Voduns de luz

Quando Cesar Teixeira lançou, em 2004, seu primeiro (e até aqui único) disco, Shopping Brazil, anotou em O lixo é nosso!, o texto de apresentação: “é pouco espaço pra tanto vodum”. Referia-se a mestres que reverencia, de um modo ou de outro, ali presentes e homenageados. O autor das fotos de capa, contracapa e encarte era Márcio Vasconcelos.

Pai Euclides em imagem do livro Zeladores de voduns do Benin ao Maranhão. Foto: Márcio Vasconcelos

Quando Pai Euclides faleceu busquei uma foto para ilustrar seu obituário. E não poderia ter encontrado uma melhor. O eterno líder espiritual da Casa Fanti-Ashanti sentado diante de um altar, em pose que deixa transparecer sabedoria, experiência, seriedade. “O hábito não faz o monge”, diz o dito popular, mas as vestes aproximam-no de um deus. Novamente o fotógrafo era Márcio Vasconcelos.

Agaxosa - Gloku Kosu Naeton (Ouidah - Benin), a fotografia usada na capa do livro. Foto: Márcio Vasconcelos
Agaxosa – Gloku Kosu Naeton (Ouidah – Benin), a fotografia usada na capa do livro. Foto: Márcio Vasconcelos

O retrato de pai Euclides e tantos outros Zeladores de voduns do Benin ao Maranhão [Pitomba!, 2016, 124 p.] integra o conjunto de fotografias de Vasconcelos reunido no livro, em que percorre casas de culto afro no Maranhão e no Benin – veja outras imagens no site do fotógrafo.

Dando valiosa contribuição para a preservação da memória dos voduns, o próprio Márcio Vasconcelos acaba se configurando também um zelador, dado o capricho com que exerce seu ofício e com que reúne o belo e o sagrado, para além do exótico a que são costumeiramente reduzidas estas manifestações que aliam religiosidade e cultura popular, campos em que tem vasta experiência e diversos prêmios nacionais – o próprio livro Zeladores de voduns foi contemplado no 1º. Prêmio Nacional de Expressões Culturais Afro-Brasileiras da Fundação Cultural Palmares do Ministério da Cultura (MinC), o que viabilizou sua publicação.

Mãe Elzita (São Luís) exibe seu retrato em Zeladores de voduns. Foto: Márcio Vasconcelos
Mãe Elzita (São Luís) exibe seu retrato em Zeladores de voduns. Foto: Márcio Vasconcelos

Os textos que precedem as fotografias, do editor Bruno Azevêdo e dos antropólogos Sergio Ferreti e Hippolyte Brice Sogbossi, facilitam a compreensão, sobretudo para não iniciados, das configurações que aproximam Benin e Maranhão e tornaram nosso estado um dos principais centros das religiões de matriz africana no Brasil.

“O catolicismo está muito presente nesta religião uma vez que os escravos eram obrigados a tornar-se católicos e que o catolicismo era a religião oficial do país até fins do século XIX e oficiosa em grande parte do século XX”, anota Ferreti em A terra dos voduns, um dos três textos que abrem o volume. Com Sogbossi, beninense radicado no Brasil, Vasconcelos percorreu, ao longo de quase um mês, em 2009, diversas cidades do Benin. Além de São Luís, outras cidades maranhenses também foram visitadas pelo fotógrafo, fechando o conjunto. Nas fotografias, sobretudo as do lado de cá, é possível perceber este sincretismo, com imagens de santos da Igreja Católica frequentando os terreiros, um retrato do Papa João Paulo II pendurado na parede, “folhinhas” com imagens de santos, caixas do Divino, parelhas do tambor de crioula, a decoração típica dos festejos de São João e o bumba meu boi.

Mãe Mundica Estrela (São Luís) exibe seu retrato em Zeladores de voduns. Foto: Márcio Vasconcelos
Mãe Mundica Estrela (São Luís) exibe seu retrato em Zeladores de voduns. Foto: Márcio Vasconcelos

Além de registrar diversas personalidades importantes para a perpetuação da religiosidade de matriz africana nas geografias em que se concentra, os cliques certeiros de Márcio Vasconcelos em Zeladores de voduns são uma homenagem a Pai Euclides e Mãe Deni Prata Jardim, última vodunsi da Casa das Minas, falecida há um ano. É também uma ótima oportunidade a interessados em geral de conhecer um pouco mais desta história e suas personalidades.

Sempre envolvido em vários projetos simultaneamente, o fotógrafo lançará este ano dois novos livros: Na trilha do cangaço, em que refaz os caminhos de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, no sertão nordestino, com curadoria e concepção da fotógrafa inglesa radicada no Brasil Maureen Bisiliat, será editado pela Vento Leste; pela mesma editora ele publicará, com curadoria de Diógenes MouraVisões de um Poema Sujo, conjunto de fotografias inspirado no famoso livro-poema do maranhense Ferreira Gullar.

Bandeira de aço: documentário sobre o disco é disponibilizado no youtube

No dia 28 de maio de 2013 vários artistas subiram ao palco do Teatro Arthur Azevedo para celebrar os 35 anos de Bandeira de aço, antológico disco de Papete, lançado pela gravadora Discos Marcus Pereira, em 1978. A iniciativa era do Festival BR 135, capitaneado pelo casal Criolina, leia-se, Alê Muniz e Luciana Simões.

No disco, vencedor de enquete do jornal Vias de Fato, Papete cantou nove músicas, os primeiros registros fonográficos das vastas, importantes e belas obras de Cesar Teixeira, Josias Sobrinho, Ronaldo Mota e Sérgio Habibe.

Por ocasião do espetáculo, um documentário foi exibido, contando a(s) história(s) do disco, destacando sua importância, e botando o dedo em feridas. O filme tem depoimentos dos quatro compositores e do intérprete, além de nomes como Chico Saldanha (compositor que fez chegar a fita com as canções às mãos e ouvidos de Marcus Pereira) e Zeca Baleiro, entre outros.

Com roteiro de Celso Borges e Andréa Oliveira, o documentário (finalmente) foi disponibilizado pela produção, na íntegra, no youtube. Assista:

Siba e o exemplo de resistência dos maracatus de Pernambuco

Siba comandou baile de encerramento do BR135. Foto: ZR (12/12/2015)
Siba comandou baile de encerramento do BR135. Foto: ZR (12/12/2015)

 

Escalado para fechar a programação do BR135, o pernambucano Siba brindou o público ludovicense quase que exclusivamente com o repertório de De baile solto, seu novo e ótimo disco, passeando aqui e acolá, por outros títulos de sua carreira (todos disponíveis para download legal e gratuito em seu site).

O ex-Mestre Ambrósio abriu o show com a faixa-título do novo trabalho. Aliás, Mestre Nico (percussão) anunciou o tema instrumental, a demonstrar o peso da formação de sua banda. Com atitude roqueira ao empunhar sua guitarra, Siba canta acompanhado de bateria, percussão e tuba, com repertório calcado em gêneros da cultura popular de Pernambuco: o maracatu de baque solto com que trocadilha o nome do disco novo, a ciranda, o frevo e a marcha, entre outros. Seguiu-se Trincheira da Fuloresta, lembrando a Fuloresta do Samba, outro grupo integrado por Siba, formado por músicos populares de Nazaré da Mata, pequeno município da Zona da Mata pernambucana.

Depois veio Marcha macia, uma resposta de Siba à tentativa da burocracia estatal, em Pernambuco, de acabar com a tradição de os maracatus amanhecerem tocando: “Vossa excelência, nossas felicitações/ É muito avanço, viva as instituições!/ Melhor ainda com retorno de milhões/ Meu Deus do céu, quem é que não queria?/ Só um detalhe quase insignificante/ Embora o plano seja muito edificante/ Tem sempre a chance de alguma estrela irritante/ Amanhecer irradiando o dia”, diz a letra. O tema voltaria à baila, como veremos adiante.

Duetando com Mestre Nico, Siba mandou a real sobre as desigualdades sociais que ainda assolam o país em Quem e ninguém: “Quem tem dinheiro controla/ Radar, satélite e antena/ Palco, palanque e arena/ Onde quem não tem rebola/ Quem tem fornece a bitola/ Onde quem não tem se mede”, um direto na cara de qualquer hipocrisia.

Música dos tempos de Mestre Ambrósio, Gavião ganhou novo arranjo em De baile solto. Três desenhos e Mel tamarindo precederam a pergunta “topam entrar num carnaval?”, com que Siba anunciou A jarra e a aranha, com seu refrão trava-língua, e A bagaceira (de Avante). O público pulava e circulava pela Nauro Machado num grande trenzinho. A multidão presente à praça, tornada um grande baile (solto) de carnaval a céu aberto, fez valer os versos: “pode acabar-se o mundo/ vou brincar meu carnaval”.

A velha da capa preta tornou a passear pela Fuloresta, antes de Siba mandar Meu balão vai voar, faixa que encerra De baile solto que, por pouco, não encerra também o show. Depois dela seguiu-se Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar, do disco homônimo. Siba já sabia que não haveria bis e anunciou isso para a plateia. Não por falta de vontade sua: uma determinação ridícula – desconhecida por este blogue – impede que shows musicais passem de 1h da manhã na Praia Grande (ou em São Luís?). A produção já estava com as barbas de molho depois que a polícia tentou não deixar Curumin terminar seu show na noite anterior.

Faltava pouco para o limite e Siba tornou a entregar o comando do palco a Mestre Nico, que conduziu uma aula de balé popular para a multidão. Pouco depois, citou o exemplo de Recife e as tentativas de proibição de os maracatus amanhecerem tocando, como é tradição. Faltando sete minutos para 1h, emendou um repente que duraria até o fim do show, encerrando-o em grande estilo: “pessoal, muito obrigado/ o show já vai terminar/ outro dia eu volto aqui/ sem ter hora pra acabar”, improvisou. E entre muitos outros versos não guardados pela memória deste cronista, anunciou: “vou ficar em São Luís/ visitar Maracanã/ meu prato de juçara/ vai ser café da manhã”.

Chequei o relógio, que marcava 1h01. É preciso respeitar as regras, mas nem tanto. O exemplo dos maracatus de Recife e os versos de Marcha macia tornaram a me martelar o juízo: “não custa nada se ajustar às condições/ estes senhores devem ter suas razões/ além do mais eles comandam multidões/ quem para o passo de uma maioria?”

A incansável máquina humana de fazer música

Foto: ZR (11 12 2015)
Curumin e Os Aipins. Foto: ZR (11/12/2015)

 

Que Curumin é um músico que sabe o que fazer no estúdio já estamos cansados de saber e seus três discos são a prova disso. Em Achados e perdidos (2003), JapanPopShow (2008) e Arrocha (2012), ele compõe, canta, toca, sampleia e reinventa a música pop(ular) produzida no Brasil.

Que Curumin sabe o que fazer no palco, o show dele ontem (11), na programação do Festival BR135, sua primeira vez em São Luís, não deixou a menor dúvida. Pilotando bateria e samples, trajando calça vermelha, chapéu e uma camisa quase nas cores do Sampaio Corrêa (o laranja predominava, em vez do vermelho), o artista estava escoltado pelos Aipins José Nigro (contrabaixo e samples) e Lucas Martins (guitarra e samples), “uma banda que tá há muito tempo tocando junta”, como revelou em entrevista ao Homem de vícios antigos.

Curumin canta, toca, programa, protesta, improvisa, não se dá descanso ao longo de toda a apresentação, em que emenda uma música na outra, como se fosse uma máquina de fazer música – embora não o faça mecanicamente e o prazer em tocar, e particularmente em tocar em São Luís, era perceptível. Não há vazios em sua música – ou nas poucas alheias que interpreta. É de um vigor impressionante.

Começou por Vestido de prata (Jorge Alfredo Guimarães), sucesso do novo-baiano Paulinho Boca de Cantor, regravada por ele no disco mais recente. Com quase uma década, Mal estar card atualiza o momento político cretino que o Brasil atravessa. Samba Japa traduzia o sentimento dos que lotaram a praça: na música, a menina sonhou e sambou ali, “no meio da rua na Avenida Central ela não podia parar”; os que estávamos na Praça Nauro Machado também não.

O refrão de Compacto foi cantado pela plateia, em resposta aos “Eu só quero ouvir” de Curumin. Seguiram-se Passarinho, de Russo Passapusso, Selvage e Afoxoque, com o trio esbanjando versatilidade, habilidade e alegria, esta última entrecortada pela caixa de música que abre Salto no vácuo com joelhada (que ele não cantou), preenchida por rimas improvisadas contra “a polícia que trata todo estudante como maconheiro” e a corrupção na política – não disse, mas certamente se referia à São Paulo e a guerra travada pelo governo Alckmin contra estudantes ocupando escolas para mantê-las abertas, contra projeto de “reorganização” do governador.

Mistério Stereo foi dedicada às pessoas que ainda amam, “são poucas”, disse. Vem, menina foi a única música de Achados e perdidos que compareceu ao repertório. Ao vivo, o bloco final ganhou em peso. Em Kyoto o protesto voltou à baila, contra as elites que querem decidir o destino dos menos favorecidos; em Caixa preta Zé Nigro enfiou de incidental trechos de Kátia Flávia, a godiva do Irajá, de Fausto Fawcett; Magrela fever tornou a praça uma grande festa em clube de carnaval, com direito a trenzinho e tudo.

Sabe-se lá se a polícia local tomou para si os protestos de Curumin, mas, diante das ameaças de tomarem o palco e acabar com o show na marra, após negociações com a produção, não coube bis. Policiais alegavam ter o show extrapolado o horário – o que se fosse o caso, mereceria uma honrosa exceção.

Incansável, Curumin fez quase duas horas de um show impecável, um apanhado do melhor de sua carreira. Certamente teria pique para mais, ao menos o bis, mas nem isso tirou o brilho da noite e, particularmente de sua apresentação, que ficará por muito tempo na memória dos que presenciaram esse momento grandioso e raro.

Arnaldo Antunes passeia por várias fases da carreira na primeira noite de BR135

Foto: ZR (10/12/2015)
Foto: ZR (10/12/2015)

 

A expressão “mar de gente” não seria clichê para dar ideia do público que lotou a praça Nauro Machado, na Praia Grande, ontem (10) para ver Arnaldo Antunes e os shows que precederam o seu: as Caixeiras do Divino, Sulfúrica Bili, Phill Veras e o DJ Chico Correa tiveram, todos, ótima audiência, na primeira noite da edição 2015 do Festival BR135 – veja a programação completa no site.

O ex-Titãs subiu ao palco escoltado apenas por Chico Salem (guitarra e violão) e André Lima (teclado e sanfona), que lhe bastaram para um passeio por diversas fases de sua carreira solo, com pitadas de Tribalistas e da banda que fundou há mais de 30 anos.

Apropriadamente ele abriu o show com Fim do dia (Arnaldo Antunes/ Paulo Miklos). Os presentes à Nauro Machado tinham certeza do que seus versos diziam: o dia havia chegado ao fim e não havia o que lamentar, pelo contrário. Seguiram-se Sem você (Arnaldo Antunes/ Carlinhos Brown) – com o incidental de Preta pretinha (Luiz Galvão/ Moraes Moreira) – e Meu coração (Arnaldo Antunes/ Ortinho). “É o único herói ainda vivo. Todos os outros morreram de overdose”, ouvi alguém dizer na plateia. “Ou viraram reaças”, pensei.

Arnaldo Antunes estava à vontade, todo de preto, usando grandes anéis, dançando, dizendo da alegria de voltar à São Luís após tanto tempo. Depois de Contato imediato (Arnaldo Antunes/ Carlinhos Brown/ Marisa Monte) e Pedido de casamento (Arnaldo Antunes), lembrou o falecimento recente de Nauro Machado, louvando-o como grande poeta que era e recitou sua Odisseia: “Depois de nos cortarmos a nós mesmos,/ separando a cabeça do olho impuro,/ o olho dos membros e as pernas das mãos,/ depois de separarmos em nós mesmos,/ o que se come do que nos vomita/ por meio escuso de sombrio canal,/ depois de tudo em nós quebrado e inútil,/ na angústia em pelo de uma opaca terra,/ juntamos as partes e/ continuamos”.

Nunca é demais lembrar que Arnaldo Antunes é poeta, com diversos livros publicados. Mesmo na música, sua vertente mais conhecida, à surrada pergunta “letra de música é poesia?” a resposta, no caso de sua obra, é sim: suas letras são tão boas que sobreviveriam descoladas das melodias. As justas homenagens a Nauro Machado já haviam começado com a lembrança de Alê Muniz e Luciana Simões, o casal Criolina, idealizadores e produtores do Festival BR135, com o mestre de cerimônias Preto Nando e com a atriz Áurea Maranhão, a bordo de pernas de pau, atravessando o mar multicolorido e diverso de gente, recitando, em meio ao povo, trechos de poemas do poeta que deu nome à praça que abriga parte da programação do festival, como Pequena ode a Tróia e Câmara mortuária.

Mas voltemos à Arnaldo Antunes, que cantou por mais de hora e meia e deixou no público o gosto de quero mais. Depois do poema do maranhense ele cantou Saiba (Arnaldo Antunes): “saiba, todo mundo vai morrer/ presidente, general ou rei”. Que nos sirva de consolo.

Seguiram-se Invejoso (Arnaldo Antunes e Liminha) e Consumado (Arnaldo Antunes/ Carlinhos Brown/ Marisa Monte), cuja letra fala em “rádio sem jabá”, tema de palestra proferida à tarde por Patrícia Palumbo – por cujo Vozes do Brasil Antunes já foi entrevistado – na programação do Conecta Música, evento de formação, paralelo ao festival.

Arnaldo elogiou o trabalho de Chico Salem, que está lançando disco solo e deixou-o no palco para imediata empatia do público. Ele cantou Real demais pra você (Chico Salem), música animada de letra galhofeira: fala de uma usuária de redes sociais cuja vida real é diferente da postada no facebook, tuiter e instagram – qualquer semelhança é mera coincidência: a plateia ria e cantava junto, empunhando celulares que não pararam de fotografar e filmar o show inteiro. Ou, às vezes, apenas cabeças e mãos pra cima à sua frente.

Dos discos mais recentes, ele fez blocos. De Disco, cantou Muito muito pouco (Arnaldo Antunes) e Ela é tarja preta (Arnaldo Antunes/ Betão Aguiar/ Felipe Cordeiro/ Luê/ Manoel Cordeiro); de Já é, Põe fé que já é (Arnaldo Antunes/ Betão Aguiar/ André Lima) e Naturalmente, naturalmente (Arnaldo Antunes/ Marisa Monte/ Dadi).

“Essa é pra lembrar de quando a gente tava dentro da barriga da mamãe”, disse antes de cantar Debaixo d’água (Arnaldo Antunes). Depois de Se tudo pode acontecer (Arnaldo Antunes/ Alice Ruiz/ Paulo Tatit/ João Bandeira), Velha infância (Arnaldo Antunes/ Carlinhos Brown/ Davi Moraes/ Marisa Monte/ Pedro Baby) emocionou grande parte do público, que ajudou Arnaldo a cantar o hit tribalista. Não vou me adaptar (Arnaldo Antunes) atendeu aos deselegantes e insistentes gritos de “Titãs!” ouvidos desde o início do show.

“Tudo fica mais bonito com vocês cantando”, agradeceu ao deixar o público cantar sozinho os versos finais de Socorro (Arnaldo Antunes/ Alice Ruiz): “qualquer coisa que se sinta/ tem tanto sentimento/ deve ter algum que sirva”. Com Passe em casa (Arnaldo Antunes/ Carlinhos Brown/ Marisa Monte/ Margareth Menezes), outro vibrante hit tribalista, o trio deixou o palco.

Os gritos de “mais um” demoraram um pouco mais: cigarro entre os dedos, Arnaldo Antunes, ao voltar do camarim, posou para selfies com a equipe de produção, técnicos e quem mais estivesse na lateral de acesso ao palco. No bis, atacou de Envelhecer (Arnaldo Antunes/ Marcelo Jeneci/ Ortinho) e O pulso (Arnaldo Antunes/ Marcelo Fromer/ Toni Bellotto).

Shows como o de Arnaldo Antunes e festivais como o BR135 estão aí para provar que São Luís ainda pulsa. Seu coração de paralelepípedos bombeou emoção aos de carne e sangue ali presentes.

Yesterday!

O poeta Nauro Machado (2/8/1935-28/11/2015. Foto Marcia Carvalho
O poeta Nauro Machado (2/8/1935-28/11/2015). Foto Marcia Carvalho

 

CESAR TEIXEIRA*

Enfim, Nauro Machado venceu sua olimpíada. Aos 80 anos conseguiu romper a corda umbilical de um espaço que, segundo ele próprio, não era seu, “mas do universo” – para a surpresa da Morte, na outra ponta da corda, depois de ver seus planos estratégicos caírem por terra.

O poeta retornou à casa Paterna não como um filho pródigo arrependido, que recebe de prêmio um novilho cevado, mesmo porque não desperdiçou a sua herança, nem abandonou sua cidade como na parábola. Ao contrário, desde a publicação de Campo sem Base, em 1958, não parou de escrever. Foram 37 livros de poesia, além de antologias, ensaios e artigos.

Era esse o seu ofício, e São Luís a sua inspiradora oficina, não obstante o inferno burocrático das repartições públicas. Para tanto, adaptou-se ao cardápio da dor, do sofrimento e até mesmo do “escárnio da (…) província”, a fim de eliminar o homem ilusório e edificar o poeta.

Compartilhava líricas alfarrobas (menos as dos porcos) com prostitutas e artistas amaldiçoados nos becos da Praia Grande e do Desterro, e saudava deus e o mundo com a expressão “meu poeta, meu cabo de guerra”, fosse um deputado ou um chofer de táxi.

“Yesterday!” era sua palavra de ordem, ou melhor, seu canto de guerra inacabado, quando as fartas doses de Santo Antônio dos Lopes sem mel faziam transbordar no poeta uma mistura de alegria e dor – naufrágio íntimo no esôfago da alma, que nos tornaria cúmplices e irmãos de infortúnio.

Somente John Lennon ou o Marinheiro Popeye poderiam nos salvar. E tudo foi ontem.

Nauro Machado retornou ao útero de Deus, “feliz e sofrido, mas verdadeiro”, por ter preenchido o seu espaço com a sua poesia, feito a areia fina de uma milagrosa ampulheta, após consumir toda uma existência e completar-se. Estava morto e reviveu: o filho pródigo agora pode caminhar com seus próprios pés.

Até breve, meu poeta, meu cabo de guerra!

*Cesar Teixeira é jornalista e compositor

Nauro Machado: uma existência consumida pela poesia

 

Todos os sábados o poeta visitava seus pais. Morador do Centro em alguns intervalos da vida, eu mesmo encontrei-o várias vezes no percurso. Às vezes, apenas cumprimentávamo-nos e ele seguia seu caminho; às vezes atrasava-se para o compromisso semanal, quando esticávamos a conversa, sobre temas os mais diversos. O curioso é que a morada de seus pais é o Cemitério do Gavião, no bairro da Madre Deus.

“Não há poesia experimental sem vida experimental”, ensinou-nos Roberto Piva, outro grande. E eu via naquele gesto do poeta, pura poesia. Cumprimentava-me, como de resto a quase todo mundo, “meu poeta!”. A expressão “meu poeta, meu cabo de guerra!”, cunhada por ele, é, até hoje, usada por este obituarista e alguns conhecidos, como saudação.

Nascido em São Luís do Maranhão em 2 de agosto de 1935, Nauro Diniz Machado faleceu na madrugada de hoje (28), aos 80 anos. Tinha hérnia no intestino e há poucos anos lutou contra um câncer no esôfago, período lembrado em Esôfago terminal, seu penúltimo livro, lançado em 2014 – o último, O baldio som de Deus, foi publicado em setembro passado.

Nauro era casado com a também poeta Arlete Nogueira da Cruz, com quem teve um filho, o cineasta Frederico Machado, cujo Infernos, que abre este post, é um retrato cinematográfico do pai, abordando sua dedicação à poesia, a boemia, o alcoolismo e sua relação com a cidade natal. Narrado pelo próprio poeta, o enredo do filme é construído sobre alguns de seus poemas.

No primeiro poema, O parto, de seu primeiro livro, Campo sem base [1958], Nauro Machado já prenunciava suas quase seis décadas restantes: “Meu corpo está completo, o homem – não o poeta./ Mas eu quero e é necessário/ que me sofra e me solidifique em poeta,/ que destrua desde já o supérfluo e o ilusório/ e me alucine na essência de mim e das coisas,/ para depois, feliz e sofrido, mas verdadeiro,/ trazer-me à tona do poema/ com um grito de alarma e de alarde:/ ser poeta é duro e dura/ e consome toda/ uma existência”.

O velório de Nauro Machado está acontecendo na Casa de Antonio Lobo (Rua da Paz, 84, Centro), sede da Academia Maranhense de Letras (AML), da qual não era membro por opção. O sepultamento acontece amanhã (29), às 10h, no Cemitério do Gavião.

Tarja preta em oposição às imprensas marrom e chapa branca

 

Três gerações da música do Maranhão se encontram hoje (14), às 20h, no Porto da Gabi (Aterro do Bacanga), no Baile da Tarja Preta, festa que comemora o aniversário de seis anos do Vias de Fato.

Cesar Teixeira, Marcos Magah e Tássia Campos, além do DJ Jorge Choairy estarão juntos para celebrar a longevidade do “jornal que não foge da raia”. Além de música, a noite terá a encenação do esquete Xópim Tarja Preta, de autoria do jornalista Emílio Azevedo, um dos fundadores do Vias de Fato, encenada pelos atores Lauande Aires e Rejane Galeno.

“Os personagens travam um diálogo sobre quem é louco e quem é normal. Conversam sobre o que seria loucura e normalidade, dentro da sociedade em que vivemos; nesse capitalismo à brasileira, com sua herança escravocrata, racista, violenta, patrimonialista; com sua urbanidade profundamente desigual, consumista; com seus profissionais liberais e seus mendigos; e com a presença cada vez mais ameaçadora de um conservadorismo raivoso, de fundo religioso, pseudocristão”, adianta Emílio.

O jornal nasceu a partir do movimento Vale Protestar, contraponto ao Vale Festejar, um festejo junino fora de época que privatizou por muitos anos o Convento das Mercês. Entre 2006 – ano da eleição de Jackson Lago, depois cassado por um golpe judiciário – e outubro de 2009, quando circulou a primeira edição do jornal, muitas discussões e amadurecimento das ideias.

Também fundador do jornal mensal, Cesar Teixeira atesta a importância do jornal para a realidade maranhense: “O Vias de Fato é uma prova de que ainda se pode acreditar em um jornalismo sem amarras no Maranhão, fazendo da sua sobrevivência um compromisso com a sociedade e com a história”, afirmou.

Indago-lhe sobre sua participação no Baile da Tarja Preta e seu aval aos talentos de Tássia Campos e Marcos Magah. “A minha participação será modesta. O palco é deles. Vai ser um prazer estar junto de dois legítimos representantes da nova geração e, embora não seja um avalista do seu talento, assino embaixo”, declarou.

Tássia corresponde o entusiasmo: “[Este encontro] ressignifica as coisas nas quais acredito e é também um lisonjeio, porque eu não componho. O que tenho escrito é apenas a minha história e eles escrevem a história. Me sinto feliz pela possibilidade deste encontro”, afirmou.

Com formação em Ciências Sociais, a cantora é tida por seus pares como uma das mais autênticas artistas de sua geração. Ela não se preocupa em ganhar ou perder patrocínios e espaço para agradar ou desagradar: é uma artista de opinião. Sobre esta questão, ela declarou ao blogue: “Não consigo ficar em cima do muro. Tenho posicionamentos, não acredito em blindagem à crítica – isto já me coloca à margem de algumas coisas – e procuro ser coerente. Acredito que mais artistas com pensamento crítico faria diferença demais. Aqui ainda rola o provincianismo, da colegagem, do disse-me-disse, o que compromete, inclusive profissionalmente, muita coisa. Mas não posso delegar essas responsabilidades aos outros. Mas me incomoda demais isso de, por conta de falta de postura crítica, pouca gente se dá muito bem, pra muita gente se dar muito mal”.

Ela ainda deu pistas do repertório que apresentará logo mais: “Decidi que vou contemplar meus compas de palco: vou cantar Cesar, Magah, Bruno Batista… Mas também tem coisa dA mulher do fim do mundo, [disco novo] da Elza [Soares], Novos Baianos e uns reggaes que eu amo cantar. Vai ter também encontro com os meus rapazes, Chico Maranhão e outras cositas”, antecipou.

Um dos responsáveis pela consolidação de uma cena punk rock em São Luís do Maranhão, Marcos Magah integrou a Amnésia, ainda na década de 1980 – a banda chegou a tocar no comício do então candidato à presidência da república Lula, para uma multidão, na Praça Deodoro, em 1989. Sumido por algumas temporadas, fez de tudo um pouco até reaparecer com Z de vingança [2012], lançado pelo selo Pitomba!, do escritor e editor Bruno Azevêdo, que, de cara, incluiu o disco entre seus prediletos em enquete do Vias de Fato.

A entrevista que Marcos Magah deu a Los Perros Borrachos – Igor de Sousa e este que vos escreve –, publicada pelo jornal meses depois, teve grande repercussão. É a este espírito coletivo que Emílio credita a longevidade do jornal. “A longevidade é, sem sombra de dúvida, fruto do grupo que faz parte do jornal, é consequência do trabalho de quem distribui, divulga, escreve, milita. Sem este trabalho coletivo, que começou no impresso e logo se expandiu para a internet, o Vias não teria durado nem um ano. Some isso a nossa relação direta com as ações de organizações e movimentos populares, de alguns professores e estudantes. Todo esse pessoal, toda esta ação conjunta, é, sem dúvida, a força deste projeto”, finalizou.

Os ingressos para o Baile da Tarja Preta custam R$ 30,00 e podem ser adquiridos no local.

Serra de Almeida recebe homenagem de amigos por seus 80 anos

O flautista durante sua entrevista à Chorografia do Maranhão, que inaugurou a série. Foto: Rivanio Almeida Santos
O flautista durante sua entrevista à Chorografia do Maranhão, que inaugurou a série. Foto: Rivanio Almeida Santos

 

O flautista Serra de Almeida completa, nesta sexta-feira 13, 80 anos de idade, metade deles dedicados à flauta, que aprendeu a tocar já quarentão, como revelou à Chorografia do Maranhão, no depoimento que abriu a série, publicada entre março de 2013 e maio deste ano no jornal O Imparcial.

Há 26 anos o são-bernardense integra o Regional Tira-Teima, mais longevo grupamento de choro em atividade no Maranhão, prestes a lançar (finalmente) seu (aguardado) disco de estreia – incluindo, no repertório, alguns choros de autoria de Serrinha, como é carinhosamente chamado pelos colegas de grupo e por uns mais chegados.

Não poderia haver melhor forma de comemorar a data que com uma roda de choro à altura do talento do mestre. É o que acontecerá hoje (13), às 20h, no terraço do Hotel Brisamar, onde o Tira-Teima costumeiramente se apresenta às sextas-feiras. Mas esta tem sabor especial, por razões óbvias.

Ao grupo, cuja formação atualmente se completa com Paulo Trabulsi (cavaquinho solo), Zeca do Cavaco (cavaquinho centro e voz), Luiz Jr. (violão sete cordas), Henrique (percussão) e Zé Carlos (percussão e voz), se somarão as participações especiais de Anna Claudia, Augusto Pellegrini, Carlinhos da Cuíca, Carlinhos Veloz, Fátima Passarinho, Celson Mendes, João Pedro Borges, Juca do Cavaco, Zequinha do Sax, Zé Luiz do Sax e Osmar do Trombone, além da presença de Bernardo Serra, irmão do homenageado.

Fisicamente, Serrinha lembra o lendário Copinha, mas sua predileção é por Altamiro Carrilho. Merece destaque sua memória prodigiosa: é capaz de tocar incontáveis choros sem qualquer estante à sua frente. Quem quiser comprovar, eis aí uma ótima oportunidade.

A produção não informou o valor do couvert artístico.

Turnê Andarilho Parador, de Djalma Chaves e Nosly, começa por Imperatriz/MA

[release]

Show acontece sábado (14) no Imperial Shopping. Além do município maranhense, músicos percorrerão cinco capitais brasileiras: Teresina, São Luís, Belém, Brasília e Fortaleza

Foto: Fafá Lago
Foto: Fafá Lago

 

A expressão Andarilho Parador carrega em si aparente contradição. Trata-se da junção dos títulos dos mais recentes discos de Djalma Chaves e Nosly, Andarilho e Parador, respectivamente. Com o show, os músicos percorrerão seis cidades brasileiras em novembro e dezembro, lançando os trabalhos.

A turnê começa por Imperatriz/MA, no próximo sábado (14). Lá a apresentação acontece às 19h30, no Imperial Shopping (BR 010, s/n°., Jardim São Luís), com participações especiais de Karleyby Allanda e Lena Garcia, cantoras da cena local.

“Sou um andarilho por natureza, sempre o fui. Meu trabalho foi forjado nas andanças pelos palcos do mundo. Porém, todo andarilho tem sua parada para o descanso e nada melhor do que as harmonias e canções e a companhia de meu parceiro Nosly para tirar uma “siesta””, comentou Djalma Chaves sobre a apenas aparente contradição.

Como também atesta Nosly: “A contradição, se existe, é mesmo aparente [risos]. Andarilho, um ser que anda; parador, ser que viaja no trem Parador, que liga a estação Central do Brasil à Zona Norte do Rio [de Janeiro]. Ambos estão em movimento, moto contínuo [risos]. A gente achou muito legal essa coisa do antagonismo das palavras, daí deu a liga, os opostos se atraem, não é mesmo?”, revelou.

Recentemente os dois realizaram diversas apresentações em São Luís no projeto Djalma e Nosly Convidam, sempre com convidados especiais. A dupla já conta seis shows realizados no formato. “Esse convívio musical tem nos ajudado a alinhavar o repertório que apresentaremos em cinco capitais brasileiras, além da cidade de Imperatriz. Em São Luís investimos na formação de plateia para música de qualidade, sempre convidando algum nome de destaque da cena cultural local, o que continua fazendo parte desse encontro musical”, explicou Nosly. “Estes shows serviram como aprendizado e entrosamento com a banda que nos acompanhará na turnê”, concordou Djalma.

E que banda! Nosly (voz, violão e guitarra) e Djalma Chaves (voz e violão) serão acompanhados por Murilo Rego (teclados), Sued (guitarra), Mauro Travincas (contrabaixo) e Fleming (bateria).

O repertório de Andarilho Parador é baseado no dos dois discos que dão nome ao espetáculo. Além de composições de Nosly e Djalma Chaves, há espaço para reverências a artistas admirados por eles. No primeiro bloco estão músicas como Aldeia (Nosly e Celso Borges) e Santo milagreiro (Djalma Chaves e César Roberto); no segundo, I’ll be over you, sucesso da banda Toto, e Gata e leoa (Jorge Macau), já gravadas por Nosly e Djalma Chaves, respectivamente, entre outras.

A turnê tem patrocínio da Companhia Energética do Maranhão (Cemar), através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura. Além de Imperatriz, o show Andarilho Parador será apresentado ainda em Teresina/PI, São Luís/MA, Belém/PA, Brasília/DF e Fortaleza/CE. Em todas as apresentações os ingressos serão trocados por um quilo de alimento não perecível, que serão doados a instituições de caridade locais.

Chorografia do Maranhão: Celson Mendes

[O Imparcial, 22 de fevereiro de 2015]

Aviador e violonista, Celson Mendes é o 48º. entrevistado da série Chorografia do Maranhão

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

 

TEXTO: RICARTE ALMEIDA SANTOS E ZEMA RIBEIRO
FOTOS: RIVANIO ALMEIDA SANTOS

Celson Afonso de Oliveira Mendes Filho nasceu em Barreirinhas/MA em 25 de janeiro de 1952, pelas mãos de freiras da paróquia local. É o mais velho de oito irmãos. Com menos de dois anos foi levado pelo pai para o Rio de Janeiro, morando depois no Recife e em diversas outras cidades brasileiras – incluindo Cururupu/MA, onde chegou a administrar uma destilaria de álcool.

A vida do violonista é feita de aventuras e acasos. Aviador, ele se tornou músico profissional por acidente – não aéreo; é que mesmo tendo descoberto o talento desde muito cedo, ele não tinha essa pretensão, até participar por acaso de um show de Joãozinho Ribeiro [compositor].

Filho de Celson Afonso de Oliveira Mendes, economista e estatístico, e de Maria Leônia Dias Mendes, Celson Mendes concedeu seu depoimento à Chorografia do Maranhão na nova praça de alimentação do São Luís Shopping, onde se apresentaria àquele sábado no projeto Arte Musical do Maranhão, que teve quatro noites dedicadas a ritmos, instrumentistas, vozes e compositores maranhenses, valorizando e apresentando a diversidade da produção musical do estado.

Ao longo da bem humorada entrevista, ele lembra a participação em grupos como o Bom Tom e o Regional Caixa de Música – quando venceu o Prêmio Universidade FM de melhor músico violonista –, as aventuras da vida de aviador, como guardou uma carteira de cigarros de Baden Powell como souvenir e sua relação com João Donato e Antonio Vieira.

Foto: Rivanio Almeida Santos
Foto: Rivanio Almeida Santos

 

Como era o universo musical na tua casa? Onde você identifica as primeiras influências? Foi meu pai. A gente morava no Filipinho, e ele era o camarada que agregava. Sempre gostou muito de cultura, artes, esportes. Era estatístico, depois se formou em Economia. Logo depois da Estatística ele resolveu fazer Odontologia. No último ano, os estudantes, formandos, iam para um hospital e operavam pessoas carentes gratuitamente. Uma das pessoas que ele estava tratando, ele arrancou um dente, a pessoa teve uma hemorragia, quase morre. Ele gastou uma grana preta para tratar da pessoa e resolveu que nunca mais [risos]. Quando ele foi para o Rio, tinha uns tios, ele se hospedava no apartamento desses tios, e eles tinham acabado de perder um filho. Aí se apaixonaram por mim, pediram para me criar. Ele falou com minha mãe, “pode ser muito bom para ele”, eu me mudei para Copacabana aos um ano e oito meses de vida, isso em 1953, final de 53. Peguei aquela época boa do Rio de Janeiro, em termos, quando dei por mim, lá por 61, 62, com 10 anos de idade, lembro de muita coisa de quando eu tinha cinco, seis anos. Lembro do célebre assassinato da Aída Cury [atentado violento ao pudor, tentativa de estupro e homicídio, o crime aconteceu na noite de 14 de julho de 1958, em Copacabana], lembro da repercussão sobre o atentado da [rua] Tonelero, de Carlos Lacerda [uma tentativa de homicídio contra o jornalista e político ocorrida na madrugada de 5 de agosto de 1954], era pertinho de onde eu morava. Eu morava a um quarteirão de um prédio onde moravam quatro vascaínos [jogadores do Vasco]. Eram eles: Barbosa [Moacir Barbosa, goleiro da seleção brasileira quando da derrota para o Uruguai, na final da Copa do Mundo de 1950, no Maracanã], o goleiro, Bellini [Hilderaldo Luís Bellini, zagueiro, capitão da seleção brasileira campeã mundial em 1958, na Suécia], parecia um artista de cinema, Sabará [Onofre Anacleto de Souza, atuou 12 anos – a maior parte de sua vida profissional – no clube carioca que lhe deu o apelido], eles moravam no mesmo prédio, na esquina de Nossa Senhora de Copacabana com Barão de Ipanema [não chega a dizer o nome do quarto jogador]. Eu vinha passar férias aqui. Meu pai centralizava. Todo domingo de manhã, ele acordava, tinha uma vitrola enorme, até hoje eu tenho discos dele, e ele colocava discos de música erudita durante uma hora, uma hora e meia, tomava café, depois disso começava a tocar Românticos de Cuba, e lá pelas 10, 11 horas, os amigos começavam a chegar com sacolinhas de cerveja, ficavam ouvindo aquele som e isso ficava até umas duas horas da tarde, sentados numa varandinha. Tio Maniquito tocava bem violão, minha vó dizia que o pai dela também tocava. Isso [as reuniões musicais do pai com amigos] desenvolveu, eu tinha duas irmãs de criação que adoravam música. Quando eu fui para Recife, meu sonho era ser aviador. Eu passei para o Colégio Militar do Rio de Janeiro e não me deixaram entrar, por que eu não era filho de militar. Fui pra Recife, passei de novo, nessa época meu pai era superintendente adjunto da Sudene, trabalhava com Celso Furtado [economista paraibano, autor de Formação Econômica do Brasil]. Ele disse: “venha pra cá e faça o exame de novo”. Passei e Celso Furtado foi lá e disse “agora ele entra”. Ao entrar no Colégio Militar, conheci um rapaz, loirinho, tivemos afinidade, ele gostava de basquete, eu também, de música ninguém sabia nada, ele gostava de tocar bateria, e ele disse “eu tenho um tio que é músico, muito famoso”. Eu não sabia de quem se tratava, ele dizia o nome, eu não sabia quem era. Até que um fim de semana ele me convidou para passar na casa dele. O pai dele era médico, coronel da aeronáutica, fui passar o final de semana na frente da praia de Piedade, onde tinha uma vila militar. Quando chega o irmão da mãe dele. Sabe quem era o cara? João Donato [pianista, um dos mentores da bossa nova]! Um dia eu estou passando por uma rua no Centro de Recife e ouço um som de violão que eu nunca tinha escutado. Uma tia compra o disco [Sambas e marchas da nova geração, de 1967] pra mim, Paulinho Nogueira, tocando Roda [faixa de abertura do disco], de Gilberto Gil. Foi meu primeiro elepê. Peguei esse disco, quase furo de tanto ouvir. Uma tia minha, que cantava muito bem, resolve aprender a tocar violão. Eu assistia as aulas, quando acabava, eu pegava o violão, ia lá para o quarto, e comecei a aprender violão assim. Um belo dia fui procurar um professor, ele me botou para tocar, “você leva jeito para a coisa, eu vou te dar umas aulas. Depois conforme seja, a gente vê o valor”. Eu era doido para aprender música, adorava aquele negócio de alguém botar as bolinhas [as partituras] na frente e sair tocando. Eu disse “eu quero aprender isso”. E ele: “primeiro vamos ver se realmente você tem queda”. E um belo dia eu roubei uma partitura dele. Uma semana depois eu voltei tocando aquele negócio. “Quem foi que te ensinou isso?” “Eu aprendi lendo”. Ele nunca me cobrou. Aí veio a perseguição política, meu pai teve que ir embora pro Chile, por conta da ligação dele com Celso Furtado, ele era padrinho de um irmão meu, inclusive. Meu pai foi embora, minha mãe foi para o Rio de Janeiro, com todo mundo, menos eu, por conta do Colégio Militar. Aí fui adotado pela irmã do João Donato, por isso eu a chamo Tia Eneida. Seguimos juntos, passamos para a Escola de Aeronáutica, eu e o Amim [sobrinho de João Donato], passamos para a preparatória, para a academia, depois me botaram para fora. Incompatibilidade de gênios.

O que foi, especificamente? A tia Eneida resolveu, em comum acordo, ela e o coronel Amim, resolveram se separar. Nessa época era a ditadura pesada, 1970. Nós éramos obrigados a nos recolher às 10h da noite, depois disso não podíamos sair, a não ser em toque de emergência. Eu era de uma turma, A, Amim era da turma H, tinha que atravessar, ele foi lá, chorando, e me disse: “nossos pais se separaram”. Botamos uma roupa, pegamos a carteira de cigarros, fomos para o pátio fumar e conversar. Nessa hora me chega um capitão, a gente vivia pendurado, aprontava muito. Eu era atleta, jogava basquete, jogava vôlei e isso me aliviava. Ele não, o negócio era ser músico, vivia tocando a bateria dele. O capitão disse: “cadeia pra vocês!”. Eu chamei o capitão e disse: “vamos fazer um acordo”. Com o número de dias que ele ia dar para nós, ele estava fora. Eu disse: “me dê os 10 dias de cadeia”, eu não sairia ainda, eu tinha uma reserva [risos], mas não faça isso com ele. Ele disse: “vou dobrar a dele e manter teus 10 dias”. Ele tinha uma .45 bem aqui [aponta para a cintura]. O que eu fiz? Dei um murro no nariz dele. No dia seguinte o brigadeiro comandante chamou: “vou fazer um acordo contigo. Fica aí até o fim do ano, pede teu desligamento”, faltavam dois ou três meses, “se não isso vai prejudicar sua vida toda, vai dar expulsão, e vou segurar o Amim, que é filho do brigadeiro e quem deu o murro mesmo foi você”. Numa boa, eu já estava de saco cheio mesmo. Saí da vida militar, seis meses depois o Amim pediu o desligamento dele também, foi chamado para a Transbrasil. Eu já fiz meu curso para aviação civil, era piloto da Votec [companhia aérea brasileira adquirida pela TAM em 1986], voava para a Petrobras, plataforma. Uns seis meses depois dessa história, mais ou menos isso, ele teve um acidente [chora, sem conseguir completar a informação de que o amigo faleceu].

Quem foram teus outros mestres no violão? Um cego em campos, foi professor também de uma cantora muito bonita, a Marina De La Riva. Os De La Riva eram usineiros, amigos de meu pai, meu pai eventualmente trabalhava para eles. Foi o maior tempo de aula com um professor particular. Depois eu estudei também na Escola Villa-Lobos. Estudei um pouco com João Pedro Borges [violonista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 14 de abril de 2013], tive aqui o Pixixita [o músico José Carlos Martins, professor da Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo] como professor de harmonia. Minha vida de aviador não me permitia ter cursos regulares. Eu andava com o violão no avião. Depois proibiram. Eu cheguei a ter nove violões em lugares diferentes, ficavam no hotel. Eu ficava danado da vida quando me mandavam para um lugar onde eu não tinha um [risos].

Quanto tempo você passou nessa vida de aviador? De 1973 a 1980.

E depois? Em 1980 meu pai me fez uma proposta indecente. Eu estava indo pros Estados Unidos com a noiva, ele me apresentou um amigo, que estava precisando de alguém de confiança para recuperar um avião dele. Era urgente. Ele cobria a passagem, hospedagem no melhor hotel de Salvador e mais uma grana que cobria qualquer coisa. Acabei não indo, terminei o noivado. Eu tinha recebido proposta da Vasp na época, estava esperando terminar um curso, se não eu ia primeiro para a Táxi Aéreo Marília, que hoje é a TAM. O cara disse que ia pagar todos os meus cursos, era presidente do Santa Cruz [Futebol Clube], o maior advogado e maior fazendeiro de Pernambuco, usineiro em Alagoas, e tinha um projeto enorme no interior da Bahia. Tinha duas filhas, não tinha filhos. Ele me pagava um salário de piloto de Boeing, eu ficava voando, todo final de semana. O escritório era uma coisa familiar, de noite uísque rolava. Ele ia comprar uns tratores, acabou me contratando também para cuidar da parte técnica, foi esperto, pagava um para fazer o serviço de dois [risos], mas foi bom para mim também, continuei voando. Eu resolvia toda a questão técnica, ganhei um bocado de dinheiro, não tinha onde gastar, não tinha tempo. Depois meu pai resolveu montar uma destilaria de álcool em Cururupu, onde ele tinha, tem, um terreno. Vim pra cá, cheguei aqui 10 de outubro de 1980. Por que eu lembro? Primeira notícia que eu tive aqui foi que tinha afundado um barco chamado Lima Cardoso, com metade do povo de Cururupu, inclusive parentes e amigos meus. Isso fez meu retorno ao Maranhão, lembro bem desse sentimento, tinha passado minha vida toda fora, Minas [Gerais], São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Norte e Pernambuco.

Nessa época você morava em Cururupu? Sim, eu morava na fazenda, a 10 quilômetros da [sede da] cidade.

Voltando um pouco, você viveu no Rio numa época de bastante efervescência, sobretudo na cena musical. Como isso reverberou em você? Quando eu me entendi por músico meus colegas de turma tinham banda. A música que eles tocavam eram Beatles. Eu achava bonito, interessante, a banda. Mas a música que me tocava era escutar Tom Jobim, Chico Buarque, João Donato, que eu passei a ter acesso aos discos. Eu ia para a casa da tia Eneida, ela tocava muito bem acordeom, cansei de vê-la, João Donato no piano, ela no acordeom, depois eles revezavam. O Amim ficava numa bateria atrapalhando todo mundo [risos]. Eu escutava aqueles temas, ficava encantado. Muitas músicas até se perderam, bolavam na hora, aquelas pegadas jazzísticas. A primeira vez que eu ouvi Samba da bênção [de Vinicius de Moraes e Baden Powell], eu fiquei alucinado. Depois eu me apaixonei por música francesa, era a época de Pierre Barouh [ator, compositor e cantor francês], que também tinha uma ligação com a bossa nova, cinema francês. Nós tivemos recentemente falecido, já com quase 90 anos, foi até um dos percussores da bossa nova, grande compositor, gravou com Rosa Passos [cantora], inclusive: Henri Salvador [cantor, compositor e guitarrista francês]. Ele gravou um disco com uma moça, não lembro se sueca ou norueguesa, chamada Lisa Ekdahl [cantora sueca]. É lindo, lindo, lindo [repete, enfático]! A bossa nova e o jazz, através da influência desse primeiro professor de violão. Minha ligação não era com o jazz, com exceção de Glenn Miller, que eu pai botava e eu ouvia. Meu pai comprou uma usina em Campos, e tinha uma roda de choro. Eu fui lá, eles em volta de uma mesa tocando. Eu me aproximei e fiquei observando. Uma hora eles pararam, conversaram, eu continuei parado. Uma hora sem me dar nem boa tarde. Aí entra no recinto, um galpão, Ivon Curi [cantor, compositor e ator]. Ele chega por trás de mim, botou a mão e disse: “esse camarada aqui toca violão também”. Ele, muito gente boa, simples, dava o show dele, depois sentava do teu lado. Aí os caras me olharam, “é mesmo?”, eu achei de uma indelicadeza, eu era um jovem, eles, todos senhores, eu achei de uma arrogância tão grande, saí e fui jogar sinuca. Mas aquilo me marcou. Foi o contrário do que aconteceu com Paulo [Trabulsi, cavaquinista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 22 de dezembro de 2013]. Paulo quando foi sacaneado por Zé Hemetério [multi-instrumentista e compositor], botou na cabeça e disse “eu vou mostrar que eu posso”. Eu fiz exatamente o contrário, me desinteressei, me afastei. Eu comecei a observar que havia dois comportamentos distintos: o pessoal mais ligado ao jazz, à bossa, gostava de agregar, o pessoal do choro era “se sabe, sabe, se não sabe, cai fora e nem faz barulho”.

E como se deu a escolha pelo violão? Foi por causa desse disco [Sambas e marchas da nova geração, de Paulinho Nogueira]. Eu completei 15 anos, meu pai tinha um relógio Mido de ouro, eu botava os olhos, achava lindo, todo mundo elogiava aquele relógio. Quando eu fiz 15 anos, eu acordo, ele começou: “vou lhe dar um presente” [imita o pai, sacudindo o relógio]. Aí ele disse: “se eu fosse lhe dar um presente, do que você gostaria?”. Eu respondi: “um violão”. Ele murchou [risos]. Ele parou e pensou: “é um idiota. Em vez de ganhar um relógio, que vale não sei quanto, quer um violão”. Fomos a A Guitarra de Prata [loja de instrumentos musicais na Rua da Carioca, Centro do Rio de Janeiro]. E ele: “traga o melhor violão que você tiver”. Na cabeça dele, um violão não podia custar o preço de um relógio. Aí veio uma caixa, com o violão, eu olhei o violão, aquela boca de madrepérola, tinha um senhor no balcão, afinou o violão, começou a tocar, parecia uma escola de samba, meu pai ficou olhando: “O senhor é um artista!”. Era o Codó [violonista, cantor e compositor baiano]. Tocou uma música chamada Boladinho [de Codó], me deu um disco, eu tenho até hoje. Quando papai perguntou quanto era o violão, levou um susto: “é só um, eu não vou montar uma orquestra” [risos]. Mas fez o cheque, levou, foi meu primeiro violão. E ainda comprou um baita dum estojo, muito caro também. “Não adianta ter um violão desses e ficar jogado” e já queria me matricular no outro dia, aí eu falei: “calma!”. Eu não queria entrar em escola, queria voltar para meu professor no Recife, eu não queria ser músico profissional, nunca tive essa ideia.

Por que você não queria ser músico profissional? Nunca tive essa pretensão. Eu vim para cá, eu tocava com Anna Cláudia [cantora], com Léo [Capiba, cantor e percussionista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 4 de maio de 2014], e Anna Cláudia precisou fazer um disco, pediu para que eu fizesse um projeto. Eu comecei a ser profissional numa circunstância interessante: num show de Joãozinho [Ribeiro], comemorativo de 40 anos dele. O diretor musical dele tinha ido embora e Arlindo Carvalho [percussionista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 18 de agosto de 2013] tinha me visto tocar em algum lugar e disse a ele que eu quebrava o galho dele. Eu passei 48 horas acordado para fazer três dias de show no Teatro Alcione Nazaré. Outro dia eu postei uma foto, estávamos eu, Zé Américo [maestro, arranjador, multi-instrumentista], Rui Mário [sanfoneiro, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 7 de julho de 2013] começando, um dos primeiros shows dele. Eu nunca tinha aceitado cachê na minha vida, mas dessa vez a grana era tão boa, e você se diverte. Hoje eu vivo em torno da música, eu não vivo só de tocar: trabalho com projeto, um estúdio de gravação.

Teu pai nunca ofereceu resistência a você seguir a carreira de músico? Não. Ele era muito do “não quero saber o que você vai fazer. Agora, faça bem”. Eu fui campeão brasileiro de pouso de precisão. Ele tinha uma certa restrição com a coisa da aviação. Ele achava que eu era muito afoito. Quando eu estava na força aérea, sempre tinha uma turma que ia para a esquadrilha da fumaça. Ele tinha pavor de que isso pudesse acontecer, ele sabia que se eu fosse eu ia morrer. Nas décadas de 1950 e 60 morreu muita gente da esquadrilha, hoje bem menos, a técnica é outra, os equipamentos são mais modernos. Mas eu gostava mesmo é de loucura, passar embaixo de ponte, quinze minutos invertido, o motor falha, você voltava, essa era a farra.

O músico que mais te influencia do ponto de vista do estilo é Paulinho Nogueira? Não, eu tenho uma admiração pela limpeza do violão do Paulinho Nogueira. Lógico que ele também tem uma técnica, é uma pessoa que nunca entrou numa escola, aprendeu com um irmão, quem escrevia suas partituras era um rapaz aqui do Ceará, o André Jereissati [violonista]. O que mais me influencia é Baden Powell. Eu cheguei a assistir o mesmo show de Baden Powell 11 vezes. Ainda roubei a carteira de cigarros dele [risos], levei para Cururupu, minha mulher jogou fora – depois de quase 20 anos –, foi uma confusão danada. Eu era apaixonado. Baden fazia de tudo, tem uma coisa que me lembra muito o Yamandu [Costa, violonista sete cordas gaúcho]: ele saía desse plano, saía de órbita quando tocava. Ele tinha a habilidade de violonista, a sensibilidade de compositor, normalmente o grande músico não é um bom compositor. Ele conseguiu fazer coisas simples e belíssimas. Baden tinha um ritmo, era um sujeito miudinho, franzino, fumava desbragadamente, no palco, fumava e bebia. Eram sempre dois bancos, num ficavam a carteira de cigarros e o copo de uísque.

Que grupos musicais você já integrou? Nós tivemos tribos. Por incrível que pareça, minha primeira tribo era exatamente a do choro. Era Paulo Trabulsi, era Solano [Francisco Solano, violonista sete cordas, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 26 de maio de 2013], Zeca [do Cavaco, cantor e cavaquinista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 21 de julho de 2013], Serrinha [Serra de Almeida, flautista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 3 de março de 2013], era o [Regional] Tira-Teima, basicamente. Na época tinha o Teles, já falecido, tocávamos no fundo do quintal da casa de Paulo. Foi onde eu conheci Carlinhos Veloz [cantor e compositor], Léo Capiba também fazia parte, Anna Cláudia, que na época era casada com Paulo. Como grupo de formação profissional, o primeiro grupo foi o Ensaio Três. Foi uma história muito engraçada: trabalhávamos eu, Léo e o Mariano Aguado, que era assessor chefe da presidência do Instituto de Planejamento. Nós éramos muito ligados, Mariano gostava de tocar timba, Léo de tocar pandeiro e cantar, e eu, violão. Uma sexta-feira, deu duas da tarde, o presidente nos dispensou, era véspera de um feriado, alguma coisa. A gente acostumado a trabalhar até seis, passei em casa, peguei o violão, passamos na casa de Léo, pegou o pandeiro, compramos uma timba para Mariano, no caminho, ainda não tinha essa estrutura da [avenida] Litorânea hoje, compramos uma garrafa de uísque, gelo, isopor. Chegamos lá, Léo começou a desfiar o repertório dele. Lá pela trigésima música, eu pensei: “já dá um show”. E disse: “se tu aguentar, a gente podia fazer uma história”. E ele disse: “eu tenho música é pra fazer 10 shows”. Resultado: saímos da praia quase 11 da noite, já com quase 100 músicas tonalizadas. Voltamos sábado de manhã, outro litro de uísque. No outro sábado, de novo. Foram três ensaios. Depois do terceiro já arrumamos um contrato, fomos tocar no Pelicano, já tínhamos umas 300 músicas. Durou um tempo, depois do Ensaio Três, agregamos Paulo Lima, grande baixista, violonista, grande músico, depois o filho dele, Athos, guitarrista, grande músico também. Durante um bom tempo o Pelicano era o ponto de encontro, todo mundo que vinha de fazer show, o ponto de encontro era lá. Já montei muitos quartetos, quintetos, veio o Bom Tom. O Bom Tom é o seguinte: nós montamos o Estúdio Bom Tom, e um dia o Marcelo Bianchini, eu nem sabia que ele cantava, ele deu uma canja no Dom Calamar, eu fiquei encantado com a voz dele, e disse que ia montar um grupo só para acompanhá-lo, acabamos montando o Bom Tom, era um quarteto, depois virou quinteto, já chegou até a hepteto. A ideia era um grupo para acompanhar intérpretes, eventualmente tocamos música instrumental, não somos solistas natos.

E tua participação no Regional Caixa de Música [grupo que acompanhou Joãozinho Ribeiro no Circuito Samba da Minha Terra, entre 2002 e 2003], quando você ganhou o prêmio Universidade FM de melhor violonista? Eu reconheço que aquele prêmio foi mais pelo conjunto da obra, o grande mérito é de Joãozinho Ribeiro, um projeto complicado, de meio de rua, feito com sacrifício, mas aquilo foi fantástico. Para mim, pessoalmente, me deu conhecimento de pessoas da cidade, mais uma vez comprovei que qualquer lugar que você chegue com boa música, do Olho d’Água ao Anjo da Guarda, a boa música será apreciada. Uma história que eu sempre me emociono quando lembro: eu estava tocando num lugar, chegou um senhor, pediu uma garrafa de vinho. Sentou na nossa frente, ele estava pra baixo, arriado. A gente tocando, eu bem de frente pra ele. Eu comecei a prestar atenção que a cada música que a gente tocava ele levantava um pouquinho. Secou a primeira garrafa de vinho, pediu outra, não tomava depressa. Perto de a gente acabar, ele não bebia mais, a feição era outra. Acabamos de tocar, comecei a arrumar meu violão, ele: “posso falar com o senhor? Me acompanha numa taça de vinho?”, chamou o garçom, pediu um prato de frios e outra taça. Ele passou uns 30 segundos olhando para minha cara, o garçom veio, me serviu, e ele disse: “em primeiro lugar eu quero agradecer. Não só o senhor, todo o grupo, mas eu estava prestando muita atenção no senhor. Eu cheguei aqui com um firme propósito, era minha última garrafa de vinho”. Eu disse: “que bom, parar de beber”. Ele frisou: “não, minha última garrafa de vinho. Mas não será mais minha última garrafa de vinho, tanto que eu já pedi outra”. Ele sério, eu gelei: tinha ido ali beber, sair dali e jogar o carro contra um poste, me disse que tinha tido uma decepção muito grande, não entrou em detalhes. Depois ele me disse: “olha, se existe alguma coisa nobre, é o que vocês fazem. Foi Deus que me trouxe aqui. Se eu tivesse ido pra outro lugar… mas vocês tocaram meu coração”.

E discos gravados, participação em discos? Não tenho muitos, não sou um músico de estúdio. Gosto mais de palco. A última agora foi com Vieira [O Natal Azul de Antonio Vieira, com vários intérpretes, lançado em dezembro de 2014], o Memória [Música do Maranhão, de 1997] eu pensei, coordenei o projeto, mas não toquei. Registramos vários compositores da velha guarda. Há ali uns registros muito interessantes. O Canta Cidade, um dia Dr. Jackson [Lago, ex-prefeito de São Luís, ex-governador do Maranhão] chegou muito irritado na Prefeitura, ele tinha ido a um evento, pediu para tocar o Hino da Cidade [Louvação a São Luís, de Bandeira Tribuzzi] e ninguém sabia, aí ele mandou fazer um disco.

Você também teve um papel importante na realização do Festival Internacional de Música de São Luís, infelizmente até aqui, de única edição. Para mim foi a coisa mais importante, musicalmente, que eu já fiz na vida.

Para você, o que é o choro e qual a importância dessa música para a música brasileira? Não concordo que seja a única música brasileira, mas a importância é inegável. Se você olhar hoje, no Brasil, os melhores músicos que nós temos passam pelo choro. Ou pelo menos pelo erudito. E mesmo no erudito, não tem jeito, passa ao menos por Ernesto Nazareth [pianista e compositor]. O choro tem um pé no erudito, um pé no popular, e hoje, com essa turma nova, já pisa em outros terrenos.

Você se considera um chorão? Não, eu não tenho essa pretensão. Se eu dissesse que sim seria muito pretensioso. Não posso de jeito nenhum dizer que sou um chorão. Na realidade, não posso dizer que eu sou um chorão, que eu sou um jazzista. Na verdade, se prestar bastante atenção no que eu faço, talvez seja possível dizer que eu sou um sambista. É, a coisa que eu mais gosto de tocar é samba. Na verdade, como dizia Maestro Nonato: “esse pessoal fica pedindo pra tocar choro. É samba!” [risos].

Para finalizar, gostaria que você falasse um pouco de sua relação com seu Antonio Vieira. Por duas vezes eu fiz essa observação: Vieira foi meu segundo pai. Ele foi um cara que me mostrou muita coisa do mundo. Era um sujeito aparentemente simples, mas era de uma sapiência. Nós viajamos muito, convivemos muito, 24 horas, ficávamos no mesmo apartamento, andávamos, ensaiávamos, tocávamos, três, quatro dias, eu não me cansava nunca dele [emocionado]. Fizemos muitos shows juntos, viajamos o Brasil inteiro. Hoje eu conheço muita gente fora por causa de Vieira, por ter ido acompanhando, ele me deu essa visibilidade, me botou em outro patamar. Eu tenho aproximadamente 50 MDs [minidiscs] de Vieira, isso vai dar mais de 80 horas de Vieira cantando, falando, conversando. Às vezes a gente sentava, ele falava: “tu já vai ligar tua besteira?”. Era uma figura!

Bem-vind@s ao século XXY!

Começa hoje no Cine Praia Grande a II Mostra de Cinema Trans; veja programação completa e leia entrevista exclusiva com a ativista transfeminista Hailey Kaas

XXY. Capa. Reprodução

 

A literatura e o cinema argentinos não poupam suas personagens. Tudo é cru, quase cruel – mas antes de tudo, verdadeiro. Em XXY [2007, Argentina/França/Espanha, drama, 90 min., direção: Lucia Puenzo], Alex enfrenta o drama de ter nascido com características de ambos os sexos e a consequente – pois naturalizada, infelizmente – vontade de parte da sociedade e de sua própria família mudá-la/o – e grafo ambos os gêneros para falar da escolha que ela/e (não necessariamente) terá que fazer, sem querer soar spoiler.

O cinema argentino não poupa sequer a própria Argentina: os pais de Alex (Inês Efron), de 15 anos, mudam-se para o Uruguai tentando fugir da arrogância de gente que acha que sabe de tudo – como dizem as personagens –, para os quais a/o menina/o seria uma aberração que deve ser corrigida a qualquer custo. Caso do cirurgião Ramiro (Germán Palacios), durante cuja visita à família se desenrola este comovente drama.

Durante a visita, Alex e Alvaro (Martín Piroyansky), 16, este, filho do cirurgião, sentem-se ambiguamente atraídos. São momentos de descobertas e revelações cruas e, talvez por isso mesmo, poéticas. O pai de Alex, o biólogo Kraken, interpretado por Ricardo Darin, merecidamente um dos melhores e mais conhecidos atores argentinos em todos os tempos, até então desconhecia as reais intenções de seus visitantes, chegados a convite de sua esposa (Suli, interpretada por Valeria Bertuccelli), o que tornará mais forte a ligação entre pai e filha/o, na altura em que a vida lhes dá novas lentes para enxergar o que é “normal”.

O filme é baseado em um conto de Sergio Bizzio, que assina o roteiro com a diretora, filha de Luis Puenzo, cujo A história oficial, de 1985, foi o primeiro filme latino-americano a ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro – curiosamente, o segundo (e são os únicos até aqui) seria o também argentino O segredo de seus olhos (2010), de Juan José Campanella.

XXY integra a programação da II Mostra de Cinema Trans, organizada pelo Fórum de Mulheres Maranhenses, que será aberta hoje (22), às 19h, no Cine Praia Grande (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, Praia Grande). Os ingressos, a preços promocionais, custam R$ 5,00, à venda no local, e a atividade integra o mês da Campanha Internacional pela Despatologização das Pessoas Trans. A programação acontece até sábado (24, veja completa ao final do post).

O blogue conversou com exclusividade com a ativista transfeminista Hailey Kaas. Após a sessão inaugural da mostra, ela participa de debate com a ativista trans Andressa Sheron. Além da exibição do filme Teste da vida real, a noite contará ainda com performance de Andrezza Maranhão.

Hailey Kaas, que também é tradutora, está em São Luís desde a tarde de ontem (22), quando participou de reunião do Fórum Maranhense de Mulheres. Indaguei-lhe o porquê de ela sempre grafar um asterisco após usar a palavra trans e tive este link recomendado. Leia a conversa.

A ativista trans Hailey Kaas, em foto de seu perfil no facebook
A ativista trans Hailey Kaas, em foto de seu perfil no facebook

 

ENTREVISTA: HAYLEY KAAS

O que é transfeminismo?
Resumidamente, transfeminismo é uma corrente feminista orientada para as questões das pessoas trans*. Ele nasce da necessidade das pessoas trans* para se organizar em torno de pautas feministas, assim como para demandar inclusão e participação e no feminismo mainstream que historicamente só representou e representa um único tipo de mulher considerado universal, a mulher branca, heterossexual, magro, de classe média, cisgênera. Percebemos que havia necessidade de nos organizarmos em uma corrente separada que desse conta de discutir nossas questões específicas ao mesmo tempo que seríamos aliadas das pautas hegemônicas do feminismo, que, inclusive, ressoam muito com as nossas próprias, como direito ao próprio corpo, igualdade de gênero, combate ao machismo e ao binarismo de gênero etc.

O conceito é recente e você uma das primeiras teóricas do assunto. Isso torna tudo mais difícil?
É difícil na medida em que você se vê sozinha lutando contra uma grande resistência dentro e fora da academia e dos espaços militantes que acreditam que o transfeminismo é desnecessário ou separatista. Além disso, é sempre mais difícil falar de algo que ninguém nunca ouviu falar e que consequentemente não consegue perceber ou entender como necessário.

O que é mais difícil: lutar contra o machismo generalizado ou contra a transfobia partindo de feministas?
Eu poderia dizer que é igualmente difícil lutar contra o machismo dentro da esquerda, por exemplo. Temos uma tendência a pensar os movimentos sociais e a esquerda como isentas de homofobia, bifobia, lesbofobia, transfobia, machismo, racismo etc., quando na realidade, como parte da sociedade, também somos influenciados ideologicamente para todos esses comportamentos e pensamentos preconceituosos. Parte da esquerda se acha eticamente infalível e impassível de reproduzir preconceitos. O mesmo vale para certos setores do feminismo que são não somente transfóbicos, mas também racistas, homofóbicos, bifóbicos, lesbofóbicos etc. O problema está em não discutirmos isso achando que o “inimigo” está só “lá fora”, na bancada evangélica, por exemplo. Na realidade, quando discutimos e problematizamos esse tipo de coisa na esquerda só temos a ganhar e a aperfeiçoar a forma como militamos e como compreendemos os outros. Por outro lado, estar em espaços teoricamente seguros e da militância onde eu sei que serei hostilizada simplesmente por ser trans* por algumas feministas é de fato bastante desempoderador.

Em que medida o “cross-dressing” da cartunista Laerte contribui com a luta trans no Brasil? O que você acha da postura dela?
Acho que Laerte não pode ser regra e nem exemplo, afinal ela parte de uma posição que de longe não é o padrão da população trans*: branca e classe média. Por outro lado, sempre ganhamos quando temos representações de pessoas trans* que são mais críticas em relação às questões de gênero na mídia. Laerte tem mais bagagem feminista e de gênero porque também tem fortalecimento e estrutura econômica para tal. Isso não é errado ou uma crítica, apenas uma constatação de que a situação corrente das pessoas trans* é bem diferente da de Laerte.

O escritor João Paulo Cuenca em artigo na Folha de S. Paulo defende o “outing” de usuários de drogas e compara: “Ativistas costumam justificar a evasão da privacidade alheia por combater a hipocrisia num mundo onde gays são alvo de preconceito e violência”. Na sua opinião, pessoas famosas, sobretudo artistas e políticos, declarando publicamente sua orientação sexual ajudaria a combater o preconceito? Você concorda com o escritor neste aspecto?
Acho representatividade importante. Para as minorias marginalizadas é muito fortalecedor ver que existem pessoas como você lá fora, ganhando a vida sem estar nos empregos precarizados que a sociedade nos reserva. Por outro lado, representatividade não deve e nem pode ser o objetivo da militância, afinal temos uma presidenta e pouco se avançou nas questões feministas nesses últimos anos; ao contrário, há enormes retrocessos com a anuência do governo, inclusive.

A Lei Maria da Penha é um avanço na proteção à mulher, mas muitas vezes, mulheres sequer conseguem registrar queixas em delegacias, por conta do péssimo atendimento e da revitimização – em casos de estupro, por exemplo, é comum, infelizmente, a culpabilização da vítima. Em que medida essa legislação específica é importante no combate à transfobia e ao feminicídio?
As legislações são importantes, a meu ver, mais ou menos como a questão da representatividade: são importantes como marcos, como elemento de fortalecimento, de reconhecimento, mas são inócuas sem uma estrutura por trás e sem trabalho de base nas escolas e nos espaços de formação dos sujeitos. O machismo não é uma doença que acomete o sujeito, mas sim um projeto social ensinado às pessoas em todos os espaços de convivência e de formação.

Qual a sua opinião sobre a recente fusão dos ministérios de Direitos Humanos, Igualdade Racial e Mulheres em uma única pasta no âmbito do governo federal?
Sem dúvida alguma um retrocesso, fruto de um governo traidor de classe que governa com o capital. Os bancos continuam lucrando com recordes trimestrais e, no entanto, as medidas que atacam os trabalhadores e a austeridade vieram com força no primeiro ano do governo que havia prometido exatamente o contrário. Acredito que isso só vem provar que, de fato, não se pode ter um governo conciliador de classes porque no fim somente a classe dominante rica é privilegiada. Sou socialista e bastante crítica ao atual governo Dilma e aos movimentos que a defendem. Não podemos continuar a defender uma militância LGBT, feminista, antirracista ou o que quer que seja, senão por uma perspectiva socialista, uma vez que, dentro do capitalismo, estaramos sempre sujeitos a sermos “rifados” em prol do “bem maior”: o capital e seus mantenedores.

Outubro é o mês da Campanha Internacional pela Despatologização das Pessoas Trans. Em que consiste a campanha? Poderia falar um pouco sobre ela?
A campanha existe faz alguns anos e veio para divulgar o assunto e combater a patologização das identidades trans* materializada principalmente pela revisão do DSM que estava prevista para 2012. O DSM é um documento da Associação de Psiquiatria Americana (APA), que classifica e patologiza os comportamentos, incluindo a transexualidade. Esse documento tem uma força regulatória quase sempre soberana sobre as políticas de atendimento à saúde de pessoas trans*.

Você participa da Mostra de Cinema Trans em São Luís. Após a sessão de abertura, com a exibição de Teste da Vida Real, você debate o filme. Poderia falar um pouco sobre ele?
O filme é muito importante para ilustrar o impacto da patologização sobre nossas vidas. Ele traz uma abordagem bastante empírica de como os estereótipos trans* e o estigma que recaem sobre nós atrapalham nossas vidas, nos desumanizam e previnem nosso acesso aos espaços e principalmente ao sistema de saúde. Também mostra como os profissionais psi desconhecem completamente a questão da transexualidade e se guiam por estereótipos pré-estabelecidos sobre o que é ser homem ou mulher socialmente.

Programação

Hoje (22)
19h: Exibição do documentário Teste da vida real, de Florencia P. Marano | Performance de Andrezza Maranhão | Debate com Hailey Kaas (ativista e teórica transfeminista) e Andressa Sheron (ativista trans)

Sexta (23)

9h: Minha vida em cor de rosa (exibição para alunos de escolas públicas), de Alain Berliner
14h: Minha vida em cor de rosa

18h30: XXY, de Lucia Puenzo

20h: Hedwig – rock, amor e traição, de John Cameron Mitchell

Sábado (24)

18h30: Meninos não choram, de Kimberly Peirce

20h: Para Wong Foo, obrigada por tudo! Julie Newmar, de Beeban Kidron

Hoje

Divulgação
Divulgação

 

A partir das 19h. Recital com os poetas Celso Borges e Moisés Nobre (e outros que certamente chegarão sem ser anunciados).

Para que serve a UFMA?

FLÁVIO SOARES*

O professor Flávio Soares durante o encontro "Pensando na fronteira: leituras cruzadas de Ribamar Caldeira". Foto: ZR (17/6/2013)
O professor Flávio Soares durante o encontro Pensando na fronteira: leituras cruzadas de Ribamar Caldeira. Foto: ZR (17/6/2013)

 

“A crítica é a morte do rei”
(R. Koselleck, Crítica e Crise)

“A quem serve a UFMA?” poderia ser indagação mais precisa para título desse texto, nascido numa situação difícil de urgência pessoal.

Mas um infortúnio individual, sobretudo no trabalho, pode revelar ou confirmar aspectos mais amplos da pobreza e cegueira institucional onde se vive.

Às vezes, talvez, seja preciso sofrer o trauma no corpo e vivenciar o absurdo em série para perceber a presença fria dessa besta – em forma de incompreensão e miséria – na Universidade Federal do Maranhão.

Uma coisa é falar da “crise” em sala de aula ou livro; outra é sentir no osso sua crueldade numa UPA do Bacanga, nos corredores velhos de um hospital ou nos labirintos administrativos da sua própria universidade, em São Luís.

Por isso, o acidente também pode abrir brechas para reforçar questionamentos e reagir.

Até se precisar do ambulatório “HUzinho” pode se supor que ali seja uma “unidade de atenção à saúde do estudante e do servidor”. Não está escrito na placa? Até se ir à unidade Presidente Dutra do Hospital Universitário é capaz de se permanecer na incerteza ou ilusão quanto à existência por lá de um centro de referência qualificado. Não se ouve falar assim?

Existem sempre exceções admiráveis, mas absurdos e desacertos são normalidades no estado de emergência.

Aparecem de várias maneiras: na cena do velho cadeirante, dentro do hospital, apressado para ir ao banheiro, mas preso na porta porque a largura desta não lhe deixa entrar; na daquele senhor tentando marcar, sem êxito e há meses, simples consulta de poucos minutos; em outro necessitando e não conseguindo fazer cirurgia reparadora que já devia ter ocorrida há muito tempo; na imagem do rapaz humilde e trabalhador sofrendo num leito à espera da imediata ressonância que nunca acontece porque a máquina está quebrada; nos desencontros (propositais?) entre a direção e suas próprias decisões ou “bilhetes de recomendação”; nas imperícias da perícia; no médico – coronel do sistema – a atender apenas durante uma hora a cada semana.

Ao expor o domínio de práticas arcaicas e a exclusão do incluído, o acidente desvela a propaganda da “inovação e inclusão” pelo seu lado triste de horror e farsa.

Vozes solícitas surgem na urgência para lembrar a força de um “pedido do Reitor”, fazendo sentir o círculo do medo e da servidão voluntária que move as hierarquias em torno da Reitoria. O sinal transmitido é que o Reitor não é lugar do direito e sim do pedido; é mais negócio, portanto, cortejar o poder e seus favores.

Conclusão imediata: não há inteligência substantiva nem independência possíveis dessa forma.

*

Um parêntese sobre a questão da expansão da UFMA.

O problema nunca foi o seu crescimento em si, que mais ou menos sempre houve.

Com 30 anos nesta universidade (como aluno e professor) somos testemunha de que ela sempre cresceu, mesmo nos tempos difíceis do governo FHC, na década de 1990.

Não foram nestes anos a construção do atual CCH?

No período Lula, na última década, qualquer um pôde perceber o crescimento da UFMA, nas suas estruturas físicas e atividades básicas.

Difícil foi observar que essa expansão teve mais a ver com uma conjuntura de “falsa euforia” nacional – quando universidades federais cresceram no país inteiro – do que com méritos e virtudes de qualquer gestão competente e suas figuras iluminadas. Isto poderia até ser o caso se o aporte de recursos oriundos da adesão a programas federais emergenciais, como o REUNI, fosse canalizado para uma virada de página no destino da universidade, e não para a reiteração de um modelo superado (cf. Flávio Reis).

O problema, portanto, sempre foi o da natureza da expansão: autoritária, precária, desorganizada e de qualidade duvidosa.

*

É incrível, mas se partirmos do pressuposto de que deveria haver um mínimo de correspondência entre as situações da universidade e do estado, a observação imediata é de que quanto mais a universidade federal ampliou seu espaço físico e aparato técnico-administrativo e atividades de ensino, pesquisa e extensão, mais os índices sociais do estado foram para baixo.

Pois há décadas essa universidade diploma educadores, médicos, advogados, engenheiros, administradores, etc., e há décadas são sempre piores os índices estaduais da saúde, justiça, infraestrutura, serviços públicos, educação.

Há anos desenvolve programa de pós-graduação em políticas públicas, por exemplo, mas alguém se lembra de alguma política “pública” oriunda da UFMA – tocada mesma numa simples prefeitura?

Não é possível que só a UFMA melhore e o Maranhão não.

*

A emergência reitera a miséria e alienação universitárias.

Revolve a ferida de uma existência submissa, sem autonomia e, assim, sem movimento e pensamento próprios.

Certifica um fato: a Universidade Federal do Maranhão, principal lugar do ensino superior no estado, é incapaz de se pensar e, assim, olhar o Maranhão e o país.

Lembro José Ribamar Caldeira como exemplo significativo de um mestre inquieto com as dificuldades para a vida do pensamento, da crítica sem amarras e da inovação real, e pergunto: a professora Maria de Lourdes, da mesma geração, poderia escrever São Luís do Maranhão: corpo e alma (2012) dentro da cidade universitária?

*

No campo das ciências humanas, nas últimas décadas, apenas três estudos conseguiram fecundar alguma coisa para além de si, quebrando o círculo negativo da inveja e do silêncio. A Ideologia da Decadência, de Alfredo Wagner, esforço de repensar a tradição dos antigos estudos maranhenses, elaborado fora da UFMA, inspirador de várias pesquisas, inclusive na universidade; Grupos políticos e estrutura oligárquica no Maranhão, dissertação de mestrado de Flávio Reis feita pela Unicamp reavaliando a formação política do estado, cujo impacto, além de acadêmico, foi político (“oligarquia” virou mantra na guerra político-partidária); A fundação francesa de São Luís e seus mitos, elaborado pela professora Lourdes Lacroix quando aposentada da UFMA, questionando a construção da memória histórica da cidade e ferindo a fundo os nervos do sistema intelectual local. Academia Maranhense de Letras, Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão e Sistema Mirante que o digam.

Tais obras fizeram figura de exceção especialmente quanto à amplitude do impacto interno gerado.

Outros livros, pela qualidade, poderiam ter tido efeito semelhante, mas não tiveram e não sabemos exatamente por que.

Apesar da divulgação, das festas de lançamento, do tamanho, dos prêmios e honrarias, não produziram discussão pública alguma. E nem adiantou apadrinhá-los com nomes de fora ou de dentro mais conhecidos, injetar valor antecipado pela invenção curricular de autoridade, copiar sem pejo as obras citadas invertendo os sinais, ou se fazer aparecer em algum periódico ou programa televisivo nacional (ou, agora, apelar pra rede “social”.). No máximo são discutidos entre pares e compadres; ou em situações de orientação de pesquisa e ensino, quando o orientador ou professor-doutor pressiona o aluno a ler suas obras ou então o próprio autor busca se promover, falando de si, pondo-se na bibliografia da sua disciplina e coisas do tipo.

20 anos de acúmulo de profissionalização, pós-graduação, grupos de pesquisas, etc., não foi bastante para fazer sair do Centro de Ciências Humanas sequer um estudo que se aproximasse (atualizando criticamente), por exemplo, da História do Comércio do Maranhão, não o título de uma coletânea, mas de um clássico local, escrito por Jerônimo de Viveiros na década de 1950; ou O Sertão, de Carlota Carvalho, escrito em condições mais difíceis ainda.

Mencionando tais obras queremos dizer o seguinte. Pode se concordar ou não sobre livros como História do Maranhão, de Mário Meireles, inclusive quanto ao seu baixo teor crítico, mas toda sua produção historiográfica foi representativa, a seu jeito, de uma ordem maior de problemas e ideias acerca da sua realidade.

Desgraçadamente, o Maranhão nunca foi prolífico em obras como estas (no sentido indicado da representatividade de uma ordem maior de problemas), que, no entanto, praticamente desapareceram desde que a UFMA surgiu, na aurora do regime militar e do Maranhão Novo (para não esquecer a hora macabra em que ela nasceu).

O ganho, quando há, é quase sempre quantitativo, apesar da estratégia midiática do poder universitário de vender gato por lebre – como se, por exemplo, a publicação de “x” artigos na revista “y” significasse em si avanço real do saber.

A questão, porém, está longe de ser simplesmente numérica. Se fosse já teria sido equacionada. Comparar, não a quantidade, mas a qualidade da produção anterior do conhecimento (reconhecida como tradição) à da universidade é brincadeira.

Fora qualquer juízo, a produção dos “antigos” inventou o Maranhão conhecido. A dos “novos”, especializada e técnica, consegue apenas ser miseravelmente medíocre.

É triste, mas perto de fazer 50 anos a Universidade Federal do Maranhão não vale uma frase do velho João Lisboa.

Fábrica de espíritos pequenos, servis e vaidosos, a universidade jamais reconhecerá isso.

A UFMA nunca foi fonte de qualquer campanha e debate realmente engrandecedor, formador da opinião pública no estado, em qualquer área (saúde, tecnologia, educação, etc.).

Poderia ter desempenhado papel direcionador em questões como a do desenvolvimento regional, da educação, do meio ambiente, da violência, ou até mesmo na elaboração de um ponto de vista original sobre o Brasil, mas isso nunca aconteceu.

*

É que o modo como na prática ela funciona é algo muito distante da vontade coletiva de superação dos problemas de sua trágica realidade por meio das artes, ciências e tecnologias.

Presa entre imitação pobre de modelos teóricos estrangeiros e idiossincrasias locais, a UFMA nunca passou duma aberração burocrática “colonizada”, dependente, cada vez mais reduzida à meio de transformar verbas federais em giro eterno dos recursos num balcão de negócios e troca de favores de todo tipo.

A combinação de burocratismo e orçamento não explica tudo, mas, em grande parte, ajuda a entender a situação.

Onde impera o toma-lá-dá-cá como estilo de gestão, aliado ao espírito do negócio, não há possibilidade para a vida do pensamento, da criação e da crítica.

*

Talvez as bases sociais e propósitos da UFMA possam ser realçados se pensarmos na história da principal universidade do país.

Todos sabem que no século XX, a partir da década de 1930, em São Paulo chegou a se criar uma verdadeira universidade – a USP – e um centro de ciência humanas (FFCL) que mudou o padrão nacional do conhecimento. Fruto da combinação entre influência estrangeira, sentido de engajamento social e tradição local viva (Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e outros), formou-se nova massa crítica, num contexto de transformações sociais profundas daquela região do país (cf. Antônio Candido, O mundo coberto de moços). Tal processo resultou numa instituição de saber efetiva, que fez escola no Brasil, embora hoje se assemelhe mais a uma organização empresarial (cf. Paulo Arantes).

Longe de ser fruto de uma história de superação crítica, onde se retoma, repensa e atualiza a herança cultural e intelectual recebida, a UFMA foi produto de um tipo de “renovação” baseada na justaposição de faculdades com histórias distintas, espécie de agregação de alhos e bugalhos, dada em consonância com a corrente política-ideológica estabelecida com o Golpe de 1964, fundamento de um organismo hoje cada vez mais indeterminado, caótico.

Por quê?

Porque a UFMA, na sua constituição, nunca deixou de ser fiel a velha conjunção entre igreja e sua teologia reacionária, estado oligárquico e sua burocracia patrimonialista, e tradição mental conservadora arraigada, bacharelesca, avessa ao espírito crítico; conjunção fortalecida, agora mais como simulacro de representação, com o progresso-catastrófico de uma sociedade senhorial e bárbara na etapa final do nacional-desenvolvimentismo brasileiro.

Medicina, direito e letras indicam bem a sua natureza.

Na área de humanas (principalmente nos departamentos de economia e sociologia), numa atmosfera de direita, surgiram reflexões de esquerda, sobretudo marxistas, mas frágeis, confusas, pouco criativas e sem expressão política dentro da universidade.

Até hoje é comum, no centro de ciências humanas, o fenômeno esquizofrênico dos professores bifrontes, vários oriundos das classes baixas, oscilando entre o público e o privado, entre a lei e a malandragem, entre discursos de esquerda em sala de aula e projetos de pesquisa para alunos, e a prática político-administrativa diária de direita para a reitoria da vez.

O atual governador – ex-aluno e professor de direito da UFMA -, fruto da queda do sarneismo e das lutas entre facções, talvez seja exemplo sugestivo de que não haverá o que esperar ou temer da parte dessa universidade, gestada dentro do mundo daquela oligarquia, quanto a qualquer capacidade de aproveitamento do momento para ajudar o Maranhão a se perceber e superar criticamente seus dilemas seculares.

Apresentando-se sob a graça de deus como expoente do primeiro governo comunista do Brasil, almeja chegar à terra prometida do “Maranhão de todos” através da fundação da república, da “revolução burguesa” e do capitalismo. Indicando a amplitude geral do atual pântano mental, onde tudo é possível, tal projeto-zumbi – repita-se: a criação divino-comunista de uma república burguesa capitalista no Maranhão – foi defendido a sério em jornais da província e do sudeste, sem provocar espanto algum. Nem lá e nem cá.

Se a construção de uma capacidade crítica própria tivesse vingado no Campus da UFMA – salvo ilusão retrospectiva, possibilidade talvez existente na virada da década de 1970 para a de 1980 -, não há dúvida de que a ideia de Maranhão hoje poderia não ser a mesma e os seus desdobramentos nas artes, ciências e na política seriam outros.

A palavra “crítica”, aliás, é impossível de ser compreendida nesse ambiente. Como se gosta de dizer, crítica só “construtiva”, o resto é “falar mal”.

Mas, quem sabe, ela não esteja se refazendo agora em outros lugares?

*Flávio Soares é professor do departamento de História da UFMA

[texto roubado do perfil do professor no facebook, onde o mesmo é anunciado como “ruminado e escrito no primeiro semestre de 2015, num momento pessoalmente muito difícil, mas que queríamos transformar numa forma de reflexão mais ampla, forma de registro e de luta. Saiu como um desabafo depois esquecido. Um amigo do facebook lembrou que hoje é aniversário da UFMA, dando um click”]