“A rainha está morta”, o baixista também; mas “há uma luz que nunca se apaga”

Da esquerda para a direita: Andy Rourke, Mike Joyce e Johnny Marr, com Morrissey deitado à frente. Foto: Mirrorpix/ Reprodução
Da esquerda para a direita: Andy Rourke, Mike Joyce e Johnny Marr, com Morrissey deitado à frente. Foto: Mirrorpix/ Reprodução

“Best I” e “Best II”, de 1992, coletânea dupla vendida separadamente, foram os primeiros discos que ouvi da banda inglesa The Smiths. Eu era um adolescente de gosto musical estranho, cujo inglês aprendido na escola não me permitia entender muita coisa, mas lendo as letras nos encartes, eu cantava (ou, melhor dizendo, imitava o som das palavras estrangeiras) praticamente todas as 28 faixas. Ouvi os discos na casa do amigo Nilsoaldo Castro Silva, o Capu, em Rosário/MA, que depois me emprestou para eu copiar em fitas k7. Somente já adulto consegui comprar os CDs num sebo – além de alguns outros de uma das bandas de minha predileção.

Morrissey (voz), Johnny Marr (guitarras), Andy Rourke (baixo) e Mike Joyce (bateria) eram “a banda que esperou a Legião Urbana”, segundo as palavras de Capu que nunca esqueci, proferidas quando me apresentou o grupo, certamente referindo-se à formação (antes de trio a banda brasileira também foi um quarteto), à sonoridade, ao sucesso paralelo – The Smiths lançou “The Queen Is Dead” e a Legião Urbana “Dois”, em 1986 – e ao fato de ter um vocalista homossexual. Certa vez, bebíamos ouvindo Smiths e alguém comentou que não gostava da banda por este motivo. Capu retrucou com uma lição: “o que me interessa é a arte, não a vida particular das pessoas”. A coletânea seguiu rodando.

Muitos anos depois, quando Guta entrou pela primeira vez no apartamento então sem mobília que alugamos até hoje (mas hoje cheio de CDs, dos Smiths, inclusive), ela pediu para ouvir música. Saquei o celular e mandei, sem erro, “There Is A Light That Never Goes Out”, uma de minhas preferidas da banda – ali, então, eu descobriria a coincidência: era também uma de suas bandas e músicas prediletas.

O baixista Andy Rourke (17/1/1964-19/5/2023) morreu hoje, aos 59 anos, vítima de câncer no pâncreas. “Andy será lembrado como uma alma gentil e bonita por aqueles que o conheceram e como um músico extremamente talentoso pelos fãs de música. Pedimos privacidade neste momento triste”, escreveu o amigo e ex-companheiro de banda Johnny Marr, em seu perfil no twitter.

Marr e Rourke se conheceram no colégio, em Manchester, onde costumavam tocar guitarra no intervalo do almoço. Só quando formaram uma banda é que ele experimentou o baixo, instrumento do qual não mais se separou. Entre desentendimentos com o vocalista Morrissey e após breves períodos afastado da banda, integrou os Smiths até sua dissolução, após o lançamento de “Strangeways, Here We Come” (1987). Ainda colaborou com Morrissey em discos de sua carreira solo, além de artistas como Sinéad O’Connor e The Pretenders.

Rourke e Mike Joyce chegaram a processar Morrissey pela distribuição dos direitos autorais dos Smiths, após o fim do grupo, mas desistiu da ação após um acordo extrajudicial – recentemente o vocalista sairia do armário político ao flertar com a extrema-direita.

O baixista ainda chegou a fundar grupos como o Freebass, com outras autoridades no instrumento: Gary Mounfield (ex-Stone Roses) e Peter Hook (ex-New Order e Joy Division), além de, com o músico e dj russo Olé Koretsky e a vocalista do grupo The Cranberries Dolores O’Riordan (1971-2018) – então namorados –, a banda D.A.R.K., com quem lançou o álbum “Science Agrees” em 2016.

O produtor Stephen Street (The Smiths, Morrissey, Blur e The Cranberries) também se manifestou no twitter. “Estou muito triste ao ouvir esta notícia! Andy era um músico excelente e um cara adorável. Envio minhas mais profundas condolências e pensamentos a seus amigos e familiares. RIP #AndyRourke”, escreveu.

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Ouça “The Queen Is Dead” (1986), álbum considerado a obra prima dos Smiths:

Música para ler

Unknown pleasures. Capa. Reprodução
Unknown pleasures. Capa. Reprodução

Em Unknown pleasures [Cobogó, 2014, 112 p.; tradução: Gabriela Fróes], o jornalista Chris Ott, crítico de música com textos publicados em veículos como The Village Voice, pretende e consegue ir além da aura mítica construída ao redor da vida breve do genial Ian Curtis (1956-1980), que se suicidou aos 23 anos em maio de 1980.

No livro que leva o título e comenta o processo de realização do disco Unknown pleasures, do Joy Division, destaca, por exemplo, a importância do produtor Martinn Hannett para a moldura da sonoridade da banda, destacando e localizando a importância do grupo – que viria a desaguar no New Order com o suicídio de seu líder – tanto àquela época quanto visto em perspectiva, quase 36 anos depois do fim – o livro foi escrito em 2003, quando Curtis já contava mais de 20 anos de morto.

“Algo que sempre falta nas discussões sobre o trabalho do Joy Division é perspectiva. E só o tempo pode nos dar perspectiva. Por mais objetivo que alguém possa ser, e por mais distante que esteja da história, a música do Joy Division tem a mesma potência que qualquer droga: é esmagadora, entorpecente e certamente viciante”, anota Ott nos Agradecimentos, em que revela ainda que o “livro começou como um breve artigo chamado “An Ideal for Listening” [O melhor para se escutar], publicado originalmente no site Pitchfork”, do qual foi colaborador.

Na tentativa de ajudar a compreender a alma, mente e coração inquietos, intensos e criadores de Ian Curtis, o livro de Chris Ott se soma a Joy Division: Unknown pleasures [Unknown pleasures, tradução de Martha Argel e Humberto Moura Neto, prefácio de Edgard Scandurra, Seoman, 2015, 374 p.], do contrabaixista Peter Hook, e a Tocando a distância: Ian Curtis & Joy Division [Touching from a distance – Ian Curtis and Joy Division, tradução de José Júlio do Espírito Santo, prefácios de Kid Vinil e Jon Savage, Edições Ideal, 2014, 317 p.], de Deborah Curtis, viúva de Ian.

Unknown pleasures integra a charmosa coleção O livro do disco, que “traz para o público brasileiro textos sobre álbuns que causaram impacto e que de alguma maneira foram cruciais na vida de muita gente”, conforme texto de abertura do livro. Há, na coleção, volumes dedicados a The Velvet Underground and Nico (por Joe Harvard), A tábua de esmeralda, de Jorge Ben (por Paulo da Costa e Silva), Estudando o samba, de Tom Zé (por Bernardo Oliveira), As quatro estações, da Legião Urbana (por Mariano Marovatto), Electric Ladyland, de Jimi Hendrix (por John Perry) e Led Zeppelin IV (por Erik Davis), entre outros.

Ouça Unknown pleasures:

O charme de Lucap & Nosotros no Chico Discos

Lucap (C), acompanhado de Guilherme Raposo (E) e Hamilton Oliveira (D)

O charme do Chico Discos, que não cansamos de elogiar, é inversamente proporcional ao seu tamanho, o do bar, não o do proprietário. Aconchegante, 50, no máximo 60 pessoas lhe garantem a lotação total. Se o espaço é pouco, sobra talento. Consolidado como um dos mais interessantes espaços culturais surgidos nos últimos tempos numa São Luís sempre ressentida da carência de coisas do tipo, Chiquinho, um ex-sebista que ainda tem algumas sobras do acervo a decorar as paredes do lugar, nega qualquer palavra que não “bar” para definir sua casa.

Dando prosseguimento à temporada iniciada mês passado, o cantor, compositor e violonista André Lucap volta ao palco do Chico Discos (Rua Treze de Maio, 389, esquina com Afogados, sobre o banco Bonsucesso), acompanhado dos músicos Guilherme Raposo (teclado) e Hamilton Oliveira (contrabaixo), o duo Nosotros. No repertório, músicas autorais, do álbum inédito On, a ser lançado em breve, e releituras de nomes como Beatles, Beck, Bob Marley, Johnny Cash, Joy Division, New Order, Nine Inch Nails e Vitor Ramil.

O show acontece nesta sexta-feira (20), às 21h. Os ingressos custam R$ 12,00. Maiores informações: (98) 8159-1990.