Meu paizinho, meu professor

Seu olhar iluminado é meu farol. Foto: acervo pessoal.

Depois de me apanhar na oficina, no trajeto a caminho de casa o motorista indagou algo sobre o conserto do carro, o que respondi entre elogiar o lanterneiro – a quem talvez eu tenha arrumado um cliente, pois meu interlocutor ficou de passar lá para fazer um orçamento: a qualidade do serviço, a agilidade, o preço. E emendei: aproveitei que ele estaria trabalhando hoje, feriado, já que é mais complicado ficar sem carro em dias úteis.

O motorista retrucou que hoje não é bem um feriado, que é um dia tão triste que ele mesmo, prefere trabalhar para não ter que lembrar de todos os que já partiram e estão lá em cima nos esperando, que um dia chegaremos todos lá. Retruquei apenas que era a nossa única certeza e, como a corrida era curta, a conversa ficou por aí.

Depois me peguei pensando em meus avós maternos, ambos já falecidos, do hábito deles, que não cultivo, mas muito acompanhei durante a infância, de visitar seus mortos a cada 2 de novembro, dia de finados. E lembrei do poeta Nauro Machado, que todos os sábados visitava os pais no Gavião.

A data passou a ter outro significado para mim desde que, em 2015, nasceu José Antonio, meu filho. Hoje me peguei pensando no milagre da vida em geral e da vida dele em particular: um parto difícil e prematuro que fez com que eu mesmo fosse o primeiro a imaginar o bullying que ele sofreria ao chegar à escola, uma troça que fiz comigo mesmo, ainda no hospital, talvez numa tentativa de aliviar a tensão, especialista que sou em tirar sarro de mim mesmo.

Até hoje não havia comentado isto com ninguém, mas não conseguia parar de imaginar meu filho sendo chamado de “finadinho”, em razão do dia em que nasceu e num trocadilho, ao menos na minha cabeça, com o simpático Penadinho, um fantasma criado por Maurício de Sousa, um dos responsáveis pela alfabetização de milhões de brasileiros, não o jogador de vôlei homofóbico.

O menino é pai do homem, como ensinou o bruxo do Cosme Velho. José Antonio veio ao mundo para ensinar e tenho me esforçado para ser um bom aluno. Com ele, por exemplo, aprendi a escrever por partes. Explico: antes dele, quando eu ia escrever um texto (em geral jornalístico), eu precisava fazê-lo de uma vez e só levantar quando o trabalho estivesse pronto, independentemente do tamanho do texto. Com ele aprendi a fazer isso por partes, revezando-me entre a escrita e os cuidados com ele.

Não à toa, por exemplo, meu trabalho de conclusão do curso de Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, na Estácio (ainda Faculdade São Luís, quando ingressei), só saiu depois de seu nascimento. Estudantes de jornalismo (e estudantes em geral): pulem este parágrafo! Demorei nove anos entre o fim das disciplinas e a defesa da monografia.

Não à toa também, na monografia e em meu livro “Penúltima página: Cultura no Vias de Fato” (Passagens, 2019) – e noutros que porventura vier a publicar – a expressão “A José Antonio Nunes Ribeiro, consagro” aparece às primeiras páginas, algo aprendido com João Antonio, mestre que consagrava seus livros a Lima Barreto. Cada um tem o professor que carece e merece.

Obrigado por tudo, filho! Feliz aniversário!

Reencontro

Retrato: Guta Amabile
Retrato: Guta Amabile

És um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho, nos ensinou um antigo compositor baiano, sobre o tempo.

Ontem ele veio me visitar, após meses nos falando apenas por videochamadas, imposição do isolamento social, por sua vez imposto pela pandemia da covid-19. Novos tempos, novos hábitos.

Distância não é sinônimo de ausência.

Mas as videochamadas não me permitiam perceber o quanto meu filho cresceu nesse tempo. Como está comprido, admirou-se a avó, que, no passeio ligeiro com ele, levei para visitar, ela também há tempos sem vê-lo pessoalmente.

Ele riu o trajeto inteiro, para minha surpresa – achei que fosse estranhar mais, diante da quebra da rotina. Em casa, da janela lateral do quarto de dormir, vimos a ponte e suas luzes com seu trânsito como se (já) estivéssemos em dias normais, vimos a árvore e as plantinhas; infelizmente não vimos os passarinhos, pois já era noite.

Brincamos um pouco com um Cebolinha “vintage”, um boneco que eu tenho desde que tinha mais ou menos a idade do menino, um boneco que você abaixa a aba do boné e ele muda as feições – são quatro, do alegre ao zangado. Como o menino, que da gargalhada mais gostosa, muda para o aborrecimento, a reivindicar os vídeos com as músicas que tanto aprecia.

Deu tempo de verouvir Vanguart, Beatles, Partimpim e os Muppets relendo o Queen – juro que a rima não foi intencional (mas as coisas se deram exatamente nessa ordem).

Saindo de casa apenas por extrema necessidade, vejo muita gente a descumprir as normas sanitárias de uso de máscaras ou distanciamento social – certamente gente que não perdeu nenhum parente ou não sentiu saudade de um filho.

Socorro Mota (1955-2020)

Socorro Mota com José Antonio no colo em janeiro de 2017. Foto: Zema Ribeiro
Socorro Mota com José Antonio no colo em janeiro de 2017. Foto: Zema Ribeiro

 

A notícia me alcança pela tela do celular, para tristeza imediata: “tia Socorro se foi”, me escreve Luiza Fernandes, sister in soul, como a chamo desde que nos conhecemos, amiga e colega de profissão.

Entre as lágrimas que começam a rolar e a tentativa de responder sua mensagem com algo que não soe mais do mesmo – o que dizer nessas horas, não é? – penso que Luiza nunca mais ouvirá a tia chamando-lhe pelo apelido de “Maria Bonita” ou me dizendo “Maria Bonita vem aí”, avisando de alguma visita da sobrinha radicada em São Paulo à Ilha, e me vêm imediatamente à memória o sorriso franco e fácil de Socorro Mota (27/2/1955-14/5/2020), sempre elegantemente vestida, fosse para ir à missa ou visitar os amigos.

Foi assim desde sempre e é a lembrança que dela vou guardar. A professora, graduada em Letras, que me saudava de um jeito particular toda vez que nos encontrávamos. “Zema Ribeiro”, ela dizia, antes de apertarmos as mãos ou nos abraçarmos, e emendar alguma conversa sobre política ou outro tema do noticiário, as atividades culturais da Ilha, o gato Olaf, por quem nutria especial carinho, e José Antonio, meu filho, adorado por ela.

Penso no amigo Tarcísio, médico e amigo, irmão de Socorro, com quem habitualmente circulava pelas rodas de choro da cidade e outros eventos artísticos, ela superprotetora a controlar as quantidades de gordura ingeridas pelo doutor.

Católicas fervorosas, penso na comadre Rafaela, madrinha de José Antonio, com quem costumeiramente viajava, tirando alguns dias para merecidos descanso, diversão e compras.

Talvez Socorro aproveitasse as viagens também para colocar-se off line de tanta notícia ruim, sobretudo nestes tempos mais recentes, de um Brasil entristecido. Alguns seguem tratando irresponsavelmente o coronavírus que a vitimou como mera gripezinha. Difícil arriscar qualquer previsão sobre quanto tempo nossa agonia vai durar, mas uma coisa é tragicamente certa: ninguém escapará ileso da pandemia. Quando tudo isso passar, qualquer um/a terá perdido um conhecido, um amigo, um vizinho, um parente próximo ou distante, um artista admirado.

Socorro Mota se chama saudade. Eterna em nossos corações, os que tiveram o privilégio de conhecê-la e com ela conviver. Obrigado por tudo e sempre, minha amiga!