“Só o que não se cansa é a gente se querer bem”

"Para viver um grande amor" (Vinícius de Moraes e Toquinho), às vezes é preciso olhar o retrovisor - foto: Zema Ribeiro
“Para viver um grande amor” (Vinícius de Moraes e Toquinho), às vezes é preciso olhar o retrovisor – foto: Zema Ribeiro

O título deste texto (ridículo, como toda carta de amor, não é, Fernando Pessoa?) é verso de “Nossa canção” (Ana Terra e Danilo Caymmi), sucesso de Nana Caymmi (1941-2025), não por acaso a música que abre a playlist “Depois daquela dança”, que alimentamos constantemente desde a dança que precedeu nosso primeiro beijo.

“O que fazer com este beijo represado há 20 anos?”, perguntei, ousado, logo após nossos lábios se encontrarem pela primeira vez. Tudo começou há 20 anos, na plateia de uma apresentação de Elomar — a música sempre presente — no finado Circo da Cidade (mais precisamente dia 19 de agosto de 2005), que assistimos em cadeiras lado a lado.

Apresentados por um amigo comum, eu me apaixonei, mas um coquetel de álcool, juventude (leia-se inexperiência) e lerdeza me impediu de perceber os sinais da reciprocidade, à época.

Como a vida é uma peça de teatro que não permite ensaios, “nossos destinos foram traçados na maternidade” (Cazuza, Leoni e Ezequiel Neves) — com distâncias geográficas e temporais mínimas: ela nasceu na Maternidade Benedito Leite e eu na Santa Casa de Misericórdia, ambas no Centro de São Luís/MA, com apenas 15 dias de diferença.

Mas desde o citado show de Elomar, quis o acaso que “as retas mais curvas que o mundo tem” (Chico Maranhão) nos provassem, na prática, a teoria de Vinícius de Moraes (1913-1980): “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro nessa vida”.

Vivemos: acertamos, erramos, fomos felizes e tristes, pertos e distantes, mas sempre amigos, com gostos parecidos, posturas políticas semelhantes e vez por outra, entre “encontros e despedidas” (Milton Nascimento e Fernando Brant), nos esbarrando aqui e acolá, em agendas de “festa, trabalho e pão” (Gilberto Gil e Capinan), bem menos do que gostaria, é verdade, admito.

Mas já dizia Paulo Leminski (1944-1989), outro poeta-músico de nossa predileção: “um bom poema leva anos/ cinco jogando bola,/ mais cinco estudando sânscrito,/ seis carregando pedra,/ nove namorando a vizinha,/ sete levando porrada,/ quatro andando sozinho,/ três mudando de cidade,/ dez trocando de assunto,/ uma eternidade, eu e você,/ caminhando junto”.

É um poema sobre seu próprio ofício poético e sobre maturação, para além da poesia, também do amor: o nosso levou 20 anos para poder ser vivido plenamente. E está apenas começando, embora sempre estivesse ali, pulsando quietinho. “Ah, infinito delírio chamado desejo/ essa fome de afagos e beijos/ essa sede incessante de amor” (Gonzaguinha); “não dá mais pra segurar/ explode coração” (idem).

Quando nos conhecemos, logo apelidei-a, carinhosamente, “menina de olhos amendoados”, estas duas petecas cor de mel que me espelharam e abriram as portas da paixão, a primeira coisa que me chamou a atenção. “Quando vi você me apaixonei” (Chico César), para logo depois cantar o Djavan de “Um amor puro”: “te adoro em tudo”.

Quando nos reencontramos, até tentamos, mas foi impossível conter a explosão: “nós somos fogo e gasolina” (Carlos Rennó e Pedro Luís). Sempre me refiro à nossa história, que adoro contar, como “um caso de loucura e mágica” (Ritchie e Antonio Cicero).

“O futuro já sabia, mas a gente ainda não” (Barro e Ed Staudinger): a dona dos olhos amendoados é hoje, finalmente, a “dona da minha cabeça” (Fausto Nilo e Geraldo Azevedo).

Volto ao show de Elomar, tendo-o como um marco: 20 anos não são 20 dias. Pensei em escrever algo sobre tudo isto, aproveitando a efeméride, e dei de cara com um poema, escrito também há 20 anos, uma singela quadrinha, com algum poder de síntese, já estava tudo lá: “teus olhos, duas pedras raras/ me deixam mudo/ com tua beleza me calas/ e se sou teu, tenho tudo”.

*

para Diana Melo

Ilha, 20 de agosto de 2025

Retrospectiva 2022

Balaio Cultural. Aos sábados, das 13h às 15h, na Rádio Timbira AM, com Gisa Franco e este blogueiro: Assis Medeiros, Almeida Marcus, Carlos Rennó, Bárbara Eugênia, Fred Zeroquatro (Mundo Livre S/A), Celso Borges, Carlos Careqa, Pedro Santos, Celia Catunda, Kiko Mistrorigo, Wado, Caetano Brasil, Carolinaa Sanches (Caburé Canela), Jaime Alem, Max Alvim, Fernando Salem, Otto, Angélica Freitas, Vitor Ramil, Péricles Cavalcanti, Gab Lara, Fi Bueno, Héloa, Ubiratã Trindade, Rodrigo Maranhão, Tatá Aeroplano, Maurício Pereira, Xico Sá, Simone Leitão, Luís Filipe de Lima, Pedro Luís, Yuri Queiroga, Zeca Baleiro, Vinícius Cantuária, Cláudio Lima, João Donato, Fernando Abreu, Lívia Mattos, Márcio Vasconcelos, João Cavalcanti, Cesar Teixeira, Rubi, Roberta Campos, Paulinho Moska, Thales Cavalcanti, Hélio Flanders (Vanguart), Lívia Nestrovski, Henrique Eisenmann, Arthur Nestrovski, Carlos Malta, Russo Passapusso, Patrícia Ahmaral, Otávio Rodrigues (Doctor Reggae), Zé Geraldo, Francis Rosa, Ligiana Costa, Bel Carvalho, José Miguel Wisnik, Erasmo Dibell (sábado que vem, 24) e BiD (31 de dezembro). Em 2023 tem muito mais!

Jair já vai tarde

Foto: Zema Ribeiro

Jair Bolsonaro (PL) se elegeu e governou com mentiras. Conspurcou o Evangelho de Jesus Cristo segundo São João como slogan de campanha em 2018: conhecereis a verdade e a verdade vos libertará, repetia aos quatro ventos, mas uma vez no cargo, colocou seus crimes (e os dos filhos) sob sigilo de 100 anos.

Um dos traços do fascismo é acusar o outro do que você mesmo faz. Em 2018 Bolsonaro disse que o Brasil se tornaria uma Venezuela caso o vencedor do pleito fosse seu oponente, Fernando Haddad (PT), alçado à cabeça de chapa após a ilegítima prisão de Luís Inácio Lula da Silva (PT, que então liderava todas as pesquisas de intenção de voto), orquestrada pelo juiz parcial Sérgio Moro, em conluio com procuradores e a acusação. Mentira tem perna curta. E nariz comprido.

Em 2022, com o país de volta ao mapa da fome, o neofascista disse que é mentira que alguém passa fome no Brasil, que não se vê ninguém pedindo pão. O cruel Jair Bolsonaro vive em uma bolha, uma realidade paralela em que só se acredita no que querem ele e seus fanáticos seguidores.

Caminho e dirijo todos os dias pelas ruas da cidade em que moro e independentemente da rota e do tamanho do percurso, nunca antes na história deste país eu tinha visto as faixas de pedestres nos semáforos loteadas entre flanelinhas, malabares, imigrantes e famélicos em geral. A propósito, a foto que abre-ilustra este texto foi feita ontem, pouco depois de meio-dia, no Renascença, em São Luís.

A despeito de tudo isso, Bolsonaro manteve-se no poder, a peso de ouro, apesar da falta de decoro, das mentiras diuturnas e dos não poucos crimes cometidos em quase quatro anos de mandato. É asqueroso, canalha, cínico, covarde, deselegante, grosseiro, hipócrita, perverso, vil, “o impostor que com o posto não condiz”, como diz a letra da recém-lançada “Hino ao inominável”, de Carlos Rennó (com música de Chico Brown e Pedro Luís, gravada por 30 intérpretes antifascistas).

Presidente em férias permanentes, Bolsonaro parece enfim fazer seu último passeio pago com dinheiro público: foi passar e nos fazer passar vergonha à vista, no débito, no crédito (sob o sigilo do cartão corporativo) e no pix (que ele continua mentindo ter inventado) no funeral da rainha da Inglaterra e na ONU, transformados em palanques e comícios, com suas habituais mentiras e a claque de ignorantes a lhe bater palmas e gritar “mito!”.

Ainda bem que o pesadelo está chegando ao fim. Já não era sem tempo.

Comunhão de Mariana Aydar com o público marcou encerramento do Festival Zabumbada

A cantora Mariana Aydar em comunhão com a plateia do Festival Zabumbada. Foto: Jesus Aparício. Divulgação

Quando a paulista Mariana Aydar venceu o Grammy latino em 2020, com o álbum “Veia nordestina” (Natura Musical), cujo repertório majoritariamente autoral é dedicado ao forró (e outros gêneros abrigados neste guarda-chuva), muita gente torceu o nariz: a cantora parecia estar invadindo um terreno sagrado de forma ilegítima; alguns até hoje lhe atribuem falas que não fez, em relação ao forró (e à música nordestina em geral).

A apresentação da cantora, ontem (10), no encerramento da programação do Festival Zabumbada, apenas reafirmou a veia nordestina de Aydar, filha do mago Mário Manga (do Premeditando o Breque) e de Bia Aydar, empresária e produtora que trabalhou com Luiz Gonzaga (1912-1989), cujos discos a cantora começou a ouvir ainda na infância, iniciando a paixão que se aprofundou nos três anos em que ela integrou a banda Caruá (sua primeira experiência profissional com música) e o casamento com o multi-instrumentista Duani, também um artista oriundo do forró.

Chamam a atenção a entrega da cantora no palco, a qualidade do repertório, o entrosamento com a banda (ela toca triângulo e dança quase o show inteiro), num misto de zelo e reverência ao forró e aí reside a verdade da artista: ela não é uma cantora convencional de forró, ao trazer para seu repertório a influência de outros elementos que já cantou ao longo de sua carreira, iniciada com o disco “Kavita 1” (2006), como o samba, a axé music e até mesmo o que convencionou-se chamar de brega.

Mariana Aydar subiu ao palco por volta de 23h20 e cantou por cerca de hora e meia, se equilibrando entre repertório autoral e releituras. O desafio era enorme: nas noites anteriores, o paraibano Chico César (8) e a paraense Dona Onete (9) fizeram apresentações antológicas, e a artista sabia que não podia deixar por menos.

Começou com “Coração bobo” (Alceu Valença), escolha sagaz para agradecer o convite do Festival Zabumbada: “zabumba bumba esquisito batendo dentro do peito”, diz a letra. Quando cantou os versos “tu vens, tu vens, eu já escuto os teus sinais”, de “Anunciação” (Alceu Valença), fez o gesto do L com as mãos, para delírio da plateia.

Depois de cantar “São João do Carneirinho” (Isabela Moraes) e “Olha pro céu” (Luiz Gonzaga/ José Fernandes), agradeceu efetivamente o convite da produção, revelando a emoção de estar mais uma vez em São Luís – pelas reações da plateia, a recíproca era verdadeira.

Depois de “Te faço um cafuné” (Zezum), cantou “Tá?” (Carlos Rennó/ Pedro Luís/ Mariana Aydar) e ao final, no verso “pra bom entendedor meia palavra bas”, emendou “pra bom entendedor meia palavra bolso”, dando a senha para o público (e a própria artista) gritar/em “fora Bolsonaro!”e cantar/em “olê, olê, olê, olá/ Lula, Lula!”.

Em “Palavras não falam” (Mariana Aydar) o público sentiu os ares do tecnobrega, exalando a impureza do forró de Aydar – e é no atrito e no encontro que as culturas se reinventam e permanecem –, a prenunciar a sequência que incluiu “Morango do Nordeste”, composição dos pernambucanos Walter de Afogados e Fernando Alves, cujo epicentro do sucesso foi o Maranhão de Lairton e Seus Teclados, e “Medo bobo” (Juliano Tchula/ Maraísa/ Vinicius Poeta/ Junior Pepato/ Benicio Neto), hit de Maiara e Maraísa.

A plateia novamente foi ao delírio quando Mariana Aydar cantou “Espumas ao vento” (Accioly Neto) e após “Foguete” (J. Velloso/ Roque Ferreira) elogiou “o povo nordestino, que sabe votar”. Na sequência emendou um medley de forró pé de serra, em que, ao triângulo, se fez acompanhar apenas da zabumba de Felipe Silva e da sanfona de Cosme Vieira: “Forró do bole-bole” (Ton Oliveira/ João Silva/ Raimundo Evangelista), “Bulir com tu” (Antonio Barros/ Cecéu) e “No balanço da canoa” (Toinho de Alagoas). Sua banda se completava com Rafael Moraes (guitarra), Magno Vito (contrabaixo) e Bruno Marques (mpc).

Outra sequência que chamou a atenção em meio ao repertório foi a homenagem a Dominguinhos (1941-2013), com quem Mariana Aydar chegou a conviver – em 2014 dirigiu, com Eduardo Nazarian e Joaquim Castro, o documentário “Dominguinhos”. Cantou “Lamento sertanejo” (Dominguinhos/ Gilberto Gil), “Tenho sede” (Anastácia/ Dominguinhos) e “Gostoso demais” (Dominguinhos/ Nando Cordel).

Crítica ferrenha do bolsonarismo – e do que o guarda-chuva fascista abriga: machismo, misoginia, racismo, homofobia etc. –, ela não limou o bolsominion assumido Vital Farias do repertório. Dele, cantou “Ai que saudade d’ocê”, antes de “Preciso do teu sorriso” (João Silva/ Enok Virgulino), esta ampliando a homenagem a Dominguinhos, com quem gravou a faixa em “Cavaleiro selvagem aqui te sigo”, seu disco de 2011, produzido por Duani e o gênio Letieres Leite (1959-2021).

Do repertório da intercontinental Francisco, El Hombre pinçou “Triste, louca ou má” e mandou o recado: “o que antes passava despercebido, hoje a gente percebe que é machismo, que é agressão e não vai mais deixar passar”. Na porção autoral do repertório de “Veia nordestina” é perceptível o esforço da artista em combater este e diversos outros preconceitos nas letras. Exemplo disso, ela apresentou, após “A ordem é samba” (Jackson do Pandeiro/ Severino Ramos), com “Na boca do povo” (Fernando Procópio/ Tinho Brito), de letra espertíssima. A cantora tornou a dar seu recado: “tá tudo errado nesse país, de cabeça pra baixo”.

Ao cantar o “Forró do ET” (Mariana Aydar/ Isabela Moraes), lembrou a origem da música: ela estava em Caraíbas, na Bahia, em um festival de música em que se apresentavam Elba Ramalho (que duetou com ela na gravação da faixa em “Veia nordestina”) e o bandolinista Hamilton de Holanda; na ocasião, ambas e o marido de Mariana Aydar viram uma luz muito forte no céu, supostamente um disco voador.

Se a paixão de Mariana Aydar pelo forró começa com Luiz Gonzaga, o show de ontem fez valer a letra da não cantada “Sala de reboco” (Luiz Gonzaga/ José Marcolino): “todo tempo quanto houver pra mim é pouco”. O show seguiu com “Tropicana” (Alceu Valença/ Vicente Barreto), “Pagode russo” (Luiz Gonzaga), “Forró do xenhenhém” (Cecéu), “Feira de mangaio” (Sivuca/ Glorinha Gadelha), “Pedras que cantam” (Dominguinhos/ Fausto Nilo) e “Frevo mulher” (Zé Ramalho). A cantora deixou o palco sob o som do coro do público, que novamente entoava um festivo e vibrante “olê, olê,olê, olá/ Lula,Lula!”.

A comunhão de artista e plateia, musical e política, certamente se deve às dificuldades que os fazedores de cultura vêm enfrentando nos últimos quatro anos, no Brasil governado pelo neofascista Jair Bolsonaro, e à esperança de dias melhores, ontem certamente um sinal, com trilha sonora de Mariana Aydar. Que venham muitos outros assim!

Pedro Luís Melodia

Vale quanto pesa. Capa. Reprodução

 

Antes de falecer, Luiz Melodia deu aval a Pedro Luís para um show em homenagem ao repertório de Pérola negra, disco de estreia do artista descoberto por Gal Costa, que quebrou diversos paradigmas ao ser lançado, em 1973.

Pedro Luís circulou com o espetáculo então intitulado Pérolas negras, expandindo o repertório a outros clássicos de Luiz Melodia e a canções gravadas por ele, de compositores como Getúlio Cortes e Zé Keti.

O artista, que ganhou projeção à frente de grupos como A Parede e Monobloco, disponibilizou nas plataformas digitais na última sexta-feira (14), Vale quanto pesa [Deck, 2018], álbum que dedica ao repertório do filho de Oswaldo Melodia.

Pedro Luís regravou 80% do repertório de Pérola negra e acresceu músicas como Juventude transviada, Cara a cara e A voz do morro (Zé Keti), a única do repertório não assinada pelo homenageado, equilibrando-se entre um molho a la Melodia, reforçado pelo naipe de metais, e sua própria personalidade musical, não convencional qual o tributado.

O resultado é um disco-tributo feito por um fã confesso que certamente teria aprovação do ídolo homenageado. Por telefone, de São Paulo, Pedro Luís falou com exclusividade a Homem de vícios antigos.

Retrato: Nana Moraes

Vale quanto pesa começa com um deslocamento: você tira uma música da condição de integrante do repertório do Pérola negra e ela passa a dar título a teu álbum. O que motivou essa escolha?
Vale quanto pesa é uma das canções do Pérola negra, que é o primeiro álbum do Melô, que eu resolvi homenagear pela importância que ele tem não só pra mim, como para a história da música brasileira, onde está se fundando um momento, final dos anos 60, começo dos anos 70, onde os autores começam a assumir um protagonismo como intérpretes da própria obra, junto com a coisa da MPB, está se formando isso. Até os anos 50, especialmente, intérpretes eram intérpretes e autores eram autores, basicamente. Era difícil que tivesse as mesmas funções uma mesma pessoa. Então esse disco é fundante nesse sentido de ser dessa época e também de revelar um senhor compositor, muito peculiar na sua maneira de fazer poesia na canção e também um grande intérprete, com uma voz muito agradável, muito única, e que pra mim chegou muito cedo, na minha casa, no começo da adolescência. Meu cunhado, que trabalhava na indústria fonográfica, sempre trazia as novidades pra gente, antes delas chegarem às lojas, os vinis, os k7s, e foi um espetáculo, uma surpresa muito agradável ouvir esse disco tão variado e com tanta personalidade. Variado no sentido até de gêneros musicais, soluções de arranjos, o que na hora pra mim não foi decodificado, a não ser pelo embevecimento de estar vendo uma obra tão interessante que depois eu fui entender que era por que era tão variada e intensa e linda musicalmente. Ano passado eu resolvo homenagear esse disco, peço permissão a Melodia, que me perguntou o quê que eu estava esperando para fazer isso, e quando eu vou montar de fato um show, começo a pensar numas versões daquelas canções de forma a lhes reverenciar, mas que não estivesse fazendo cover delas. Reverenciar na estrutura, alguns riffs, algumas coisas dos arranjos são importantíssimas e marcantes, e quando eu vou montar isso definitivamente para apresentar então no show, marcado no Blue Note em abril desse ano, era muito pequeno, mesmo com o repertório todo e até ampliando um pouco as formas, botando algumas partes, botando solos dos músicos que eu convoquei para fazer essa missão comigo, não dava o tempo de um show. Dava o tempo de uma performance de 35 minutos no máximo. Então eu comecei a puxar outras canções do Luiz que pra mim eram importantes ou canções de outras pessoas que ele tivesse interpretado de uma maneira definitiva e comecei a montar esse repertório e comecei a chamar de Pérolas negras, esse show chamou assim, por contemplar não só o disco Pérola negra, mas também outras pérolas do Luiz. Andou a história e quando eu encontro o Rafa da [gravadora] Deck, e resolvo contar do projeto pra ele, ele acolhe imediatamente o projeto na Deck, marcamos, convenço ele que faríamos de maneira objetiva e conseguiria lançar esse ano ainda, e começamos a trocar ideias e fazer. Fomos pro estúdio, gravamos as bases muito rápido, depois fomos só fazendo detalhes nas duas, três semanas seguintes, gravando as vozes. Simultaneamente a Jane Reis, que foi companheira do Luiz durante 40 anos, está relançando a obra do Melodia, se tornou uma amiga minha, parceira na  realização disso no sentido de aprovar e me dar as devidas bênçãos e informações preciosas que eu uso até no decorrer do show como textos de histórias do Luiz. Eu achei, na verdade, que a Jane relançando a obra do Luiz, não seria muito elegante eu chamar de Pérolas negras, tendo o Pérola negra original, e resolvo buscar com o Rafa, com a Bianca Ramoneda, que é diretora não só do show, comigo, mas é também parceira da concepção visual, diretora artística, resolvemos buscar uma outra história e essa canção acabou tomando um peso tão interessante no arranjo que a gente fez, ela já vinha ao vivo muito interessante, no estúdio ganhou um corpo bem bacana, que a gente achou que era um nome forte, que traria peso e leveza, que é um pouco da concepção visual das pipas, o lance da bicicleta, que são referências das nossas origens de Zona Norte e ao mesmo tempo crianças de uma época em que a pipa e a bicicleta eram das principais brincadeiras. Vale quanto pesa virou um pouco definitivo disto.

Você falou um pouco da importância, da surpresa, do embevecimento que foi ouvir Pérola negra na época do lançamento. Você credita a esse disco alguma responsabilidade por você ter abraçado a música como profissão?
É um dos responsáveis, com certeza, apesar de ali eu não saber ainda. Mas ali eu começo a mergulhar na música. Talvez as primeiras canções que eu comecei a tocar no violão estejam nesse álbum. Estácio, eu e você é uma música que eu toco desde muito jovem, Pérola negra também, Estácio holly Estácio, são canções que fizeram parte de meu primeiro repertório no violão, para tocar nas festinhas, reuniões de amigos, reuniões de escola. E ali funda no meu imaginário uma possibilidade de fazer, de compor, de ser compositor de uma obra muito diversa sem amarras de gênero e que a poesia e a inspiração levassem para onde fosse necessário e não virar um compositor e cantor de samba ou de rock, ou do que quer que seja. Eu passeio por isso toda vez que eu quero. Acho que nesse disco é muito bacana, o Luiz era um fã da jovem guarda, um fã confesso, inclusive está em cartaz um espetáculo [Música romance – uma homenagem à Jovem Guarda] que ele concebeu sobre isso e a Jane conseguiu fazer acontecer, infelizmente ele não esteve para realizar, mas ela pegou a concepção e está conseguindo realizar. Então ele era fã disso, mas ao mesmo tempo fazia um choro como Estácio, eu e você que é uma estrutura de choro super bonita, choro-canção, e na verdade quando ele lança o Pérola negra ele foi questionado por alguns críticos mais xenófobos: “pô, mas um negro do Morro de São Carlos que não faz samba?”, ao que ele respondeu “tudo me interessa”, e esse “tudo me interessa” pra mim é um exemplo, é uma inspiração.

Você acha possível traçar um paralelo entre Luiz Melodia, esse negro que vem do Morro de São Carlos e se recusa a fazer o samba convencional, que seria, digamos assim, a gaveta que o mercado e a crítica reservavam para os negros, com o Pedro Luís, que é também um carioca, mas que faz um samba, um rock, tudo acaba interessando, mas sem ser convencional, por exemplo, nA Parede. Você enxerga isso assim?
Com certeza! Na Parede, no Monobloco, em todas as coisas que eu tenho feito, também em projetos individuais, a gente se dá essa liberdade. Quando a gente estava promovendo o primeiro disco da Parede, a gente fazia umas caminhadas, que a gente chamava de invasões pelas ruas, com percussão e megafone. A gente estava promovendo uma série de shows que a gente ia fazer no Ballroom, aliás, onde eu conheci pessoalmente o Melodia, no show dele, que foi a estreia da casa, eu fui apresentado a ele lá. Eu já era fã há muitos anos, eu já era músico, já estava trabalhando com isso. A gente estava divulgando essa temporada do Astronauta Tupy [1997] e um gringo abordou a gente na praia, a gente panfletando, e perguntou: “what kind of music you play?” [“que tipo de música vocês tocam?” em tradução livre] e o Sidon [Silva, percussionista] prontamente respondeu: “brazilian batucada with rock’n roll pressure” [“batucada brasileira com pressão rock’n roll” em tradução livre] e isso virou uma espécie de conceito, um jargão. Essa expressão aparece no encarte do Zona e progresso [2001], o terceiro disco da gente, uma foto feita num camarim no Japão, “brazilian batucada with rock’n roll pressure” pixada assim num camarim japonês, depois a gente fotografou e botou no encarte do Zona e progresso.

Você gravou o disco com uma banda enxuta, mas tem um rol de convidados bastante extenso, e isso garante, por exemplo, no uso de metais, um molho bem a la Melodia, mas com a cara de Pedro Luís. Por outro lado, você acaba regravando canções que, vamos dizer, têm versões talvez definitivas, nas vozes de Elza Soares, Gal Costa e Maria Bethânia. Qual foi a maior dificuldade de equilibrar tanta influência, tanta referência e reverência e manter tua identidade ao refazer esse repertório?
Eu acho que quando a gente vai regravar canções clássicas e canções que ficaram clássicas em determinadas interpretações, a gente vai ser sempre desafiado, a gente tem que estudar, ir buscar o que reverenciar e o que diferenciar. Foi uma busca. Como a gente foi fazendo muito ao vivo também, os meninos são ótimos, tanto o Élcio [Cáfaro, bateria e percussão], que é um cara super experiente, que tocou com Melodia, tocou também numa banda clássica da Cássia Eller, é meu amigo há muitos anos, quanto os dois meninos bem jovens, o Pedro Fonseca, nos teclados, e o Miguel Dias, no contrabaixo. Eu dei a ideia que a gente fizesse algumas reverências a coisas clássicas dos arranjos, mas buscando uma pegada mais ali desse quarteto que a gente montou, eu na guitarra, às vezes no banjo paraense [e violão], e esse trio enxuto ali de teclado, baixo e bateria. Isso já dá uma coisa diferente, dá uma coisa meio rock, meio jazz, os meninos são bem versáteis nessas linguagens. A gente já tinha uma estrutura, até conversando com o Rafael Ramos, que me convidou para fazer o disco na Deck, e eu o convidei para ser o produtor, e foi um acerto, ele se dedicou muito, encontrou naquele caminho que a gente estava indo, o jeito de fazer aquilo potente. Ao mesmo tempo a gente foi batendo bola dos músicos convidados. Já que a gente estava fazendo um disco de estúdio, a gente podia pegar aquelas estruturas, mas poder se valer de também chamar outros músicos. Quando você está vendo o show, acontece uma interação plateia-música; quando você está ouvindo um disco, se você oferece outras atmosferas, outras texturas, é quase que um cinema, você vai dar outros elementos e esses músicos convidados vieram completar uma coisa muito potente que já tinha nas concepções que a gente criou para essas canções. A gente ficou muito feliz com o resultado. Aqui no Rio a gente conseguiu que quatro dos músicos que foram convidados estejam com a gente nesse show de segunda-feira [o lançamento de Vale quanto pesa acontece amanhã (17), às 21h, no Teatro Net Rio]: o Milton Guedes [gaita], o Marlon Sette [trombone], o Felipe Ventura [violinos] e também o Paulo Rafael [guitarra]. Vai ser bacana, vamos fazer uma costura diferente do show. A gente começa sozinho, vai recebendo, vai acumulando convidados pro final. A gente está bem feliz também de poder entregar nesse show de estreia, para o público, um pouco desse privilégio que a gente teve de ser brindado com o talento desses super músicos que foram lá engrandecer o projeto.

Luiz Melodia já tinha recebido homenagens em vida das quais ele acabou participando das gravações. Lembro, particularmente, de Quem é cover de quem? [do álbum Bicho de 7 cabeças – volume 1, de 1993], de Itamar Assumpção, e Doce Melodia [do álbum Sinceramente, de 1982], de Sérgio Sampaio, que são artistas que como ele acabaram carregando esse rótulo midiático de malditos. O que você acha dessas canções e desse rótulo?
Sensacionais [as canções]. O Sérgio também foi uma grande referência pra mim. O Melodia, o Itamar e o [Jards] Macalé chegaram a fazer um show juntos, dos três malditos. Eu cheguei a ver esse show lá no Rio, numa casa chamada Rio Jazz Club, que era no subsolo do Meridian Hotel, foi muito bom, foi quando eles lançaram Quem é cover de quem?, que é sensacional, bem humorada, daquele Itamar que tinha um humor meio ácido. Eu não sei, eu acho que isso é um título ao mesmo tempo cruel, mas ao mesmo tempo curioso, por que são pessoas que não se entregam àquelas regras muito rígidas do mercado, de terem que se enquadrar num determinado lugar. São muitos caras que são assim.  Se a gente pensar, o [Gilberto] Gil e o Caetano [Veloso] são caras super diversificados também, que podem flertar lá com o rock, com o reggae e com o que se entende mais como MPB clássica, com o samba, só que não sei por que cargas d’água, eles não ficaram com esse estigma, e alguns ficam com esse estigma. Acho que eles souberam lidar bem com isso também. Uma coisa que eu acho que é ruim nisso é não dar a devida dimensão que um poeta, um compositor como Luiz Melodia merece. Ele ficou algum tempo fora do mercado, eu vejo numa geração mais jovem não entender muito quem é o Luiz Melodia, mas ao mesmo tempo reconhecem determinadas canções que estão no inconsciente coletivo, que foram ouvidas por pais ou por avós dessas pessoas mais jovens. Lamento isso, um cara tão precioso, com imagens poéticas tão fortes e originais, seja menos conhecido do que ele merecia pelas gerações mais jovens e espero poder contribuir um pouco com isso, no sentido de entregar essas canções nesse projeto de novo, já nesse mundo dos aplicativos, das plataformas virtuais, e também dos nichos, a gente fez vinil, o cd vai sair também no começo do ano que vem. Então eu espero poder ajudar o Melodia a ter o devido merecimento, que eu acho que outras pessoas estão preocupadas com isso também, a Jane com o cuidado da obra dele, vários projetos em homenagem a ele, o Prêmio da Música [Brasileira] do [Zé Maurício] Machline homenageou ele esse ano, e eu tive o privilégio de cantar Fadas dividindo o palco com Yamandu [Costa, violonista sete cordas] e Hamilton de Holanda [bandolinista] que são meus parceiríssimos. Acho que as reverências que podem vir e projetos podem dar luz a um Melodia que é fundamental. Uma coisa que me impressiona muito são as imagens poéticas das letras do Luiz. Quando eu isolo uma expressão como “vale quanto pesa”, que por acaso é título do disco, ou “devo de ir”, que é de Fadas, ou “se alguém quer matar-me de amor” [risos] e por aí, você vai tirando expressões… em Fadas então, todas as expressões poéticas que você tira dariam nomes a um disco, a um livro, a um projeto, a um filme. É impressionante a força poética que têm as expressões que o Luiz escolhe, e são muito particulares, às vezes você acha meio nonsense, mas se você acha ou não acha não importa, são muito fortes as imagens poéticas, isso é muito bonito de ver.

São literalmente pérolas.
Pérolas, pérolas.

Quando Luiz não se contenta em se fazer o que era esperado, quer dizer, o samba tradicional, e esse gesto acaba contribuindo para o rótulo de maldito, mas isso acaba sendo também, mesmo que inconscientemente, um protesto contra o racismo. Qual é o papel do negro? Naquela época era fazer samba, se a gente olhar as novelas, ainda hoje, é fazer o empregado, o subalterno. Então, infelizmente, após décadas de carreira de Melodia e após seu falecimento, o racismo continua vigente no Brasil. A gente está caminhando para um governo que parece que não vai contribuir com o combate a nada nesse sentido. Você poderia fazer um exercício de imaginação de como o Luiz Melodia se colocaria diante disso? E também qual a sua avaliação desse momento turbulento por que o Brasil passa?
O Luiz era um cara muito discreto no posicionamento político, mas ao mesmo tempo, eu acho que a própria atitude dele de escolher fazer do jeito que ele queria, quando ele quisesse, isso é uma atitude política, de certa maneira. E ter se firmado como um autor, antes mesmo do disco Pérola negra já foi reconhecido por duas das maiores intérpretes da época que continuam a ser duas das maiores intérpretes que o Brasil tem, que são a Gal Costa e a Bethânia, eu acho que isso é que dá força. Depois Zezé [Motta] também, uma cantora negra, que teve uma expressão bizarra ali nos anos 70 e 80, era uma atriz, cantora, personalidade, sex symbol, essas coisas são assim, são fundamentais para que se tire um pouco esse imagem e esse insistente racismo e evidente racismo estrutural, que é aquele que você às vezes não vê, mas que existe, que é no jeito de falar, na condescendência pela metade. O Luiz estaria sofrendo, mas com certeza ele daria uma rajada poética como resposta a isto, como Elza [Soares] nos dá, que se tornou a maior voz política, talvez, artística que nós temos no Brasil no momento, que eu tive o privilégio de fazer a direção musical do espetáculo em homenagem a ela com sete atrizes negras no palco e seis mulheres na banda, que está rodando o Brasil, espero que chegue aí. Foi uma direção musical que acabou dividida com duas das mulheres, uma que é minha assistente de direção já há algum tempo, que é a Antonia Adnet [violonista], que é integrante da banda que a gente montou, e a Larissa Luz, que é atriz convidada, que também tem uma carreira muito interessante, em franca ascensão e que tem uma voz política muito interessante, uma mulher inteligente, ligada. Isso foi muito importante justamente nessa época bizarra em que a gente está mergulhando, ver que ao mesmo tempo espetáculos como esse, onde é política, a voz do negro, das mulheres, está sendo tão bem acolhido, já quase 60 mil pessoas assistiram o espetáculo Elza, que estreou no meio do ano. Com todo esse vendaval que a gente está vendo pela frente, eu até disse esses dias, o Brasil não tem terremoto, não tem maremoto, não tem furacão, mas quem disse que precisa? A gente está vendo essas atrocidades acontecendo pela própria mão do ser humano, a gente não precisa disso. Ao mesmo tempo eu acho que são épocas em que a criatividade, a resistência, a inspiração da gente precisam estar mais ativas pra que a gente continue construindo um país que, em relação ao universo e ao mundo, é jovem e que ainda tem muito que aprender. A gente talvez tenha dado muito por garantido que tinha chegado num lugar razoável de civilidade, mas está vendo que não. Então, nós artistas, você escritor, jornalista, o bancário, o padeiro, o recepcionista do hotel onde eu estou, todos vamos ter uma missão de autoeducação e educação de nossos círculos de convivência e achar o nosso jeito. Ninguém pode achar o nosso jeito a não ser a gente. A gente vai entrar numa época mais complexa agora, onde as forças conservadoras estão aparentemente muito empoderadas, a gente não sabe até quanto, mas estão no momento. Mas como disse o Mujica [Pepe Mujica, ex-presidente uruguaio], logo após o segundo turno: “não há triunfo que seja eterno nem derrota que seja definitiva”. O mundo vai andando assim, um pouco pra lá, um pouco pra cá, e quem tem que garantir uma média legal pra todo mundo somos nós, cidadãos. Por mais que essa escolha não tenha sido a minha é a escolha que a maioria dos eleitores fez. Triste. Mas vambora, é com isso que vamos ter que lidar e vamos com força, jogando com as armas possíveis pra gente, pra neutralizar as barbáries, as coisas mais radicais, eu acho que tem muita bravata também, a gente precisa entender o que vai acontecer. No que for atroz a nossos olhos e nas práticas de quem está chegando, a gente tem que descobrir as formas de resistência e de impedimento dessas coisas avançarem demais.

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Veja o clipe da faixa-título:

Cecília Leite: equilíbrio e consistência

Enquanto a chuva passa. Capa. Reprodução
Enquanto a chuva passa. Capa. Reprodução

 

Cecília Leite demorou cerca de 10 anos entre um disco e outro. Em Enquanto a chuva passa, repete a opção de misturar compositores locais a nomes nacionais, dando sua contribuição para o fim das barreiras geográficas impostas pelo mercado fonográfico – o disco foi gravado no Rio de Janeiro.

A faixa-título é sua estreia como compositora e narra a vida de um casal que enquanto se separa e um tenta esquecer do outro, mais se lembram de momentos vividos a dois. “Enquanto me esqueço de ti/ lembro do amor/ tingindo as tardes do Rio/ com as cores da nossa leveza/ sorrisos, certezas/ dos meus nos teus passos/ lembro dos beijos de braços/ abraços de pernas/ nas horas eternas”, canta, no refrão.

A chuva que ajuda a batizar o disco volta a aparecer noutras faixas. Em Maré cheia, inspirado samba de Bruno Batista, o compositor veste uma persona feminina ao compor pensando na intérprete. “Por isso se eu mostrar minha alma/ levantem os olhos com calma/ e batam palmas para mim”. A dobradinha merece os aplausos, emoldurada – como de resto a voz de Cecília ao longo do disco – por Luís Filipe de Lima (violão sete cordas), Marcos Nimrichter (piano), Ney Conceição (contrabaixo), Edu Neves (sax) e Marcos Suzano (percussão).

Também chove em Tempo afora (Fred Martins), sucesso de Ney Matogrosso: “Onde mora a ternura/ onde a chuva me alaga/ onde a água mole perfura/ dura pedra da mágoa/ eu tenho o tempo do mundo, tenho o mundo afora”, começa a letra. Cecília Leite recria ainda outra música já gravada por Ney Matogrosso: Noite Severina, parceria de Pedro Luís e Lula Queiroga. A água ganha destaque no projeto gráfico de Claudio Lima, cantor e designer talentoso em ambos os ofícios, outra dobradinha do primeiro disco que se repete.

Ela recria ainda Por um fio (Marcelo Segreto), de O hábito da força (2011), primeiro disco da Filarmônica de Pasárgada, De todas as maneiras (Chico Buarque), hit de Maria Bethânia (de Álibi, de 1978), Seule, de Pixinguinha, com letra em francês de Vinicius de Moraes, trilha do filme Sol sobre a lama (de Alex Viany, de 1963) e, num medley emenda dois grandes nomes da poesia brasileira, maranhenses, um de adoção, outro de nascimento: Palavra acesa, de José Chagas, e Traduzir-se, de Ferreira Gullar. A primeira, musicada por Fernando Filizola, sucesso do Quinteto Violado; a segunda, por Fagner.

Falecido ano passado, é de Chagas, a propósito, a honrosa apresentação da cantora no encarte: “O canto em Cecília é tão visceral quanto nos pássaros, que cantam porque nisso está uma das razões da vida”.

Completam o disco Tem dó (Paulo Monarco e Zeca Baleiro), que o abre, falando na dor da despedida de maneira original; Arrastada (Patrícia Polayne), um martelo sobre o sofrimento e a emancipação feminina; Ainda mais (Eduardo Gudin e Paulinho da Viola), um samba sobre a esperança de reconciliação, com a típica elegância do portelense; Enquanto a chuva passa termina com Lembranças, outra vez Bruno Batista vestindo a persona feminina, competente qual um Chico Buarque, para citarmos dois dos compositores preferidos de Cecília, a propósito, os únicos que comparecem em ambos os discos – este, na estreia, fez uma versão em francês para Eu te amo (Dis-mois comment) e cantou com ela. “As lembranças que inventei…/e já gasta de mim, quis poder confessar/ o que me faz amarga e nua/ não sou minha… sem ser tua!”, termina a letra de Bruno.

Cecília equilibra-se com desenvoltura entre músicas (mais ou menos) consagradas e material inédito, num grandioso exercício de seleção de repertório – prévio, portanto, à gravação. Ela canta o que gosta, sem se prender a rótulos e gêneros. O resultado é o consistente trabalho que apresenta agora aos fãs e aos que certamente virão a tornar-se.

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Cecília Leite apresenta hoje (10), às 19h30, no São Luís Shopping (segundo piso) um pocket show de pré-lançamento de Enquanto a chuva passa, com entrada franca. A noite contará ainda com exposição de fotos, exibição de videoclipe e lançamento de remix da faixa Arrastada, com os djs Alex Palhano e Macau. Confiram o teaser.

Ney Matogrosso: um jeito de ser

Atento aos sinais. Capa. Reprodução
Atento aos sinais. Capa. Reprodução

Mais que o título de um disco, Atento aos sinais [2013] poderia ser uma espécie de slogan do cantor Ney Matogrosso, reconhecidamente um dos mais talentosos artistas da música brasileira, sempre aberto a novidades, apontando caminhos.

O artista pode ter suas paixões antigas entre os criadores a quem empresta sua voz, mas não deixa de dar voz a novos nomes e a outros que estão entre o primeiro e o segundo time. Prova disso é a presença, neste novo disco, de nomes como Lenine, Arnaldo Antunes, Vitor Ramil, Itamar Assumpção, Paulinho da Viola e Criolo, entre outros, nos créditos de letra e música.

O disco foi ensaiado nos palcos: lançado no finzinho do ano passado, foi testado antes em turnê do cantor. Incêndio, de Pedro Luís, pode soar óbvia, se lembrarmos das recentes manifestações de rua que tomaram conta do Brasil, mas a música, da extinta Ruge, já conta mais de 20 anos de idade. É par perfeito para a regravação de Rua da Passagem (Trânsito), parceria de Lenine e Arnaldo Antunes, lançada pelo primeiro há 15 anos.

O título do disco vem de verso de Oração (Dani Black) e há espaço para o bom humor em Samba do blackberry (Rafael Rocha e Alberto Continentino). A ilusão da casa (Vitor Ramil) é lírica exceção em repertório mais “quente” e mesmo a recriação do samba Roendo as unhas (Paulinho da Viola) ganha ares que fogem à tradição.

Como Maria Bethânia, Ney Matogrosso grava o que lhe dá na telha, sem que o resultado seja um monstrengo sem molho, liga ou alma. A unidade de seu disco é ele próprio quem dá. Mais que o título de um disco, Atento aos sinais é um jeito Ney de ser.