“Você me abre seus braços/ E a gente faz um país”: as lições de Antonio Cicero (1945-2024)

O filósofo e poeta Antonio Cicero - foto: ABL/ divulgação
O filósofo e poeta Antonio Cicero – foto: ABL/ divulgação

A profusão de homenagens ao poeta, letrista e filósofo Antonio Cicero (1945-2024) é mais que merecida: qualquer brasileiro/a cantarola várias de suas letras, não raro sem saber que ele é o autor.

Antonio Cicero saiu de cena por vontade própria: recorreu ao suicídio assistido (eutanásia), ontem (23), na Suíça, onde a prática é legalizada. Para além de debates no campo religioso (reafirmou seu ateísmo na carta de despedida), optou por uma morte digna quando acreditou que o mal de Alzheimer já não lhe garantia uma vida idem.

Consciente até o fim, talvez seu gesto tenha tido uma intenção política. Mesmo que não, a discussão que se poderia/deveria abrir é justamente essa: o direito a uma morte digna quando a vida já não o é – ou quando assim for considerada.

Demoro a processar certas mortes. Antonio Cicero era imortal – da Academia Brasileira de Letras (ABL) – e parecia mesmo eterno, o que se comprovará ao continuarmos assobiando seu legado vivo.

A finitude também foi tema de suas criações, como por exemplo em “O Meu Sim” (parceria com a irmã Marina Lima, que a gravou): “quem sabe o fim não seja nada/ e a estrada seja tudo”.

Não faltaram, nas citadas homenagens, a escolha de letras de música e poemas prediletos, um exercício difícil, dado o volume e a qualidade da obra de um de nossos grandes criadores.

“Inverno” (parceria com Adriana Calcanhotto), “Holofotes” (com João Bosco e Waly Salomão), “O Circo” (com Orlando Moraes), “Maresia” (com Paulo Machado), “Dono do Pedaço” (com Gilberto Gil e Waly Salomão), “Os Ilhéus” (com José Miguel Wisnik), “O Último Romântico” (com Lulu Santos e Sérgio Souza), “À Francesa” (com Cláudio Zoli), “Acende o Crepúsculo”, “Fogo e Risco”, “Bobagens, Meu Filho, Bobagens”, “Pra Começar”, “Fullgás”  “Virgem” (com Marina Lima), nas vozes, respectivamente, de Adriana Calcanhotto, João Bosco, Maria Bethânia, Zeca Baleiro, Gilberto Gil, José Miguel Wisnik, Lulu Santos, Gal Costa, Ney Matogrosso e Caetano Veloso, além da própria Marina Lima, parceira primeira e maior, são alguns (poucos e) ótimos exemplos, entre tantos possíveis.

Não “guardei” o motivo pelo qual desperdicei a única chance que tive de conhecer Antonio Cicero pessoalmente: ele era uma das atrações da IX Feira do Livro de São Luís (2015), mesma edição que trouxe Marcelo Yuka (1965-2019) – que também não conheci –, sob curadoria do poeta Fernando Abreu, seu admirador confesso.

Os hits do Ritchie

Em geral Ritchie é um cara subestimado. A vida tem dessas coisas, música que abre este post, é parceria com Bernardo Vilhena, talvez seu parceiro mais constante, com quem assina quase todo o Voo de coração (de 1983, época em que a palavra vôo ainda tinha acento), disco de músicas até hoje assobiadas por aí, como Pelo interfone e Menina veneno, seu maior hit, ambas também parcerias Bernardo Vilhena.

Em algumas faixas do disco aparecem Liminha (contrabaixo), Lulu Santos (guitarra) e Lobão (bateria), entre outros, os dois últimos egressos da Vímana, banda que Richard David Court, nome de pia de Ritchie, formou quando desembarcou no Brasil, ainda na década de 1970, quando era um inglesinho de “20 e poucos anos” (mas isso já é título de música de Fábio Jr.).

Em 1984 Ritchie participaria também de Velô, disco de Caetano Veloso: os dois cantam juntos Shy Moon, composta em inglês pelo baiano.

Ritchie está na ativa e com disco na praça, 60, alusão à sua idade. O sessentão faz show hoje em São Luís, no projeto Gênesis in Concert, que celebra alguma efeméride da boate que já foi febre na capital maranhense. Abre a noite o DJ Salim Lauande, um de seus sócios-fundadores-proprietários.

Doc didático reconta história do rock brasileiro, ainda que de forma superficial

Rock brasileiro – História em imagens [documentário, Brasil, 2009, 70min., direção: Bernardo Palmeiro], exibido ontem (9) no Maranhão na Tela, traça um panorama da cena rock no Brasil desde o seu início até os dias atuais. Do nascimento, entre a Jovem Guarda e a Tropicália, com Roberto e Erasmo Carlos, Gilberto Gil e Os Mutantes, passando por Novos Baianos e Raul Seixas – talvez o nome mais importante do gênero no Brasil até aqui –, até a falta de rebeldia e excesso de emotividade de nomes contemporâneos como Fresno e NX Zero.

É um filme linear e extremamente didático, perfeito para iniciantes no assunto – o filme foi feito para uso em escolas, fico sabendo depois da sessão. A montagem tem seus defeitos, com excesso de branco nos cortes e “colagens” das imagens anunciadas no título – fala-se, por exemplo, em Secos & Molhados, e fotos de Ney Matogrosso, João Ricardo e Gerson Conrad, integrantes do revolucionário conjunto, sobrepõem-se umas às outras, tentando em vão uma unidade. Incomodam também as capas de discos de Raul Seixas passando em frente ao depoimento de Charles Gavin (ex-baterista de Ira! e Titãs, responsável pelo relançamento em cd de discos fundamentais da música brasileira, hoje apresentador de programas sobre música no Canal Brasil).

Outro defeito pode ter sido justo a falta de recorte: impossível cumprir a promessa do título em pouco mais de uma hora de filme. O assunto dá muito pano pra manga e nomes importantes são esquecidos ou subestimados. Tim Maia, por exemplo, tem sua importância para o rock nacional, seja ao ensinar Roberto e Erasmo a tocar violão, seja ao influenciar Os Mutantes – “Qualquer semelhança com Tim Maia é mera coincidência”, nos avisam Rita e os irmãos Baptista no encarte do Jardim Elétrico (1971) –; Chico Science parece ser apenas mais um, surgido nos anos 1990. Não é. Francisco Ciência – como o chamaria um radical Ariano Suassuna – é o responsável pelo último movimento da música brasileira, o manguebeat, uma personalidade importantíssima no panorama da música brasileira recente.

Pitty, num depoimento que soa meio arrogante, diz algo como “não é por eu ser baiana que eu tenho que colocar um berimbau no rock”, referindo-se ao hibridismo que muitos tentaram, sem sucesso – ou com sucesso e sem qualidade. Acerta a moça ao dizer que na Nação Zumbi isso soa(va) natural, sem forçar a barra – eu acrescentaria aí o mundo livre s/a, para ficar apenas em mais um nome do movimento pernambucano. Lobão e Lulu Santos, gostemos ou não, são outros dois nomes simplesmente “esquecidos”. Vivas à lembrança de Júlio Barroso e sua Gang 90.

Embora o filme não traga imagens raras não deixa de ser pelo menos engraçado analisar o figurino de astros como Cazuza – com uma calça coladíssima num Rock in Rio – e/ou as bermudas e camisas coloridas d’Os Paralamas do Sucesso – noutro. Ou no mesmo. Ou num Hollywood Rock, sei lá.

Embora reconheçamos as dificuldades para se conseguir falar com determinados artistas, a voz em off do narrador é recurso que poderia facilmente ser dispensado com mais depoimentos. Os de Liminha são um capítulo à parte: tendo tocado com Os Mutantes, produziu discos d’Os Paralamas do Sucesso, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Nação Zumbi, entre outros. Ele, quase a própria história do rock brasileiro.