últimos anos, da coleção Encontros, das entrevistas do Bondinho, de beats e Mautner e tantos outros, ele, um dos convidados da #7FeliS, ocasião em que falou justamente sobre o tal mercado editorial.
Este ano a Feira do Livro expandiu-se: continuou com a função de vender livros, mas foi além, e em 10 dias trouxe à São Luís alguns personagens fundamentais para o fazer literário brasileiro. Tendo como patrono o poeta Nauro Machado, quase oitentão com 40 livros publicados, e como homenageados Aluísio Azevedo, Catullo da Paixão Cearense, Salgado Maranhão e Zelinda Lima, a Feira fez valer ainda a máxima de outro homem das letras, centenário em 2013: Vinicius de Moraes. “A vida é a arte do encontro”, dizia.
A literatura deixou de ser do gueto, algo para iniciados, e encontrou a cidade. Uma na outra, outra na uma, e esbarrões entre sorrisos e abraços. Esquinas, becos, ruas, ladeiras, praças, auditórios, teatros, galerias, sacadas, escadarias e azulejos, tudo havia sido ocupado pela poesia, como num velho poema de Gullar.
Escritores se encontraram com a gente do lugar, a Praia Grande finalmente revivida, como um lugar propício aos fazeres artísticos, com seu acervo arquitetônico entre o que merece ser chamado patrimônio e suas ruínas cinematográficas, o espaço finalmente valorizando, após umas poucas iniciativas, as pessoas, verdadeiro patrimônio maior de qualquer lugar.
Manhãs, tardes, noites e madrugadas tomadas pela programação da Feira e pela “hora extra” que se fazia entre o Mundico – para provar sua deliciosa anchova na brasa –, o Chico Discos e o Bar do Léo, com seus incríveis acervos e o conhecimento artístico, sobretudo musical, dos proprietários. As histórias engraçadas de Josoaldo Rego e a comanda infalível de Marília Oliveira, os autógrafos de Benjamin Moser a Andréa Oliveira e Rita Luna Moraes – que Talita Guimarães pegou em sua Programação, o que não a fez se emocionar menos. Ambientes que também encantaram Sérgio Cohn, Fabiano Calixto, Ademir Assunção, Marcelo Montenegro, Marcelo Watanabe, Xico Sá, Rodrigo Garcia Lopes, Bráulio Tavares, Caco Pontes e outros.
Admirador do trabalho de todos e de alguns outros que não consegui ver ou encontrar, o calçamento da Praia Grande parecia ter se transformado em feito de nuvens, eu perambulando entre o trabalho e o prazer – aqui plenamente conciliáveis – como O sonhador insone: “tudo é nascente/ o sol pleno de setembro (e outubro, permita-me adulterar o poema)/ traz da mão/ do garoto que passa/ um cheiro de fruta (…)// (a vida já é um tempo/ por demais interessante)”.
A busca idílica de Marcelo Montenegro pela Fonte do Bispo – e outras paisagens do Poema Sujo – e a conquista de novos leitores de poesia: “não pude resistir quando ele disse que era um punk do ABC”, revelou Igor de Sousa, assumidamente um desajustado punk no apelido DP, ao adquirir o belo exemplar dA canção do vendedor de pipocas, de Fabiano Calixto.
A visita de Ronaldo Bressane à Fundação da Memória Republicana, nome pomposo do museu, ou antes, da catacumba do Sarney, “único museu de São Luís com ar condicionado”, onde clássicos da literatura produzida no Maranhão ficam em “aquários”. “Vamos quebrar os aquários, vamos quebrar a fundação, vamos quebrar o Sarney!”, convidou encerrando sua fala na mesa mais transgressora da Feira, dividida com Allan Sieber, Bruno Azevêdo e Iramir Araújo. Gente que sabe o que fala.
Fracasso da Raça, o nome da banda com que Ademir Assunção lançará em novembro seu novo disco, Viralatas de Córdoba, virou jargão anticapitalista. Os atendentes de telemarketing das operadoras de telefonia ou internet ou tv a cabo ou cartão de crédito ou loja ou banco não resolvem o seu problema? É o Fracasso da Raça. Você chega a um estabelecimento a fim de resolver um problema e é direcionado a um telefone, “retire do gancho e siga as instruções”, é o Fracasso da Raça.
Os poemanchetes de Caco Pontes, tornando pura poesia o que nosso jornalismo tem de pior. Letra de música é poesia e vice-versa? Ricardo Corona e sua poesia étnica, sons ganhando sentido, em diálogo com Bráulio Tavares, multiartista consciente de seu próprio fazer, sua fala ilustrada por canções, 35 anos desde a primeira gravação de Elba Ramalho para uma delas, Caldeirão dos mitos.
“Embora haja tanto desencontro nessa vida” você perde a palestra de Alice Ruiz, “A poesia muda o mundo?”, e levanta da mesa pouco antes de ela chegar. Não se pode ter tudo. Alguns autógrafos que te acompanharão pra sempre, a emoção cravada num livro de sua modesta coleção, para uns um orgulho bobo, a vida não foi feita para ser entendida, “a vida já é um tempo/ por demais interessante”, um eco.
A Feira também fez sentido por estar localizada ali nos arredores da Feira da Praia Grande, uma das mais famosas e charmosas da cidade. A Feira virou uma verdadeira festa e deixa saudades. Deixou muita gente com a cabeça ainda mais cheia e a pilha-fila de livros por ler aumentada. A Feira ainda será assunto em rodas reais ou virtuais durante muito tempo.
Sua mais perfeita tradução é o sorriso enérgico do poeta Celso Borges, seu curador. O seu nunca cansaço, a sua eterna capacidade de se emocionar com cada dia e acontecimento, feito criança de brinquedo novo. A serpente pode até não ter acordado ainda. Mas seu sono foi certamente incomodado com tanto barulho.
[Textinho que escrevi pro Atual, “o último jornal da Terra”, do grande Sérgio Cohn, da Azougue. Balanço sentimental da 7ª. Feira do Livro de São Luís, cuja equipe de curadoria tive o prazer e a honra de integrar, escrito imediatamente após a hora da xepa, em outubro passado]
Os brasileiros no exterior que acompanham o noticiário brasileiro pela internet têm uma impressão de que o país nunca esteve tão mal. Explodem os casos de corrupção, a crise ronda a economia, a inflação está de volta e o país vive imerso no caos moral. Isso é o que querem nos fazer crer as redações jornalísticas do eixo Rio-São Paulo. Com seus gatekeepers escolhidos a dedo, Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, Veja e O Globo investem pesadamente no caos com duas intenções: inviabilizar o governo da presidenta Dilma Rousseff e destruir a imagem pública do ex-presidente Lula da Silva. Até aí, nada novo. Tanto Lula quanto Dilma sabem que a mídia não lhes dará trégua, embora não tenham – nem terão – a coragem de uma Cristina Kirchner de levar a cabo uma nova legislação que democratize os meios de comunicação e redistribua as verbas governamentais para o setor. Pelo contrário, a Polícia Federal segue perseguindo as rádios comunitárias e os conglomerados de mídia Globo e Abril celebram os recordes de cotas de publicidade governamentais. O PT sofre da síndrome de Estocolmo (aquela em que o sequestrado se apaixona pelo sequestrador) e o exemplo mais emblemático disso é a posição de Marta Suplicy como colunista de um jornal cuja marca tem sido o linchamento e a inviabilização política das duas administrações petistas em São Paulo.
O que chama a atenção na nova onda conservadora é o time de intelectuais e artistas com uma retórica que amedronta. Que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso use a gramática sociológica para confundir os menos atentos já era de se esperar, como é o caso das análises de Demétrio Magnoli, especialista sênior da imprensa em todas as áreas do conhecimento. Nunca alguém assumiu com tanta maestria e com tanta desenvoltura papel tão medíocre quanto Magnoli: especialista em políticas públicas, cotas raciais, sindicalismo, movimentos sociais, comunicação, direitos humanos, política internacional… Demétrio Magnoli é o porta-voz maior do que a direita brasileira tem de pior, ainda que seus artigos não resistam a uma análise crítica.
Jornalismo lombrosiano – Agora, a nova cruzada moral recebe, além dos já conhecidos defensores dos “valores civilizatórios”, nomes como Ferreira Gullar e João Ubaldo Ribeiro. A raiva com que escrevem poderia ser canalizada para causas bem mais nobres se ambos não se deixassem cativar pelo canto da sereia. Eles assumiram a construção midiática do escândalo, e do que chamam de degenerescência moral, como fato. E, porque estão convencidos de que o país está em perigo, de que o ex-presidente Lula é a encarnação do mal, e de que o PT deve ser extinto para que o país sobreviva, reproduzem a retórica dos conglomerados de mídia com uma ingenuidade inconcebível para quem tanto nos inspirou com sua imaginação literária.
Ferreira Gullar e João Ubaldo Ribeiro fazem parte agora daquela intelligentsia nacional que dá legitimidade científica a uma insidiosa prática jornalística que tem na Veja sua maior expressão. Para além das divergências ideológicas com o projeto político do PT – as quais eu também tenho –, o discurso político que emana dos colunistas dos jornalões paulistanos/cariocas impressiona pela brutalidade. Os mais sofisticados sugerem que, a exemplo de Getúlio Vargas, o ex-presidente Lula se suicide; os menos cínicos celebraram o “câncer” como a única forma de imobilizá-lo. Os leitores de tais jornais, claro, celebram seus argumentos com comentários irreproduzíveis aqui.
Quais os limites da retórica de ódio contra o ex-presidente metalúrgico? Seria o ódio contra o seu papel político, a sua condição nordestina, o lugar que ocupa no imaginário das elites? Como figuras públicas tão preparadas para a leitura social do mundo se juntam ao coro de um discurso tão cruel e tão covarde já fartamente reproduzido pelos colunistas de sempre? Se a morte biológica do inimigo político já é celebrada abertamente – e a morte simbólica ritualizada cotidianamente nos discursos desumanizadores – estaríamos inaugurando uma nova etapa no jornalismo lombrosiano?
O espetáculo da punição – Para além da nossa condenação aos crimes cometidos por dirigentes dos partidos políticos na era Lula, os textos de Demétrio Magnoli, Marco Antonio Villa, Ricardo Noblat, Merval Pereira, Dora Kramer, Reinaldo Azevedo, Augusto Nunes, Eliane Cantanhêde, além dos que agora se somam a eles, são fontes preciosas para as futuras gerações de jornalistas e estudiosos da comunicação entenderem o que Perseu Abramo chamou apropriadamente de “padrões de manipulação” na mídia brasileira. Seus textos serão utilizados nas disciplinas de deontologia jornalística não apenas como exemplos concretos da falência ética do jornalismo tal qual entendíamos até aqui, mas também como sintoma dos novos desafios para uma profissão cada vez mais dominada por uma economia da moralidade que confere legitimidade a práticas corporativas inquisitoriais vendidas como de interesse público.
O chamado “mensalão” tem recebido a projeção de uma bomba de Hiroshima não porque os barões da mídia e os seus gatekeepers estejam ultrajados em sua sensibilidade humana. Bobagem. Tamanha diligência não se viu em relação à série de assaltos à nação empreendida no governo do presidente sociólogo. A verdade é que o “mensalão” surge como a oportunidade histórica para que se faça o que a oposição – que nas palavras de um dos colunistas da Veja “se recusa a fazer o seu papel” – não conseguiu até aqui: destruir a biografia do presidente metalúrgico, inviabilizar o governo da presidenta Dilma Rousseff e reconduzir o projeto da elite “sudestina” ao Palácio do Planalto.
Minha esperança ingênua e utópica é que o Partido dos Trabalhadores aprenda a lição e leve adiante as propostas de refundação do país abandonadas como acordo tácito para uma trégua da mídia. Não haverá trégua, ainda que a nova ministra da Cultura se sinta tentada a corroborar com o lobby da Folha de S.Paulo pela lei dos direitos autorais, ou que o governo Dilma continue derramando milhões de reais nos cofres das organizações Globo e Abril via publicidade oficial. Não é o PT, o Congresso Nacional ou o governo federal que estão nas mãos da mídia. Somos todos reféns da meia dúzia de jornais que definem o que é notícia, as práticas de corrupção que merecem ser condenadas e, incrivelmente, quais e como devem ser julgadas pela mais alta corte de Justiça do país. Na última sessão do julgamento da Ação Penal 470, por exemplo, um furioso ministro-relator exigia a distribuição antecipada do voto do ministro-revisor para agilizar o trabalho da imprensa (!). O STF se transformou na nova arena midiática onde o enredo jornalístico do espetáculo da punição exemplar vai sendo sancionado.
Coragem de enfrentar o monstro – Depois de cinco anos morando fora do país, estou menos convencido por que diabos tenho um diploma de jornalismo em minhas mãos. Por outro lado, estou mais convencido de que estou melhor informado sobre o Brasil assistindo à imprensa internacional. Foi pelas agências de notícias internacionais que informei aos meus amigos no Brasil de que a política externa do ex-presidente metalúrgico se transformou em tema padrão na cobertura jornalística por aqui. Informei-os que o protagonismo político do Brasil na mediação de um acordo nuclear entre Irã e Turquia recebeu atenção muito mais generosa da mídia estadunidense, ainda que boicotado na mídia nacional. Informei-os que acompanhei daqui o presidente analfabeto receber o título de doutor honoris causa em instituições europeias e avisei-os que por causa da política soberana do governo do presidente metalúrgico, ser brasileiro no exterior passou a ter uma outra conotação. O Brasil finalmente recebeu um status de respeitabilidade e o presidente nordestino projetou para o mundo nossa estratégia de uma América Latina soberana.
Meus amigos no Brasil são privados do direito à informação e continuarão a ser porque nem o governo federal nem o Congresso Nacional estão dispostos a pagar o preço por uma “reforma” em área tão estratégica e tão fundamental para o exercício da cidadania. Com 70% de aprovação popular e com os movimentos sociais nas ruas, Lula da Silva não teve coragem de enfrentar o monstro e agora paga caro por sua covardia. Terá Dilma coragem com aprovação semelhante, ou nossa meia dúzia de Murdochs seguirão intocáveis sob o manto da liberdade de e(i)mpre(n)sa?
*Jaime Amparo Alves é jornalista e doutor em Antropologia Social, Universidade do Texas, Austin
Excelentíssimo senhor
Com diplomas,
comendas e louvor.
Aplaudido de pé,
todo condecorado.
Nos palanques
sempre um bom lugar
A ele é reservado.
Cidadão honorário
Verbete de dicionário
Patrono da turma
Já é nome de rua.
Na galeria de retratos
sua foto avulta.
Em suma, um grande
filho da puta.
É de Fabrício Marques, no recém-lançado A fera incompletude (Dobra Editorial). Como diria Flávio Reis, “bateu”. Escrevi, há alguns anos, sobre Dez conversas – diálogos com poetas contemporâneos, livro em que ele entrevista 10 do subtítulo, ele mesmo um (não, não tem uma autoentrevista lá).
Ainda no blogue de Ademir, leio este, dele, de seu novo livro, A voz do ventríloquo (Edith), que recebi ontem, via Celso Borges, que encontrei na plateia de Chico Saldanha e Josias Sobrinho, no Chico Discos:
Bang bang no sábado à noite
um olho dois olhos um eco
um estampido morcego
estranho tiroteio de cego
garrafas estilhaçadas no saloon
caubóis saltando de lugar nenhum
balas chegando em câmera lenta
perfurando vísceras sem pedir licença
alguém vai tombar atrás do balcão
outro no banheiro não passa do chão
a face caída na poça de mijo
o jorro de sangue na testa um nojo
maluco faroeste ao vivo e em cores
sábado que vem num mocó da Travessa das Dores
Agora mesmo algum maluco
deve estar postando qualquer treco
genial na internet,
alguém deve estar pensando
em como melhorar aquele texto
enquanto lota o Especial
de vinagrete, perseguindo
obstinadamente um acorde
voltando da padaria.
Agora mesmo alguém
pode estar pensando
que guardamos só pra gente
o lado ruim das coisas lindas –
assim, trancafiado a sete chaves
de carinho – Alguém
pode estar sentindo tudo ao mesmo tempo
sozinho, assim brutalmente
sentimental, feito coubesse
toda a dignidade humana
num abraço tímido.
Agora mesmo alguém deve estar limpando
cuidadosamente o CD com a camisa,
pulando a ponta do pão pullman,
sentindo o baque da privada gelada,
perguntando quanto está o metro
daquela corda de nylon, trepando
no carro, empurrando o filho
no balanço com uma das mãos
e na outra equilibrando
a lata e o cigarro – Agora mesmo
alguém deve estar voltando,
alguém deve estar indo,
alguém deve estar gritando feito um louco
para um outro alguém
que nem deve estar ouvindo.
Agora mesmo alguém
pode estar encontrando sem querer
o que há muito já nem era procurado,
alguém, no quinto sono,
deve estar virando para o outro lado;
alguém, agora mesmo, no café da manhã
deve estar pensando em outras coisas
enquanto a vista displicentemente lê
os ingredientes do Toddy.
Marcelo é este grande poeta que faz poesia com qualquer coisa do dia a dia, já o chamaram “Manoel de Barros urbano”. Dá uma imensa alegria saber dos lançamentos, eu que acompanho à distância os trampos do cara, e me somo ao coro dos que ao longo do tempo se tornam chatos, com a mesma pergunta de sempre, “e o próximo livro, quando?”, desde que ainda se chamava Hemingway Hotel. Grande honra ter um exemplar autografado do esgotadíssimo Orfanato portátil, que me chegou num envelope junto com alguns poemas inéditos, em papeis que ainda tenho guardados. Já fiz encomenda da nova edição, seja, meras desculpas para justificar a aquisição de um livro que já se tem, pela capa ou pelo texto de apresentação da querida Angélica Freitas. Pra mim Angélica Freitas é Marcelo Montenegro de saias. E Marcelo Montenegro é Angélica Freitas de calças.
Uma vez quase nos trombamos, eu e ele, em Imperatriz, numa Feira do Livro em que a poeta Lília Diniz aceitou umas sugestões minhas e a gente levou pra lá nomes como Artur Gomes, Celso Borges, João Paulo Cuenca e Marcelo Montenegro. O trabalho me obrigou a voltar antes à São Luís e acabei não vendo, por exemplo, a leitura que CB e Marcelo fizeram de Fotografia aérea, de Ferreira Gullar.
Há tempos, aliás, Marcelírico me fala da vontade de trazer suas Tranqueiras líricas à Ilha. Livros novos são ótimo mote para trazê-los, ele, Ademir, Fabrício e tanta gente boa que tá se mexendo por aí, fazendo coisas bonitas como a que você, caro leitor, cara leitora, leu, só neste post. Imaginem as outras páginas dos livros! Sobre eles, aliás, volto a falar em breve. Por enquanto fiquem com Marcelírico dizendo o poema acima:
O gato é uma maquininha
que a natureza inventou;
tem pêlo, bigode, unhas
e dentro tem um motor.
Mas um motor diferente
desses que tem nos bonecos
porque o motor do gato
não é um motor elétrico.
É um motor afetivo
que bate em seu coração
por isso ele faz ron-ron
para mostrar gratidão.
No passado se dizia
que esse ron-ron tão doce
era causa de alergia
pra quem sofria de tosse.
Tudo bobagem, despeito,
calúnias contra o bichinho:
esse ron-ron em seu peito
não é doença – é carinho.
O poeta Ferreira Gullar em Um gato chamado Gatinho (Ed. Salamandra, 2000). Sincera homenagem deste blogue à Pagu, nossa gatinha linda que ilustra este post.
Pagu caça um besouro
&
Hoje é aniversário de meu irmão Netto e do amigo Bruno, a quem dedicamos também o post. Muitos anos de vida, cabras bons!