São Benedito dos Colocados: lugar de existência e resistência

Vista aérea da comunidade quilombola São Benedito dos Colocados, em Codó/MA - fotos: Elson Paiva
Vista aérea da comunidade quilombola São Benedito dos Colocados, em Codó/MA – fotos: Elson Paiva
Árvore centenária tombada pelo desmatamento que vitima a comunidade
Árvore centenária tombada pelo desmatamento que vitima a comunidade

Neste mês de novembro, a comunidade quilombola de São Benedito dos Colocados, localizada a 8 km da sede de Codó/MA, completou 182 anos, acossada por interesses políticos e econômicos que têm tirado o sono e o sossego de sua população, notadamente a questão do desmatamento e a consequente degradação ambiental de áreas do povoado e arredores.

O território de 3.616 hectares já está georreferenciado desde 2017 e certificado pela Fundação Cultural Palmares — órgão vinculado ao Ministério da Cultura (MinC), responsável pela emissão de certidões às comunidades quilombolas e sua inscrição em um cadastro geral. Mas isto não tem impedido o assédio de políticos e empresários locais. Mais de 100 famílias vivem no local e produzem mandioca, arroz, milho, feijão e derivados de coco babaçu, entre outros produtos da agricultura familiar.

“O uso de veneno [agrotóxico] e o desmatamento geram insegurança alimentar, porque o veneno mata peixe, caça, coco, envenena a água, acaba com tudo”, denuncia o agricultor Valdivino Silva, liderança quilombola, sob uma coberta de palha e ao lado de diversos moradores da comunidade, que sob ela se protegiam do sol, quando da passagem da reportagem pelo povoado. Valdivino é agente da Cáritas Brasileira Regional Maranhão e membro da coordenação da Rede Mandioca e atualmente está sob proteção do Programa de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos.

“A gente faz as denúncias, mas o desmatamento sempre continua, passando a incluir o uso de motosserras. Um dia desses a gente trouxe a polícia para ver como é que estava o desmatamento. A madeira é levada daqui para uma empresa da cidade, que incentiva o desmatamento, mas as autoridades não tomam nenhuma providência”, continua Sebastião dos Santos, presidente da Associação de Moradores do povoado.

Os moradores sentem-se ameaçados e as árvores cortadas e derrubadas são símbolos dessas ameaças: algumas têm propriedades medicinais, outras dão alimento, como o coco babaçu. “Eu criei meus filhos quebrando coco”, assegura a quebradeira de coco Raimunda Nonata Silva. Azeite de coco e carvão são seus principais derivados, mas tudo se aproveita, inclusive a palha. “Acabou com muitas palmeiras [o desmatamento], onde se vai agora só se vê o descampado”. Mas as ameaças vão além, com jagunços fortemente armados circulando pelo território.

A insegurança denunciada pelos moradores de São Benedito dos Colocados afeta também a juventude. “Jovens, hoje, na comunidade, são poucos. Muitos não estão dispostos a mostrar sua cara, mas eles têm que entender que é a gente, essa geração mais nova, que tem que tomar conhecimento disso. Por que nem sempre, esses mais antigos, mais velhos, vão estar lutando de frente, e vai chegar uma hora que eles vão cansar, e é de agora que a gente tem que estar acompanhando, conhecendo a história, lutando, para a gente pegar uma base. Pouca escola hoje fala dessas comunidades tradicionais, como é a vida do quilombola”, afirmou Manoel Messias da Silva, estudante que manifestou o desejo de estudar Química e utilizar matéria-prima da região na fabricação de cosméticos, numa fala esperançosa e inspiradora.

São Benedito dos Colocados é um lugar de existência e resistência. Em certo sentido, não mudou muito o conceito de quilombo e comunidade quilombola desde antes da abolição formal da escravidão até hoje. Manoel Messias arremata: “Muita gente pode ser quilombola, mas ser quilombola, para mim, hoje, é estar com seus companheiros na comunidade lutando por seu território e praticando as culturas. Como já diziam os mais velhos, você estar na comunidade é uma coisa; você ser da comunidade é outra coisa”.

[Texto originalmente publicado na edição impressa do JP Turismo/ Jornal Pequeno de sábado (29 de novembro)]

De carinhos e conflitos

Não sei se chamo Igor de Sousa de amigo-irmão ou de filho. Ambos os parentescos caem bem: já o tinha visto umas poucas vezes, em geral por conta de nossa atuação em organizações de direitos humanos no Maranhão, e em meados do ano passado DP, como o chamo carinhosamente, veio estagiar na Cáritas Brasileira Regional Maranhão, onde além de trabalharmos, conversávamos muito sobre música, literatura, cinema e artes em geral, sempre um aprendendo com o outro.

Deixei a Cáritas semana passada e ele permanece por lá, onde espero que tenha vida longa, pois reconheço neste estudante de Ciências Sociais um belo quadro para as lutas, não só naquela entidade.

Com nossas meninas temos também bebido um bocado, descobrindo e redescobrindo botecos, bares, calçadas, shows, churrasquinhos e nossa cozinha, onde ele sempre pede para ouvir Celso Borges, Itamar Assumpção, Jards Macalé, Miles Davis e Ferreira Gullar, entre outros. Pedidos raros e atendidos na medida do possível, a depender do clima da farra e do resto da galera que porventura nos acompanhe.

O apelido “depê” vem de um endereço de e-mail que ele ainda hoje usa, embora já disponha de um e-mail “sério”, “adulto”, feito, aquele, quando ele tinha mais ou menos a metade da idade que tem hoje, 22 bem vividos e estudados: desajustado underline punk arroba hotmail ponto com.

Mas comecei a falar dele e quase me perco por conta de um texto seu que recebi hoje. Queria minha ajuda na edição e para fazer repercutir o assunto. Já saiu no site da Cáritas/MA, mas roubo-o ao “blogue cachorro”, como ele carinhosamente chama este espaço, especialistas que estamos em reeditar velhas gírias, este blogue que divide a honra de sua leituratenta apenas com o Socialista Morena. “Quando encontrar a Cynara [Menezes] novamente, diga-lhe que só leio dois blogues: o teu e o dela”, pediu-me certa vez. Quando encontrá-la novamente ela já saberá.

Sobre o texto abaixo, DP demonstra uma sincera indignação: “como é que um cara desse pode ser ofensivo? Ele é menor que eu”, revela. “O cara tá com mais de 30 boletins de ocorrências nas mãos e não acontece nada! É por isso que eu estudo, para ver se consigo ajudar esse povo”. Qual professor Raimundo para Ptolomeu, penso: “eu queria ter um filho assim”.

“A GENTE NÃO SABE O QUE TÁ ACONTECENDO”

Vítima de prisão irregular e ameaçado de despejo, José da Cruz Monteiro, liderança quilombola, concedeu entrevista coletiva na manhã de hoje (4), na sede da CPT-MA

TEXTO E FOTO: IGOR DE SOUSA*

Em uma coletiva de imprensa realizada na manhã de hoje (4), na sede regional da Comissão Pastoral da Terra (CPT-MA), foi exposto que dois policiais militares encarceraram de forma ilegal o líder quilombola José da Cruz Monteiro (51), da comunidade de Salgado, área que se encontra em processo de titulação via Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra),  no município de Pirapemas/MA.  A prisão ocorreu devido à morte de um caprino que invadiu a sua roça. José da Cruz já havia feito vários boletins de ocorrência na delegacia local para providenciar soluções sobre a invasão dos animais à sua propriedade, não obtendo qualquer resultado por parte da polícia.

Em 31 de janeiro, após abater o animal que estava em sua pequena plantação, foi à delegacia comunicar o feito e solicitar a retirada do mesmo. Porém, após relatar o fato, foi preso pelos policiais que ali estavam de serviço. A prisão foi feita sem qualquer flagrante, sem qualquer mandado de prisão. Ao ser preso, o líder quilombola recusou-se a receber algemas, sendo jogado à força em uma cela, havendo incitação por parte dos policiais para que os presos espancassem o referido senhor. Após horas sem comer nada, passando o dia apenas com o gole de café que havia tomado em casa, foi transferido para a delegacia de Itapecuru-Mirim. Lá foi comunicado ao advogado Diogo Cabral, assessor jurídico da CPT-MA, que a situação de José da Cruz Monteiro era de depoente, configurando completa arbitrariedade aos fatos ocorridos em Pirapemas. Durante o período em que esteve preso, José da Cruz teve sua casa invadida e vasculhada por policiais. Ele relatou ainda que sua casa e a de seu cunhado estão ameaçadas de demolição por Ivanilson Pontes Araújo, proprietário da área.

O que se percebe pela recorrência dos fatos, seja no que tange à quantidade de boletins de ocorrência registrados pelo senhor José da Cruz Monteiro, sem qualquer providência por parte da polícia, seja pelo envenenamento de animais e água potável na comunidade Salgado, ocorrido em 2011 e sem resposta até o presente momento, é uma total complacência do governo do estado do Maranhão quanto à situação de violência e conflito no campo referente às comunidades quilombolas e camponesas. Há violência cotidiana contra essas comunidades, havendo inclusive a existência de grupos armados no interior do estado. Quanto aos órgãos responsáveis pela titulação, há lentidão e descaso. Hoje o Incra conta com mais de 300 processos aguardando titulação, contando com um quadro ínfimo de funcionários para os referidos trabalhos. A própria comunidade de Salgado é um exemplo notável dessa morosidade: já titulada certificada pela Fundação Cultural Palmares (FCP), a área aguarda titulação pelo Incra. O processo está parado desde 2000.

Outro dado alarmante é tratamento dado pelas autoridades estaduais. No ano passado, a delegada geral agrária foi categórica ao afirmar que no Maranhão não há conflitos no campo, havendo apenas conflitos entre vizinhos. Será?

Somente no último semestre do ano passado foram vitimadas quatro pessoas: duas lideranças sindicais e dois indígenas.

E assim segue a vida real de trabalhadores rurais na terra do faz de conta do governo Roseana Sarney.

Ameaçado de despejo, José da Cruz Monteiro (C), entre outro morador de Salgado e o advogado Diogo Cabral (D)

 

ENTREVISTA: JOSÉ DA CRUZ MONTEIRO

Qual a situação da sua comunidade? Lá, a nossa situação nós não aguenta, é muita escravidão. Muita injustiça. Ele [Ivanilson Pontes] coloca os vizinho [a reportagem optou por manter a transcrição da entrevista o mais próximo possível da fala de Monteiro] da gente contra a gente para matar o que é nosso. Ele coloca a própria polícia de Pirapemas contra a gente.

De quem o senhor fala? Quem persegue vocês? São três irmãos que vivem nos perseguindo. Eles são filhos de Moisés Sotero Araújo. Ele se diz proprietário das terras lá em Pirapemas. Quem afronta a gente lá é o Ivanilson Pontes Araújo.

Há situação de conflito na sua comunidade? Existem ameaças de morte? Ameaças às pessoas da comunidade? Como ocorrem? As ameaças que acontecem lá são com nossas criações e com a gente. Ele ameaça nós de morte e mata nossas criações para não ter o que comer. Ele mata e manda os outros matar, manda os capangas.

E a polícia? O que faz? A polícia sempre protege ele [o proprietário]. A gente se queixa e a polícia só protege o proprietário. Ela [a polícia] é bandida, só protege o proprietário. Diz que não pode fazer nada porque tem outras autoridades no conflito.

Como aconteceu a sua prisão? Eu fui preso pelo delegado de Pirapemas, pelo doutor Ricardo porque eu queria terminar de assinar o boletim de ocorrência. Nessa hora ele disse que eu estava preso, que eu era um bandido. Me pegaram, me jogaram para um bandido numa cela. Nesse dia eu passei o dia com um gole de café. Eu vinha registrando boletim de ocorrência, era a quarta vez que os bode entrava na minha roça. Na quarta vez eu matei. O dono não tira, eu tive que matar. Eu fui preso em Pirapemas e fui levado para Itapecuru para ser preso lá. Eu matei o bode para pesar a carne e vender para esperar o Ivanilson para ele pagar o meu prejuízo. Mas ele já tinha dado a carne do bode para a polícia. Eu saí jurado de lá, prometeram derrubar minha casa e a do meu cunhado hoje. Disseram que vão derrubar a do meu cunhado e depois a minha. A gente não sabe o que tá acontecendo, tá marcado pras 10 horas. Disseram que em dois dias vão me tirar de lá, de um jeito ou de outro.

*IGOR DE SOUSA é estudante de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), estagiário da Cáritas Brasileira Regional Maranhão e membro do jornal Vias de Fato.