O filósofo e poeta Antonio Cicero – foto: ABL/ divulgação
A profusão de homenagens ao poeta, letrista e filósofo Antonio Cicero (1945-2024) é mais que merecida: qualquer brasileiro/a cantarola várias de suas letras, não raro sem saber que ele é o autor.
Antonio Cicero saiu de cena por vontade própria: recorreu ao suicídio assistido (eutanásia), ontem (23), na Suíça, onde a prática é legalizada. Para além de debates no campo religioso (reafirmou seu ateísmo na carta de despedida), optou por uma morte digna quando acreditou que o mal de Alzheimer já não lhe garantia uma vida idem.
Consciente até o fim, talvez seu gesto tenha tido uma intenção política. Mesmo que não, a discussão que se poderia/deveria abrir é justamente essa: o direito a uma morte digna quando a vida já não o é – ou quando assim for considerada.
Demoro a processar certas mortes. Antonio Cicero era imortal – da Academia Brasileira de Letras (ABL) – e parecia mesmo eterno, o que se comprovará ao continuarmos assobiando seu legado vivo.
A finitude também foi tema de suas criações, como por exemplo em “O Meu Sim” (parceria com a irmã Marina Lima, que a gravou): “quem sabe o fim não seja nada/ e a estrada seja tudo”.
Não faltaram, nas citadas homenagens, a escolha de letras de música e poemas prediletos, um exercício difícil, dado o volume e a qualidade da obra de um de nossos grandes criadores.
“Inverno” (parceria com Adriana Calcanhotto), “Holofotes” (com João Bosco e Waly Salomão), “O Circo” (com Orlando Moraes), “Maresia” (com Paulo Machado), “Dono do Pedaço” (com Gilberto Gil e Waly Salomão), “Os Ilhéus” (com José Miguel Wisnik), “O Último Romântico” (com Lulu Santos e Sérgio Souza), “À Francesa” (com Cláudio Zoli), “Acende o Crepúsculo”, “Fogo e Risco”, “Bobagens, Meu Filho, Bobagens”, “Pra Começar”, “Fullgás” “Virgem” (com Marina Lima), nas vozes, respectivamente, de Adriana Calcanhotto, João Bosco, Maria Bethânia, Zeca Baleiro, Gilberto Gil, José Miguel Wisnik, Lulu Santos, Gal Costa, Ney Matogrosso e Caetano Veloso, além da própria Marina Lima, parceira primeira e maior, são alguns (poucos e) ótimos exemplos, entre tantos possíveis.
Não “guardei” o motivo pelo qual desperdicei a única chance que tive de conhecer Antonio Cicero pessoalmente: ele era uma das atrações da IX Feira do Livro de São Luís (2015), mesma edição que trouxe Marcelo Yuka (1965-2019) – que também não conheci –, sob curadoria do poeta Fernando Abreu, seu admirador confesso.
“Apesar de você, amanhã há de ser outro dia” (Chico Buarque)
“É pena eu não ser burro; eu não sofria tanto” (Raul Seixas)
“Meu coração não se cansa de ter esperança”, como cantou o recém-oitentão Caetano Veloso. Ao longo dos últimos quatro anos não foram poucas as vezes em que alertei parentes, amigos e conhecidos – ou deveria chamá-los todos/as de ex? – acerca do bolsonarismo, cuja máquina de mentir é tão perversa que acaba transformando seus próprios entusiastas em vítimas do próprio esquema.
Ainda em 2018 fui tachado por um par de parentes de “fanático”, adjetivo que acompanhava palavras como lulista, petista, dilmista, esquerdista ou comunista. Logo eu, que nunca deixei de fazer justas críticas ao PT e seus líderes enquanto o partido esteve no poder – ao contrário de quem, após um mandato inteiro de desmandos de Jair Bolsonaro, segue aplaudindo-o desavergonhada e acriticamente.
Falo de gente pobre, gente como eu. Não é nem gente remediada, que diante de qualquer emergência possa fazer um saque em uma poupança e resolver um imprevisto. Gente que se nega a perceber que é inaceitável o retorno do Brasil ao mapa da fome, sendo o país um dos maiores produtores de alimentos do mundo; gente que se nega a perceber que é impossível pagarmos tão caro por combustíveis fósseis, sendo o país um dos maiores produtores de combustíveis fósseis do mundo. A quem me lê agora e não simpatiza com Jair Bolsonaro e sua família, peço perdão pelas repetições e redundâncias, mas estas são necessárias, vocês sabem o porquê.
É claro que é muito mais fácil receber uma figurinha engraçada, um meme, um vídeo curto e imediatamente repassar por aplicativos de mensagens e redes sociais em geral. Mas nem sempre o mais fácil é o melhor ou o correto. Ler dá trabalho, interpretar texto dá trabalho, pesquisar dá trabalho – ter consciência de classe, então, nem se fala. Checar, então, se uma notícia é verdadeira ou não, mesmo que isto custe apenas perguntar a algum conhecido, dá muito trabalho.
“Mas esta checagem deveria ser papel dos próprios jornalistas”, uns podem argumentar, não sem razão. Sim, deveria: mas muitos de meus colegas de profissão sucumbiram ao bolsonarismo, mesmo que o líder neofascista seja uma ameaça ao exercício crítico e livre de nossa profissão, além de à nossa própria existência. Fora que não são apenas jornalistas que usam redes sociais, estas ferramentas que têm suas vantagens, mas também deram voz a uma legião de imbecis, como ainda teve tempo de afirmar Umberto Eco (1932-2016).
Um presidente da república é uma referência política, moral e cultural. Para o bem ou para o mal – e esta antítese está bem desgastada, quando a extrema-direita se posiciona como “o bem” para derrotar “o mal” (seja o comunismo, o lulismo, o petismo, a esquerda, os vermelhos), mesmo pecando, ao usar o nome de Deus em vão, para mentir. Cristianismo e bolsonarismo são doutrinas absolutamente incompatíveis.
Jair Bolsonaro se elegeu com a cantilena vazia do pseudocristianismo escondido em um de seus slogans de campanha: “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, esgarçou o versículo bíblico do evangelho de São João. Na prática a teoria é outra e qualquer investigação sobre si ou sua família é colocada em sigilo de 100 anos.
Faço questão de escrever este texto puxando as coisas apenas pela memória, sem consultar links ou reler matérias – fosse citar exemplos cotidianos, uma carta aberta não seria suficiente, melhor seria escrever logo um livro, mas já há excelentes publicações revelando as entranhas do bolsonarismo e seu modus operandi, desde o processo que resultou em sua ida à reserva do Exército até a relação dele e sua família com as milícias cariocas.
O Partido dos Trabalhadores está fora do poder há seis anos e qualquer verdade dita a um simpatizante de Jair Bolsonaro ainda é invariavelmente rebatida com um “e o PT?”, “e o Lula?”, “e a Dilma?”. Em meio a isso, a prisão, covarde, pois injusta, pois sem provas, do maior líder político vivo da América latina, pelas mãos de um juiz e procuradores corruptos, o lavajatismo a serviço do bolsonarismo, cujos objetivos eram tirar das eleições de 2018 o então líder em todas as pesquisas de opinião e alimentar o antipetismo.
Mentiras têm pernas curtas: a farsa caiu, a casa dos golpistas caiu, e o governo Bolsonaro, quatro anos depois de eleito, nada tem para mostrar que tenha beneficiado a vida de qualquer brasileiro, a não ser a do próprio nanopresidente, de seus familiares e aliados de ocasião, cujas burras nunca enchem.
Vivemos há dois anos e meio uma crise sanitária global, com distintos comportamentos em relação a seu combate ao redor do mundo. A opção do Brasil governado pelo neofascismo foi retardar a compra de vacinas enquanto tentava negociar propinas e as sórdidas mentiras de toda ordem do Hitler tupiniquim que acabaram por colaborar para o inchaço do número de óbitos, hoje em mais de 700 mil, muitos dos quais poderiam ter sido evitados, se o adorador de Ustra tivesse agido em prol do povo, em vez de ficar imitando gente morrendo por falta de ar. Tudo indica que a história se repetirá com a varíola dos macacos, infelizmente.
Por vários motivos, diversos gênios da criação artística brasileira faleceram nos últimos anos: Agnaldo Timóteo (1936-2021), Aldir Blanc (1946-2020), Cassiano (1943-2021), Dona Inah (1935-2022), Flávio Migliaccio (1934-2020), João Gilberto (1931-2019), Letieres Leite (1959-2021), Mário Luiz Thompson (1945-2021), Moraes Moreira (1947-2020), Nelson Sargento (1924-2021), Paulo Diniz (1940-2022), Paulo Gustavo (1978-2021), Rubem Fonseca (1925-2020), Sérgio Sant’Anna (1941-2020), Tarcísio Meira (1935-2021). Em nenhum caso o ocupante do Palácio do Planalto decretou luto oficial, lançou nota de pesar ou sequer publicou qualquer coisa em redes sociais, manifestando condolências a familiares e fãs-clubes.
“Que diferença faria?”, poderão me perguntar. É o simbólico que nos diferencia dos animais. E este profundo desprezo pelas artes – tidas como coisa de esquerdistas – é um dos símbolos do fascismo.
Por falar nisso, apesar de este texto se intitular “Carta aberta a parentes e amigos bolsominions”, outra categoria poderia estar no título: não perdoo artistas bolsonaristas. É uma contradição em termos. O desmonte sistemático das políticas culturais – e do próprio Ministério da Cultura – já seria motivo suficiente para que o candidato à reeleição não encontrasse apoio entre a classe. E particularmente acredito que artistas, “as antenas da raça” no dizer de Ezra Pound (1885-1972), sejam bem maiores que bobagens como “mamata da Rouanet” ou “caixa preta do BNDES”.
Falando em mamata, por que é mesmo que quem se indigna com a corrupção só se indigna com a corrupção do PT? Os governos de Lula e Dilma, além dos investimentos em órgãos de controle e fiscalização, criaram o Portal da Transparência e nunca interferiram em aparelhos como a Polícia Federal a fim de livrar quaisquer de seus quadros em investigações. Lideranças petistas foram condenadas, presas, perderam cargos. Ou seja: foram punidos por seus crimes. Resumindo: cortaram na própria carne.
Apesar do desejo de alguns, no Brasil (ainda) não existe pena de morte – quer dizer, até existe informalmente, fora da lei, para a população negra, moradores de periferias e pequenos traficantes. Então o que explica o cinismo de quem até hoje se revolta com uma tapioca comprada com cartão corporativo, mas não se revolta com os milhões torrados diariamente pelo atual mandatário da república, sob a proteção dos sigilos centenários?
Volto aos artistas: aqueles que se respeitam e nutrem respeito por seu público têm lado e assumem. E não se trata de ser petista, lulista, dilmista ou beneficiário de leis de incentivo à cultura através de renúncia fiscal. Trata-se de assumir uma postura diante da encruzilhada civilização x barbárie, autoritarismo x democracia, alegria x tristeza, humanidade x desumanidade. O Brasil é o país da alegria e grande parte dela nos é dada por artistas – imaginem o que teria sido do isolamento social sem as lives, os streamings ou quaisquer outras formas de arte e entretenimento. Como podem artistas apoiarem quem representa a tristeza e a morte? Ou, a esta altura do campeonato, aferrarem-se a uma suposta neutralidade? “Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”, já diria o Nobel da Paz Desmond Tutu (1931-2021).
Polarização existia nos tempos em que Lula e Dilma disputavam eleições contra Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, José Serra e, entre outros, Geraldo Alckmin. Ora, se Alckmin entendeu a necessidade de alianças para livrar o Brasil do neofascismo e do neonazismo, qual é a sua dificuldade em entender?
Há uma barbárie em curso no Brasil, basta acompanhar o noticiário: do capoeirista Moa do Katendê (1954-2018), entre o primeiro e o segundo turnos da eleição de 2018, ao campeão mundial de jiu-jítsu Leandro Lo (1989-2022) no último fim de semana, passando pela vereadora Marielle Franco (1979-2018) e o motorista Anderson Gomes (1978-2018), o bolsonarismo mata. “Ah, mas o presidente não apertou o gatilho em nenhum destes casos”, apelará um/a bolsonarista, que deve, no entanto, acreditar na facada desferida por Adélio Bispo durante (te)at(r)o de campanha de Bolsonaro em 2018. De fato não puxou o gatilho, mas reiteradamente incentiva o ódio e a eliminação física de opositores em discursos, além de ter facilitado o porte e a posse de armas à população em geral, colaborando para o ambiente de terror e guerra civil que o Brasil, mais do que nunca, vive (ou morre?).
Qual terá sido o peso da postura de artistas contrários à ditadura militar brasileira instaurada em 1964 para o fim do regime de exceção em 1985? Obviamente é difícil calcular. Mas sua recusa em calar, que os levou a prisões, torturas, exílios, desaparecimentos e censuras, certamente colaborou para que o pesadelo acabasse. Não há clima, tempo, espaço, nem motivo para neutralidade. Goste-se ou não de Lula, do PT, ou de quaisquer nomes e partidos postos à disputa.
Não é preciso sentir dor para se indignar com a dor alheia. Não é preciso passar fome para se indignar com a fome alheia. Não é preciso ser negro para lutar contra o racismo. Não é preciso ser homossexual para lutar contra a homofobia e a violência que dela decorre. Não é preciso ser indígena para ser contra o desmatamento e o garimpo ilegais na floresta. Não é preciso ser mulher para se indignar contra os assustadoramente crescentes números de estupros e feminicídios. Basta ser humano e ter alguma empatia e alguma consciência de que o estímulo à lei da selva, por ação ou omissão, não nos serve nem nos representa.
Esta singela missiva é um último chamado à razão a parentes, amigos e artistas bolsonaristas. Errar é humano e não é vergonhoso admitir erros. Antes tarde do que nunca. Ainda é tempo de reconstruir o Brasil. Ou ao menos de não deixar terminarem de destruí-lo. Nem simpatizantes e defensores de Bolsonaro aguentariam um eventual segundo mandato deste governo da necropolítica e da destruição sistemática. Até por que, caso esta tragédia aconteça, sequer existirá Brasil. E quem diz/ia que foi enganado em 2018 não vai ter desculpa dessa vez.
Vez por outra o noticiário chama atenção para episódios ultraviolentos, como as infelizmente costumeiras chacinas em escolas dos Estados Unidos (mas não só). É este o mote do delicado “Se algo acontecer… te amo” (“If anything happens, I love you”, 2020, 12 minutos), curta-metragem de animação escrito e dirigido por Will McCormack e Michael Govier, disponível em streaming na Netflix.
Um casal faz uma refeição numa mesa comprida, cada qual numa ponta. A cena revela o esfriar do relacionamento e o consequente distanciamento de marido e esposa após terem perdido o amor comum, a filha, como saberemos adiante, para a facilidade do porte indiscriminado de armas de fogo, infelizmente não mais um privilégio norte-americano.
A partir daí, “Se algo acontecer… te amo” corre em feedback e não tem um final feliz: triste e comovente, é impossível para o espectador não se emocionar ao descobrir a origem do título do filme (o deste texto é verso de “Pedaço de mim”, de Chico Buarque, que ali também canta que “a saudade é o revés de um parto/ a saudade é arrumar o quarto/ do filho que já morreu”), mas também se propõe a refletir sobre a violência, esta chaga de nosso tempo, infame, triste, doido e doído. No fundo, é sobre superação, mas engana-se quem imaginar encontrar a água com açúcar típica de quem tenta vender fórmulas para quem deseja ser feliz – como se elas existissem.
Do nascimento da filha, ao aniversário de 10 anos, passando por boas lembranças entre viagens, brincadeiras, objetos e um gato, a força de “Se algo acontecer… te amo” reside também na ausência de diálogos – tudo se resolve no traço dos animadores Youngran Nho (que assina a direção de animação), Haein Michelle Heo e Julia Gomes Rodrigues e na música.
Contando 40 anos de carreira literária e fiel ao conto, o sergipano Antonio Carlos Viana aprofunda algumas obsessões em Jeito de matar lagartas [Companhia das Letras, 2015, 147 p.; leia um trecho]: a velhice, o sexo (ou a falta dele), a solidão, a morte. “Pode-se dizer que todos os seus contos giram em torno do corpo e suas vicissitudes”, adverte-nos Paulo Henrique Britto nas orelhas.
A muralha da China, que abre o volume, por exemplo, é sobre como uma vizinha ensaia seus filhos para uma mentira antes de (quase) noticiar a morte do marido e do filho da protagonista. No conto-título o sexo está nas entrelinhas, no sabor de descoberta entre as ocupações do fim da infância e começo da adolescência.
Em Florais a protagonista, após enviuvar, descobrirá algo inédito em se tratando de sexo. Em Lucy in the sky a mulher do título abre a porta a um desconhecido para torná-lo outro homem. E descobrir-se outra mulher. Em Balé, Aline nunca mais voltará a andar. Em Madame Viola faz escova progressiva, a mulher que batiza o conto torce ardentemente por tornar-se viúva, após ver uma notícia na televisão sobre um acidente de que presumivelmente seu marido teria tomado parte.
Paixão no delta relata o encontro de dois velhos, ela “68 anos”, ele “cabelos alvíssimos e espessos”, e a falta de memória dele para relatar o encontro. Dona Deusinha tem horror à morte e achou que seu casamento com seu Odilon “tinha tudo para não durar”, após a primeira noite com ele, nos fundos da funerária onde foram morar. Falecido o marido, em Cremação, a primeira coisa que a mulher faz é mudar-se para bem longe, ir em busca de uma antiga paixão da juventude e anunciar aos filhos o desejo de ser cremada.
Em Um traidor dona Maria Reina “faz sessenta anos, sozinha”. Em seu registro o escrivão esqueceu da letra g, ponto que ela descobriu depois, masturbando-se em uma cadeira com vista para o mar. Em Missa de sétimo dia um cliente deseja dar o último adeus a uma prostituta, sendo hostilizado por familiares da falecida.
O autor é cruel, mas extremamente humano, com senso de humor aguçado. Por vezes o que se chamaria humor negro em tempos menos politicamente corretos. Seus contos, sempre curtíssimos, nunca excedem o necessário. Ao longo das 27 breves narrativas de Jeito de matar lagartas vez por outra sentimos pena desta ou daquela personagem, mas, cruéis que também somos, quando em vez flagramo-nos com um sorriso no rosto.
Parafraseio Drummond para comentar mais um fato vergonhoso que leva o Maranhão ao noticiário nacional: em paralelo à crise em Pedrinhas, desta vez um caminhão de pedras chocou-se com um pau de arara que transportava estudantes. Dói essa pedra no calo da oligarquia?
Não é para menos a comoção causada pela morte de oito crianças e adolescentes em um acidente que deixou ainda um saldo de quatro feridos, na estrada MA-303, entre Bacuri e Apicum-Açu, no litoral norte maranhense, ontem (29).
É a fatura do descaso com que são tratadas a educação e diversas outras políticas públicas pelos governantes de plantão. É preciso que sejam apuradas as responsabilidades dos condutores envolvidos no acidente – a caminhonete pau de arara que fazia o papel de transporte escolar chocou-se com um caminhão que transportava pedras e caiu numa ribanceira –, mas é preciso ir além: é necessário punir exemplarmente também gestores e autoridades responsáveis pela fiscalização.
O interior do Maranhão é tido como uma terra sem lei, onde usar capacete, tripular motocicletas aos pares ou usar cinto de segurança pode dar multa. O “folclore” também ocorre em determinados bairros da capital.
30 estudantes estavam na caminhonete no momento do acidente, ocupando apertadamente um lugar que deve ser destinado ao transporte de carga. A nota da governadora Roseana Sarney lamentando o fato e entristecendo-se com o mesmo é cinismo puro: suas gestões e as de seus aliados – e até mesmo por opositores – pouquíssimo ou nada têm feito para modificar a trágica realidade dos que arriscam a vida ao pendurar-se em tais veículos em busca de um futuro melhor.
Um futuro que parece só existir na propaganda governamental, onde as estradas são asfaltadas e os estudantes têm, além de educação, até mesmo internet pública e gratuita.
“Relembrai vossa origem, vossa essência;/vós não fostes criados para bicho,/e sim para o valor e a experiência”
(Dante em P. Levi, É isto um homem?)
Para Ana Clara (in memoriam)
CAMPO DE PEDRINHAS
Passagem de 2013 para 2014, ainda em meio às festas do Natal e Ano Novo, clima carnavalesco chegando, expectativas da Copa do Mundo, nova onda de protestos e eleições de outubro, e eis que o “espetáculo do suplício” maranhense ganha nova projeção no país dos “Amarildos”. Aparece como relâmpago a iluminar, por instantes, o coração das trevas desse país, na forma dos horrores da Penitenciária de Pedrinhas, localizada na periferia de São Luís. Guerra civil em estado puro, banal, sem mediações.
Corpos “picadinhos”, perfurados a balas, facas, facões e canivetes, segundo a lógica da revolta, do ódio, do crack; cabeças degoladas, exibidas como troféus ou bolas de futebol; esqueletos de ônibus queimados; homem, mulheres e crianças em chamas; tiros em delegacias e policiais morrendo e matando adoidado; denúncia do estupro de mulheres por presos em “visitas íntimas” coletivas; cidade com mais de milhão de habitantes tomada pelo medo; imagens do horror na mídia em transe; divulgação de gravação dos papos de guerra via celulares entre membros do “Bonde dos 40” e do “Primeiro Comando do Maranhão” (PCM), antiga facção dos “baixadeiros”, inspirada no PCC-SP e CV-RJ; estado de emergência decretado no sistema prisional (de fato, em toda a região metropolitana), entregue ao domínio “pacificador” da PM e da Força Nacional, num estado onde, como disse certa vez um ex-secretário da segurança, “tudo é possível”; planos e planos emergenciais; denegação sobre denegação de um governo radicalmente alienado, simulando Roseana “no país das maravilhas” para uma população prisioneira da impotência, assombrada e indignada.
Mesmo difícil, vale distinguir as razões da explosão midiática daquelas da implosão de Pedrinhas em si. Há dez anos, pelo menos, denúncias são feitas por órgãos como SMDH, MP-MA e OAB-MA. Várias rebeliões, com mortes e decapitações, ocorridas antes, foram noticiadas pela imprensa. Exemplos: presídio São Luís-Pedrinhas, com 18 mortes (3 decapitações), novembro de 2010; Delegacia Regional de Pinheiro, Baixada maranhense, com 6 mortes (4 decapitações), fevereiro de 2011; CADET-Pedrinhas, com 9 mortos e dezenas de feridos, outubro de 2013. No entanto, sem força para criar abalos maiores.
Claro que é imoral expor ou esconder as barbaridades do Maranhão apenas por razões eleitorais, embora isto seja um dado real da briga pelo poder entre bandos partidários. Mas, sem dúvida, o modo como o Maranhão oficialmente se olha e quer ser visto foi posto em questão, como nunca antes, quando da divulgação mundo a fora dos vídeos das decapitações (feita pelos presos na rebelião de 17 de dezembro de 2013), imediatamente considerada pelo Governo do Estado “ato criminoso” (a divulgação, é claro), invertendo a situação; e, em seguida, das imagens dos ônibus incendiados (3/1/2014) e, dias depois, a morte de Ana Clara, em cujo enterro se fez presente o senador João Alberto, linha de frente da oligarquia Sarney, ex-governador (abril de 1990 a março de 1991) famoso pela “Operação Tigre” e alcunha de “Carcará”. Sobre as cenas da decapitação, o argentino Juan Ernesto Méndez, relator membro do Alto Comissariado para Direitos Humanos da ONU, observou: “Já vi cenas de morte entre presos… mas é a primeira vez que eu vejo decapitação… Depois que vi essas terríveis imagens em Pedrinhas, pedi à minha equipe de Genebra que analise o assunto” (Folha de S. Paulo, 12/1/2014).
Não foi, portanto, o simulacro da cultura, da cidade “patrimônio da humanidade”, dos Lençóis maranhenses, mas a brutalidade dos vídeos expondo presos decapitados, “videodrome” produzido em celular pelos próprios, que catapultou o Maranhão da Oligarquia Sarney e suas prisões e, por tabela, sua tragédia social, numa escala inédita. Primeiro sucesso maranhense mundial. Com certeza um marco que assinala a entrada do Maranhão no século XXI. Não é só uma questão de espetáculo, de exploração mercadológica e contemplação passiva da própria desgraça. Estratégia fatal, a violência em si dos presos atingiu um extremo praticamente impossível de ser batido, de ser trocado na mesma moeda, pela violência do poder oligárquico. A não ser que este fosse capaz de degolar a si mesmo. Eis aí, quem sabe, a “grandeza” desse ato pérfido numa terra em que, já dizia João Lisboa no século XIX, “miséria” e “mal” (dos opressores) não sofriam compensações do “bem”.
De toda maneira, numa região onde a violência da colonização e do império deixou traumas arraigados, e onde elite e povo tendem a decidir o que é bom e ruim quase sempre pelo espelho de fora, o giro neste espelho – agora não mais da barbárie em civilização, mas da civilização em barbárie, expondo o Maranhão atroz e mentiroso criticado pelo autor acima –, produzido pelo bombardeio das notícias e vídeos do terror local na imprensa nacional e do Mundo, feriu a imagem oficial esquizofrênica do “povo cordato” cujo monstro da violência, vindo não se sabe de onde, um governo-protetor se encarregaria em manter preso nos labirintos das Pedrinhas. Seu lugar merecido e justo.
Resta saber se tais deslocamentos levarão à consciência das classes populares quanto às causas materiais, políticas e sociais da violência que lhes atinge em primeiro lugar, potencializando sua capacidade de indignação, ou ao reforço das velhas expectativas messiânicas e, em especial, a ânsia por novas formas de controle (tipo Sistema BI paranaense, coleira eletrônica, novo “modelo de gestão” e coisas do tipo.).
Embora Pedrinhas seja um dos principais presídios do Brasil, seu universo carcerário é relativamente minúsculo. Representa 1%, ou menos que isso, da crescente população carcerária do país (de mais de 500 mil). Em números absolutos, fontes do TJ-MA indicam, até 12/12/2013, um total de 5.466 presos em todo o estado, dos quais 1.555 cumprem penas em delegacias. Déficit de 2.562 vagas. Segundo o Banco Nacional de Mandatos de Prisão do CNJ existem ainda 5.539 mandatos por cumprir. Pergunta-se: como é possível a um Governo de Estado cuja população atinge quase 6.800.000 habitantes (nas estimativas recentes do IBGE), e cujo pacto com o poder federal é cantado e decantado, “fracassar” de modo tão grotesco na guarda de 5.466 presos?
É comum se dizer que as condições extremas em Pedrinhas, absolutamente desumanas, decorrem de um sem número de fatores, tais como: concentração e superpopulação de presos do interior e da capital num só lugar, com celas totalmente inadequadas, cheias de “gambiarras”, insalubridade; falta de recursos humanos e materiais; corrupção, inexistência da fiscalização e mistura indiscriminada dos presos, fora da Lei de Execuções Penais; presos ilegais; facções e rebeliões; denúncia de abusos, tortura, espancamento e morte, cometidos pelo chamado “Serviço Velado da Polícia Militar”; paralisação na Delegacia da Estiva da maioria dos inquéritos das mais de 300 mortes nos últimos 10 anos; crimes no interior das prisões denunciados e não investigados; assassinato de denunciantes; crimes com erros periciais básicos; desaparecimento de presos, etc.
São práticas e situações de governo deliberadas, sistemáticas e sabidas, ligadas, por um lado, a uma ideia particular de justiça, para não dizer fascista, bastante comum na Colônia penal maranhense, segundo a qual presos devem pagar pecados no inferno carcerário. Nem lugar de passagem para cumprimento da pena, nem de reclusão, a prisão é o próprio espaço da pena de morte. Oficina do diabo, sem dúvida. Crença de que bandido não pode ter “privilégios” e o sistema carcerário é a “última das prioridades”. O imaginário dominante é marcado pelo ódio arraigado aos “direitos humanos”. A ideia é de que “monstros” devem ser punidos como “monstros”.
Trata-se, sem dúvida, de assumido preconceito social e racial oriundo das camadas senhoriais, mas aceito como natural por extensa parte da população. Incapacidade crônica do miserável em perceber as causas históricas, sociais e políticas da violência num contexto em que elas berram. Basta observar, para verificar essa aceitação, que, dentro do Campo de Pedrinhas (alguma dúvida de que é um tipo de Campo?), o berço étnico-social comum não é apagado pelas diferenças das posições e funções – se presos, agentes penitenciários, monitores, inspetores ou policiais. São quase sempre negros esfolando negros a serviço de brancos ou quase-brancos, situados a quilômetros e quilômetros de distância, em bairros, edifícios e condomínios nobres à beira do Atlântico.
De outro lado, o quadro atual do “abandono” liga-se a uma situação não menos decisiva de “descontrole”, caracterizada pelas disputas no interior das polícias, especialmente entre alto comando da Polícia Militar e Secretário de Segurança; Secretário do presídio e agentes penitenciários (a divulgação do vídeo falso da perna dissecada não veio daí?); gangues contra gangues. Como se a lógica do “monstro” se reproduzisse para todos os lados. O caos instalado favorece o “domínio das facções” e suas guerras cruéis envolvendo controle das prisões, comércio das drogas em franca expansão na Ilha e no Continente; disputas entre presos da Capital e do Interior (os “cara da baixada”); abuso sexual das mulheres (negado por alguns presos). A desordem instalada resulta num ambiente inevitável de delinquência, propício aos conluios entre bandidos e agentes penitenciários corruptos e, sobretudo, à livre exploração econômica da prisão pelas facções do governo e empresas dos comparsas contratadas. Negócios e intolerâncias se retroalimentam.
A “delinquência, ilegalidade dominada, é uma agente para a ilegalidade dos grupos dominantes”, diz Foucault em Vigiar e Punir. O que se chama “fracasso” da prisão é, na verdade, êxito. Forma de produção da criminalidade com o apoio da polícia visando estabelecer, a serviço dos grupos dominantes delinquentes, o controle e a exploração social. Pedrinhas é parte de um montante de investimentos que só entre 2009 e 2013 movimentou 274,1 milhões do governo do estado para empresas de “familiares, amigos e correligionários” (O Globo, 12/1/2014, “Roseana Sarney já gastou 274 milhões…”). Não dá para dissociar a conversão das prisões em negócios rendosos de compadres, a cada volta no parafuso do nosso estado de emergência, da atual configuração do capitalismo: novo regime da crueldade baseado precisamente na militarização da vida social e administração da miséria absoluta.
AMNÉSIA E NEGAÇÃO DA CRUELDADE
Mas a contribuição de Pedrinhas para a sucessão de horrores que vem causando fascínio e repulsa no mundo é fruto de um “princípio do mal” ainda mais horroroso, estrutural, sem a qual não funciona a máquina social e histórica perversa e fantasmagórica chamada “Maranhão”. Uma espécie de “Louisiana” do Norte, com a qual, no entanto, o atual Brasil “civilizado, moderno e industrializado” convive há séculos sem espanto algum. Na verdade desde que o Maranhão era a antiga Província do Norte do Império. Ou terá sido apenas acaso que a nova “Guantánamo” noticiada do país, esteja encravada, desde o finalzinho de 1965, na capital de um dos estados do nordeste, onde nervos, cabeças e ossos estão literalmente entre os mais expostos da fratura social brasileira do Planeta?
Violência social e histórica, a crueldade que caracteriza o mundo infeliz dos cárceres maranhenses não é, de modo algum, produzida exclusivamente dentro dele; não é, no fundo, diferente daquela que distingue a relação do governo com o mesmo povo negro, mestiço e pobre nas escolas, hospitais, transportes, saneamento, moradia e mundo do trabalho. Todos os dias, matérias e matérias são divulgadas na imprensa sobre cada um destes setores e a situação quase sempre é de completo desprezo e falta de humanidade. Ou será que a “superlotação” das prisões é tão diferente assim da dos ônibus, hospitais e moradias usadas pelos trabalhadores? Vistos como indignos de viver, são explorados como se pertencentes ao mundo dos “animais” ou das coisas, cujo único modo possível de tratamento, além do religioso (isto é, busca da salvação da alma), é a aplicação da lei social da indiferença e crueldade. A “taca” de “deixar nós moído”, nas palavras de um “monstro” ao radialista Silvan Alves.
O Maranhão das Pedrinhas, sobretudo, é o mesmo Maranhão miserável dos massacres, assassinatos, genocídios de camponeses, índios, quilombolas; o mesmo Maranhão 66 de Glauber Rocha, filme que teima obsessivamente em não acabar, eterno retorno do inferno, para o qual Pedrinhas, nascida já como depósito de detentos, não passou despercebida; mas também o Maranhão da extinção indígena, denunciada em Serra da Desordem (filme inquietante de Andréa Tonacci), pela invasão de fazendas, madeireiras, exploração de minério; o Maranhão da alta bandidagem de Grupos políticos e estrutura oligárquica, de Flávio Reis; o Maranhão da província escravista de O Mulato (lançado em 1881, em São Luís), de Aluísio Azevedo; o Maranhão da barbárie e do simulacro de João Lisboa, enfim, em que a oligarquia Sarney funda, pelo monopólio, exploração e depredação mafiosa das verbas públicas, o seu domínio de quase meio século, e faz de tudo para ocultar e dissimular de todos, até do mundo, pela estratégia de mudar a mentira em verdade e a verdade em mentira, conforme as circunstâncias e conveniências de quem age como se fosse um poder divino, criador da luz a partir do nada (não é esse o discurso do “Maranhão Novo”?), dono do destino, da vida e da morte dos seus súditos.
A reação do governo diante do horror do Campo de Pedrinhas é sintoma explícito da gravidade da sua esquizofrenia moral e social: “rede de boatos”; “mal que vem para o bem”; “fruto da ação do governo”; “o estado está mais rico”; “cresce e melhora”; “o Maranhão de verdade”; “campanha política contra o Maranhão”; “não existe oligarquia”; “licitações” para compra de lagostas e caviar; “Eu amo o Maranhão, aqui é bom demais”; “sou pacifista”; “falta de fundamentação”; e até a conspiração da oposição com a imprensa internacional. Nem a junção da mais fina ironia de Machado de Assis com o espírito mais anárquico de Rogério Sganzerla daria conta em narrar e filmar todo o jogo de negação, deformação e recalque sarneista da memória da crueldade do Maranhão e em especial da sua própria barbárie.
Exploração e recusa radical do outro, o sarneismo é um tipo de anomalia histórico-social, banalização do mal, que jamais poderá encarar suas origens e história. A não ser no terreno da mistificação, dos mitos, da simulação, da estetização cultural, do “inexplicável”. Como a barbárie pode encarar a si mesma? Olhar em seus olhos opacos? De todas as oligarquias do Maranhão, essa foi talvez a que, visando o domínio total, mais fez para apagar a relação dos seus súditos com o real. Grau zero da simulação. No entanto, historiadores e estudiosos, de distintas formações e colorações ideológicas, alcançaram (sabe o deus das pesquisas e arquivos locais como) denunciar e analisar as contradições do Maranhão e sua violência, sob os mais diversos aspectos, em vários momentos. Permita o leitor, ainda que de passagem, a lembrança necessária de alguns: João Lisboa, Jornal do Timon; Dunshee de Abranches, O Cativeiro; Carlota Carvalho, O Sertão; Mathias Assunção, A Guerra dos Bem-te-vis; Alfredo Wagner, A Ideologia da Decadência; Victor Asselim, Grilagem: corrupção e violência em terras do Carajás; Wagner Cabral da Costa, Sob o signo da morte: o poder oligárquico de Victorino a Sarney; Lourdes Lacroix, Jerônimo de Albuquerque Maranhão: guerra e fundação no Brasil colonial; Mundinha Araujo, Insurreição de escravos em Viana, 1867; Manuel da Conceição, Essa terra é nossa; Maristela de Paula Andrade (org.), Chacinas e Massacres no Campo; Yuri Costa, A Outra Justiça: a violência da multidão representada nos jornais, etc.
Para alguém minimamente afeito à realidade absurda do estado, as cenas de Pedrinhas evocam um filme de horrores inacreditáveis, presentes desde sua pré-história colonial. Tempos das primeiras guerras cruéis, onde cabeças indígenas eram decepadas em estranhos “folguedos bárbaros”. Horrores cuja recorrência, hoje, nem os estudiosos mais cretinos teriam coragem de negar. Em primeiro lugar, os da Balaiada, guerra matricial do Maranhão pós-colonial, desencadeada no final de 1838, por uma revolta na cadeia da vila da Manga (atual Nina Rodrigues), vale do Munim, por conta de recrutamentos arbitrários.
Horror reconhecido de cara por um autor monarquista, Gonçalves de Magalhães, com “um só fato”, mas que dizia tudo: “a um mísero ancião octogenário cortaram o ventre e nele coseram um leitão vivo, que lhe roía as entranhas; esta recordação horrível de um suplício tartáreo foi feita ante os olhos dos filhos e da esposa do desgraçado velho, e nem deixaram os frios algozes, que galhofavam, sem o ver exalar o último expiro no meio das cruéis vascas e dolorosos gritos da família, que além deste martírio foi espancada em despedida. A tanto chega a cruel fereza do coração humano!” (Memória histórica e documentada da Revolução da Província do Maranhão. São Paulo, Siciliano, 2001, p. 46). Houve quem duvidasse do exemplo, vendo exagero, por expressar preconceitos racistas de um conservador da Corte do Império. Mas, no dizer de autora mais insuspeita, Carlota Carvalho, a guerra dos Bem-te-vis foi um “espetáculo dos suplícios” traumático e alucinador (O Sertão. Ética, 2000, p. 138).
Numa entrevista recente, intitulada “Bonde errado”, dada ao jornal O Estado de S. Paulo (11/01/14), o advogado Luís Antonio Pedrosa, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MA, questionado sobre “vídeos de terror” em Pedrinhas, diz: “Num deles o preso teve o olho extraído e jogado ainda pulsando na direção de uma juíza que negociava as reivindicações; em outro abriram o tórax de um preso, tiraram o coração, deceparam seu pé e o colocaram dentro da cavidade. Entrar num presídio logo após uma rebelião é encontrar vísceras.” Na mesma entrevista, informa que presos dizem que a prática adotada pelas facções do presídio, de cortar cabeças de pessoas vivas como modo de impor respeito, foi inaugurada por um índio guajajara (Barra do Corda), tal o grau de revolta com as humilhações sofridas ali.
A visibilidade dos aspectos sinistros do sarneismo tem suas chances aumentadas, no entanto, na medida em que o país se ajusta com sucesso ao controle total do capital. Será mera coincidência que o instante em que o relâmpago de Pedrinhas ilumina o Brasil como “Grande Maranhão”, é o mesmo em que ele é atravessado pela lógica desastrosa do mercado mundial? Sem querer dizer que este sinal de alarme esteja sendo ouvido, é como se a “hora maranhense” do país se aproximasse a cada volta dada no ponteiro do relógio da normalização da exceção, da militarização da vida social e da administração da miséria extrema.
Na feição desmedida do Maranhão, a monstruosidade social brasileira atual é expressão, sem dúvida, do pacto republicano pra lá de diabólico do sarneismo com o governo FHC, intensificado com o Lulismo. Criatura genuína de uma ditadura que alçou a barbárie brasileira a patamares inéditos, essa oligarquia acompanhou e foi protagonista do colapso da modernização nacional-desenvolvimentista e da extinção da política no país. Ajustada às novas Administrações emergenciais do PSDB e depois PT, configura-se como um tipo bem sucedido de poder que ampliou as diferenças de classes, estrangulando suas lutas através da guerra civil molecular. Dirigido por um poder senhorial endinheirado, sua violência maior, com a conivência de sempre do poder nacional, foi transformar o estado num deserto de miseráveis físicos, intelectuais, morais e políticos. Como esperar iniciativa de mudança de um povo que não tem sequer saúde para se manter em pé?
Para os sobreviventes, resta o sentimento indefinível do acúmulo de problemas praticamente insolúveis. Não por acaso, nas últimas décadas, muitos têm fugido (quando não são traficados) em busca desesperada de saídas ou abrigos nos estados do Norte, Centro-Oeste, Sudeste, na expectativa ilusória de uma exploração mais civilizada. Outros seguem ralando e resistindo na província, do jeito que podem, no meio do nada. Será tão difícil assim compreender que o Maranhão, sem deixar de ser questão político-social, é também um problema humanitário?
SINAL DE ALERTA MARANHENSE
Nessas horas, ante a constelação de impasses insolúveis dentro da estrutura social-oligárquica de poder vigente, ou de qualquer pacote de medidas emergenciais vindas do governo federal, recoloca-se um enigma de dois séculos de idade, pelo menos, e que sintetiza vários outros. Afinal, o que é o Maranhão?
Preconceitos não deixam de ressoar no trato da pergunta. E o preconceito, como se sabe, não é só questão da ignorância dos fatos, como da forma de narrá-los. Quem estuda o Maranhão com sensibilidade crítica, e não só o do governo de ontem ou da “era Sarney”, sabe da cegueira singular gestada no coração sombrio das suas classes senhoriais. Mas quem, por exemplo, já passou pelo sudeste aprende logo que, desde muito tempo, o Maranhão não é apenas questão de geografia, simples ponto no extremo norte do país, mas símbolo do “atraso brasileiro” na sua forma igualmente extrema. Nunca entenderam (desconhecemos exceções) a modernidade radical desse atraso.
Uma coisa é certa: é imenso equívoco falar do Maranhão como se fosse caso isolado, “feudo” distante, exótico lugar de “banquetes totêmicos”, originalidade das originalidades, tanto quanto como se fosse mais uma variação da situação nacional. Afirmação essa rapidamente explorada pela oligarquia para assegurar cinicamente sua “irresponsabilidade” criminosa e considerar injusto o que se diz sobre o Maranhão, e ainda posar como defensora “revoltada” da auto-estima de um povo que na prática destruiu e corrompeu. Contra o crescimento da vergonha, insegurança e desânimo popular, denegar sempre, até o fim: “não, o Maranhão não é isso; o maranhense é ordeiro”; o ocorrido foi coisa de “alguns celerados”; aqui “nunca teve uma tradição de violência”. A culpa é das “drogas”. Não é daqui…
É preciso indagar, sem ilusões, sobre a situação do estado e suas conexões obscuras com o país (a concordância dos últimos governos federais com o horror maranhense prova isto), mas evitando deduzir tal situação simplesmente a partir de uma abstração “nacional” ou do que se sabe sobre determinadas localidades e regiões (São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo), como fizeram diversos comentaristas e nossa oligarquia de cada dia. Diferença de grau? Pode ser. Mas diferença decisiva. Neste momento em que determinadas regiões do país parecem dar sinais de vitalidade social (indicado nos protestos de 2013), mas em que a exceção maranhense tende a tornar-se regra nacional, importa, no entanto, compreender a “dialética” de que se o Brasil é e sempre foi país de oligarquias, da desigualdade social e do encarceramento de pessoas das classes populares, nem todas as oligarquias, desigualdades ou formas de encarceramento são como as maranhenses (ou são?). Não é problema de quantidade, volume ou primazia, seja lá no que for, mas intensidade e duração. Qualidade das coisas.
Nas últimas décadas, abriu-se a possibilidade para recolocar a questão indicada, mas pelo avesso: a de uma “maranhensização” do Brasil a caminho. Fenômeno caracterizado pela disseminação de um coquetel improvável e atual a não poder mais de estado de exceção, formas de acumulação primitiva, combinação feliz de softwares importados e mão de obra barata e controlada, espoliação do trabalho (precisa lembrar que o estado é campeão do trabalho escravo?), agiotagem, assassinato de jornalistas corruptos e prefeitos idem, operação “boi barrica”, “operação tigre”, “Caso Matosão”, agronegócio predador, compra de eleições, força crítica e técnico-científica no chão, formas antigas de dependência cultural, desigualdade social, intolerância de todo tipo, alienação, impotência ou baixíssima capacidade de reação popular e campos de barbárie nos limites de Pedrinhas. Estamos falando de colônia, naturalmente.
A sensação é de que o clarão sobre o horror do Maranhão e seu universo carcerário (labirinto do minotauro que devorou Ariadne, ao contrário da fábula famosa) abre a possibilidade para pensar não apenas o estado em suas vísceras, mas, através destas, digamos sem receios, a genealogia do “totalitarismo” brasileiro emergente na virada do século XX para o XXI. Ao seu modo, o laboratório de Pedrinhas é isso aí. As cabeças degoladas e a vida da menina Ana Clara, que se foi nas chamas do ônibus incendiado, podem iluminar, no entanto, os caminhos do debate sobre as conexões entre ditadura e democracia, sarneismo e lulismo, norte e sudeste, pré-história e história do Brasil; produzir ângulos para perceber que o povo “capado e recapado, sangrado e ressangrado” deste estado é hoje um dos resultados mais visíveis, ou melhor, o resto, sem tirar nem pôr, do logro civilizatório do Brasil; e, sobretudo, a possibilidade de que este mesmo povo, das ruas e das prisões, abra os olhos, não para a salvação de quem nunca quis salvá-lo, “o Maranhão”, mas para a invenção da luta, das armas, invenção de si, visando superar de vez a guerra e a paz de cemitério deste programa fantasmagórico.
*Flávio Soares é professor do Departamento de História da UFMA. Texto originalmente publicado na edição de janeiro do Vias de Fato, nº. 50, já nas bancas
O vídeo abaixo me chegou via facebook. Mostra o apresentador Zé Cirilo cometendo gafes e pagando micos. Morreu Chorão, vocalista da banda Charlie Brown Jr., e ele misturou alhos e bugalhos e falou em Benito di Paula, autor de Charlie Brown, que, composta bem antes de a banda existir, obviamente não tem nada a ver com a mesma, e carnaval baiano. Terá o folclórico apresentador maranhense confundido Chorão com Carlinhos Brown, por conta do nome do grupo do primeiro?
Os pouco mais de dois minutos mostram o ridículo de nosso colunismo social, televisado ou impresso, em que aberrações como a abaixo são, infelizmente, mais comuns do que imaginamos.
A morte parece ser a única forma de anistia ampla, geral e irrestrita. Parentes e amigos vão guardar o lado bom e preferir lembrar o sorriso do falecido, os momentos alegres de convívio. É sempre assim com quem quer que seja.
Não digo isso com ironia, a hora não é para brincadeiras ou desrespeito à memória de quem se foi de forma brutal e covarde.
O jornalista Décio Sá foi executado com seis tiros à queima-roupa na noite de ontem, em um bar na Avenida Litorânea. A arma utilizada é de uso exclusivo da Polícia Militar e tem o mesmo calibre ponto 40 com que, por exemplo, o Grupo Tático Aéreo disparou, semana passada, contra dois adolescentes da Vila Passos, que empinavam papagaios nas imediações do viaduto do Monte Castelo, na Av. Camboa.
O crime contra o jornalista deve ser elucidado. Como qualquer crime contra qualquer pessoa. Como todo crime contra toda pessoa. Os responsáveis pelo crime contra o jornalista devem ser punidos. Como devem ser punidos os que atiraram nos adolescentes. Como devem ser punidos os que atentam ou intentam atentar contra a vida de quem quer que seja.
Embora não concorde com a maioria dos adjetivos dispensados à Décio Sá, na cobertura de seu assassinato, em geral por amigos, admiradores e colegas de profissão, não ousarei discordar, a hora não é para isso, repito.
Mas permitam-me discordar das teses acerca da volta dos crimes de pistolagem e de encomenda ao Maranhão em pleno século XXI, assunto apregoado aqui e ali pela mesma cobertura. Não se trata de volta, pois os crimes de pistolagem e encomenda sempre estiveram por aqui, nunca se foram, nunca deixaram de existir.
Basta lembrar de mártires recentes como Flaviano Pinto Neto ou mais antigos como Pe. Josimo Tavares, entre tantos outros. Crimes precisam ser investigados. Pistoleiros, matadores de aluguel, assassinos, enfim, precisam cumprir suas penas, “aqui na terra como no céu”.
A polícia tem a obrigação, o dever de encontrar e punir os executores (e mandantes, caso existam) de Décio Sá. Como merecem punição os assassinos de Marcos Paulo das Neves Gaspar, o Rato 8, também executado a tiros na mesma Litorânea “palco” da execução do jornalista de O Estado do Maranhão, e tantas outras vítimas da impunidade geral e irrestrita que reina absoluta por estas plagas.
À família e amigos de Décio Sá, os sinceros pêsames deste blogue, comprometido com a verdade, a justiça e a defesa intransigente dos direitos humanos. Luto oficial de quantos dias a governadora Roseana Sarney porventura venha a decretar não basta. O luto tem que ser feminino, pela elucidação do crime e punição dos responsáveis, para que se acabe (ou ao menos se comece a diminuir) o clima reinante de insegurança, injustiça e impunidade.