“Marte um” e um inédito protagonismo negro no cinema brasileiro

Eunice (Camilla Damião) e Deivinho (Cícero Lucas) em cena de “Marte um”. Frame. Reprodução

Sob a égide do governo neofascista de Jair Bolsonaro (embora isso não comece exatamente com ele), vivemos um período em que a ignorância (vizinha da maldade, como já cantava a Legião Urbana) é cultivada, incentivada e orgulhosamente exibida. É um período em que mais que não ser racista é necessário ser antirracista, embora a mente escravagista de boa parte dos brasileiros se encontre hoje respaldada por exemplos e instituições do governo federal e, por isso mesmo, mais que nunca é preciso combater esse tipo de ideia.

Em “Marte um”, o nome do miliciano que tomou de assalto o Palácio do Planalto, embalado por uma sórdida rede de mentiras com que se elegeu e governa, é a primeira coisa que ouvimos. Mas a eleição e o desgoverno do ex-capitão servem somente para localizar temporalmente os acontecimentos desta ficção que tende ao documentário. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência, os dizeres clássicos que alertam os espectadores a cada filme, traduzem o Brasil real, com sua máscara de cordialidade disfarçando o racismo veladamente vigente ainda.

A opção primeira do diretor e roteirista (negro) Gabriel Martins salta aos olhos, para racistas e antirracistas: a negritude tem protagonismo inédito no cinema nacional, com quase a totalidade do elenco do filme formada por negros, numa inversão da equação costumeira: quantos filmes e novelas já não assistimos (e nos acostumamos) em que negros e negras não passavam de subalternos entre a cozinha e, no máximo, o volante?

Tércia (Rejane Faria) e Wellington (Carlos Francisco) em cena de “Marte um”. Frame. Reprodução

A trama habilmente costurada se desenrola em situações corriqueiras, que poderiam acontecer na casa ou na vizinhança do resenhista, do/a leitor/a, em qualquer lugar do Brasil, a partir de uma típica família de classe média brasileira, formada por um casal heterossexual (Wellington, zelador de um condomínio de luxo, frequentador do Alcoólicos Anônimos, vivido por Carlos Francisco, e a diarista Tércia, personagem de Rejane Faria), pais de uma estudante de direito (a lésbica Eunice, interpretada por Camilla Damião, que, num gesto de afirmação, decide sair de casa e ir morar com a namorada) e um garoto (Deivinho, por Cícero Lucas), que joga bola de óculos, projetando o sonho do pai, enquanto o dele mesmo é tornar-se astrofísico – de onde vem o título do filme.

Longe de qualquer panfletarismo, “Marte um” é agradável de se ver, um dos grandes lançamentos cinematográficos brasileiros deste início de século, daqueles filmes em que o espectador não percebe o tempo passar, e sobretudo brasileiríssimo (no que isso tem de bom e ruim), entre traquinagens infantis, fanatismo por futebol (o ex-jogador uruguaio Sorín faz uma ponta, interpretando a si mesmo), churrasco e cerveja em festa de aniversário no quintal, os dilemas típicos de quem está deixando a adolescência e entrando na idade adulta, o fosso que separa a elite de seus serventes e a dificuldade do brasileiro médio em empatar as contas ao final do mês.

Detratores do cinema nacional e operadores da guerra ideológica travada pelo bolsonarismo no pouquíssimo que restou da estrutura voltada ao cinema e à cultura em geral, num governo que destruiu estruturas como o Ministério da Cultura (e sucateou a Ancine até não poder mais), devem torcer-lhe o nariz, pois o filme é de afirmação: da população negra enquanto sujeitos de direitos, das possibilidades que dignidade e cidadania garantem a estes mesmos sujeitos e da transformação social realizada pelas políticas de cotas, algo negado somente por cínicos, mal-intencionados em geral e gente intelectualmente desonesta que acredita que reconhecer isto signifique perder privilégios.

Gabriel Martins convida à reflexão ao cavoucar o dedo na ferida. “Marte um” levou o prêmio de melhor filme no júri popular do Festival de Gramado e é o primeiro filme dirigido por um cineasta negro a ser escolhido para representar o Brasil no Oscar.

“Marte um”. Cartaz. Reprodução

Serviço – O filme será exibido na sessão de abertura do 45º. Festival Guarnicê de Cinema, hoje (23), às 19h, no Teatro Sesc Napoleão Ewerton (Condomínio Fecomércio, Av. dos Holandeses, s/nº., Calhau). Os ingressos, gratuitos, podem ser retirados na bilheteria do teatro, sujeito à lotação do local.

Veja a programação completa do evento.

Jair já vai tarde

Foto: Zema Ribeiro

Jair Bolsonaro (PL) se elegeu e governou com mentiras. Conspurcou o Evangelho de Jesus Cristo segundo São João como slogan de campanha em 2018: conhecereis a verdade e a verdade vos libertará, repetia aos quatro ventos, mas uma vez no cargo, colocou seus crimes (e os dos filhos) sob sigilo de 100 anos.

Um dos traços do fascismo é acusar o outro do que você mesmo faz. Em 2018 Bolsonaro disse que o Brasil se tornaria uma Venezuela caso o vencedor do pleito fosse seu oponente, Fernando Haddad (PT), alçado à cabeça de chapa após a ilegítima prisão de Luís Inácio Lula da Silva (PT, que então liderava todas as pesquisas de intenção de voto), orquestrada pelo juiz parcial Sérgio Moro, em conluio com procuradores e a acusação. Mentira tem perna curta. E nariz comprido.

Em 2022, com o país de volta ao mapa da fome, o neofascista disse que é mentira que alguém passa fome no Brasil, que não se vê ninguém pedindo pão. O cruel Jair Bolsonaro vive em uma bolha, uma realidade paralela em que só se acredita no que querem ele e seus fanáticos seguidores.

Caminho e dirijo todos os dias pelas ruas da cidade em que moro e independentemente da rota e do tamanho do percurso, nunca antes na história deste país eu tinha visto as faixas de pedestres nos semáforos loteadas entre flanelinhas, malabares, imigrantes e famélicos em geral. A propósito, a foto que abre-ilustra este texto foi feita ontem, pouco depois de meio-dia, no Renascença, em São Luís.

A despeito de tudo isso, Bolsonaro manteve-se no poder, a peso de ouro, apesar da falta de decoro, das mentiras diuturnas e dos não poucos crimes cometidos em quase quatro anos de mandato. É asqueroso, canalha, cínico, covarde, deselegante, grosseiro, hipócrita, perverso, vil, “o impostor que com o posto não condiz”, como diz a letra da recém-lançada “Hino ao inominável”, de Carlos Rennó (com música de Chico Brown e Pedro Luís, gravada por 30 intérpretes antifascistas).

Presidente em férias permanentes, Bolsonaro parece enfim fazer seu último passeio pago com dinheiro público: foi passar e nos fazer passar vergonha à vista, no débito, no crédito (sob o sigilo do cartão corporativo) e no pix (que ele continua mentindo ter inventado) no funeral da rainha da Inglaterra e na ONU, transformados em palanques e comícios, com suas habituais mentiras e a claque de ignorantes a lhe bater palmas e gritar “mito!”.

Ainda bem que o pesadelo está chegando ao fim. Já não era sem tempo.

Ponte Bahia-Maranhão: o axé de Mariene de Castro

Mariene de Castro levou a plateia ao delírio, ontem (6), na Praça Maria Aragão. Foto: Zema Ribeiro

Sem meias palavras: a apresentação de Mariene de Castro, ontem, na Praça Maria Aragão, foi um arrebatamento. “O sino da igrejinha faz Belém/ dêm/ dêm”, adentrou ao palco cantando, após ser chamada pelo prefeito Eduardo Braide (Podemos) em pessoa (quase sempre errado, acertou a mão na programação de aniversário da cidade, e na noite anterior já tinha usurpado o papel do cerimonialista ao chamar ao palco o jamaicano Eric Donaldson).

Era a noite dedicada às religiões de matriz africana e a escolha da baiana Mariene de Castro (Bahia e Maranhão têm as maiores populações afrodescendentes do país) revelou-se mais que acertada. Sua trajetória coerente já revelava sua devoção e reverência às nossas heranças ancestrais e o show parecia estreitar essas relações, com seu repertório de pontos, sambas, chulas e suingueira, que incluiu peças como “O vira” (Luhli/ João Ricardo), sucesso do grupo Secos e Molhados, e “Mamãe Oxum”, tema de domínio público popularizado por Zeca Baleiro e Chico César.

Se a ponte Bahia-Maranhão não foi construída por Mariene de Castro, ela certamente enfeitou-a, embelezou-a, tornando o caminhar mais aprazível. Ela mesmo disse, durante o show, que a noite de ontem era “um divisor de águas”. Um marco não só em sua carreira, mas na de grande parte do público presente, que não esquecerá tão cedo do que ou/viu e certamente terá neste um dos grandes shows da vida.

Atriz e cantora coabitam pacificamente uma artista que é pura ginga, e logo no início, após umas poucas rodopiadas dela pelo palco, entendi porque ela fez questão de citar o nome de seu figurinista (Wilson Ranieri) na entrevista que ela me concedeu: seu vestido (depois de rodopiar à vontade, ela tirou a capa) parece ter vida própria, um espetáculo à parte, com seu esvoaçante bailado alegre. Sem falar no painel, “de Alaíde e Alaído Almeida, mãe e filho, que desenharam a nossa gente nordestina”.

Se o povo de santo, os fiéis das religiões de matriz africana, parecem não ter motivos para festejar, vítimas cotidianas de discursos e práticas de ódio, as milhares de pessoas presentes à praça ontem, certamente têm em Mariene de Castro uma embaixatriz, alguém que não se cala diante de violências e injustiças e tampouco separa arte de política por conveniência. Pelo contrário: seu show demarca uma posição, num tempo em que esta é exigida, sobretudo a artistas, estes formadores de opinião sempre tão violentados em tempos fascistas e autoritários.

Mariene de Castro não citou o nome de nenhum dos primeiros colocados nas pesquisas eleitorais, mas não se incomodou com os cantos pró-Lula e contra Jair Bolsonaro que a plateia entoou ao longo de sua apresentação. Engrossou o coro, falando em mudanças e transformações. Citou o Nelson Cavaquinho que não cantou: “isso tudo vai passar e o sol vai brilhar mais uma vez”.

Depois de “Alguém me avisou” (Dona Ivone Lara), “Sonho meu” (Délcio Carvalho/ Dona Ivone Lara) foi interrompida: uma fã conseguiu driblar a segurança para anunciar, aos prantos, no palco, que havia se perdido da filha criança. Apesar do susto, Mariene pediu calma à mulher e à segurança, e repetindo o nome da criança ao microfone; logo várias mãos apontaram-na e, com mãe e filha se reencontrando, “Sonho meu” acabou ficando mesmo pela metade. “Eu sou mãe, fiquei nervosa. Que nenhuma mulher precise mais chorar a dor da perda de um filho”, rogou, referindo-se, talvez, a quem perdeu parentes para a pandemia de covid-19, mas não só. Entoou uma Salve Rainha, acompanhada por grande parte da plateia, lição prática de sincretismo. Seguiu com a sequencia com que homenageava a centenária Dona Ivone Lara, cantando “Um sorriso negro” (Adilson Barbado/ Jair Carvalho/ Jorge Portela).

“Eu sou contra qualquer interrupção dos direitos humanos”, ousou dizer, sempre sem meias palavras. “Contra a homofobia, o racismo, o feminicídio, a intolerância religiosa”, bradou.

A determinada altura, seus percussionistas encararam a parelha do tambor de crioula. “Cheguei, cheguei, cheguei com a minha turma, cheguei”, cantou o famoso refrão de Mestre Felipe. Noutra altura o percussionista maranhense Mariano tocou caixa e eles cantaram juntos um medley do Cacuriá de Dona Teté: “Choro da Lera”, “Jabuti/Jacaré” e “Assa cana”.

Voltou ao palco aos gritos de mais um e recebeu das mãos do prefeito um buquê de rosas brancas e vermelhas. “Nunca um prefeito tinha visto um show meu inteiro de cima do palco”, agradeceu. Sim, Eduardo Braide surfa na onda da popularidade dos artistas que fazem a festa da cidade – na véspera, beijava a primeira-dama enquanto aparecia no telão dançando agarradinho com ela “Cinderella”, primeira “pedra” que Eric Donaldson cantou ao subir ao palco na noite regueira do aniversário da Jamaica brasileira. 

Ela distribuiu ao público quase todas as flores, antes de receber no palco a representação de sete orixás, um a um saudados por ela. Por fim, saudou os erês fechando a conta com “O que é, o que é?”, clássico de Gonzaguinha, deixando o público com gosto de quero mais, apesar de ter cantado por aproximadamente duas horas. Puro axé, que volte logo e sempre!

Carta aberta a parentes e amigos bolsominions

“Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”
(Chico Buarque)

“É pena eu não ser burro; eu não sofria tanto”
(Raul Seixas)

“Meu coração não se cansa de ter esperança”, como cantou o recém-oitentão Caetano Veloso. Ao longo dos últimos quatro anos não foram poucas as vezes em que alertei parentes, amigos e conhecidos – ou deveria chamá-los todos/as de ex? – acerca do bolsonarismo, cuja máquina de mentir é tão perversa que acaba transformando seus próprios entusiastas em vítimas do próprio esquema.

Ainda em 2018 fui tachado por um par de parentes de “fanático”, adjetivo que acompanhava palavras como lulista, petista, dilmista, esquerdista ou comunista. Logo eu, que nunca deixei de fazer justas críticas ao PT e seus líderes enquanto o partido esteve no poder – ao contrário de quem, após um mandato inteiro de desmandos de Jair Bolsonaro, segue aplaudindo-o desavergonhada e acriticamente.

Falo de gente pobre, gente como eu. Não é nem gente remediada, que diante de qualquer emergência possa fazer um saque em uma poupança e resolver um imprevisto. Gente que se nega a perceber que é inaceitável o retorno do Brasil ao mapa da fome, sendo o país um dos maiores produtores de alimentos do mundo; gente que se nega a perceber que é impossível pagarmos tão caro por combustíveis fósseis, sendo o país um dos maiores produtores de combustíveis fósseis do mundo. A quem me lê agora e não simpatiza com Jair Bolsonaro e sua família, peço perdão pelas repetições e redundâncias, mas estas são necessárias, vocês sabem o porquê.

É claro que é muito mais fácil receber uma figurinha engraçada, um meme, um vídeo curto e imediatamente repassar por aplicativos de mensagens e redes sociais em geral. Mas nem sempre o mais fácil é o melhor ou o correto. Ler dá trabalho, interpretar texto dá trabalho, pesquisar dá trabalho – ter consciência de classe, então, nem se fala. Checar, então, se uma notícia é verdadeira ou não, mesmo que isto custe apenas perguntar a algum conhecido, dá muito trabalho.

“Mas esta checagem deveria ser papel dos próprios jornalistas”, uns podem argumentar, não sem razão. Sim, deveria: mas muitos de meus colegas de profissão sucumbiram ao bolsonarismo, mesmo que o líder neofascista seja uma ameaça ao exercício crítico e livre de nossa profissão, além de à nossa própria existência. Fora que não são apenas jornalistas que usam redes sociais, estas ferramentas que têm suas vantagens, mas também deram voz a uma legião de imbecis, como ainda teve tempo de afirmar Umberto Eco (1932-2016).

Um presidente da república é uma referência política, moral e cultural. Para o bem ou para o mal – e esta antítese está bem desgastada, quando a extrema-direita se posiciona como “o bem” para derrotar “o mal” (seja o comunismo, o lulismo, o petismo, a esquerda, os vermelhos), mesmo pecando, ao usar o nome de Deus em vão, para mentir. Cristianismo e bolsonarismo são doutrinas absolutamente incompatíveis.

Jair Bolsonaro se elegeu com a cantilena vazia do pseudocristianismo escondido em um de seus slogans de campanha: “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, esgarçou o versículo bíblico do evangelho de São João. Na prática a teoria é outra e qualquer investigação sobre si ou sua família é colocada em sigilo de 100 anos.

Faço questão de escrever este texto puxando as coisas apenas pela memória, sem consultar links ou reler matérias – fosse citar exemplos cotidianos, uma carta aberta não seria suficiente, melhor seria escrever logo um livro, mas já há excelentes publicações revelando as entranhas do bolsonarismo e seu modus operandi, desde o processo que resultou em sua ida à reserva do Exército até a relação dele e sua família com as milícias cariocas.

O Partido dos Trabalhadores está fora do poder há seis anos e qualquer verdade dita a um simpatizante de Jair Bolsonaro ainda é invariavelmente rebatida com um “e o PT?”, “e o Lula?”, “e a Dilma?”. Em meio a isso, a prisão, covarde, pois injusta, pois sem provas, do maior líder político vivo da América latina, pelas mãos de um juiz e procuradores corruptos, o lavajatismo a serviço do bolsonarismo, cujos objetivos eram tirar das eleições de 2018 o então líder em todas as pesquisas de opinião e alimentar o antipetismo.

Mentiras têm pernas curtas: a farsa caiu, a casa dos golpistas caiu, e o governo Bolsonaro, quatro anos depois de eleito, nada tem para mostrar que tenha beneficiado a vida de qualquer brasileiro, a não ser a do próprio nanopresidente, de seus familiares e aliados de ocasião, cujas burras nunca enchem.

Vivemos há dois anos e meio uma crise sanitária global, com distintos comportamentos em relação a seu combate ao redor do mundo. A opção do Brasil governado pelo neofascismo foi retardar a compra de vacinas enquanto tentava negociar propinas e as sórdidas mentiras de toda ordem do Hitler tupiniquim que acabaram por colaborar para o inchaço do número de óbitos, hoje em mais de 700 mil, muitos dos quais poderiam ter sido evitados, se o adorador de Ustra tivesse agido em prol do povo, em vez de ficar imitando gente morrendo por falta de ar. Tudo indica que a história se repetirá com a varíola dos macacos, infelizmente.

Por vários motivos, diversos gênios da criação artística brasileira faleceram nos últimos anos: Agnaldo Timóteo (1936-2021), Aldir Blanc (1946-2020), Cassiano (1943-2021), Dona Inah (1935-2022), Flávio Migliaccio (1934-2020), João Gilberto (1931-2019), Letieres Leite (1959-2021), Mário Luiz Thompson (1945-2021), Moraes Moreira (1947-2020), Nelson Sargento (1924-2021), Paulo Diniz (1940-2022), Paulo Gustavo (1978-2021), Rubem Fonseca (1925-2020), Sérgio Sant’Anna (1941-2020), Tarcísio Meira (1935-2021). Em nenhum caso o ocupante do Palácio do Planalto decretou luto oficial, lançou nota de pesar ou sequer publicou qualquer coisa em redes sociais, manifestando condolências a familiares e fãs-clubes.

“Que diferença faria?”, poderão me perguntar. É o simbólico que nos diferencia dos animais. E este profundo desprezo pelas artes – tidas como coisa de esquerdistas – é um dos símbolos do fascismo.

Por falar nisso, apesar de este texto se intitular “Carta aberta a parentes e amigos bolsominions”, outra categoria poderia estar no título: não perdoo artistas bolsonaristas. É uma contradição em termos. O desmonte sistemático das políticas culturais – e do próprio Ministério da Cultura – já seria motivo suficiente para que o candidato à reeleição não encontrasse apoio entre a classe. E particularmente acredito que artistas, “as antenas da raça” no dizer de Ezra Pound (1885-1972), sejam bem maiores que bobagens como “mamata da Rouanet” ou “caixa preta do BNDES”.

Falando em mamata, por que é mesmo que quem se indigna com a corrupção só se indigna com a corrupção do PT? Os governos de Lula e Dilma, além dos investimentos em órgãos de controle e fiscalização, criaram o Portal da Transparência e nunca interferiram em aparelhos como a Polícia Federal a fim de livrar quaisquer de seus quadros em investigações. Lideranças petistas foram condenadas, presas, perderam cargos. Ou seja: foram punidos por seus crimes. Resumindo: cortaram na própria carne.

Apesar do desejo de alguns, no Brasil (ainda) não existe pena de morte – quer dizer, até existe informalmente, fora da lei, para a população negra, moradores de periferias e pequenos traficantes. Então o que explica o cinismo de quem até hoje se revolta com uma tapioca comprada com cartão corporativo, mas não se revolta com os milhões torrados diariamente pelo atual mandatário da república, sob a proteção dos sigilos centenários?

Volto aos artistas: aqueles que se respeitam e nutrem respeito por seu público têm lado e assumem. E não se trata de ser petista, lulista, dilmista ou beneficiário de leis de incentivo à cultura através de renúncia fiscal. Trata-se de assumir uma postura diante da encruzilhada civilização x barbárie, autoritarismo x democracia, alegria x tristeza, humanidade x desumanidade. O Brasil é o país da alegria e grande parte dela nos é dada por artistas – imaginem o que teria sido do isolamento social sem as lives, os streamings ou quaisquer outras formas de arte e entretenimento. Como podem artistas apoiarem quem representa a tristeza e a morte? Ou, a esta altura do campeonato, aferrarem-se a uma suposta neutralidade? “Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”, já diria o Nobel da Paz Desmond Tutu (1931-2021).

Polarização existia nos tempos em que Lula e Dilma disputavam eleições contra Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, José Serra e, entre outros, Geraldo Alckmin. Ora, se Alckmin entendeu a necessidade de alianças para livrar o Brasil do neofascismo e do neonazismo, qual é a sua dificuldade em entender?

Há uma barbárie em curso no Brasil, basta acompanhar o noticiário: do capoeirista Moa do Katendê (1954-2018), entre o primeiro e o segundo turnos da eleição de 2018, ao campeão mundial de jiu-jítsu Leandro Lo (1989-2022) no último fim de semana, passando pela vereadora Marielle Franco (1979-2018) e o motorista Anderson Gomes (1978-2018), o bolsonarismo mata. “Ah, mas o presidente não apertou o gatilho em nenhum destes casos”, apelará um/a bolsonarista, que deve, no entanto, acreditar na facada desferida por Adélio Bispo durante (te)at(r)o de campanha de Bolsonaro em 2018. De fato não puxou o gatilho, mas reiteradamente incentiva o ódio e a eliminação física de opositores em discursos, além de ter facilitado o porte e a posse de armas à população em geral, colaborando para o ambiente de terror e guerra civil que o Brasil, mais do que nunca, vive (ou morre?).

Qual terá sido o peso da postura de artistas contrários à ditadura militar brasileira instaurada em 1964 para o fim do regime de exceção em 1985? Obviamente é difícil calcular. Mas sua recusa em calar, que os levou a prisões, torturas, exílios, desaparecimentos e censuras, certamente colaborou para que o pesadelo acabasse. Não há clima, tempo, espaço, nem motivo para neutralidade. Goste-se ou não de Lula, do PT, ou de quaisquer nomes e partidos postos à disputa.

Não é preciso sentir dor para se indignar com a dor alheia. Não é preciso passar fome para se indignar com a fome alheia. Não é preciso ser negro para lutar contra o racismo. Não é preciso ser homossexual para lutar contra a homofobia e a violência que dela decorre. Não é preciso ser indígena para ser contra o desmatamento e o garimpo ilegais na floresta. Não é preciso ser mulher para se indignar contra os assustadoramente crescentes números de estupros e feminicídios. Basta ser humano e ter alguma empatia e alguma consciência de que o estímulo à lei da selva, por ação ou omissão, não nos serve nem nos representa.

Esta singela missiva é um último chamado à razão a parentes, amigos e artistas bolsonaristas. Errar é humano e não é vergonhoso admitir erros. Antes tarde do que nunca. Ainda é tempo de reconstruir o Brasil. Ou ao menos de não deixar terminarem de destruí-lo. Nem simpatizantes e defensores de Bolsonaro aguentariam um eventual segundo mandato deste governo da necropolítica e da destruição sistemática. Até por que, caso esta tragédia aconteça, sequer existirá Brasil. E quem diz/ia que foi enganado em 2018 não vai ter desculpa dessa vez.

São Luís/MA, 11 de agosto de 2022

Zema Ribeiro, jornalista antifascista

Comunhão de Mariana Aydar com o público marcou encerramento do Festival Zabumbada

A cantora Mariana Aydar em comunhão com a plateia do Festival Zabumbada. Foto: Jesus Aparício. Divulgação

Quando a paulista Mariana Aydar venceu o Grammy latino em 2020, com o álbum “Veia nordestina” (Natura Musical), cujo repertório majoritariamente autoral é dedicado ao forró (e outros gêneros abrigados neste guarda-chuva), muita gente torceu o nariz: a cantora parecia estar invadindo um terreno sagrado de forma ilegítima; alguns até hoje lhe atribuem falas que não fez, em relação ao forró (e à música nordestina em geral).

A apresentação da cantora, ontem (10), no encerramento da programação do Festival Zabumbada, apenas reafirmou a veia nordestina de Aydar, filha do mago Mário Manga (do Premeditando o Breque) e de Bia Aydar, empresária e produtora que trabalhou com Luiz Gonzaga (1912-1989), cujos discos a cantora começou a ouvir ainda na infância, iniciando a paixão que se aprofundou nos três anos em que ela integrou a banda Caruá (sua primeira experiência profissional com música) e o casamento com o multi-instrumentista Duani, também um artista oriundo do forró.

Chamam a atenção a entrega da cantora no palco, a qualidade do repertório, o entrosamento com a banda (ela toca triângulo e dança quase o show inteiro), num misto de zelo e reverência ao forró e aí reside a verdade da artista: ela não é uma cantora convencional de forró, ao trazer para seu repertório a influência de outros elementos que já cantou ao longo de sua carreira, iniciada com o disco “Kavita 1” (2006), como o samba, a axé music e até mesmo o que convencionou-se chamar de brega.

Mariana Aydar subiu ao palco por volta de 23h20 e cantou por cerca de hora e meia, se equilibrando entre repertório autoral e releituras. O desafio era enorme: nas noites anteriores, o paraibano Chico César (8) e a paraense Dona Onete (9) fizeram apresentações antológicas, e a artista sabia que não podia deixar por menos.

Começou com “Coração bobo” (Alceu Valença), escolha sagaz para agradecer o convite do Festival Zabumbada: “zabumba bumba esquisito batendo dentro do peito”, diz a letra. Quando cantou os versos “tu vens, tu vens, eu já escuto os teus sinais”, de “Anunciação” (Alceu Valença), fez o gesto do L com as mãos, para delírio da plateia.

Depois de cantar “São João do Carneirinho” (Isabela Moraes) e “Olha pro céu” (Luiz Gonzaga/ José Fernandes), agradeceu efetivamente o convite da produção, revelando a emoção de estar mais uma vez em São Luís – pelas reações da plateia, a recíproca era verdadeira.

Depois de “Te faço um cafuné” (Zezum), cantou “Tá?” (Carlos Rennó/ Pedro Luís/ Mariana Aydar) e ao final, no verso “pra bom entendedor meia palavra bas”, emendou “pra bom entendedor meia palavra bolso”, dando a senha para o público (e a própria artista) gritar/em “fora Bolsonaro!”e cantar/em “olê, olê, olê, olá/ Lula, Lula!”.

Em “Palavras não falam” (Mariana Aydar) o público sentiu os ares do tecnobrega, exalando a impureza do forró de Aydar – e é no atrito e no encontro que as culturas se reinventam e permanecem –, a prenunciar a sequência que incluiu “Morango do Nordeste”, composição dos pernambucanos Walter de Afogados e Fernando Alves, cujo epicentro do sucesso foi o Maranhão de Lairton e Seus Teclados, e “Medo bobo” (Juliano Tchula/ Maraísa/ Vinicius Poeta/ Junior Pepato/ Benicio Neto), hit de Maiara e Maraísa.

A plateia novamente foi ao delírio quando Mariana Aydar cantou “Espumas ao vento” (Accioly Neto) e após “Foguete” (J. Velloso/ Roque Ferreira) elogiou “o povo nordestino, que sabe votar”. Na sequência emendou um medley de forró pé de serra, em que, ao triângulo, se fez acompanhar apenas da zabumba de Felipe Silva e da sanfona de Cosme Vieira: “Forró do bole-bole” (Ton Oliveira/ João Silva/ Raimundo Evangelista), “Bulir com tu” (Antonio Barros/ Cecéu) e “No balanço da canoa” (Toinho de Alagoas). Sua banda se completava com Rafael Moraes (guitarra), Magno Vito (contrabaixo) e Bruno Marques (mpc).

Outra sequência que chamou a atenção em meio ao repertório foi a homenagem a Dominguinhos (1941-2013), com quem Mariana Aydar chegou a conviver – em 2014 dirigiu, com Eduardo Nazarian e Joaquim Castro, o documentário “Dominguinhos”. Cantou “Lamento sertanejo” (Dominguinhos/ Gilberto Gil), “Tenho sede” (Anastácia/ Dominguinhos) e “Gostoso demais” (Dominguinhos/ Nando Cordel).

Crítica ferrenha do bolsonarismo – e do que o guarda-chuva fascista abriga: machismo, misoginia, racismo, homofobia etc. –, ela não limou o bolsominion assumido Vital Farias do repertório. Dele, cantou “Ai que saudade d’ocê”, antes de “Preciso do teu sorriso” (João Silva/ Enok Virgulino), esta ampliando a homenagem a Dominguinhos, com quem gravou a faixa em “Cavaleiro selvagem aqui te sigo”, seu disco de 2011, produzido por Duani e o gênio Letieres Leite (1959-2021).

Do repertório da intercontinental Francisco, El Hombre pinçou “Triste, louca ou má” e mandou o recado: “o que antes passava despercebido, hoje a gente percebe que é machismo, que é agressão e não vai mais deixar passar”. Na porção autoral do repertório de “Veia nordestina” é perceptível o esforço da artista em combater este e diversos outros preconceitos nas letras. Exemplo disso, ela apresentou, após “A ordem é samba” (Jackson do Pandeiro/ Severino Ramos), com “Na boca do povo” (Fernando Procópio/ Tinho Brito), de letra espertíssima. A cantora tornou a dar seu recado: “tá tudo errado nesse país, de cabeça pra baixo”.

Ao cantar o “Forró do ET” (Mariana Aydar/ Isabela Moraes), lembrou a origem da música: ela estava em Caraíbas, na Bahia, em um festival de música em que se apresentavam Elba Ramalho (que duetou com ela na gravação da faixa em “Veia nordestina”) e o bandolinista Hamilton de Holanda; na ocasião, ambas e o marido de Mariana Aydar viram uma luz muito forte no céu, supostamente um disco voador.

Se a paixão de Mariana Aydar pelo forró começa com Luiz Gonzaga, o show de ontem fez valer a letra da não cantada “Sala de reboco” (Luiz Gonzaga/ José Marcolino): “todo tempo quanto houver pra mim é pouco”. O show seguiu com “Tropicana” (Alceu Valença/ Vicente Barreto), “Pagode russo” (Luiz Gonzaga), “Forró do xenhenhém” (Cecéu), “Feira de mangaio” (Sivuca/ Glorinha Gadelha), “Pedras que cantam” (Dominguinhos/ Fausto Nilo) e “Frevo mulher” (Zé Ramalho). A cantora deixou o palco sob o som do coro do público, que novamente entoava um festivo e vibrante “olê, olê,olê, olá/ Lula,Lula!”.

A comunhão de artista e plateia, musical e política, certamente se deve às dificuldades que os fazedores de cultura vêm enfrentando nos últimos quatro anos, no Brasil governado pelo neofascista Jair Bolsonaro, e à esperança de dias melhores, ontem certamente um sinal, com trilha sonora de Mariana Aydar. Que venham muitos outros assim!

Tirem as mãos das nossas bandeiras!

Foto: Acervo Feira da Tralha. Reprodução

A Feira da Tralha, nas pessoas de seus idealizadores Riba e Marly, bem como todos os órfãos do sebo, bar e restaurante que hoje atende exclusivamente online, vem a público repudiar o furto de uma toalha com a imagem do pré-candidato à presidência da República Luís Inácio Lula da Silva, do mesmo modelo que causou frisson recentemente em um festival de música.

A Feira da Tralha sempre foi um lugar do afeto e do respeito e, por isso mesmo, está permanentemente na trincheira de combate ao bolsonarismo, essa tragédia que se abate sobre o Brasil, cuja pilha de cadáveres vítimas da covid-19 é, em sua absoluta maioria, fruto do descaso, da irresponsabilidade e do deboche do nanopresidente Jair Bolsonaro, entre outras mazelas, como o retorno do Brasil ao mapa da fome, os altos índices insegurança alimentar, miséria, desmatamento, desemprego e analfabetismo – todos voltaram a crescer sob o jugo do neofascismo que por enquanto ocupa o Palácio do Planalto –, além dos altos preços de combustíveis e alimentos.

A liberdade de expressão é um direito humano, e como tal, se interrelaciona e interdepende de outros direitos, sem poder feri-los. Arrancar de uma janela uma bandeira que significa a manifestação da opção política de alguém é, sem eufemismo, roubo. O gesto de quem o praticou condiz com a distância entre discurso e prática do poder central, que diz combater a corrupção, mas faz gastos exorbitantes no cartão corporativo e coloca tudo sob sigilo de 100 anos.

A bandeira nacional foi usurpada por um séquito de fanáticos, que desacreditam na ciência, mas passam adiante as teorias conspiratórias mais mirabolantes recebidas por aplicativos de mensagens. A bandeira da Feira da Tralha, com a efígie de Lula, merecidamente reconhecido como uma das maiores lideranças políticas do mundo em todos os tempos, foi roubada, sem meias palavras.

Fascistas não passarão! Devolvam as nossas bandeiras e o nosso país!

[mês passado estive presente no aniversário de Ribamarx, como carinhosamente o chamamos, ocasião em que ele ganhou a toalha de presente dos amigos Chico Neis e Gabriela Flor; como órfão do bar presencial e antifascista em tempo integral, esta nota também me representa]

Quando o carteiro chegou e meu nome gritou com uma carta na mão

Divulgação

Uma das figuras mais marcantes de minha infância certamente é Araújo, carteiro na cidade de Rosário/MA, onde morei até os sete anos. Percorria a cidade inteira numa bicicleta cargueiro, a sacola de correspondências no bagageiro da frente, de onde ele habilmente as tirava e entregava aos destinatários, após gritar “Correios!”, a anunciar-se de porta em porta.

Conhecia pelo nome e era conhecido idem pela cidade inteira. Uma tia, que fazia pedidos nos antigos catálogos Hermes, costumava servir-lhe água, para aplacar o calor e o suor que sempre empapavam seu fardamento azul e amarelo, numa época em que as cores da bandeira eram motivo de orgulho, e não da vergonha de terem sido usurpados pelo neofascismo tupiniquim.

Ao lado de professores, carteiros estão entre os profissionais por quem mais nutro respeito. Ou admiração. Ninguém é nada sem os primeiros, com raríssimas e honrosas exceções; os segundos sempre foram motivo de alegria, quando batem palmas, tocam a campainha ou, como um outro dia, telefonam, para não serem obrigados a devolver uma encomenda, dada a dificuldade em entregá-la, visto que moro em prédio sem porteiro.

Não raros são os carteiros que já viram meus olhos brilhando quando da chegada de alguma aguardada encomenda, em geral livros ou discos.

O anúncio da vitória da privatização da estatal na Câmara dos Deputados, ontem (5), por 286 a 173 (placar nada apertado), entristeceu-me profundamente. Trata-se de uma empresa pública, eficiente e lucrativa. Os que caíram na balela de que cobrar bagagem baratearia passagens aéreas ou que a reforma trabalhista ajudaria a gerar empregos, agora caem na esparrela de que a privatização (ou desestatização, no dizer de eufemistas em conversas para boi dormir) vai “modernizar” os Correios.

Ora, é justamente o fato de ser uma empresa pública – com toda a responsabilidade social efetiva (em vez de mera jogada de marketing) que isso implica – que permite aos Correios atender todos os mais de cinco mil municípios brasileiros, com tarifas justas. Que permite, por exemplo, a um sebista, enviar um livro cobrando um frete de menos de 10 reais, num prazo razoável (há opções mais caras para quem desejar agilizar o recebimento de suas encomendas).

É lógico que não esqueci a imagem que circulou e, por ocasião da triste notícia de ontem, tornou a aparecer nas redes sociais: funcionários da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) fardados queimando a bandeira do Partidos dos Trabalhadores (PT), defendendo o voto em Jair Bolsonaro, nas eleições de 2018. Não foi falta de aviso, mas não gosto de pensar em vingança, embora espere que tenham aprendido a lição – obviamente, também, é impossível generalizar ou atribuir responsabilidades a toda uma categoria pela irresponsabilidade (ou crueldade ou masoquismo) de alguns.

O que é impossível é compreender o patriotismo entreguista de um governo com pulsão de morte, que revelou o pior do brasileiro: como conceber um negro racista (há um na presidência da Fundação Palmares), uma mulher misógina (outra é titular do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos) ou um homossexual homofóbico?

“Faça chuva ou faça sol, o carteiro sempre cumpre o seu dever”, ouvíamos dizer um deles em um desenho animado. A privatização não mais permitirá: se o carteiro, este artista merecedor do Nobel, do Grammy ou do Oscar na arte de ir aonde o povo está, chegava aonde Judas perdeu as botas, gastando as suas, os funcionários concursados de uma empresa pública passarão, como empregados do setor privado, a ir tão somente aonde o lucro (da empresa, não dos carteiros) permitir-lhes.

Pessimismo? De jeito nenhum! Não conhecer o mínimo de História é estar fadado a repetir erros do passado, vide o espetáculo grotesco em que se transformou a política no Brasil, em que um presidente da República chama o presidente de um tribunal superior de “filho da puta” (aqui sem os pudicos asteriscos ou reticências da grande mídia). Não regozijo-me, no entanto, usando de escudo o “não foi falta de aviso” ou o “eu avisei”. O buraco é mais embaixo e nele acabamos todos, afinal. “Não há abismo em que o Brasil caiba”, como afirma o título do mais recente disco do mestre Jorge Mautner.

O placar de ontem não é o resultado final deste jogo bufão. Mas, realista, pouco espero do congresso nacional, que se apequena a cada dia, ao permitir ao despresidente continuar seu script de perversidades e falta de respeito com qualquer um/a.

Cachorros são mais dignos e coerentes: tidos como inimigos número um dos carteiros, os cães em geral são mais fiéis a seus donos que o centrão, cujo fisiologismo permite fidelidade a quem pagar melhor. O que infelizmente ajuda a explicar muita coisa neste país.

O professor me ensinou fazer uma carta de amor, mas muito em breve, a depender do endereço, ela poderá não mais ser entregue.

Pena capital ao genocida

Em memória dos mais de 255 mil brasileiros vítimas da covid-19 e da irresponsabilidade do presidente genocida de extrema-direita Jair Bolsonaro

“O que é roubar um banco comparado a fundar um banco?”
Bertolt Brecht

“Se números frios não tocam a gente/ espero que nomes consigam tocar”
Bráulio Bessa/ Chico César

Uma estaca cravada no prepúcio
ainda é pouco pra este genocida.
Se a facada não lhe tirou a vida
é preciso tirar-lhe já o poder.
Quantos ainda precisarão morrer
no Brasil, hoje sinônimo de desgraça?
Bolsonaro, vá embora e leve a sua raça!
Meu povo não aguenta mais sofrer.

Uma corda em volta de seu pescoço,
um patíbulo, um grito desumano:
será que ao morrer faria o gesto insano
da arminha e elogio a torturador?
Quero que Bolsonaro saiba o que é dor
pra que enfim, acabe de vez a nossa.
Que o Brasil volte a ser o país da bossa,
do samba, do carnaval e não mais do horror.

Um tiro no meio de sua testa
distanciando seus olhos de facínora
sem empatia, cujo significado ele ignora.
Haverá quem chore por este desgraçado?
Milhares de corações dilacerados
pelas mortes de pais, mães, filhos e avós.
Precisamos, e logo, desatar os nós
da cilada em que nos meteu seu gado.

Cínicos, uns dizem “eu não sabia”.
Não foi falta de aviso, digo e repito.
Todos sabíamos no que daria falso mito
em lugar que deve ser ocupado por gente,
não por falso herói nada eloquente.
Faltará borracha pra apagar tamanho erro
e aqui e acolá ainda se ouve o berro
do gado que aplaude quem fode a gente.

Impeachment é nada e cadeia é pouco:
Bolsonaro merece passagem só de ida
para sofrer por toda eterna vida
em companhia de ídolos como Hitler e Ustra.
Nem no inferno o diabo quer esses filhos da puta
que tanto mal fizeram à humanidade.
Nem na lata de lixo da história lhes cabe.
Contra suas fake news, eis a verdade absoluta.

A política do luto e da merda

TEXTO E ILUSTRAÇÃO: CESAR TEIXEIRA*

Agora que o Menino Jesus de barro foi despejado dos presépios natalinos pelo Ano Novo, o Brasil se benze para continuar aguentando um inquilino indesejável, modelado em bosta, que já pensa em se recandidatar em 2022 sem ter realizado qualquer gesto democrático como “presidente”. Ao contrário, abusou dos seus dotes de malfeitor para cometer inúmeros crimes que continuam impunes e vão ficando por isso mesmo.

Bolsonaro elogiou um torturador em pleno Congresso Nacional e persiste debochando de pessoas torturadas durante a ditadura civil-militar deflagrada em 1964, enquanto chora a derrota do seu “amigo” Donald Trump (ex-presidente do país que apoiou o golpe) e lança farpas contra a China, maior parceiro comercial do Brasil.

O falso Messias, vale repetir, elegeu-se à custa de milícias digitais, de acordos partidários espúrios e de uma facada de mentira, fora a contribuição dos patos e bonecos infláveis da Fiesp, com digitais do Tio Sam – mesmas armas que patrocinaram o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Lula. Não era à toa que se esmerava em aparecer na imprensa mundial ao lado de Trump em jantares e reuniões politicamente inúteis para o Brasil

Todavia, Bolsonaro não almejava ser apenas Presidente da República. Esse cargo ele abandonou antes mesmo de assumi-lo. Seu sonho de infância é tornar-se um Duce ou Führer latino-americano, ou pelo menos um caudilho meia-sola, mantendo como bunker o Gabinete do Ódio, que pode mudar de endereço e possui franquias em todo o País. Na pressa de alcançar a glória, feriu pelas costas a Constituição Federal, participando de atos que fazem apologia à ditadura e interferindo politicamente na Polícia Federal para proteger a família.

No início da pandemia pelo Covid-19 buscou privilegiar a elite empresarial e expor trabalhadores ao risco de contágio. Depois teve a cara de pau de “receitar” cloroquina (não recomendada pela Anvisa) no tratamento dos infectados. Regozija-se em transformar o luto em política de Estado, indiferente à saúde pública e ao “direito à vida”, expressão maior inscrita na Carta Magna, no Código Civil Brasileiro e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário.

O “presidente” chegou a indispor empresários e escalafobéticos fogueteiros contra o STF, visando aumentar a pressão sobre governadores e prefeitos para afrouxarem o isolamento e o lockdown. Cometeu crime de responsabilidade previsto na Lei nº 1.079/50 (Lei do Impeachment), de acordo com o Art. 4º, ao atentar contra a Constituição Federal e especialmente contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, bem como a segurança interna do país (incisos III e IV).

É crime a “propaganda pública de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social”, conforme o Art. 22 da Lei de Segurança Nacional, ironicamente criada para enquadrar opositores do governo.

Bolsonaro estimulou a invasão da Amazônia por garimpeiros e madeireiros, minimizando o desmatamento e os grandes incêndios; desmontou os mecanismos institucionais de defesa da floresta, além de desprezar o apoio internacional. Uma verdadeira tabelinha com seu infralegal ministro Ricardo Salles, que propõe “deixar passar a boiada”, sem qualquer respeito por seus habitantes indígenas e ribeirinhos, muito menos pela fauna e pela flora. Trata-se de crimes previstos na Lei 9.605 (artigos de 29 a 53), da legislação ambiental.

Aqueles que o elegeram, tal como os ratos do Congresso empenhados no “toma lá, da cá” antes repudiado pelo “presidente”, também são cúmplices das suas caneladas, sem falar na caterva de magistrados coniventes. Por último, no calor da guerra ideológica dos imunizantes, o Messias tem influenciado negativamente a população, espalhando a lorota de que a vacina chinesa contém microchips que podem controlar a mente e transformar a pessoa num jacaré.

Declara repetidamente que não vai se vacinar. Nem precisaria. Bolsonaro já é um camaleão, sobretudo das palavras e dos atos – com todo respeito aos animais da família chamaeleonidae da ordem squamata. O sujeito é capaz de instantaneamente mudar o tom de suas bravatas toda vez que está chegando ao fundo da latrina política em que se meteu.

Enfim, Bolsonaro se assemelha a um produto falsificado por contrabandistas e estelionatários. Não serve como presidente, como capitão e muito menos como jogador de futebol, já que ele só faz gol contra o povo brasileiro, apontando arminha, na ânsia de proteger a prole criminosa com suas asas de galinha pelada. Pelo seu incompatível “histórico de atleta”, certamente não pulou as sete ondinhas de merda do Ano Novo.

*Cesar Teixeira é jornalista e compositor maranhense

Eu voto. E digo em quem.

Interrompemos nossa programação para transmitir a propaganda eleitoral gratuita. Neste caso, gratuita mesmo!

Como de praxe, eleição após eleição, este blogue/iro tem lado. E declara.

Aprendi a lição com a revista Trip, desde sempre uma de minhas prediletas, que li com muita assiduidade entre o fim da década de 1990 e os anos 2000. A revista foi a primeira a recusar propaganda de tabaco em suas páginas, iniciando uma campanha que culminaria com a proibição da propaganda de cigarros no Brasil, contribuindo para a redução do consumo e, consequentemente, de doenças como o câncer de pulmão, para o qual perdi minha avó no último dia 25 de outubro. E a Trip também estampou em capas sua posição a favor do estatuto do desarmamento, legislação que, conforme estudos, ajudou a preservar vidas ao longo de cerca de década e meia de vigência, que só viria a ser fragilizada com a chegada dos neonazistas milicianos ao poder central.

Jornalismo imparcial é quimera. Voltemos a 2018, para um exemplo recente: na segunda-feira (8 de outubro) após o primeiro turno das eleições, quando se definiu a disputa entre Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro (então no PSL) no segundo turno, o jornal O Estado de S. Paulo tacou “uma escolha muito difícil” em título de editorial. Posavam de “isentões”, mas obviamente tinham lado. Sabiam exatamente o que estavam fazendo. E talvez daqui a 50 anos publiquem uma nota, dizendo-se arrependidos do que fizeram.

No pleito que se avizinha, domingo que vem (15), feriado da Proclamação da República, aniversário de minha irmã, sairei de casa com uma máscara escrito “fora Bolsonaro!” para votar em Rubens Jr. (65) para prefeito e em Emílio Azevedo (40021) para vereador.

Ambos são combatentes de primeira hora do bolsonarismo e é preciso superar esta tragédia que se abateu sobre o Brasil começando por suas bases. Um recado primordial a ser dado já neste domingo é o início do enfraquecimento eleitoral da familícia.

Rubens Jr. foi ótimo parlamentar em seus mandatos e tinha tudo para ter sido um também muito bom secretário de Estado de Cidades, não tivesse a pandemia atrapalhado seus planos – o programa Nosso Centro é o exemplo mais visível de suas ideias para uma cidade patrimônio, que conjugue em sua paisagem monumentos, casario, história e, principalmente, sua gente. Tem por candidato a vice-prefeito Honorato Fernandes (PT), combativo vereador, que não se encastela em seu gabinete, mas vive a cidade – antes da pandemia, vez por outra nos encontrávamos em eventos prosaicos, nada a ver com aquelas aparições de vereadores “típicos” que o fazem apenas para parecerem populares. Este é popular de verdade!

Emílio Azevedo é jornalista de profissão, comprometido desde sempre com o combate à desinformação, modus operandi de Jair Bolsonaro se eleger e governar. Sua trajetória jornalística e política se confundem, tendo sido um combatente da oligarquia Sarney – o movimento Vale Protestar, de que ele foi uma das principais lideranças, deu na criação do jornal Vias de Fato (de que fui colaborador entre 2009 e 2016) e, em sequência na Agência Tambor, experiência coletiva de webrádio com pautas populares e progressistas.

Escolheu como motes de campanha o combate ao bolsonarismo e o voto livre, contra a lastimável e desavergonhada prática de compra de votos, que infelizmente ainda acaba por conduzir e reconduzir alguns edis ao prédio da Rua da Estrela, na Praia Grande. Angariou apoios importantes durante a campanha bonita, aguerrida e propositiva. Nomes como Cesar Teixeira (autor do samba-jingle de campanha), Ed Wilson Araújo e Flávio Reis votam e pedem votos para Emílio Azevedo.

Declarados os votos, repito o que já disse a alguns interlocutores mais próximos: há tempos eu não via uma campanha com tantos bons candidatos. Ou seja: São Luís terá uma câmara municipal ruim se o povo quiser – ou a prática viciosa da compra de votos não permitir.

Voto em Rubens Jr. (65) para prefeito e em Emílio Azevedo (40021) para vereador. Para a câmara municipal, torço também pelas eleições de Ademar Danilo (65444), o mandato coletivo de Carla Rose Tássia (13013), Creuzamar (13000), Natanael Jr. (23023), Rafael Silva (40221) e Wesley Sousa (36000) – nomes que, uma vez lá, podem dar uma sacudida na casa e consequentemente na ilha. É justamente do que a casa e a ilha precisam.

Um machado afiado contra o autoritarismo

O único legado de Jair Bolsonaro, em 30 anos de vida pública, será tão somente a distribuição gratuita de violência. Muitos se assustam agora com a vontade do presidente de extrema-direita em “encher a tua boca com uma porrada”, dita a um jornalista que indagou-lhe sobre os 89 mil reais recebidos em depósito na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro, não à toa apelidada Micheque.

Bolsonaro é violento por natureza e pelo ethos militar de sua formação. Tão violentas foram declarações suas ao longo de seus mandatos de deputado federal e em campanha para a presidência, em 2018 – quando como bom covarde fugiu de qualquer debate e contou com a mão amiga de Sérgio Moro et caterva para tirar do tabuleiro eleitoral seu principal adversário e até então líder nas pesquisas de intenção de voto em qualquer cenário.

Fosse catá-las, um post seria pouco, uma página de jornal seria pouco, um jornal, uma revista, um livro seriam poucos. Mas Bolsonaro disse à deputada Maria do Rosário que “não te estupro por que você não merece, você é muito feia!”, que “num governo meu índio não vai ter um centímetro de terra”, que, numa comunidade quilombola, o habitante mais leve “pesava sete arrobas”, “vamos fuzilar a petralhada”, e que era “favorável à tortura” e preciso “morrer uns 30 mil, a começar pelo Fernando Henrique [Cardoso, então presidente da república]”, meta mais que triplicada, com a colaboração de sua irresponsabilidade diante da maior crise sanitária dos últimos 100 anos. Sem falar na dedicatória de seu voto, favorável à abertura do processo de impeachment contra Dilma Rousseff, ao notório torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, ídolo de Bolsonaro.

Se Bolsonaro faz do gesto de arminha com as mãos quase um persignar-se e afrouxa a legislação sobre armas no Brasil, os artistas têm voltado suas armas contra ele. As armas das artes, obviamente. “Letras e músicas, todas as músicas que ainda hei de ouvir”.

Recentemente o paraibano Chico César foi alvo de uma moção de repúdio da Câmara Municipal de João Pessoa/PB, por conta de uma música em que o ex-secretário de Cultura daquela cidade e do estado da Paraíba afirma: “bolsominions são demônios/ que saíram do inferninho/ direto do culto/ pra brincar de amigo oculto/ com satã num condomínio”.

A Banda Borralheira foi alvo de ataques de ódio nas redes sociais quando lançou a primeira faixa da Trilogia dos Palhaços, em que fazem críticas diretas a Jair Bolsonaro, a seus eleitores e aos que insistem em apoiá-lo, mesmo passados 20 meses de um governo que tem por modus operandi as fake news, a perseguição a direitos e a proteção a família – os zeros à esquerda, filhos do presidente, é claro! O conteúdo dos haters acabou dando gás à produção da banda curitibana.

Os poetas Celso Borges e Fernando Abreu durante sessão de gravação de "Machado afiado". Foto: divulgação
Os poetas Celso Borges e Fernando Abreu durante sessão de gravação de “Machado afiado”. Foto: divulgação

Os poetas Celso Borges e Fernando Abreu foram os únicos maranhenses a figurarem em meio à centena de vozes presentes em Lula livre Lula livro, publicado em 2018 como forma de protesto contra a prisão política do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva – o que, junto com as citadas fake news, acabou por pavimentar a estrada (no meio do caminho tinha uma facada, até hoje muito mal explicada) que levou Bolsonaro ao Planalto.

Em plena pandemia do novo coronavírus os dois fizeram uma versão livre de Small axe, de Bob Marley e, mesmo não sendo cantores, gravaram a canção. Com todos os cuidados, o que inclui o uso de máscaras, o distanciamento social e camisas com a efígie do ídolo jamaicano, gravaram também um videoclipe, que será lançado neste sábado (29).

A versão foi gravada no Zabumba Records, do percussionista Luiz Cláudio, que assina a direção musical e toca na faixa, gravada, mixada e masterizada por Jailton Sodré. A banda que acompanha as vozes e os versos de Celso Borges e Fernando Abreu se completa com o próprio Fernando Abreu (violão), Jesiel Bives (teclados e baixo), George Gomes (bateria). Após o registro em estúdio, o videoclipe foi gravado por Inácio Araújo (Carabina Filmes), com a participação especial do artista plástico e capoeirista Edson Mondego tocando berimbau.

Não é um recado direto a Bolsonaro, como se pode perceber na letra – seu péssimo governo não tem sequer o panis et circenses –, mas a governantes autoritários em geral (o que obviamente o inclui).

Conheça a letra:

MACHADO AFIADO
(Versão livre de Fernando Abreu e Celso Borges para a música Small axe, de Bob Marley)

Se é tarde eu não sei
Resistimos
Somos Davi
Se você é Golias

A gente vai pra cima de ti
É inútil fugir
Tua queda é pra já
Cadê tua coragem?

Você me dá pão e circo
Querendo se dar bem
Mas o pau que dá em Chico
Dá em Francisco também

Você cavou sua cova
Se envenenou com seu ódio
Eu já disse e vou repetir
Sai fora, man
Sai fora
É capoeira pra cima de ti
Não corre, man
Não corre

Você me dá pão e circo
Querendo se dar bem
Mas o pau que dá em Chico
Dá em Francisco também

serrote ajuda a pensar o bolsonarismo

Serrote. Capa. Reprodução
Serrote. Capa. Reprodução

Notícia nem tão quente para alguns, mas com certeza interessante para os/as que valem a pena: a revista serrote, do Instituto Moreira Salles, publicou uma edição especial quarentena, com download gratuito em seu site.

Escrevo em meio à leitura, chamando a atenção especialmente para dois ensaios do volume: “O líder fascista como encarnação da verdade”, de Federico Finchelstein (professor de história na New School for Social Research, em Nova York, autor de Do fascismo ao populismo na história e A Brief History of Fascist Lies); e “Homo bolsonarus“, de Renato Lessa (professor de filosofia política da PUC-Rio, investigador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e pesquisador visitante do Centre Roland Mousnier, da Lettres Sorbonne Université (antiga Paris IV) em 2020-2021. Publicou recentemente O cético e o rabino: breve filosofia sobre a preguiça, a crença e o tempo (LeYa, 2019).). Ambos, a seu modo, didáticos e bem-humorados.

Destaco trechos de um e outro, respectivamente:

Uma das lições centrais da história do fascismo é que a mentira leva à violência política extrema. Hoje a mentira voltou ao poder. Esta é, agora mais do que nunca, uma lição-chave da história do fascismo. Se quisermos compreender o nosso problemático presente, temos que prestar atenção na história dos ideólogos fascistas e no modo e no motivo pelo qual sua retórica levou ao Holocausto, à guerra e à destruição. Precisamos que a história nos lembre como foi possível haver tanta violência e racismo num período tão curto de tempo. Como os nazistas e outros fascistas chegaram ao poder e assassinaram milhões de pessoas? Espalhando mentiras ideológicas. Numa proporção significativa, o poder político fascista surgiu da cooptação da verdade e da disseminação generalizada da mentira.

Hoje assistimos à emergência de uma onda de líderes populistas de direita em todo o mundo. E, como no caso dos líderes fascistas do passado, grande parte do seu poder político provém da impugnação da realidade, da defesa do mito, da raiva e da paranoia – e da promoção da mentira.

Um eixo central dessa história, que parece se repetir em países como os Estados Unidos e o Brasil, é a ideia de um líder que se considera a encarnação da verdade e, com suas mentiras, enfraquece a democracia e chega até a estimular a expansão da covid-19. Essa crença tem consequências letais e nos ajuda a entender melhor a situação do Brasil. Isto é, a partir da análise das mentiras do fascismo no passado podemos entender melhor nosso estranho presente. O passado e o presente apresentam odiosas convergências na forma como o poder nega a realidade e como essas negações acabam transformando-a, provocando e até mesmo ampliando desastres. Os fascistas fantasiaram novas realidades e depois transformaram a verdadeira. Seus sucessores, como Donald Trump e Jair Messias Bolsonaro, querem fazer a mesma coisa.

&

O Homo Bolsonarus é, também, um fundamentalista do caso concreto. Embora possa abrigar alucinações paranoides – aliás, quem não? –, como animal ativo, orienta-se pelos inimigos e alvos a abater. No combate, dado o horror à mediação, as abstrações não são bem-vindas. A bem da verdade, as duas modalidades de horror alimentam-se reciprocamente, já que mediações são materializações de abstrações. Daí a dificuldade em compreender como instituições desprovidas de poder material – cortes constitucionais, por exemplo – podem sobrepor-se a mandatários populares e à força das armas. Isso é virtualmente inconcebível aos olhos do HB. Creio mesmo tratar-se de um limite cognitivo a ele inerente.

(…)

O HB quer fechar o STF e o Congresso, empastelar a imprensa, ocupar militarmente o Poder Executivo e criminalizar os adversários políticos. Tudo isso em nome da liberdade. Antes de julgá-los inconsistentes, importa indagar pelo que tomam a liberdade. Um indício: o HB ama pescar em águas proibidas, odeia pagar impostos e obrigações trabalhistas, deseja dar curso livre e inculpado a seus preconceitos e às ações que eles autorizam e, por vezes, exigem andar sem máscaras em plena pandemia e usufruir do direito de se contaminar com o coronavírus. A liberdade natural, desejada pelo HB, exige a desativação das instituições e normas que garantem toda e qualquer liberdade política e civil. Embora represente-se como uma rocha impermeável, o HB é, no fundo, muito confuso. A tal índole libertária é o complemento comportamental – ou momento subjetivo – do desvínculo entre vida social e estrutura normativa da esfera pública.

É preciso ter muito cuidado. O homo bolsonarus, embora sujeito à ironia e ao humor corrosivo, é hospedeiro da violência. Temo que tenha necessidade imperiosa de exercê-la, como condição de integridade existencial. A reinvenção da democracia entre nós, se e quando vier, não poderá evitar a difícil tarefa de neutralizar as possibilidades de expansão e reprodução do homo bolsonarus. Julgo, no entanto, que em alguma medida ele permanecerá entre nós, como contribuição indelével do consulado corrente da extrema direita ao longo passivo das iniquidades brasileiras. Para tal semeadura, há húmus mais do que suficiente.

*

Para baixar a revista, clique na capa.

Em tempo: o terceiro concurso de ensaios da serrote segue com inscrições abertas até 1º/9; serão selecionados três textos, com prêmios entre R$ 4 mil e 10 mil. Saiba mais no regulamento.

O palco do impeachment

CESAR TEIXEIRA*

Charge de Edgar Vasques. Reprodução
Charge de Edgar Vasques. Reprodução

 

Três batidas. A plateia se espreme no cercado de alumínio, devorando chocolates Kopenhagen, enquanto ele desce ao centro do palco imaginário. Jair Bolsonaro, no papel de presidente, não possui nem mesmo um rascunho de programa de governo. Apenas um texto sinistro e mal ensaiado para minar a democracia brasileira. Trata-se de um ator medíocre, que utiliza redes sociais para divulgar fake news e provocar desordem, enquanto literalmente empurra sua gestão com a barriga – o que nos faz lembrar a célebre facada.

Seu truque é uma indigitada transparência. A plateia aplaude, sabendo que ele é padrinho das milícias cariocas; estimula o crime ambiental e o extermínio de indígenas; torce pelo coronavírus; troca ministros de acordo com interesses pessoais, de parentes e amigos, obedecendo a critérios “técnicos” e “sem viés ideológico”, entre outros crimes. Ocupar cargo no governo é como assinar a própria demissão, se os caprichos do presidente forem ignorados. Logo surge um dublê fardado para tapar o buraco.

Isso nos remete à mise en scène do senador Auro de Moura Andrade (PSD), dirigindo a sessão do Congresso Nacional em 2 de abril de 1964, quando declara vaga a Presidência da República, argumentando que João Goulart havia abandonado o governo e o território nacional, quando na realidade se encontrava no Brasil. Era a senha para oficializar o golpe já deflagrado, logo após o presidente anunciar as Reformas de Base, que para a extrema direita seriam um avanço do comunismo no País. Jango foi obrigado a exilar-se no Uruguai e o governo foi ocupado pelos militares até a reconquista de uma tímida democracia em 1985.

Trinta e cinco anos depois, um ex-capitão do Exército Brasileiro toma posse como presidente da República, mas voluntariamente não assume o cargo, já que desobedece ao compromisso de “manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”, conforme o Art. 78 da Carta Magna. O Messias exilou-se em algum lugar do seu cérebro avariado, de onde pretende dar um golpe no seu próprio governo e ressuscitar generais de pijama, abafando a “conspiração comunista” que acredita estar infiltrada na ciência, na educação e, sobretudo, na cultura.

Para impedir que o réptil ensaie romper a transparência do ovo é preciso que a Câmara Federal autorize com urgência o impeachment reivindicado por partidos políticos, entidades civis e movimentos sociais. Ainda há democratas no Congresso, apesar da sua estrutura bichada, de um lado pelo BBB, como são conhecidas as bancadas da bala, do boi e da Bíblia; do outro pelo Centrão, que reacendeu o “toma lá, dá cá” antes repudiado pelo presidente. Quem tem medo do impeachment?

A pusilanimidade do Legislativo pode despertar a esquerda e as organizações de direitos humanos. Mesmo que as mobilizações de rua estejam limitadas pela pandemia, a união de forças numa rede nacional e até internacional poderá fazer o Congresso votar o impeachment. O confronto será inevitável. Bolsonaro confia nos velhos oficiais e amigos mercenários. Mas será que as Forças Armadas, que são instituições do Estado, topam pagar um mico por conta de um governo estelionatário?

Falta pouco para baixar a cortina desta comédia de mau gosto. Talvez a plateia do cercadinho, espalhada pelo País, ainda reaja com gritos histéricos e slogans fascistas em seus cartazes quando o entijucado ator ouvir sua última deixa, e se retirar para as coxias. Trocando em miúdos, Jair Bolsonaro não passa de um personagem fictício, criado pela direita ultraconservadora e genocida. Sendo assim, o cargo de presidente já pode ser considerado tecnicamente vago. E ponto final.

*Cesar Teixeira é jornalista e compositor

O jornalista bolsonarista

No dia seguinte ao AI-5 a genialidade de Alberto Dines (1932-2018), então editor-chefe do Jornal do Brasil, driblou os censores de plantão. Reprodução
No dia seguinte ao AI-5 a genialidade de Alberto Dines (1932-2018), então editor-chefe do Jornal do Brasil, driblou os censores de plantão. Reprodução

 

Jair Bolsonaro sequer sabe que ele existe, mas o jornalista bolsonarista insiste em bajular o presidente, fazendo malabarismos argumentativos para justificar atos desastrados ou falas idem do invasor do Palácio do Planalto.

O jornalista bolsonarista, como de resto qualquer outro profissional bolsonarista (ou bolsonarista profissional), acredita estar acima do bem e do mal. Como seu ídolo (ou “mito”, como prefere/m) se elegeu e governa a partir de uma onda de mentiras – fake news é eufemismo! –, ele acredita que o fato de divulgar “informações” que interessam ao regime lhe dá alguma espécie de cumplicidade ou intimidade com o mandatário e seus asseclas.

Ilude-se o jornalista bolsonarista ao acreditar fazer parte de uma espécie de clube vip – nesse caso, o important da sigla pode ser substituído por idiot.

O jornalista bolsonarista acredita que nada o atingirá. Ele bate palmas para a censura, sem se importar que um dia pode ser ele o amordaçado. Ele aplaude o ataque sistemático à cultura, às artes e ao pensamento. E até mesmo ao jornalismo, em si.

O jornalista bolsonarista nada contra a corrente. Está sozinho, isolado. Os colegas de firma riem de sua cara, diante dele ou em sua ausência. Obviamente o jornalista bolsonarista já percebeu que o governo naufragou, mas aferra-se ao fato de ele ter sido “legitimamente” eleito.

O jornalista bolsonarista chega mesmo ao ridículo de recomendar a colegas identificados como “de esquerda” ou progressistas que guardem seus argumentos, que haverá novas eleições em 2022. Mas disso nem mesmo o jornalista bolsonarista tem certeza.

Na contramão da média, o jornalista bolsonarista parece querer comprovar a tese de Nelson Rodrigues, de que toda unanimidade é burra. Ele é o burro, a confirmar a regra rodrigueana, a livrar a firma da unanimidade.

O jornalista bolsonarista esquece, não sabe, ou finge não saber que o cronista genial só bateu palmas para os generais até o dia em que teve um filho preso e torturado, quando mudou o tom ao opinar sobre aquela outra ditadura brasileira.

O jornalista bolsonarista não sabe escrever sequer em português, mas recorre a termos em latim para dar um ar de sofisticação aos textos que escreve. O que é raro: em geral o jornalista bolsonarista prefere copiar textos prontos.

O jornalista bolsonarista é desonesto: às vezes copia textos alheios sem dar o devido crédito. É desleal mesmo com os que defendem os mesmos ideais que ele.

Talvez por isso os ataques do caudilho ao pensamento não lhe incomodem: ele já não consegue pensar, quanto mais sozinho. O ato de encaminhar mensagens que defendam o governo é automático.

Mas não digo que o jornalista bolsonarista seja uma piada. Ele é parte de uma engrenagem muito maior e nociva, um idiota útil a serviço de um projeto de destruição. Tão útil e tão idiota que cumpre seu papel voluntariamente. E sente-se satisfeito e recompensado por isso.

O jornalista bolsonarista é, como qualquer bolsonarista, um covarde. Um cão que só late por detrás de uma tela de computador ou celular, de onde profere impropérios contra qualquer um que ouse discordar de suas opiniões, mesmo que elas não se baseiem em nada além de convicções frágeis como um dente-de-leão.

Outro dia topei com um jornalista bolsonarista. Ele sequer me deu bom dia, empurrou a porta entreaberta cuja maçaneta eu segurava e passou zunindo, bufando, franzindo o cenho e derramando boa parte do café que trazia, obrigando a moça da limpeza ao serviço extra de limpar sua sujeira, pelo que certamente não lhe agradeceu, afinal de contas, para ele, ela estava apenas fazendo sua obrigação. Segundo sua lógica, ela é quem deveria agradecê-lo, afinal de contas, se ele não sujasse, ela não teria emprego.

Porque o jornalista bolsonarista é orgulhoso de sua própria ignorância e arrogância, que ele confunde com ser inteligente – mas nisso só ele mesmo acredita.

Tanto é que o jornalista bolsonarista é, ele também um, o típico eleitor, defensor e adorador do “mito”, que protestava contra o preço da gasolina a menos de três reais, mas nada diz quando esta custa quase cinco. Tampouco escreverá uma linha contra o anúncio do fim do seguro DPVAT e o consequente efeito sobre o orçamento do SUS. Ou sobre a ideia do mandachuva de fundar um novo partido, o nono ao qual se filiaria ao longo de sua errante trajetória política.

O jornalista bolsonarista não deixa de sair em defesa de seu ídolo nem quando este supostamente o prejudica: o presidente acabou com a necessidade de registro profissional para jornalistas, publicitários e outras categorias, mas para o abjeto objeto desta antiode, obviamente o “mito” agiu certo, afinal de contas, tratava-se apenas de mera burocracia.

Conheço a história de alguns ídolos do rock’n’roll que morreram asfixiados pelo próprio vômito após uma overdose. Parece uma morte mais digna que terminar afogado na própria baba hidrófoba.

Num país sem memória a ficção refaz a história

Legalidade, de Zeca Brito e Léo Garcia, terá estreia nacional hoje (20), às 19h, no Teatro Alcione Nazaré (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, Praia Grande) na programação (gratuita) do Festival Guarnicê de Cinema. A estreia mundial aconteceu em abril, no Festival Latino de Chicago, nos Estados Unidos.

O filme costura, a partir de um triângulo amoroso fictício, uma narrativa que remonta ao episódio histórico com que Leonel Brizola, no fim das contas, conseguiu adiar em cerca de três anos o golpe militar de 1964, que acabou por jogar o Brasil numa ditadura militar por 21 anos.

Homem de vícios antigos conversou com exclusividade com os diretores e com Sapiran Brito, pai de Zeca, um dos atores que interpreta Brizola, personagem central na trama.

Léo Garcia, Sapiran Brito e Zeca Brito. Foto: Juliana Costa

Como é que foi a receptividade do filme no festival de Chicago?
Zeca Brito – Surpreendente. Incrível como um filme que conta uma história brasileira pode ser universal e pode encontrar reverberações em outras culturas, outras visões de mundo. Chicago é uma cidade muito cosmopolita, então o público que assistiu o filme era de americanos e estrangeiros, pessoas que foram morar nos Estados Unidos, mas que vêm de outras histórias geopolíticas, por exemplo, do Oriente Médio, ou da própria América Latina, a gente pode conversar com uruguaios, com argentinos que residem em Chicago e por conta de ser um festival latino foram assistir o filme, e todos dizem a mesma coisa: algo muito parecido aconteceu em meu país. Que é o reflexo de como o mundo se movimenta, de como os interesses [acentua os dois primeiros “e”, imitando o sotaque de Brizola], de que o Leonel Brizola falava são reais, e é um pouco o que o filme tenta estabelecer. O filme se passa em 1961 e é sobre esse ambiente de guerra fria, onde Estados Unidos e União Soviética e distintas vontades políticas dominavam o mundo e muito daquilo que a gente vivia como história, como processo histórico era influenciado por esses interesses externos. Em Chicago foi muito interessante como isso passou pela percepção do público, essa identificação de como a história se repete, de como a história é parecida. Por outro lado, foi uma questão também que me surpreendeu, eu tava contando pro Léo esses dias, a gente vem, a gente fala muito no filme sobre o aspecto histórico, os personagens históricos. Mas o público mais desinformado da história do Brasil, que é grande parte do público norte-americano, não sabe nada do que aconteceu aqui, primeiro por que nossa cinematografia não chega lá, segundo por que não há muito interesse dos Estados Unidos de olhar para outras culturas, por que já trabalha a sua também como um produto, foi a questão do romance. É um filme que tem um romance que costura a narrativa histórica e esse romance tocou no coração do público e isso também me surpreendeu.

O diretor Zeca Brito. Foto: Juliana Costa
O diretor Zeca Brito. Foto: Juliana Costa

Por que a opção de estrear aqui?
ZB – Interessante. Acho que o Festival Guarnicê é um festival com uma história muito bonita, diferente de outros festivais, sem querer fazer uma crítica específica, ele não é um festival monárquico, de um dono, de uma empresa, ele é um festival que se liga muito com a comunidade civil organizada, partindo de uma universidade [o festival é promovido pelo Departamento de Assuntos Culturais da Universidade Federal do Maranhão], há 42 anos. Isso no Brasil é muito bonito e importante de ser celebrado nesse momento histórico. A função do cinema tem que ser essa, se aproximar da sociedade civil, cumprir um papel também educativo, falar mensagens importantes, provocar discussões, aproximar nossa memória histórica e também do tempo contemporâneo do que está acontecendo no mundo, mas da nossa realidade cultural, trazer esses debates pra sociedade. Esse festival, nesse sentido, já é muito sério, por estar ligado, a uma instituição do saber. E segundo, a gente vive um momento político, não foi à toa que a gente escolheu Chicago, que é uma cidade ligada à causa operária, aos direitos trabalhistas, e é uma cidade que recentemente elegeu uma mulher, negra, LGBT, prefeita [Lori Lightfoot]. De alguma maneira isso pontua que a gente está num território que tem espaço para as discussões que a gente está propondo no nosso filme e acho que o mesmo se revela no tempo contemporâneo com o Flávio Dino, que é uma referência para um pensamento aberto, de como deve ser a construção da cidadania, do encontro humano, principalmente partindo da luta contra as desigualdades sociais. A gente tem que trabalhar também essa questão de como a sociedade se traduz politicamente. Estar num território com um pensamento tão aberto a questões da história, questões que nosso filme trata, questões da sociologia que nosso filme trata, isso a gente vê publicamente que há uma sinalização de política pública mesmo, que vem a calhar com o que a gente está querendo discutir.
Léo Garcia – A gente começou a escrever essa história em 2007, 2008, mais ou menos, e naquela época era impensável falar em ditadura militar. Tu encontrava dois ou três malucos, mas era algo “ah, já passou”, e aí quando a gente está lançando o filme pairam no ar nuvens cinzentas e o filme ganha outra importância, tem, digamos, outra virtude, que é lembrar um passado recente, que as pessoas já esqueceram, o que foi a ditadura militar. Apesar de o filme se passar antes da ditadura, o Brizola já estava combatendo um princípio de golpe, ali em 1961. Ele consegue, mas depois em 1964, infelizmente…

O diretor Léo Garcia. Foto: Juliana Costa
O diretor Léo Garcia. Foto: Juliana Costa

Dá até pra dizer que o golpe foi adiado por essa ação.
LG – Foi, com certeza!
Sapiran Brito – O golpe era contra ele. Ele tava na rua, tava na boca do povo, “cunhado não é parente, Brizola presidente!”, não tinha outro. Era o grande nome entre os progressistas, não tinha outro. Estava praticamente eleito pelo povo. Pelas ações, pelas atitudes, pelo momento. A CIA [Agência Central de Inteligência do governo americano, na sigla em inglês] tentou, não conseguiu a primeira vez, mas na segunda… por detrás de tudo sempre está a CIA. Sempre estão os interesses norte-americanos, através da CIA, que me desculpe a expressão, mas costumeiramente compra os nossos deputados. Costumeiramente. Ele conseguiu segurar o golpe, conseguiu evitar o golpe, mas terminou o mandato como governador, foi ser deputado, e não tinha os meios físicos e materiais e o poder que tinha como governador para tentar deter os golpistas de 1964. Por que infelizmente o nosso país é construído de golpe em golpe. Agora tivemos o golpe branco contra a presidenta Dilma e tivemos um complô da mídia e do parlamento contra o presidente Lula, nada mais que outro golpe branco. E de golpe em golpe nós vamos. E Leonel de Moura Brizola significa o anti-golpe, a voz da resistência, a voz do progressismo, a voz daqueles políticos corretos que ainda resistem. Cinco por cento, mas ainda temos, na classe política, uns cinco por cento de homens retos, honestos e verdadeiramente brasileiros, sem nacionalismo, sem xenofobia, questão de amar o Brasil. Quero lembrar só uma coisa: Brizola não era um gaúcho. Darcy Ribeiro escreveu uma bela crônica sobre o Brizola, dizia “Brizola, um filho do povo brasileiro”, por que ele era preocupadíssimo e envolvido com toda a questão. Um grande problema nacional é o problema da dominação do Brasil. O Brasil é dominado. E nós sabemos por quem. Dominado pelo capital, que se organiza basicamente em Wall Street. E o Brizola representa essa voz de rebeldia contra isso. O Brizola, que foi tachado de comunista, não tinha nada de comunista. O Brizola era um progressista, um socialista embrionário. Tanto que a Internacional Socialista o elegeu vice-presidente, ele não sendo presidente do país. E esse cargo, em memória dele, ainda está na mão do partido dele, o PDT, hoje representado pelo Carlos Lupe. O PDT tem cadeira na Internacional Socialista, mesmo o Brizola não sendo declaradamente um socialista, mas era um socialista, por que era um progressista e um nacionalista sem xenofobia.

O ator Sapiran Brito. Foto: Juliana Costa
O ator Sapiran Brito. Foto: Juliana Costa

O que significou para o senhor interpretar o Brizola no filme?
SB – Ah, uma grande emoção. Primeiro que eu vi o negócio nascendo, pelas mãozinhas deles, pelas cabecinhas deles [aponta para Léo e Zeca]. Aí quando eles notaram que eu tinha alguma semelhança com o velho, que eu conhecia muito, por ser amigo dele, de frequentar a casa, falar ao telefone, abraçar e conversar com ele com intimidade em diversas ocasiões, eu ajudei a construir o que o Léo e o Zeca roteirizaram. E que fique claro o seguinte: eu não estou no filme por que sou filho do Zeca [risos] ou amigo do Léo, é que eles viram uma semelhança com o Brizola, que eu não posso negar: é uma espécie de osmose, de tanto eu gostar, eu acabei ficando parecido com o velho e tento pensar e agir como ele, por que eu também sou político. Além de artista, ator, diretor de teatro, eu também sou político. Me honra, sobremaneira, representar, mesmo eles me dando pouco espaço [risos], mas é simbólico honrar a memória do velho. E é uma satisfação saber da oportunidade do lançamento desse filme. Eles não previram, eles não têm bola de cristal, nenhum dos dois é Nostradamus, mas parecia que estavam prevendo: “ah, vamos lançar durante o outro golpe”. E estamos aqui honrando a memória de Leonel Brizola.

É curioso que o filme anterior de vocês é sobre Tarso de Castro [A vida extra-ordinária de Tarso de Castro], que é outro combatente da ditadura e também um brizolista.
ZB – E que estava na Legalidade.
LG – De certa forma influenciou um pouco o roteiro do Legalidade. Ele não só estava na Legalidade, como ele foi, a gente conta no filme, um episódio, uns 20 dias antes da Legalidade, o Brizola conheceu o Che Guevara em Punta del Este, um encontro da OEA [Organização dos Estados Americanos] e o Tarso cobriu isso. Várias coisas acabaram se mesclando, a gente estava rodando o Tarso e acabando de escrever o roteiro.
ZB – Quando a gente terminou de filmar o Tarso e foi filmar o Legalidade, o que acontece é que eu acho que tanto personagens que são personagens do filme do Tarso inspiraram personagens do Legalidade. O Flávio Tavares, o Carlos Bastos, pessoas que estão no filme do Tarso de Castro e que são a síntese do Tom e do Luís Carlos, que são os personagens fictícios que a gente criou. São muitos personagens reais, a gente fez uma pesquisa, até interessante, tu vai assistir o filme e vai ver, a gente colocou nos créditos finais todos os livros que a gente pesquisou para criar essa história de ficção. Ela é toda costurada por episódios reais, mas cabe a cada um de nós ir a fundo para ver a veracidade daquela coisa no sentido de que a costura é poética. É uma obra poética, como se fosse o [poeta grego] Hesíodo estar contando a guerra e não estar falando da guerra como ela é, mas está se baseando em fatos que aconteciam e que aconteceram para poder sintetizar de forma poética a guerra. O que a gente fez no Legalidade foi isso. A gente leu muito sobre tudo o que havia sido produzido em termos de pesquisa científica, da academia, e bibliografia, livros sobre episódios históricos, depois entrevistamos autores, o Juremir Machado, o Flávio Tavares, mas primeiro a gente partiu do livro deles, mas entrevistamos, e entrevistamos familiares, amigos, o Carlos Araújo, que inspira nosso personagem comunista, mas vai acabar sendo trabalhista. O próprio [Luís Carlos] Prestes foi ser presidente de honra do PDT, tem essa costura histórica e a gente coloca esses elementos no filme. Tem o personagem trabalhista, que é o Brizola, tem o personagem comunista, que é o Luís Carlos, como essas ideologias vão se encontrar com o campo oposto, que é alguém que está corrompendo a constituição. Alguns deputados, no campo do poder legislativo, e alguns militares, o chefe da Marinha, o chefe da Aeronáutica, que não queriam permitir o Jango [João Goulart] voltar ao Brasil e assumir a presidência, porém, aí é interessante como a história é complexa, a Legalidade só foi possível com a adesão do Terceiro Exército, que era a maior força militar brasileira: 120 mil homens, que estavam no Rio Grande do Sul. Brizola foi tão persuasivo, conseguiu levar tão profundamente a mensagem, mobilizar a população civil, que aqueles soldados que estavam no Rio Grande do Sul aderem à Legalidade, rebelando-se à ordem inclusive de bombardear o Palácio [Piratini, sede do governo gaúcho], que partiu de Brasília, então acontece esse contragolpe. Aí o Jango vem, aí o que acontece: a coisa estava tão inflamada que era mais conveniente que o Jango viesse pra apaziguar, por que o Brizola ia sim subir e tomar o poder. Aí o Tancredo [Neves] vai até Punta del Este, faz uma negociata básica, histórica, e resolve, para que não haja derramamento de sangue, “vamos estabelecer um pacto de silêncio você volta e assume o parlamentarismo, não fala nada, não faz discurso, fica quietinho, acalma o Brizola, silencia o Brizola, a gente vai silenciar o Exército lá em cima, Aeronáutica, Marinha”… Nisso os navios de guerra já estavam no porto do Rio Grande, toda a frota aérea já estava mobilizada para bombardear o Rio Grande do Sul e acontece esse acordo de paz, que foi um desfecho, pro Brizola foi um pouco frustrante, mas um ano depois, através de um plebiscito, se reconstitui a democracia, que dura dois anos e acaba com o golpe, em 1964.
LG – É legal por que tem todo esse aspecto político, mas nosso roteiro tem camadas. Uma pessoa que, digamos, não tem nenhum conhecimento de história pode assistir o filme e vai acabar desfrutando pelo menos da história de amor, vai entender o enredo, vai saber que existiu esse momento tão importante da história. Eu acho que tem essa virtude o roteiro que a gente trabalhou. Quando essa história começou, em 2007, mais ou menos, eu e Zeca bem jovens, Zeca estava acabando o primeiro longa dele, O guri, eu ainda não tinha nem um longa filmado, e o Zeca veio com essa história: “ah, o meu pai sempre falou que a Legalidade renderia um filme”, eu nem conhecia o Sapiran, nem lembrava da Legalidade, eu tinha estudado no colégio, assim [estala os dedos] talvez numa tarde… aí eu comecei: que Legalidade é essa? Li um livro e falei: “cara, rende um filme, vamos escrever?”. “Vamos!” E começou, naquela época a gente tinha o sonho de lançar em 2011, nos 50 anos da Legalidade. Ledo engano. Cinema no Brasil nada é tão fácil. Um dia eu quero convidar o Zeca pra fazer umas quatro, cinco horas, pra gente mostrar nosso roteiro desde o início. Do primeiro argumento o tanto que mudou, a gente foi enxugando personagens, mudando, tinha um circo, quatro irmãos viraram dois. Um roteiro tinha um diálogo de 15 páginas entre dois palhaços, eu falei: “Zeca, não sei se a gente vai ter tempo pra isso” [risos], queríamos fazer uma coisa mais [o cineasta italiano Federico] Fellini, mas enfim, a gente foi se acertando.
ZB – Esteticamente é um filme bem atemporal. Interessante o fato de a gente ter achado que ele deveria ter sido lançado em 2011 e não conseguimos, só filmamos em 2017 e estamos lançando agora em 2019, mas a construção do roteiro, apesar de se passar em 1961, é um filme que joga com a história, com o fato de ter essa construção poética, personagens fictícios. De algum momento essa história já aconteceu em outros momentos antes, aconteceu depois. A gente diz: é a prévia de 1964, depois 1964 aconteceu mesmo. Mas pode ter acontecido agora, em 2016.
SB – Já tinha acontecido antes, com Getúlio [Vargas].
ZB – E esteticamente ele flerta com o melodrama, tenta buscar essa raiz brasileira, que às vezes o cinema olha com certo preconceito, essa matriz que vem da televisão, da telenovela, como elemento estético, para se trabalhar a história, ela se relaciona muito com a história, no sentido de que a história brasileira é um pouco uma telenovela. A narrativa histórica. Às vezes a realidade é tão engenhosa, que parece surpreender, daqui a pouco cai o avião do desembargador, do primeiro ministro, coisas que não existem no Brasil, mas estão aí toda hora.
LG – Alguém viu um corte do filme e falou: “não, os militares nunca iam fazer isso”, mas está ali, foi assim que aconteceu.
ZB – Exatamente. É por isso que a gente bota todos os elementos históricos sem citar, mas lá no final, para que essas pessoas tenham o trabalho de ler esses livros.
SB – Enfrentamos um grande problema: é um país sem memória. Todos nós enfrentamos, jornalistas, todos nós. Ninguém lembra o que aconteceu há cinco anos. Não vai lembrar o que aconteceu há 50. Não tem a mínima informação. O filme contribui pra isso. Não chega a ser um filme histórico, mas pode chamar a atenção para que a juventude desperte para esse tema e vai encontrar outras histórias de muitos e muitos golpes que esse país sofre.

Essa abordagem de algum modo é curiosa por que a gente vive a era das fake news, que ao fim e ao cabo foram responsáveis pela eleição de Bolsonaro. E vocês viram o jogo ao contar um capítulo da história do Brasil através de uma ficção, o que é uma solução supercriativa.
ZB – É uma coisa que está aí desde que o mundo é mundo, que se chama romance histórico. Quem não leu O tempo e o vento [do gaúcho Érico Veríssimo] ou E o vento levou… [da norte-americana Margaret Mitchell]. Ambos são romances históricos que viraram filmes e que contam uma história. A história do Rio Grande do Sul foi contada em O tempo e o vento, a história da guerra de secessão nos Estados Unidos foi contada em E o vento levou… Estou dando dois exemplos, mas poderiam ser outros.
LG – Ao fazer isso a gente altera alguns detalhes, a gente cria personagens fictícios que fazem coisas importantes, mas isso é normal de qualquer dramaturgia.
ZB – A dramaturgia histórica é assim. É a síntese da história. A gente tem a responsabilidade de esperar 50 anos do episódio, poder ler todos os livros, poder comparar as perspectivas históricas, poder colocar diferentes pontos de vista em cena. Por isso é um romance. A gente tem a visão dos Estados Unidos, a visão da CIA, que parte de uma jornalista do Washington Post, de alguma maneira…
LG – Olha o spoiler… [risos].
ZB – A gente não tem o personagem real por que a CIA não revelou esses documentos, mas hoje a gente sabe que a CIA espionava o Brizola.
SB – Já revelou.
ZB – Já, mas a gente não sabe quem era o espião, a gente tem o relatório.
SB – Daqui a 50 anos vamos saber.
ZB – Daqui a 50 anos vamos saber, talvez. Mas a questão é que depois do Che Guevara o Brizola era o homem mais vigiado na América Latina. Como é que a gente vai construir isso historicamente? A gente tem essa informação, mas tem que ser através de personagens fictícios, a própria questão da Legalidade, como a gente tem muitos personagens reais, você precisa sintetizar cinco personagens reais em um personagem fictício. O que aconteceu é real. Essa que é a questão do Legalidade. Você tem compromissos históricos com personagens históricos. Tudo que o Brizola diz no filme são falas do Brizola durante a vida que estão ali na boca dele. Claro, tem uma ou outra cena de intimidade que a gente consultou a família: “isso aqui ele falaria dessa maneira?”. “Ah, sim”. É uma síntese de um discurso, colocado de uma maneira mais coloquial, mais íntima, como ele falava com a esposa, coisas assim. Mas os personagens históricos, os discursos do Brizola são os discursos que ele fez na época. Então tem essa costura entre personagens históricos com discurso histórico real e uma construção poética que é o lirismo da dramaturgia clássica que está aí desde a Grécia antiga.
SB – Uma coisa a ser ressaltada na ação do Brizola é que foi a primeira vez no mundo que alguém usou a comunicação para organizar um levante. Nos dias que correm é a maior barbada, mas naquele tempo, o grande veículo era o rádio. Tevê não tava ainda em cadeia, não tinha as afiliadas, tevê era uma coisa muito incipiente ainda. Ele foi o cara que despertou pra comunicação, pra fazer um levante através da comunicação, quando ele criou a Rede da Legalidade, que começou lá no porão [do Palácio Piratini], depois foi pra Goiás, Paraná, foi crescendo, crescendo, só não entrou em São Paulo, mas no resto do país se formou a Rede da Legalidade. Então, esse fator, o tino desse cara, de se dar conta do uso da mídia, da comunicação, a seu favor, a favor da sua ideia, do seu projeto, é fundamental, pouca gente observa isso.
ZB – É muito interessante. Ele tinha o dom da oratória. Toda sexta-feira ele falava num programa de rádio, ele se comunicava quatro, cinco horas, as pessoas às vezes dormiam, de tanto que ele falava, dormiam, acordavam e ele tava falando.
SB – Que nem o Fidel [Castro] e o Mao [Tsé Tung].
ZB – Quando ele se dá conta de que tinha um golpe em curso ele escreve um comunicado e manda pra todas as rádios. Aí acontece um fato, que era sintomático do golpe, que o exército imediatamente manda fechar todas as rádios que haviam lido o manifesto, em que ele dizia: “Jango está na China, está sendo impedido, temos que nos mobilizar para que seja respeitada a constituição”. As rádios são fechadas, a única que não é fechada é a Rádio Guaíba, por que era um pouco mais conservadora, de alguma maneira tinha uma outra visão política, não aceitou ler o manifesto, não foi fechada. No dia seguinte ele confisca o transmissor da Rádio Guaíba, traz pro palácio e transforma a secretaria de comunicação na secretaria de segurança, digamos assim. Ele bota todo aparato da brigada militar a serviço do resguardo da comunicação. Resguardar a torre da Ilha da Pintada, transforma o palácio num grande forte de comunicação, onde ele bota os transmissores na rua pro povo que tava na frente ouvir o discurso dele, começa a discursar, discursar, produção artística, poesia, jogral, em torno disso, os dias vão passando e só discurso não dá, [o ator Paulo César] Pereio, [a poeta] Lara de Lemos, fazem o Hino da Legalidade, aquilo começa a ser tocado ininterruptamente.
LG – Vai mobilizando todo o Brasil, “olha não vamos deixar ter esse golpe”.
ZB – Mobiliza a sociedade civil inteira no sentido de dizer: “o que temos aqui?”. “A brigada militar”. “Quantos contingentes?”. “Tantos”. “Isso aqui não dá nada”. “O que a gente tem?”. “O povo na rua”. “Quantas mil pessoas estão na rua?”. “As pessoas precisam se armar”. Aí ele estabelece um jogo de guerra civil pela constituição. Quem tem arma pega sua arma e vem pra rua. Ninguém tinha tanta arma, ele pega todas as armas de estoque do palácio e distribui pra sociedade civil. Vai na Taurus, pega todo estoque de armas da Taurus, a Taurus que hoje tá com as ações lá em cima, distribui pra população todas as armas e “nós vamos enfrentar o exército brasileiro, vai ser brasileiro contra brasileiro, por que a gente tem que preservar a única coisa que a gente tem que é o voto democrático popular”. Jango Goulart havia sido eleito com mais votos que Jânio Quadros, numa época que as eleições eram separadas, vice e presidente.
SB – Não podia ser mais legítimo.
ZB – Só que na verdade isso tudo era um jogo de cena, as armas do palácio não tinham balas, as balas eram da revolução de 30, estavam todas estragadas. Ele vai jogando com o limite, pra ver o que ia acontecer, e tentando segurar, segurar, segurar, pro Jango voltar e o Jango não vinha.
LG – Não tinha informação direito de onde é que ele tava, tava em Nova York, ele vinha a conta-gotas, parava em Lima…
ZB – Até começar a guerra eles não precisam saber que elas não atiram [risos].
LG – Triste pensar que tem uma avenida em Porto Alegre chamada Castelo Branco. Fizeram uma votação, vereadores conseguiram mudar pra Legalidade. Aí quiseram mudar, “não, por que tem uma pracinha chamada Legalidade”. Aí virou avenida da Legalidade e da Democracia. Agora, em tempos [de] Bolsonaro voltou a se chamar Castelo Branco.

Sério?
LG – Agora vamos recomeçar, pra voltar a ser Legalidade, é sintomático, não?
ZB – Se a gente quer lutar, tem que lutar por educação, no Brasil hoje.
SB – O Castelo era o menos golpista deles. O Castelo saiu do Ceará pra detonar o golpe, o AI-5 do Costa [e Silva], por que o compromisso moral do Castelo com a nação era da eleição em dois anos. Ele saiu, teve que sair, passou pro Costa e Silva e o Costa e Silva deu um golpe dentro do golpe. E ele decolou e caíram o avião dele.

A personagem da Cléo Pires é jornalista.
SB – É uma espiã disfarçada.
ZB – Spoiler!
SB – Apaga, apaga [risos]. Quem sabe ele não é um espião da CIA? [gargalhadas].

Ou pelo menos da Abin [risos]. Recentemente houve esse episódio do The Intercept vazando as conversas do Sérgio Moro. Queria saber a opinião de vocês sobre a importância do jornalismo e da liberdade de imprensa no mundo e principalmente no Brasil sob a égide de Bolsonaro.
LG – Estou aguardando o episódio de hoje da Vaza Jato.
SB – O filme deles sobre o Tarso reflete muito bem isso. O Tarso sempre disse que não tínhamos uma imprensa livre, é uma imprensa submissa, uma mídia submissa, infelizmente. Claro, tem CartaCapital, tem Caros Amigos, tem umas revistas, uns jornais que não estão no topo do consumo, que são as vozes resistentes. Agora os demais? [Fala com desdém:] Folha, Estadão, O Globo, Rede Globo, Record, tudo isso está a serviço do capital. O jornalista de um desses órgãos que quiser ser libertário, da grande mídia, que quiser falar a verdade, está desempregado. Não só desempregado como o chefe liga pras outras redações e diz: “não contrata fulano, que ele complica”. Nosso jornalismo, infelizmente, está amordaçado. O que salva agora? As redes sociais, as agências independentes.
LG – Pro bem e pro mal. Hoje em dia as pessoas recebem notícias pelo celular e ninguém quer saber se é verdade, se não é. Mas fake news passa.
SB – Passa. O cara vai quebrar tanto a cara dando mancada, que uma hora ele vai procurar uma fonte confiável. E existem fontes confiáveis. A própria grande mídia agora está ficando responsável [risos], está sentindo a concorrência. Desde o tempo do [Assis] Chateaubriand que a grande mídia é golpista, que derruba, se apropria, e manda no presidente.
LG – A gente aborda, no próprio Legalidade, não só a Cléo Pires é uma brasileira que mora em Washington. A gente tem um triângulo amoroso, são dois irmãos, um deles trabalha no [jornal] Última Hora. Todo envolvimento dos jornalistas naquela época na Legalidade é fundamental. Eles fazem parte do plano do Brizola, era um jornalismo muito mais ativista, digamos.
ZB – Tem duas questões, fazendo relação com The Intercept. Primeiro, a questão da investigação e dessa responsabilidade que o jornalismo brasileiro talvez precise retomar, de depender menos do release, das notícias prontas, mas de ir atrás não só da visão oficial. Até no filme isso é engraçado, por que de alguma maneira os meios de comunicação de nosso filme estão a serviço do Brizola, eles são a voz do Brizola, a voz de uma liderança, mas de uma liderança que eles conheciam intimamente. Isso é uma questão. Ele não tinha como governante, esse distanciamento que os governantes costumam ter da imprensa. O Brizola tomava café todos os dias com os jornalistas para falar sobre o que estava acontecendo, chamava, não se negava a responder nenhuma pergunta, não era uma pessoa que fugiria de uma pergunta. Ele sabia a importância da imprensa para se manter ligado ao povo, ele tinha essa relação com o povo. “A grande massa, as pessoas que estão muito distantes, todos precisam saber do que estou fazendo”, pra ser cobrado também. Ele dava a cara a tapa, deu grandes exemplos em vida pra poder fazer as coisas que fez. Ele fez a reforma agrária, mas ele doou uma fazenda que ele tinha, foi a primeira fazenda, que ele doa, da família. Mas ele soube jogar, no episódio da Legalidade, com a imprensa como um elemento de guerra.
LG – Isso o Brizola jovem, por que o Brizola mais velho, depois…
ZB – Vai comprar briga com a imprensa.
LG – E o fato de o Brizola ter brigado com a Globo significou que ele nunca foi presidente do Brasil. O exílio também fez muito mal pra ele.

Como é que vocês têm acompanhado esse ataque sistemático às artes, à cultura e ao pensamento pelo governo Bolsonaro?
SB – É o que se esperava dum fascista. Não pode esperar do fascismo outra coisa a não ser isso. O [ministro da propaganda da Alemanha nazista Joseph] Goebells, o número um do [Adolph] Hitler, dizia: “quando eu ouço a palavra cultura tenho vontade de sacar da pistola”. Indiretamente, eles odeiam, eles também têm vontade de sacar a pistola e matar todos os artistas, por que o artista é rebelde, o artista fala, o artista é independente, além do quê a cultura e a arte servem para o esclarecimento do povo, e eles não querem, querem o povo burro.
LG – Ignorante como eles.
SB – Eles não têm carinho nenhum, têm profundo desprezo pela cultura. E é aí que está o nosso papel: resistirmos. Por que isso passa. Essa onda de fascismo, de direitismo, existe em todo o mundo, não é só no Brasil, eles estão surfando na onda, a direita botou as garras de fora e está tendo seu momento. Até por culpa da esquerda, vamos aprofundar, que fracassou em muitas coisas. Acontece que a hora é deles, não é a nossa hora, não é a hora dos progressistas, não é a hora dos esquerdistas. Nesse momento nós temos que resistir, aguentar, por que muda, claro que muda, não sei se vai durar 10 ou 20 anos. Mas de repente alguém pode cair do cavalo.
LG – Vale falar que o filme é em memória de nosso ator, que acabou falecendo, infelizmente, que interpreta o Brizola, o Leonardo Machado.
SB – Foi o último trabalho dele.
ZB – O Léo é o protagonista, junto com o Sapiran ele faz o Brizola, a maior parte do filme ele conduz a trama, é um grande ator do Rio Grande do Sul, deixa um legado importante. Todos os diretores dos últimos 20 anos em algum momento trabalharam com ele. Não chegou a ver o filme pronto, viu um corte, enfrentou um câncer e nos deixou precocemente. Mas fez o filme com uma entrega absoluta, com paixão, buscou o papel, a gente estava buscando um ator, estávamos caindo no canto da sereia de que para chamar público tínhamos que ter atores do eixo Rio-São Paulo, em grande evidência na televisão.
LG – Mas tu tinha uma pulguinha, queria um Brizola gaúcho.
ZB – É, num primeiro momento a gente achava. Mas ele buscou o papel, me procurou, chegou ao teste caracterizado, era mais forte do que o próprio filme a vontade dele de fazer o filme. Fez lindamente, conduz o filme com uma baita responsabilidade, as falas reais do Brizola, teve um processo de caracterização, mudou o cabelo, colocou lente de contato, engordou um pouco para fazer o filme, é um ator muito completo, tanto pelo aspecto físico, disposto a transformações, quanto pela parte de equipamento vocal, tinha uma voz muito bonita, muito volume, pros discursos do Brizola isso foi muito importante, uma capacidade também de ser muito generoso, conviveu muito com o Sapiran, foi pra Bagé, fez um laboratório de um mês antes, saiu um pouco da cidade, para buscar essa raiz do Brizola, que era um homem rural, um colono, um homem do campo. Foi conviver com o Sapiran para os dois criarem o mesmo personagem. O filme, agora que eu falei esse negócio do campo, tem uma outra questão importante que a gente foi buscar: o filme se passa todo em Porto Alegre, mas estabelece um relação histórica com São Borja, com a raiz desse trabalhismo brasileiro que nasce com Getúlio Vargas num território que é Brasil mas que tem como origem de colonização a cultura espanhola, a figura do caudilho, e principalmente a questão da justiça social que fez parte da utopia jesuítica guarani. São Borja é uma cidade que nasce da colonização espanhola jesuítica, e foi o grande centro da justiça, os tribunais guaranis aconteciam em São Borja. Em 1680 já existia a ideia de reforma agrária, de divisão igualitária da terra, isso vai estar no subconsciente do Getúlio, do Brizola, e o filme tenta também flertar com esse passado espanhol que fez o Rio Grande do Sul, que está nas missões, tem um elemento do nosso filme que é inspirado no Darcy Ribeiro, antropólogo, que está na região das missões, em São Miguel das Missões, trabalhando com os indígenas, e vai pra Porto Alegre, mobilizado pela Legalidade, também mostrando essa mobilização que o Brizola fez no interior do estado. Então, pra falar um pouco das raízes do Brasil, que passa pelo elemento indígena, pelo elemento negro, pelo elemento português e pelo elemento espanhol, também no caso do Rio Grande do Sul.

Foi todo rodado em Porto Alegre?
ZB – O filme teve locações em São Miguel das Missões, também em Torres, mas representando Punta del Este, mas a história em si se passa em Porto Alegre.

No começo da entrevista você fez um elogio ao Guarnicê. Nesta edição foi inaugurada uma mostra chamada Cinema Político. O que você achou da iniciativa?
ZB – Eu achei fantástico, o festival tem que ter um compromisso com a sociedade. A gente vive um momento no Brasil onde as instituições, onde o próprio sistema político, como a sociedade vê a política, precisa ser discutido, pensado, a gente precisa repactuar com a sociedade, com a política. Há hoje uma ojeriza, um preconceito muito grande do cidadão com a classe política, por conta do desgaste da corrupção, que é real e que é histórico. A gente esteve no Museu de Arte Sacra hoje à tarde e há uma frase de Padre [Antonio] Vieira, numa de suas pregações, falando de como a corrupção está presente e é genuína do ser humano e é preciso combatê-la, não é questão apenas de ser brasileira, ela existe em toda parte, mas de alguma maneira no Brasil, por conta de nosso processo histórico, a mancha da corrupção se tornou maior do que a vontade civilizatória de fazer política por parte do cidadão. A gente precisa reaproximar o cidadão da política. A sociedade, no seu mais alto grau de caminhar, de pacto social, precisa da política, precisa da participação política. Mas não necessariamente da figura do grande líder, e é essa que é a questão que o Brizola entende, que aquilo tudo só seria possível envolvendo todos os cidadãos e fazendo com que as pessoas se apropriassem daquela causa, lessem a constituição, entendessem por que estavam lutando por aquilo. Como artista a gente também tem um compromisso de aproximar a política da discussão cidadã. A política é estrutural na sociedade, voltamos pra Grécia antiga. Há sociedades que conseguiram avançar, inclusive pra que a gente pudesse ter um processo civilizatório que deu origem ao renascimento, que deu origem à modernidade, ela se baseia na política.
SB – Há um preconceito contra a política em essência. Quando tem um festival que abre uma janela importante para um filme político, é importante, é um avanço. O Guarnicê tem conteúdo, tem pensamento, é um festival de pensamento. O festival que ele [aponta para Zeca] é coordenador tem isso também. É arte, mas é arte para pensar.

Qual é o festival que você coordena?
ZB – Tanto eu quanto Léo, de alguma maneira nós criamos janelas para poder propagar a arte cinematográfica brasileira, mas também refletir sobre nossas áreas, eu na minha atuação na faixa de fronteira e o Léo como roteirista. O Léo criou em Porto Alegre, o Frapa, o Festival do Roteiro Audiovisual, que é hoje um dos maiores, acho que é o maior da América Latina, e eu criei em Bagé e Livramento o Festival de Cinema da Fronteira, que já tem 11 edições. Ano que vem eu não vou participar, vou assistir. Mas fui o idealizador. O Frapa está chegando à sétima edição.

Qual a previsão de estreia do Legalidade no circuito exibidor?
ZB – Dia 12 de setembro ele vai estrear no Brasil. [Distribuição da] Boulevard Filmes, que distribuiu o Tarso também, distribuiu o Glauco do Brasil, meu outro filme.

Como vocês avaliam o atual momento do cinema brasileiro em que filmes como Bacurau, de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dorneles, e Marighela, de Wagner Moura, têm concorridas estreias internacionais, com ampla repercussão, mas não estreiam no Brasil?
LG – Eu acho que o Bacurau vai acabar estreando. O Marighela tá complicado, eu estou lendo, está complicado, a distribuidora ficou com medo da repercussão. O Marighela é diretamente contra o Bolsonaro. Eu não vi o Bacurau, mas imagino que seja uma coisa não tão direta, é óbvio que o discurso está ali, mas uma pessoa tosca não vai se sentir agredido, como o Bolsonaro, diferente do Marighela, que é um cara que combateu a ditadura. Eu acho que o Bacurau vai entrar em cartaz, deve entrar bem, espero que faça um bom público.
ZB – Eu acho que ambos os filmes escolheram estrear em festivais estrangeiros, é uma política que os realizadores brasileiros têm tido, não agora, mas há muitos anos, por que muitos desses festivais exigem que seja première mundial. Estreiam fora por que não têm espaço no Brasil? Não é verdade. Estreou fora por que os realizadores brasileiros preferem estrear fora, criar expectativas, ganhar prêmios fora, e depois estrear nos festivais nacionais. Acho difícil que ambos os filmes, de realizadores de prestígio, com os elencos que têm não sejam selecionados em festivais brasileiros. Provavelmente a gente vai ver agora no segundo semestre, os dois filmes em Gramado, Brasília, em algum desses festivais, Rio, São Paulo, eles vão estar nesses festivais. A questão do lançamento comercial, hoje no Brasil, tem dois caminhos: ou é investimento de uma grande distribuidora, e aí isso não é uma questão de perseguição política, é uma questão de capital. A gente vê que o capital pode, por exemplo, como a Netflix, lançar um filme sobre o impeachment da Dilma, por que o capital não tem esquerda nem direita, ele vende pra esquerda e pra direita.
LG – A Netflix fez O mecanismo [de José Padilha].
ZB – A mesma Netflix que fez O mecanismo faz Democracia em vertigem [de Petra Costa]. Então o capital é um grande balaio, que tem uma oferta que é o comunismo, o neoliberalismo, está tudo ali em oferta. O outro mecanismo é o Fundo Setorial do Audiovisual. O Legalidade é um filme financiado pelo Fundo Setorial do Audiovisual, o Marighela também. O Fundo Setorial do Audiovisual, na medida em que você aprova o financiamento da realização, a distribuição é suporte automático. Se eu quiser recorrer, eu posso ter recursos do mesmo fundo pra distribuir o filme.
LG – Até o ano passado. Agora tá tudo meio turvo.
ZB – Qualquer filme que está sendo lançado esse ano comercialmente teve que fazer esse processo ano passado. Imagino que qualquer filme que tenha optado pelo Fundo Setorial do Audiovisual ele terá o lançamento, imagino, garantido. A sociedade civil organizada que lutou pelo Fundo Setorial do Audiovisual, que lutou pela transparência, pela governança de um fundo que é gerido por um banco público, aliás, o BRDE foi criado pelo Brizola [risos]. O que existe é uma dominação estrangeira das salas. Vingadores estreou em 800 salas. Há um preconceito contra o cinema nacional, isso existe e isso o Bolsonaro está fazendo questão de acentuar, é uma questão que a gente já vêm lutando há muitos anos e é função nossa, como imprensa, como artistas, formar público, lutar contra essa dominação estrangeira.

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