Jornada poética

Como falar com garotas em festas. Capa. Reprodução

 

Como falar com garotas em festas [How to talk to girls at parties; Quadrinhos na Cia., 2017, 80 p.; R$ 44,90; leia um trecho] não é, ao contrário do que o título porventura possa sugerir, um manual com fórmulas para serem seguidas à risca ou com desconfiança, tampouco um guia politicamente incorreto.

Em primeiro lugar, é o encontro de três artistas geniais, que dispensam apresentações: Neil Gaiman [Sandman e Coraline, entre outros], autor do conto, e os gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá [10 pãezinhos, Daytripper e a adaptação aos quadrinhos de Dois irmãos, de Milton Hatoum, entre outros], responsáveis pela adaptação da história aos quadrinhos.

É redundante dizer que uma graphic novel é cinematográfica, já que os conceitos se confundem um tanto entre a sétima e a nona artes. Além do mais, Como falar com garotas em festas ganhou também adaptação para a telona, com direção de John Cameron Mitchell e elenco com Elle Fanning e Nicole Kidman, que estreia este ano (ainda sem data para chegar ao Brasil).

É um álbum sobre amor e amizade, as confusões destes e outros sentimentos no período turbulento chamado adolescência. Enn e Vic são amigos na Londres dos anos 1970, durante a explosão do punk rock. Um é tímido e não tem sorte com as garotas; o outro é bonitão e espalhafatoso e sempre desperta a inveja do amigo.

O traço de Moon e Bá já é um clássico há tempos e a atmosfera do conto de Gaiman o envolve em poesia, não que eles não já tivessem, mas aqui a questão é particular e direta. Numa casa, em uma festa a que o par de amigos chega por acaso, Enn conhece Triolet, a “garota-poema”. “Você não consegue ouvir um poema sem que ele te transforme”, ela lhe diz em determinada altura.

Há várias metáforas colocadas: nada é apenas o que parece ser e perde quem se contentar com a/s aparência/s, do título ao caderno de rascunhos ao final do volume (que permite perceber detalhes do processo de desenvolvimento da obra).

A hq aborda esse turbilhão de sentimentos adolescentes com um pé na ficção científica, como se a adolescência não fosse um período complicado por si só. Um período de descobertas, experiências, aventuras. De quebrar a cara. De transição. De diversão e de começar a se preocupar com novas responsabilidades. No texto de Gaiman e no traço e nas cores de Moon e Bá tudo se torna mais poético e com poesia é menos duro seguir a jornada.

Anacronismo para retratar o Brasil

Mensur. Capa. Reprodução

 

O bullying transformou o protagonista de Mensur [Quadrinhos na Cia., 2017, 208 p.; R$ 54,90; leia um trecho] em Gringo. Filho sem pai de uma dona de casa, ele ganhou o apelido na escola. São seus dramas que o leitor acompanha ao longo das páginas da nova graphic novel de Rafael Coutinho, que já dispensa apresentações.

A luta de espadas que dá título ao álbum se parece com a esgrima, mas tem o claro objetivo de produzir ferimentos no rosto do oponente e estas cicatrizes serão motivo de orgulho para seus praticantes. Era uma prática de estudantes universitários alemães no século XV e o autor traz para o Brasil, entre Caxambu, Ouro Preto e São Paulo, cidades que dão nome às partes do livro.

Engana-se, no entanto, quem acredita que espadas ferindo rostos são a maior violência nas páginas de Mensur. É uma obra de ficção, mas Rafael Coutinho retrata um Brasil violento e desigual, em que tudo, por mais grave que seja, é banalizado e dado como absolutamente normal – vide a sequência de golpes perpetrados no ambiente político.

Gringo é ao mesmo tempo um personagem anacrônico e um brasileiro comum. E ao mesmo tempo também, para alguns, um herói. Lida com fantasmas do passado, busca tornar-se um ser humano melhor, valoriza a palavra e a honra – instituições que em geral funcionam mal, como tantas no Brasil –, busca ganhar a vida honestamente, mesmo em subempregos, apaixona-se e tem o CPF negativado apesar de já ter pagado a fatura – experiências comuns de tantos brasileiros comuns.

O letramento de Mensur utiliza a caligrafia do autor em resultado charmoso. Rafael Coutinho não se limita ao quadrinho: por vezes determinadas cenas – e particularmente as “danças” dos espadachins – escorrem, tornando-se páginas inteiras, transformando-as em verdadeiras obras de arte – o que de resto, Mensur é, desde a capa.

Lennon no divã

Lennon. Capa. Reprodução

 

Como grupo ou individualmente a vida e a obra dos Beatles são por demais conhecidas em sucessivas edições, umas bem cuidadas, outras meros caça-níqueis. Até hoje, qualquer lançamento ou relançamento envolvendo os fab four rendem cifras incalculáveis, seja na música, literatura, teatro, cinema.

A graphic novel Lennon [tradução: Fernando Scheibe; Nemo, 2017, 151 p.; R$ 39,80; leia um trecho] aborda a trajetória de John Lennon sob um ponto de vista inusitado: sucessivas visitas do astro a uma analista.

Lennon se reencontra e enfrenta fantasmas do passado, desnudando-se no traço elegante de Horne Perreard e roteiro de Eric Corbeyran, baseados no texto original de David Foenkinos, autor do livro que deu origem à HQ.

Nada é novidade para beatlemaníacos médios – ok, a expressão é uma contradição em termos –, mas mesmo para estes, vale a pena conferir Lennon, narrado em primeira pessoa e de forma quase linear.

John Lennon revela a importância de Lewis Carrol para seu processo criativo, quando os desenhos de Perreard dão conta do onírico do autor, revela a podridão, mais que o glamour, do showbiz, e é ultrarromântico ao abordar o encontro de seu protagonista com Yoko Ono.

Em 18 sessões, um monólogo – só Lennon fala, nunca há a interferência de sua analista – dá conta da biografia daquele que, ao lado de Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, formou o mais importante grupo musical de todos os tempos e revolucionou para sempre a música pop.

Mesmo sem acrescer novos dados à biografia do ídolo, Lennon teria fecho perfeito se acabasse na 18ª. sessão. O epílogo é óbvio ao encerrar o álbum com o assassinato de John Lennon, quebrando o ritmo a que o leitor se acostuma logo nas primeiras páginas.

Tragédias brasileiras

Hinário nacional. Capa. Reprodução

 

Radicado há anos na Espanha, o quadrinhista brasileiro Marcelo Quintanilha talvez seja quem melhor retrata, no campo das graphic novels, o Brasil real e profundo. Após o policial Tungstênio – vencedor do prêmio Angoulême, o mais importante dos quadrinhos, em 2016 – e o “drama classe média” (embora estas aspas reduzam bastante a questão, reconheço) Talco de vidro, ele volta à carga com Hinário nacional [Veneta, 2016, 128 p.; R$ 54,90].

O livro já provoca desde o título, que subverte a “coleção ou livro de hinos religiosos”, atrelando-o a hinos de clubes de futebol cantados a plenos pulmões em estádios lotados ou não e o clássico junino Olha pro céu (Luiz Gonzaga e Peterpan), que se configuram personagens importantes na trama.

O enredo entrelaça vários dramas em torno do mesmo tema: o abuso sexual. Da namorada que cede a ver filmes de ação (que o namorado prefere) em vez de filmes mais românticos (sua própria preferência) a relação entre colegas de escola (“eu tô acostumada”), os clichês machistas e homofóbicos repetidos ad nauseam, o taxista que “graceja” e a passageira que interrompe a corrida pelo meio do caminho, além do drama de um motorista de ônibus acidentado, cuja memória fragmentada faz questão de lembrar que é ele quem manda em casa.

Quintanilha, em suas ficções, é um perfeito tradutor da tragédia brasileira. As pequenas desgraças individuais são traços de nossa formação, agravados pelo golpe em curso. Hinário nacional é impresso em amarelo, cor da palidez – nossa impotência diante da realidade? –, e se vale da retícula, cujo efeito granulado pode ser lido como outra metáfora: pontinhos formam uma imagem, como os dramas individuais compõem a desgraça brasileira.

Modelo vivo, de Laerte, o último grande trabalho de Toninho Mendes

Modelo vivo. Capa. Reprodução
Modelo vivo. Capa. Reprodução

 

Falecido em janeiro passado, Toninho Mendes “nos anos 1980, elevou as expressões gráficas do underground ao palco principal da cultura e mudou a história dos quadrinhos nacionais. Um mundo de referências anárquicas passava a contaminar o jornalismo, as HQs, o debate comportamental e político”, como anotou em seu obituário o jornalista Jotabê Medeiros.

A Circo Editorial, fundada por Toninho Mendes na década de 1980, publicou nomes como Angeli (Chiclete com banana), Laerte (Piratas do Tietê), Glauco (Geraldão) e Luiz Gê, entre outros. Sua última grande contribuição para a cultura nacional foi a organização de Modelo vivo [Barricada, 2016, 88 p.; R$ 49,00], mais recente álbum de Laerte.

Os tempos são outros – ou serão os mesmos? – e por isso é importante ver as coisas em perspectiva: Modelo vivo é uma antologia que demonstra a importância de Laerte não apenas para os quadrinhos nacionais. Seus mais de 40 anos dedicados ao traço demonstram que o humor pode sintetizar cenários, traduzir conjunturas e ainda fazer rir – não o riso fácil e inconsequente.

A obra se completa com uma série de ilustrações de corpos nus, algo deixado em segundo plano por Laerte ao longo de sua trajetória. “Desenhar gente é uma das maneiras mais fecundas de fazer desenhos, porque nos usamos inteiramente na ação de desenhar”, afirma no texto de apresentação de Modelo vivo. “Fiz isso menos do que gostaria”, continua.

Os desenhos a que Laerte se refere foram feitos ao longo de um curso livre organizado por ela e seu filho Rafael Coutinho, em 2013 – a cartunista é vista em ação no ótimo Laerte-se, documentário de Lygia Barbosa da Silva e Eliane Brum, disponível no Netflix.

O advento das redes sociais facilitou bastante a vida de quem deseja acompanhar o trabalho de artistas que admira. Laerte continua colaborando com a Folha de S. Paulo. Para quem, ainda assim, ainda não conhece o trabalho da cartunista, Modelo vivo é uma boa porta de entrada.

O álbum passeia sobretudo por esta produção mais underground, reunindo tiras e HQs publicadas em revistas e fanzines como Cachalote (1994, editada por Laerte, Adão Iturrusgarai e Miriam Lust, que depois daria nomes ao álbum de Rafael Coutinho, filho de Laerte, com roteiro de Daniel Galera), Circo (1987), Geraldão (1988 e 89), Chiclete com banana (1988 e 89) e Piratas do Tietê (1991), além de uma inédita, realizada em 2000.

Para quem conhece (e acompanha) o trabalho de Laerte, algumas histórias soarão clássicas, como A volta dos palhaços mudos, Penas, Aquele cara e O míssil, na qual a colaboração de Toninho Mendes é creditada. As duas últimas, atualíssimas, dialogam com o estado policialesco do Brasil sob o golpe desde 2016.

Toninho Mendes não imaginava que a organização de Modelo vivo seria seu último grande trabalho, mas não poderia haver despedida em melhor estilo: “o melhor de” Laerte, uma artista ainda absolutamente necessária.

Dylan Dog terá três edições publicadas este ano no Brasil

A primeira, Retorno ao crepúsculo, já está nas bancas

Retorno ao crepúsculo. Capa. Reprodução
Retorno ao crepúsculo. Capa. Reprodução

Os 30 anos da primeira publicação de Dylan Dog passaram em brancas nuvens no Brasil em 2016. A novata editora Lorentz busca agora corrigir o erro e promete três histórias do “investigador do pesadelo” para este ano. A primeira, Retorno ao crepúsculo, publicada originalmente na Itália em junho de 1991 (no número 57 da hq), já está nas bancas.

O roteiro é de Tiziano Sclavi, criador do personagem, e arte de Giuseppe Montanari e Ernesto Grassani, e a história se passa em Inverary, cidade localizada na Zona do Crepúsculo, um lugar em que ninguém envelhece ou morre, onde todos os dias são absolutamente iguais.

Dylan Dog deixou de ser publicado no Brasil em 2006, como lembra Júlio Schneider no posfácio – ele que também traduz esta hq, que mistura terror e bom humor, seja nas piadas infames de Groucho, o assistente de Dylan Dog, que homenageia o xará Marx, seja no pânico de Edgar Allan Poe, que também se assombra com a Zona do Crepúsculo.

Se hoje Dylan Dog anda forçadamente esquecido, eis uma importante contribuição para mudar este quadro. O personagem chegou a protagonizar a fumetti – como são chamadas as revistas em quadrinhos na Itália – mais vendida na terra de Umberto Eco, intelectual falecido ano passado, que chegou a declarar: “posso ler a Bíblia, Homero e Dylan Dog por dias e dias”. Não à toa ele próprio virou personagem em uma hq do detetive cujo charme reside também em dirigir um modesto fusca.

Inusitado e emocionante

Graphic novel de estreia de Fabien Toulmé traz abordagem sui generis da síndrome de down a partir da experiência real do autor

Não era você que eu esperava. Capa. Reprodução
Não era você que eu esperava. Capa. Reprodução

Não era você que eu esperava [Ce n’est pas toi que j’attendais. Tradução de Fernando Scheibe. Nemo, 2017, 254 p.; R$ 44,90], de Fabien Toulmé, é a mais emocionante graphic novel que leio em muito tempo. O traço aparentemente simples dá conta de repassar, com riqueza de detalhes, a história verídica do desenhista e os dramas em torno de uma filha com síndrome de down.

A história acompanha a vida aventureira do francês Toulmé e sua esposa brasileira Patrícia, com a filha Louise, da gravidez aos três primeiros anos de sua segunda filha, Julia, e aborda a situação com um delicioso misto de bom humor e crueldade (desde o título) – humano, demasiadamente humano.

Toulmé morou no Brasil, onde iniciou o pré-natal de Julia. Chega a criticar o sistema brasileiro de saúde pública no auge de sua revolta com “o que o destino lhe reservou” – o que ele só descobriria após o parto, apesar de todos os exames e o excessivo zelo ao longo da gestação.

Não era você que eu esperava é bastante didático sobre a síndrome de down, com este aprendizado incorporado à trama, no que Toulmé é bastante hábil: o que aprendemos é pelo relato das buscas dele por mais informações após o diagnóstico da condição de sua filha. Duas lições básicas, de cara: quem quer tranquilidade não visita fóruns de internet sobre estes temas (ou quaisquer outros); e não adianta se preocupar muito com o futuro: de um jeito ou de outro, ele virá.

De alguém completamente inábil em lidar com pessoas com deficiência – o álbum abre com uma cena de bullying – a alguém que passa a se revoltar com piadas envolvendo o tema, Toulmé aborda esta sua formação sem hipocrisia, numa estreia monumental.

Autobiografia do criador

Incrível, fantástico, inacreditável. Capa. Reprodução
Incrível, fantástico, inacreditável. Capa. Reprodução

 

A ideia é ao mesmo tempo tão extraordinária quanto óbvia: uma biografia de Stan Lee em quadrinhos. Escrita pelo próprio, com Peter David e Colleen Doran. Trata-se de Incrível, fantástico, inacreditável: a biografia em quadrinhos do gênio que criou os super-heróis da Marvel [Amazing, fantastic, incredible: a marvelous memoir; tradução: Maurício Muniz; Novo Século Editora, 2016, R$ 59,90].

É o próprio Stan Lee, tornado personagem, quem narra seus feitos, sem medo de soar imodesto. Pelo contrário: não teme afirmar ter sido fundamental para a revolução no universo não apenas dos quadrinhos, mas de toda a cultura pop do planeta no século passado.

Lembra a infância difícil, quando se manifesta o interesse precoce por literatura, alguns subempregos no começo da adolescência, a passagem pelo exército – já na condição de escritor – e a paixão avassaladora pela futura escritora Joan Lee, autora de O palácio do prazer, com quem está casado desde os 25 anos.

Suas aventuras pelo mundo das HQs começa com o convite para escrever um roteiro do Capitão América. Nunca mais a nona arte foi a mesma. Tanto que, anos depois, a concorrente DC Comics convidaria Stan Lee para re/fazer seus personagens a seu modo.

O começo não foi fácil: comumente visto como arte menos importante, autoridades americanas, à época, relacionavam histórias em quadrinhos ao uso de drogas e durante algum tempo certo bom mocismo acabou por censurar muitas histórias. Quem ousou peitar as autoridades foi justamente Stan Lee, que após a encomenda de uma agência do próprio governo americano, não achou justo deixar de publicar uma série de histórias que versava justamente contra o uso de drogas.

Incrível, fantástico, inacreditável é uma verdadeira declaração de amor a super-heróis como o Homem-Aranha, Quarteto Fantástico, O Incrível Hulk, Thor, O Homem-Formiga e sua companheira Vespa, O Homem de Ferro, Conan, o Bárbaro, O Justiceiro e os X-Men, entre outros que, de tão populares, são por demais conhecidos até mesmo por quem não se interessa por quadrinhos, além de nomes importantes para o desenvolvimento e/ou consolidação de vários destes personagens, como John Romita, Steve Ditko e, entre outros, Larry Lieber, classificado pelo próprio Lee como “um dos heróis desconhecidos dos quadrinhos. Um incrível escritor, criador de layouts, desenhista. Ele faz seu trabalho de maneira linda e eficiente. Em sua carreira, ele escreveu e desenhou quase todo tipo de quadrinho com louvor. Pra ser justo, acho que às vezes eu tinha que fazer força pra não favorecê-lo frente a outros profissionais por ser meu irmão”.

A biografia vai tão a fundo que resgata episódio pouco conhecido: o beatle Paul McCartney procurou Stan Lee para que fosse produzido um gibi sobre o lançamento de Seaside woman, canção de sua banda Wings, cantada por sua esposa, Linda McCartney, sob o pseudônimo de Suzy and The Red Stripes, apelido de Linda na Jamaica, graças a uma versão reggae de Suzie Q e Red Stripe a cerveja mais popular da terra de Bob Marley. Linda faleceu antes de o projeto se concretizar. Em 1977 Stan Lee lançaria um gibi protagonizado pelo Kiss.

Imodéstia e bom humor caminham em paralelo nesta obra fundamental também para a compreensão da indústria em torno destes seres dotados de superpoderes. Quando lembra de uma máquina de escrever quebrada em meio a uma briga qualquer com a esposa, da qual sobraram peças para todo lado, arremata: “foi antes de existir o Ebay. Pena. Eu poderia ter leiloado as partes por muito dinheiro”.

Cifras monumentais giram em torno de Stan Lee, que lembra que, após uma longa batalha judicial, o Homem-Aranha dirigido por Sam Raimi no cinema, em 2002, foi orçado em 139 milhões de dólares, tendo rendido mais de 800 milhões no mundo inteiro – há uma cena do filme em que ele aparece, puxando uma menina para longe dos destroços de um prédio. Desde 1989 ele fez mais de 20 aparições em filmes baseados em personagens que criou ou ajudou a criar.

Conduzida como se fosse uma palestra em que remonta sua vida e obra – e Stan Lee já deu várias voltas ao mundo fazendo isso –, ele deixa ainda preciosos conselhos para quem quiser se aventurar (literalmente) por este universo. Os adjetivos do título ainda são poucos para classificar esta HQ que já nasce antológica.

Uma obra-prima

Frida Kahlo: Para que preciso de pés quando tenho asas para voar?. Capa. Reprodução
Frida Kahlo: Para que preciso de pés quando tenho asas para voar?. Capa. Reprodução

 

É uma verdadeira obra de arte a graphic novel Frida Kahlo: para que preciso de pés quando tenho asas para voar? [Frida Kahlo: pourquoi voudrais-je des pieds puisque j’ai des ailes pour voler?, tradução: Fernando Scheibe; Nemo, 2016, 128 p.; veja as páginas iniciais], de Jean-Luc Cornette (texto) e Flore Balthazar (desenho e cores).

A HQ biográfica acompanha Frida, seu marido Diego Rivera, então um muralista mais conhecido que ela, e Leon Trotsky, de quando o casal recebe no México o intelectual marxista forçado ao exílio até sua morte, menos de quatro anos depois.

A rima é pobre, mas Frida sempre usou suas cores para superar suas dores, e uma palavra-chave deste álbum – como de resto em qualquer relato biográfico acerca da pintora – é traição, no amor, na amizade e na política.

Mulher livre, Frida viveu um polígono amoroso que é aqui exposto sem escamoteação, tampouco sem tirar a atenção para aquilo que verdadeiramente importa: sua obra, sua força, sua atualidade.

Num contexto de criação da Quarta Internacional, da perseguição a Trotsky pelo NKVD (o Comissariado do Povo para Assuntos Internos, na sigla em russo, espécie de Ministério do Interior) e de discussões acerca do rótulo de surrealista que André Breton quis impor à protagonista, o enredo de Frida Kahlo é urdido com bom humor.

Um glossário de perfis, por Jean-Luc Cornette, acompanha a trajetória dos personagens após 1940, ano da morte de Trotsky. Também ao fim do volume, as referências apontam, entre livros, filmes, reportagens, museus, exposições e murais de Diego Rivera, obras “que foram essenciais para nós e nos permitiram realizar esta graphic novel com o maior rigor possível”, no dizer dos autores.

A quem conhece minimamente a biografia de Frida, ao menos a partir do filme homônimo [2002], de Julie Taymor, baseado em Frida: a biografia [Globo, 2011], de Hayden Herrera, esta HQ não acrescentará novidades. Mas merece ser contemplada como obra-prima que é. Aposto que Frida aprovaria a bela homenagem.

(How) wouldn’t it be nice?

Vingadora da Costa Oeste. Capa. Reprodução
Vingadora da Costa Oeste. Capa. Reprodução

Kate Bishop, a Gaviã Arqueira, é tão atrapalhada que às vezes não parece uma super-heroína, mas uma humana comum. Vingadora da Costa Oeste, o gibi da Panini Comics [2016, 122 p., R$ 28,90], reúne as edições 14, 16, 18 e 20 de Hawkeye, nome original da personagem criada por Allan Heinberg e Jim Cheung, e Hawkeye Annual 1, escritas por Matt Fraction e ilustradas por Annie Wu e Javier Pulido.

Após discutir com Clint Barton, o Gavião Arqueiro, ela ruma para Los Angeles, acompanhada do cachorro, numa aventura que inclui procura de emprego, roubo de orquídea, bico de detetive particular, encontros ocasionais em supermercado, o convívio com um casal de homossexuais (que têm a ver com a flor roubada) e uma flecha USB.

Pode parecer anacrônico, hoje, uma super-heroína usar arco e flecha, e uma curiosidade interessante é que Bishop (sobrenome de poeta), nascida em berço de ouro, toca violoncelo. A conexão com a música não para aí: nesta aventura, a protagonista ajuda um gênio da música pop dos anos 1960, numa bela homenagem a Brian Wilson, líder dos Beach Boys.

Há muito mais, mas só por esta inusitada aparição o gibi já valeria a pena.

Jornalismo com J maiúsculo

Reportagens. Capa. Reprodução
Reportagens. Capa. Reprodução

 

A nanobiografia do autor, ao fim do volume, afirma: “formou-se em jornalismo, mas deixou a profissão para se dedicar às histórias em quadrinhos”. A bem da verdade, ele não deixou a profissão: Joe Sacco [Malta, 1960] tornou-se talvez o mais importante autor de jornalismo em quadrinhos e este Reportagens [Quadrinhos na Cia., 2016, 199 p.; tradução de Érico Assis; leia um trecho] é prova inconteste.

Aliás, Journalism é o título original deste álbum, que reúne verdadeiras lições de jornalismo – e geopolítica – em um gênero em geral tido como menor, menos sério ou menos importante. O próprio Sacco assina uma “saraivada introdutória para achacar todos aqueles que se opõem à legitimidade dos quadrinhos como forma eficiente de fazer jornalismo” – lição número um.

Seu trabalho é tão profundo quanto reportagens que se utilizam apenas de palavras e fotografias – aliás, seus quadrinhos deixam no chinelo muitos jornalistas acostumados (viciados) aos ares-condicionados de confortáveis redações e/ou ao copia e cola de releases e opiniões prontas dos patrões.

Joe Sacco não vai apenas para a rua, como é necessário para o bom e velho jornalismo, não apenas enfia os pés na lama: ele vai literalmente para o meio do olho do furacão, retratar dramas humanos em zonas de guerra.

Reportagens é uma coletânea de trabalhos de menor extensão publicados por ele mais ou menos recentemente em revistas e jornais como Boston Globe, Details, Guardian Weekend, Harper’s Magazine, New York Times Magazine, Virginia Quarterly Review e XXI.

O jornalista-quadrinhista é objetivo sem se tirar de cena – por vezes as reportagens têm um quê de making-of (além de um texto ao final de cada uma, detalhando pormenores de suas feituras e opiniões do autor sobre o próprio trabalho, um interessante exercício de autocrítica, inclusive).

O ponto em comum destas reportagens é a violência. O modus operandi militar – igual em qualquer parte do mundo – é alvo de Julgamentos de guerra, que se passa no Tribunal Penal Internacional, em Haia. O preconceito contra imigrantes africanos em Malta – terra natal de Sacco – é retratado em Os indesejáveis. Kushinagar retrata fiel e cruamente as injustiças, desigualdades sociais e a fome na Índia.

Se há quem ainda torça o nariz para o jornalismo em quadrinhos – gênero ainda pouco explorado no Brasil –, há quem reconheça Joe Sacco como um dos maiores correspondentes de guerra de nossos tempos, ele, autor também de Notas sobre Gaza [Companhia das Letras, 2010, 432 p.] e Palestina [Conrad, 2011, 328 p.], temas e geografias que também frequentam Reportagens.

Diante de pautas tão densas e cruéis é impossível falar em ludicidade – mesmo em se tratando de histórias em quadrinhos. Sacco não perde o bom humor e, aqui e ali, tira onda de seus interlocutores, fazendo com isso, críticas a funcionários públicos corruptos e coronéis – tenham os nomes que tiverem em outros países e línguas.

A hq da hq

Sopa de salsicha. Capa. Reprodução
Sopa de salsicha. Capa. Reprodução

Sopa de salsicha [Quadrinhos na Cia., 2016; leia um trecho] é um hilariante making of. A autoficção, hoje tão comum na literatura brasileira, é o mote desta nova graphic novel de Eduardo Medeiros: a história é a de sua busca pela história a contar.

Cheio de referências, sobretudo dos universos dos quadrinhos e da música, o álbum tem como personagens o cantor americano Michael Bolton [When a man loves a woman, que ele cantarola aqui e acolá], espécie de conselheiro onírico de Eduardo, os gêmeos Gabriel Bá e Fábio Moon [10 pãezinhos] e Rafael Albuquerque, entre outros.

“Nós odiamos Porto Alegre”, “eu odeio reggae” e “eu odeio Bob Marley”, apesar dos dreadlocks que usa, podem causar, à primeira vista, má impressão, mas no fundo, o autor-personagem é gente boa e a ele, de algum modo, nos afeiçoamos e compadecemos. Ele se muda com a esposa da capital gaúcha para Florianópolis e repassa ao longo das 165 páginas da hq sua própria vida, em busca de uma boa história para contar. E nos conta várias.

Por exemplo, sua aversão por banheiros sujos. Sua aversão por bananas – fruta onipresente nas receitas de Aline, a Baixinha, sua esposa, a quem o livro é dedicado. No fundo, é tudo como diz o título de uma das mais conhecidas canções de Michael Bolton: quando um homem ama uma mulher.

A vida a dois, em si, com suas dores e delícias, também é matéria-prima para a busca de Eduardo Medeiros. Os momentos em que um segura a barra do outro em momentos de guinadas (sempre acompanhadas de um temporário desemprego) são comoventes. E uma simples saída (entre escolher roupa, regar plantas, tirar a roupa do varal e isso tudo levar quase uma hora) pode se tornar uma tortura – e resultar em ficarem em casa. De artistas ou não, que casal nunca?

Sopa de salsicha é também o retrato da falta de glamour da vida de artistas do desenho, que, sem conseguir sobreviver exclusivamente de sua arte – qualquer semelhança com outras expressões artísticas não é mera coincidência –, precisam encarar frilas os mais variados, em nome das contas pagas no fim do mês – o que às vezes deixa o trabalho autoral, leia-se, o trabalho artístico, em si, em segundo plano.

“O que importa é que eu tô feliz com minha jornada até aqui”, diz o autor-personagem num quadro. Certamente os leitores também, quer já o conheçam ou não de Friquinique [Beleléu], A história mais triste do mundo [Stout Club] e Open bar [Stout Club].

A insubmissa

Magda. Capa. Reprodução
Magda. Capa. Reprodução

 

Negra, nordestina e lésbica, Magda [Quadrinhos na Cia., 2016, 144 p.; leia um trecho] é um misto de ser humano, robô e inseto na ficção científica homônima de Rafa Campos Rocha.

Misto é modo de dizer: na verdade, o corpo de Magda é ocupado por um ser com milhões de anos de idade. A fusão, ao mesmo tempo em que a torna poderosa e monstruosa, envolve-a em conflitos.

Uma epidemia se abate sobre o lugar e é dos possuídos pelo vírus que Magda se alimenta. Seus atributos físicos lembram um pouco os da protagonista de Deus, essa gostosa [Quadrinhos na Cia., 2012, 88 p.], também uma mulher negra.

Diversas referências permeiam a obra – A metamorfose, de Kafka, é apenas a mais óbvia: aqui e acolá aparecem Pavement, Fábrica de Animais, Paulo Vanzolini e até mesmo Patati e Patatá. Sobram críticas à nossa sociedade contemporânea, seu preconceito, hipocrisia e caretice, ao militarismo e ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

Perturbador, Magda se equilibra entre cenas de extrema violência e momentos de pura doçura – é sublime a sequência do banho com a namorada.

Catirina e Pai Francisco em quadrinhos – para além do auto do bumba meu boi

Catirina e Pai Francisco. Capa. Reprodução
Catirina e Pai Francisco. Capa. Reprodução

 

O quadrinhista Beto Nicácio volta ao universo da cultura popular do Maranhão em Catirina e Pai Francisco [Dupla Criação, 2016, 40 p.], nova hq que lança hoje, às 19h, na Galeria do Centro de Criatividade Odylo Costa, filho (Praia Grande).

Em preto e branco, optando pela limpeza típica do cartum (também uma linguagem pela qual o autor se aventura), a revista vai além do auto do bumba meu boi, remontando ao ciclo do gado, quando Pai Francisco ainda era criança e seu pai deu a vida para salvar o dono da fazenda, seu patrão.

O que Beto Nicácio faz é uma livre adaptação da lenda, talvez a enriquecendo. Não concentra-se apenas no enredo em que Catirina, grávida, deseja a língua do mimoso, o boi predileto do patrão. Embora não fuja dele.

Caminho natural da publicação seria adentrar o ambiente de escolas públicas e privadas, contribuindo para a difusão da cultura popular do Maranhão, em linguagem acessível para todas as idades. A revista tem a preocupação didática de, ao final, explicar detalhes, propor atividades e o consequente aprofundamento dos leitores em temas abordados na história em quadrinhos.

Autor, entre outros, de A lenda da carruagem encantada de Ana Jansen, sobre outra conhecida lenda destas plagas, o autor já tem outros projetos mixando as tradições do Maranhão e a nona arte. Mas cada coisa a seu tempo e agora é tempo de São João.

A noite de autógrafos será regada a mingau de milho e na ocasião, uma arte original da hq será sorteada entre os presentes. A revista custa R$ 20,00.

Catirina e Pai Francisco em quadrinhos – para além do auto do bumba meu boi

Catirina e Pai Francisco. Capa. Reprodução
Catirina e Pai Francisco. Capa. Reprodução

 

O quadrinhista Beto Nicácio volta ao universo da cultura popular do Maranhão em Catirina e Pai Francisco [Dupla Criação, 2016, 40 p.], nova hq que lança hoje, às 19h, na Galeria do Centro de Criatividade Odylo Costa, filho (Praia Grande).

Em preto e branco, optando pela limpeza típica do cartum (também uma linguagem pela qual o autor se aventura), a revista vai além do auto do bumba meu boi, remontando ao ciclo do gado, quando Pai Francisco ainda era criança e seu pai deu a vida para salvar o dono da fazenda, seu patrão.

O que Beto Nicácio faz é uma livre adaptação da lenda, talvez a enriquecendo. Não concentra-se apenas no enredo em que Catirina, grávida, deseja a língua do mimoso, o boi predileto do patrão. Embora não fuja dele.

Caminho natural da publicação seria adentrar o ambiente de escolas públicas e privadas, contribuindo para a difusão da cultura popular do Maranhão, em linguagem acessível para todas as idades. A revista tem a preocupação didática de, ao final, explicar detalhes, propor atividades e o consequente aprofundamento dos leitores em temas abordados na história em quadrinhos.

Autor, entre outros, de A lenda da carruagem encantada de Ana Jansen, sobre outra conhecida lenda destas plagas, o autor já tem outros projetos mixando as tradições do Maranhão e a nona arte. Mas cada coisa a seu tempo e agora é tempo de São João.

A noite de autógrafos será regada a mingau de milho e na ocasião, uma arte original da hq será sorteada entre os presentes. A revista custa R$ 20,00.