Rui Mário e seu Quarteto, na abertura do Lençóis Jazz e Blues Festival 2025, ontem (21), no Teatro Sesc Napoleão Ewerton – foto: Zema Ribeiro
Rui Mário chorou no palco. Pura emoção. Como a que fez sentir o público presente. Era a primeira vez dele ali, em um show solo, ele geralmente visto como músico acompanhante e diretor musical de um monte de artistas, como ele mesmo lembrou.
Ao lado de sua sanfona, seu nome figura em fichas técnicas de álbuns como “Shopping Brazil” (2004), de Cesar Teixeira, “Dente de ouro” (2005), de Josias Sobrinho, e “Olho de boi” (2009), de Gildomar Marinho, para citar poucos.
Acompanhado do irmão Tião Lima (zabumba) e do sobrinho Vinícius Lima (triângulo e pandeiro), o núcleo pé de serra de seu quarteto, mais o groove dos ensandecidos Dedé Valença (baixo) e Marcones Pinto (guitarra), Rui Mário (sanfona) fez um show vibrante, dançante (pena estarmos sentados nas poltronas de um teatro em vez de “numa sala de reboco” ou numa praça da cidade), num passeio entre os guarda-chuvas que se convencionaram chamar forró e jazz.
A base do repertório desfilado pelo quinteto foi o álbum “Baião de doido”, que Rui Mário lançou este ano. Começaram pela faixa-título e desafilaram um rosário de referências e reverências que passou por Seu Raimundinho (pai do sanfoneiro e patriarca de uma família de músicos, sei lá quantos trios de forró pé de serra é possível formar ao longo dos galhos de sua árvore genealógica) — “Frevo pro Seu Raimundinho” —, pela filha Maria Eduarda (muitos familiares do músico na plateia) — “Xote desencabulado” — e pelo colega de instrumento Eliézio — “Meu nobre Eliésio” —, outra figura fácil em fichas técnicas de discos da música popular brasileira produzida no Maranhão, ídolo e amigo “que vivia lá em casa, chegava às cinco da manhã, aí está meu pai que não me deixa mentir; aprendi muita coisa com ele”, lembrou Rui Mário.
A emoção de Rui Mário não era jogo de cena para conquistar plateia. Suas lágrimas, no entanto, não se confundiam com timidez: no papel de frontman, o artista estava à vontade, evocando um Jimi Hendrix (1942-1970) na desenvoltura: certamente o americano tocaria daquele jeito se tivesse nascido no Nordeste brasileiro e fosse sanfoneiro em vez de guitarrista. O maranhense só não usou os dentes para fazer soar seu fole.
No bloco dedicado a Hermeto Pascoal (1936-2025), homenageado da edição 2025 do Lençóis Jazz e Blues Festival, Rui Mário equilibrou-se entre a conhecidíssima “Bebê”, em inspirado arranjo, e uma menos óbvia, e tão interessante quanto, “Suíte Norte Sul Leste Oeste”.
“Eu sempre quis dizer isso”, Rui Mário agora ria, enquanto agradecia à produção do festival e anunciava sua saideira, incitando o público a pedir mais uma. “E agora, que não tem no repertório?”. Acompanhado apenas dos parentes, formando um dos trios de forró pé de serra possíveis na árvore genealógica de Seu Raimundinho, antes da foto de costas para o público, atacaram o “Toque de pife”, de Dominguinhos (1941-2013), outra referência fundamental para qualquer sanfoneiro. E a apresentação de ontem foi mais um atestado de que Rui Mário não é um sanfoneiro qualquer.
A noite de abertura da edição 2025 do Lençóis Jazz e Blues Festival aconteceu ontem (21) no Teatro Sesc Napoleão Ewerton. O primeiro show da noite foi do Tiago Fernandes Trio — ele ao violão sete cordas, mais Valdico Monteiro (percussão) e Victtor Sant’anna (bandolim) —, que se apresentou no hall do Condomínio Fecomércio, recepcionando o público. Um show sóbrio e elegante, que incluiu temas como “Canto de Ossanha” (Baden Powell e Vinícius de Moraes), “Samba do avião” (Tom Jobim) e “Boi de Catirina” (Ronaldo Mota).
A noite foi encerrada pelo Mark Lambert Trio, num passeio por rock, jazz e blues, entre temas de nomes como Al Green e Ray Charles (1930-2004), entre outros. O líder, cantor e guitarrista radicado há oito anos em São Paulo, conquistou a plateia de cara, quando se apresentou, brincando: “eu sou norte-americano, ninguém é perfeito”.
Ladeado por Glécio Nascimento (baixo) e Max Sallum (bateria), o uso de pedais de efeitos pelo guitarrista e pelo baixista — a quem Lambert se referiu muitas vezes ao longo da apresentação — faziam o power trio soar por vezes como a eletrônica dos alemães do Kraftwerk. Dançamos sentados.
A programação — inteiramente gratuita — do Lençóis Jazz e Blues Festival 2025 continua sexta-feira (24), às 20h, na Concha Acústica Reinaldo Faray (Lagoa da Jansen). As atrações são o bandolinista Wendell de La Salles, o Jayr Torres Quarteto e o mineiro Beto Guedes.
A etapa Barreirinhas acontece na Avenida Beira-Rio, dias 31 de outubro e 1º. de novembro, também a partir das 20h; na primeira noite por lá as atrações são Luciana Pinheiro, Vanessa Moreno e Arismar do Espírito Santo e Morgana Moreno; na noite de encerramento se apresentam o Jota P Quarteto, Alice Caymmi e os americanos JJ Thames & Prado Brothers Band.
O poeta Fernando Abreu e o guitarrista Lucas Ferreira em apresentação no Teatro Cazumbá, ano passado – foto: divulgação
Fã incondicional de Robert Nesta Marley e Robert Allen Zimermann, os dois “Bobs” mais influentes da música mundial, o poeta maranhense Fernando Abreu acalentou durante anos a ideia de fazer um recital com canções dos dois artistas entremeados com poemas de sua autoria que de alguma forma dialogassem com as canções. Na cabeça tinha o título e o repertório, faltavam apenas a hora e o lugar certos.
Há três anos, a convite da jornalista, produtora e DJ Vanessa Serra, o poeta levou da cabeça para o palco o recital “Bob & Bob – I and I”, na retomada do projeto Vinil e Poesia, voltado para as conexões possíveis entre o texto poético e a canção popular. O resultado foi animador o suficiente para garantir ímpeto para insistir na proposta.
A segunda apresentação se deu ainda em 2023, no Teatro Cazumbá, onde, tal como na estreia, Fernando Abreu subiu ao palco munido de seu próprio violão, acompanhado pelo jovem guitarrista Lucas Ferreira, sobrinho do poeta, compositor, factotum e vocalista da banda roqueira Babycarpets, ex-garotos de vinte e poucos anos ligados em psicodelia, experimentação, Stooges e – Bob Dylan.
Nesta quarta-feira, ainda no clima das comemorações pelos 80 anos de nascimento de Bob Marley (1945-1981), o showrecital está de volta, dessa vez como atração do projeto Quarta no Solar. Mas o que era uma dupla dessa vez ganha ares de banda folk, com a adição de contrabaixo, cozinha rítmica e um inusitado violino, fazendo referência ao clássico “Desire”, álbum lançado por Dylan em 1976 onde o instrumento pontifica em todas as nove faixas, pelas mãos da enigmática Scarlet Rivera. O “sarau” conta ainda com a participação especial de Aziz Jr., tocando “Negro Amor”, versão de Péricles Cavalcanti e Caetano Veloso para “It’s All Over Now, Baby Blue”, imortalizada por Gal Costa em “Caras e Bocas” (1977).
Durante cerca de uma hora, a trupe passeia por várias fases da extensa obra de Dylan e Marley, costurando canções e poemas pinçados dos livros do poeta, à exceção de dois inéditos que estarão em um novo livro, a ser publicado ainda neste ano. Além de “Negro Amor”, o repertório ganha também “Señor”, em versão despojada mais próxima da leitura de um Willie Nelson. Na “faixa-bônus” de encerramento permanece a cáustica “Babylon System”, de Marley: “We refuse to be/ what you wanted us to be/ we are what we are/ that’s the way it’s going to be”. (“Nós nos recusamos a ser/ o que vocês querem que a gente seja/ nós somos o que somos/ e é assim que vai ser”).
De um total de 11 canções, oito são cantadas no inglês original. As exceções são “Small Axe”, canção guerreira dos primórdios dos Wailers que virou “Machado Afiado”, na versão livre de Abreu em parceria com o poeta Celso Borges (1959-2023). O célebre refrão do hino imortalizado pela banda The Gladiators ganha sabor marcadamente regional, mas não menos ameaçador: “você me dá pão e circo/ querendo se dar bem/ mas o pau que dá em Chico/ dá em Francisco também”.
Da fase cristã de Dylan, “Um dia você vai servir a alguém” é a segunda canção entoada na língua pátria, versão de outro convicto dylanófilo, Vitor Ramil, para “Gotta serve somebody”.
A trinca se completa com a longa “Simple Twist of Fate”, onde a dupla de poetas se permitiu um nível tal de liberdade a ponto de homenagear o cantor Chico Maranhão, que aparece citado na música. Libertinagens à parte, os poetas acreditam ter se mantido fiel ao espírito da canção gravada por Dylan em “Blood on the tracks”, de 1975.
Além de reafirmar conexões entre poesia e música popular, o recital presta um despretensioso tributo a dois heróis culturais do século XX. Dylan, um dos construtores do rock como obra de arte, ganhador do Nobel, e Marley, o único superstar mundial egresso de um país na periferia do capitalismo, autor de “Exodus”, disco considerado o mais importante do século XX pela revista Time. “Não tenho conhecimento de nenhuma iniciativa que una a obra desses dois bardos pop, que tem muito mais a ver entre si do que seus primeiros nomes: uma obra capaz de despertar identificação com pessoas do mundo inteiro em gerações diferentes. É isso que celebramos sempre que subimos ao palco com essas canções”, pontua Fernando Abreu.
Roots, rock, reggae! – Quando o rasta diz “I and I”, está dizendo: eu, meu espírito em unidade com o sagrado e com todas as coisas. Quando Bob Dylan gravou “Infidels”, em 1983, levou dois rastamen da gema para o estúdio: os lendários Sly Dunbar e Robbie Shakespeare (1953-2021). A presença da dupla garantiu que o reggae se insinuasse por todas as oito faixas, a partir do baixo e da bateria, incluindo a clássica “Jokerman”. Quem tiver ouvidos que ouça. Mas não é tudo: o disco, que pode ser chamado (com algum exagero, claro), de o disco “rasta” de Bob Dylan, traz ainda uma canção de complexo misticismo, chamada justamente “I and I”, uma canção que ameaça se transformar em reggae a cada virada de bateria.
Dylan deve ter sacado que a expressão rasta traduz o mesmo sentimento de comunhão universal a partir da experiência individual experimentado, por exemplo, por Walt Whitman (1819-1892), e que resultou em “Folhas de Relva”, especialmente no poema “A Canção de Mim Mesmo”. O mesmo que termina dizendo “sou amplo, contenho multidões”. Pois não custa lembrar que o último disco do agora octogenário bardo, “Rough and Rowdy Ways”, lançado em 2022, traz uma canção calcada na obra de Whitman, chamada “I Contain Multitudes” (Eu Contenho Multidões). I and I. O Ciclo se fecha.
Já se vão 50 anos desde que Ney Matogrosso despontou no cenário artístico brasileiro, com o rosto pintado e trejeitos no palco que desagradavam os generais de plantão, à frente do grupo Secos e Molhados.
Ontem (18) ele se apresentou em São Luís, no Pavilhão de Eventos do Multicenter Sebrae, para deleite do ótimo público presente, produção da 4Mãos. O show da turnê “Bloco na Rua” durou cerca de hora e meia em que o cantor atestou porque é, desde sempre e ainda, um dos mais interessantes artistas brasileiros em atividade.
A quem achar pouca a duração do show, é música o tempo inteiro. E dança. Com uma projeção emuldurando. Ney Matogrosso não conversa nem desconversa. Fora cantar ao longo de todo o show (parece redundância, mas não é), deu apenas boa noite, anunciou o fim do show, voltou para o bis e disse o quanto era incrível cantar para aquela plateia.
Um espetáculo e tanto, aberto por “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”, do capixaba Sérgio Sampaio (1947-1994), de onde vem o título do show e do álbum lançado por Ney Matogrosso em 2019.
O roteiro do show demonstrou a versatilidade que marca a trajetória do artista, que sempre gravou o que quis, sem se prender a rótulos ou escolas: continuou por pérolas do rock brasileiro, como “Jardins da Babilônia” (Lee Marcucci/ Rita Lee) e “O Beco” (Bi Ribeiro/ Herbert Vianna), as três primeiras cantadas na mesma sequência do álbum.
Performer nato, Ney Matogrosso tem pleno domínio do palco, é senhor da situação. O figurino de Lino Villaventura, o mesmo com que aparece na capa de “Bloco na Rua”, fazia esvoaçar uma espécie de saia de franjas ao longo da apresentação. Seu balé particular está a serviço de sua música e vice-versa e sua excelência está em ambos.
Ney Matogrosso estava acompanhado por Sacha Amback (direção musical e teclado), Marcos Suzano (percussão), Felipe Roseno (percussão), Dunga (baixo), Tuco Marcondes (guitarra), Aquiles Moraes (trompete) e Everson Moraes (trombone).
“Já Sei” (Alice Ruiz/ Alzira E./ Itamar Assumpção), “Pavão Mysteriozo” (Ednardo), “Tua Cantiga” (Chico Buarque), “A Maçã” (Marcelo Motta/ Paulo Coelho/ Raul Seixas), “Yolanda” (versão de Chico Buarque para composição de Pablo Milanés), “Postal de amor” (Fausto Nilo/ Raimundo Fagner/ Ricardo) e “Ponta do Lápis” (Clodo Ferreira/ Rodger Rogério) formaram outro bloco na mesma sequência do álbum, continuada por “Corista de Rock” (Luiz Sérgio/ Rita Lee), “Já Que Tem Que” (Alzira E./ Itamar Assumpção), “O Último Dia” (Billy Brandão/ Paulinho Moska), “Inominável” (Dan Nakagawa), “Sangue Latino” (João Ricardo/ Paulinho Mendonça) – única do Secos e Molhados que compareceu ao repertório do show –, e “Como dois e dois” (Caetano Veloso”), que praticamente fechou o show, dando um pequeno pulo em relação ao repertório do álbum.
Das poucas vezes em que falou, Ney Matogrosso anunciou o fim do show, repito: “foi um prazer inenarrável cantar para todos vocês”, disse, antes de emendar “Poema” (Cazuza/ Frejat) e seu maior hit, “Homem Com H” (Antonio Barros). Ao ser chamado para o bis, educadamente disse: “já cantamos tudo o que havíamos ensaiado, mas eu vou cantar mais duas porque eu gosto”, e mandou “Roendo as Unhas” (Paulinho da Viola) e “Rua da Passagem” (Arnaldo Antunes/ Lenine).
Das não poucas vezes em que chorei ao longo da apresentação, prefiro não revelar e salgar o jornalismo e misturá-lo a questões pessoais, como as lembranças de minha avó Maria Lindoso (1939-2020), fã declarada que não chegou a ver um show ao vivo, mas me ensinou a admirar Ney Matogrosso.
*O jornalista assistiu ao show a convite da produção.
Neste sábado (19) o cantor apresenta mais uma edição do tradicional tributo com que reverencia o artista baiano desde 1992
O cantor Wilson Zara. Foto: divulgação
Considerado um dos pais do rock brasileiro e até hoje um de seus nomes mais importantes, o baiano Raul Seixas (1944-1989) deixou um vasto legado que vai além da música: a filosofia raulseixista influencia artistas surgidos após sua passagem por este planeta e também gente comum, que se afina com as ideias do “maluco beleza”, assim chamado em referência a um de seus maiores sucessos.
Toda essa herança cultural será celebrada em mais uma edição do já tradicional “Tributo a Raul Seixas”, que o maranhense Wilson Zara apresenta ininterruptamente desde 1992 – durante a pandemia de covid-19 o evento teve edições online.
“A gente costuma fazer um show longo, eu e a banda que já está comigo na missão há algum tempo, passeando pelos diversos álbuns e fases da carreira de Raul Seixas, artista que se aventurou por diversas veredas da música brasileira, muitas vezes abrindo-lhes as picadas, para que depois a gente pudesse passear. O legado de Raul permanece vivo”, afirma Zara, que costuma alinhar grandes hits de Raul Seixas, até hoje presença marcante em programas de rádio, mas também lados b do roqueiro baiano, que iniciou sua trajetória ainda na década de 1960, em Salvador/BA, à frente do seminal Os Panteras, quando ainda assinava Raulzito, e com quem lançou um único disco (1969).
Foi como Raulzito, aliás, que Raul Seixas assinou composições e produções para artistas como Balthazar, Diana, Odair José, Edy Star, Jerry Adriani (1947-2017), Miriam Batucada (1947-1994) e Sérgio Sampaio (1947-1994) – os três últimos, seus colegas de Sociedade da Grã Ordem Kavernista, que gravou o disco “Apresenta Sessão das 10” (1971).
Este ano o “Tributo a Raul Seixas” acontecerá dia 19 de agosto (sábado), às 22h, no Soul Lounge (Av. Litorânea). Na ocasião, Wilson Zara (voz e violão) estará acompanhado por Mauro Izzy (baixo), Moisés Ferreira (guitarra), Marco Moraes (teclados) e Marjone (bateria). A noite contará ainda com a participação especial da Durrock Band. Os ingressos custam R$ 30,00, à venda no local e na Bilheteria Digital (meia para estudantes com carteira e demais casos previstos em lei somente no local).
Serviço
O quê: show “Tributo a Raul Seixas” Quem: o cantor Wilson Zara e banda Quando: dia 19 de agosto (sábado), às 22h Onde: Soul Lounge (Av. Litorânea, Calhau) Quanto: R$ 30,00. Ingressos no local e na Bilheteria Digital (meia para estudantes com carteira e demais casos previstos em lei somente no local). Informações: (98) 99975-3999
Sábado passado (27) o Reviver Hostel (Rua da Palma, Praia Grande) foi palco do show de lançamento de “O Homem Que Virou Circo” (2023), novo álbum do cantor e compositor Marcos Magah, produzido pelo conterrâneo Zeca Baleiro.
O trabalho encerra uma trilogia, iniciada com o álbum de estreia “Z de Vingança” (2012) e continuada com “O Inventário dos Mortos (Ou Zebra Circular”) (2015). “O Homem Que Virou Circo” conta com participações especiais de Odair José (em “Estação Sem Fim”) e Bárbara Eugênia (em “As Coisas Mais Lindas do Mundo”, parceria dele com Celso Borges [1959-2023]).
Entre a doçura e a revolta, como salienta o produtor, o terceiro álbum de Magah preserva suas características essenciais, que tem marcado sua trajetória solo – o cantor integrou a banda Amnésia, com que ajudou a consolidar uma cena punk em São Luís, a partir do bairro do Cohatrac – com seu passeio desenvolto entre o punk, o rock e o brega, com letras inteligentes e instigantes.
Na véspera do show de lançamento, que acabei perdendo (por motivos de força maior), acompanhei um pedaço do último ensaio no Estúdio 2F Sonato (Vinhais). Na ocasião, a convite da produção, conversei com Marcos Magah e Zeca Baleiro – e por motivos idem, só agora consigo postar a conversa.
Fotos: Patrícia Castro
ENTREVISTA: MARCOS MAGAH E ZECA BALEIRO
ZEMA RIBEIRO: Antes de Baleiro ir se aventurar em São Paulo em busca do sonho de viver de música, teve uma trajetória aqui por barzinhos na noite de São Luís, que era mais ou menos a mesma época em que o Magah ajudou a consolidar ali a cena punk, a partir do Cohatrac, com a banda Amnésia. Naquela época vocês já se encontravam? Como é que era essa relação na década de 1980? MARCOS MAGAH: Rapaz, a gente se via, cidade pequena, a gente chegou inclusive a dividir palco, acho que em 1990. É 89, 90, no festival São Luís Rock Show e a gente dividiu no Coqueiro [bar], que era o festival muito louco de rock and roll [risos], e a gente dividiu o palco lá uma vez, nesse festival que eu me referi agora. São Luís, cidade pequena, todo mundo acaba se olhando em algum momento. Lá na frente, a gente acabou se encontrando novamente no filme do Neto Borges, que foi o “Ventos Que Sopram”, quando a gente começou a pensar em trabalhar junto.
ZR: Baleiro, você sempre teve uma atenção muito grande, voltada sobretudo para artistas do teu lugar, São Luís, do Maranhão, e ao longo desses anos de carreira, 26 já, isso se contarmos só a partir do disco de estreia, e você sempre deu uma força, colaborou, produziu, enfim, ajudou também a colocar nomes aí no radar. O que te chamou a atenção na obra de Magah que você resolver produzi-lo? ZECA BALEIRO: Bom, e aí, Magah? Falo a verdade ou minto? [risos]. Só te corrigindo: não era sonho, não, era desespero mesmo. Quando eu saí daqui para São Paulo era uma tentativa de alargar os horizontes, e falo isso sem desabonar a cidade que eu amo, que eu adoro e tal, mas eu tava num momento pessoal muito confuso, muito conturbado e numa vibe muito sexo, drogas e rock and roll, mais drogas do que sexo na verdade [risos]. Eu fui para buscar outros caminhos, para me aventurar, para buscar crescimento, desenvolvimento para mim, como pessoa, como artista e por outras demandas também que não vêm ao caso. Lá no meu bairro, no Monte Castelo, tinha uma turma também, Ricardo, me ajuda aí a lembrar [pede para Magah], que eram de uma banda, ali perto da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, a turminha que se reunia ali se correspondia com Arnaldo Baptista. Tu [apontando para Magah] era da Amnésia, tinha a Ânsia de Vômito, os nomes eram maravilhosos [risos], e eu era amigo deles, assim, amigo de bairro, da gente se encontrar e tal. Naquele tempo, não só em São Luís, no Brasil de uma maneira geral, essas prateleiras da música eram muito essa segmentação, era até de uma natureza mais social, a galera do rock não se misturava com a galera do samba, que não se misturava com a galera da chamada MPB, que quiseram chamar de MPM aqui, e eu era aberto. Eu gostava de música popular, me interessava por música popular de uma maneira geral, então eu era tanto amigo de Joãozinho Ribeiro, que é um cara que cultua a Velha Guarda, Noel [Rosa, compositor (1910-1937)] e tal, como podia ser amigo de Ricardo e de Magah, de outros caras. Masa gente não foi de fato, assim, amigos. A gente era ali contemporâneo, olhava ali com o interesse aquela cena, a gente esteve juntos nesse festival, eu lembro até que eu entrei com a minha banda, todos pintados, e todo mundo ficou “estão pensando que são os Secos e Molhados?”.Mas era uma brincadeira, uma provocação. Depois, o Magah esqueceu de contar, que ele perambulou por São Paulo e nessa época o Fernando Abreu, parceiro, poeta parceiro comum dos dois, escreveu: “Zeca, te lembra de Magah? Ele tá em São Paulo”. Eu tava na época viajando muito, a gente não conseguiu se encontrar, mas ele mandou três letras por e-mail. Uma delas virou a nossa primeira parceria, “Eu Chamo de Coragem”, está no “O Amor no Caos – volume 2“, aí veio o documentário, a gente se aproximou, ele mostrou umas canções e eu falei “pô, vamos fazer repertório”, e foi assim.
ZR: Agora depois dessa tua ida para São Paulo tu acabou te tornando uma espécie de embaixador, né? ZB: Eu detesto esse negócio de embaixador.
ZR: É, detesta, mas assim, é porque tu nunca negou a mão a quem precisou. ZB: É porque é amor mesmo, cara. O cara pode ser capixaba também, e eu aliás fiz, por sinal, com a obra de Sérgio Sampaio. Naturalmente, tem que ter um entendimento da vivência do cara, que pode ser Magah ou pode ser Antonio Vieira (1920-2009), da dificuldade dos meios de produção, que mesmo hoje São Luís ainda é uma cidade com muita dificuldade, como é Aracaju, como é Maceió, como é qualquer cidade menor assim, né? Não é uma metrópole como Rio, São Paulo, Belo Horizonte. Agora essa coisa de embaixador, desculpa, até posso ter sido descortês, mas é porque isso de embaixador passa um pouco uma ideia de oficialidade, sabe? E eu detesto qualquer tipo de oficialidade [risos]. Eu não sou embaixador de nada. Eu posso gostar do cara sendo maranhense, piauiense ou cearense. Naturalmente eu não me afastei, como outros artistas fizeram um afastamento, às vezes até normal, né? Por exemplo, Alcione, de quem eu sou muito fã, hoje é mais associada à cultura musical do Rio, à Mangueira do que aqui, embora ela nunca vá deixar de ser maranhense, profundamente maranhense. Por uma natureza minha mesmo, assim, pessoal, eu gosto de estar aqui, sinto um pertencimento, me sinto fazendo parte de uma coisa, me sinto inserido nisso aqui como o meu lugar, mesmo que eu vá morar na Romênia. Uma vez dividindo os microfones, o palco, a cena com Ferreira Gullar (1930-2016), um programa que o Tony Bellotto tinha, não sei se tem mais, na TV Cultura, “Afinando a Língua”, juntou o Ferreira Gullar e eu, e a gente conversando e o cara perguntou pro Gullar: “a origem importante, Ferreira Gullar?”, e ele falou: “rapaz, tudo que a gente tem, a única coisa que a gente tem, é a origem, é onde a gente nasceu, de onde a gente veio, o lugar ao qual a gente pertence, todo o resto é incerto, agora a origem é definitiva”. Eu achei isso lindo. Eu repito isso como um mantra. Eu nunca neguei minha origem.
ZR: Sábio Gullar. Esse reencontro no decorrer do processo feitura do documentário do Neto Borges, o “Ventos Que Sopram”, eu até acompanhei parte das gravações aqui em São Luís, é impossível a gente não lembrar de um parceiro comum também de vocês, Zeca até fez a devida homenagem no show de ontem, a Celso Borges. Queria um depoimento de vocês sobre essa figura tão importante para todos nós. MM: Rapaz, eu conheci Celso quando eu tava em São Paulo, essa ida a que Zeca se referiu há pouco. Aquela história da cidade pequena, que todo mundo se vê e tal. Mas às vezes não tem contato, uma intimidade, então. E aí em São Paulo, eu fui chamado para fazer uns shows que era eu, ele e o poeta Reuben, o CavaloDada. E aí nós fizemos uma série de quatro shows juntos lá e nessa história de fazer show, o Reuben, eles estavam os dois trabalhando, eu me lembro bem dessa cena, principalmente esses dias aí, e ele me chamou, o Reuben, né? Eles iam fazer uma história lá que eles recitavam poesia e eu cantava as canções, aquelas divisões que se faz, né? E o CavaloDada falou para ele assim, “cara, tu precisa olhar as letras do Magah”, e ele falou para mim assim: “então recita aí alguma coisa”, aí eu falei uma dessas letras que eu faço [risos] e ele ficou assim, gostou muito, e aí era para ser só um show e a gente acabou fazendo quatro e surgiu o lance da amizade. E a amizade da gente era uma coisa muito bacana, porque Celso era muito mais novo do que [risos]. Ele tinha uma energia, um espírito assim, eu me lembro de uma vez a gente fazendo uma canção chamada “Camboa” e ele escreveu um verso, a gente escrevia um de frente para o outro, cada um com seu papelzinho assim, e ele escreveu um verso, ele ficou tão feliz, cara, que ele subiu na janela. E eu ficava dizendo “Celso, desce daí”, eu preocupado, era uma pessoa mais velha [risos]. Então era assim, cara, era uma relação realmente intensa, e também da mesma forma, tínhamos discussões maravilhosas. Para mim é bem complicado essa coisa de pensar que Celso não tá mais aqui. Ele foi um cara muito importante para mim porque ele nunca se dava por contente. Eu mostrava algo para ele, ele dizia “não, tu faz melhor, estica isso para cá, leva pr’ali”, ele tinha essa coisa, né? E aquela coisa de um bom humor, que jogava a gente para frente. E tava sempre disposto, qualquer projeto que eu dava o toque, vamos fazer, às vezes as minhas propostas absurdas para testar a paciência dele, ele falava “eu topo”, e eu dizia “pô, esse cara é mais maluco do que eu, mano”. É um amigo e parceiro assim, cara, que realmente… as nossas conversas, que iam para muito além das questões artísticas, de criação e tal, coisa de amizade mesmo, de falar sobre coisas, amor, dinheiro principalmente. A gente falava muito de dinheiro, porque a gente não tem nenhum. Quem não tem dinheiro geralmente só fala de dinheiro e a gente conversava muito sobre isso. Meu amigo querido, meu irmão. ZB: Pra mim ainda é um pouco difícil falar sobre Celso porque ainda estou muito sob o efeito do choque. Toda morte é, de certa maneira, chocante, por mais até previsível que seja, e no caso da do Celso tomou todos nós de surpresa. Foi muito imprevisível e essas pessoas que têm uma vitalidade, uma intensidade muito grande no viver, a gente demora a acreditar. Eu perdi alguns amigos ao longo desses últimos anos e alguns deles eu até hoje não realizei, é difícil realizar. É difícil vir a São Luís, por exemplo, e imaginar que eu não vou encontrar Celso, que a gente não vai se provocar mutuamente, às vezes até brigar como a gente brigava, porque era uma relação de irmão mesmo. “Baleiro, esse disco aí eu tou achando ele meio repetitivo”, “ah, vai se foder, e esse teu último livro aí é o quê, porra?”. Então era assim, era amor mesmo, uma relação de amor, porque não era superficial, era profunda, a gente falava o que tinha que falar. Celso é muito importante na minha trajetória musical, do Nosly, de muita gente. O Celso era um fazedor, né? Quando ele foi diretor da Rádio Mirante ele criou um programa, eu ainda estudava, tinha 14 anos, estudava no Colégio Batista, e a primeira vez, 14, 15 anos, que eu toquei uma música minha. Eu era muito tímido. O Nosly, que era meu vizinho de bairro, ali, de rua, no Monte Castelo, era um pouco mais atirado, foi meu primeiro parceiro, falou: “Zeca, tem um programa na Rádio Mirante, chama “Contatos Imediatos”. Você vai, toca, aí três caras concorrem na noite, e aí as pessoas telefonam, anos 1980, 83, 84, e o vencedor, quem tiver mais votos ganha uma máquina tira-teima da Kodak e um ticket para comer na Churrascaria O Laçador. Aí eu fui, lembro que nessa noite Nosly foi me acompanhando, dois violões, um baiãozinho, chamava “Sem Pé Nem Cabeça”, foi a primeira vez, e Celso “pô, interessante essa pegada e tal, vamos encontrar”. Ele que coordenava, dirigia o programa, “vamos!”. E aí foi uma saraivada, a gente fez oito músicas em sequência, eu, ele e Nosly, que deu origem ao nosso primeiro show, “Um Mais Um”. É um cara que tá na origem de toda a nossa história. Eu lembro que a primeira vez que eu ouvi Fauzi [Beydoun, vocalista da Tribo de Jah] foi nesse programa, tocando “Neguinha”, nem era um reggae ainda, era uma balada. Acho que César Nascimento também, a primeira vez que eu vi o César foi assim. Era um cara que abria muitas portas, tinha essa coisa meio visionária. Quando eu comecei na música, Celso já tinha um certo sucesso, já era uma personalidade, já aparecia na tevê, já tinha uma aparição aqui e acolá, um programa, a Revista Guarnicê, ele já era uma personalidade pública e eu tinha simpatia pela figura dele, pelas coisas que ele fazia, nos aproximamos. Nossas histórias se cruzaram em São Paulo também, ele foi um pouco antes, quando eu cheguei em São Paulo, ele me falou: “Zeca, conheci um cara aí da Paraíba, não tem nada a ver contigo, mas tem tudo a ver contigo, tu vai entender. Chama-se Chico César, trabalha na revista Elle, a gente se conheceu aqui na Rádio Gazeta, ele veio gravar um programa, vocês dois vão se amar”. Aí eu cheguei em São Paulo. Fui de carro, com a Solange, minha companheira na época, e no caminho o amplificador, nos sacolejos das estradas do Piauí, a gente passou 20 dias viajando num Fiat Uno, chegou quebrado em São Paulo e eu precisei de amplificador. Liguei para os amigos e Celso disse: “rapaz, liga para aquele cara, ele deve ter, o Chico César, liga para ele”. Ele me deu o telefone, liguei para o Chico, nos encontramos lá na Paulista, na frente da TV Gazeta, fui até a casa dele, no meu carro, lá em Santo Amaro, que era longe para cacete, passamos a noite tocando, eu, ele e Celso tocando e ele me emprestou o amplificador. Enfim eu pude fazer o show, importante, passamos a noite tocando e realmente ficamos encantados um com o outro. Entendi exatamente o que o Celso queria dizer. Éramos diferentes, mas éramos muito afins. E ele estava tão certo que a nossa amizade permanece até hoje, inclusive vai resultar num disco até o fim do ano, início do ano, a gente vai lançar. Então o Celso é um cara muito importante, tem essa coisa de agregar pessoas. Isso é muito importante na cena cultural de qualquer lugar.
ZR: Curioso essa essa memória de vocês de Celso, essa intensidade com que ele vivia e produzia. Quer dizer, partiu fisicamente ainda no auge da capacidade criativa e está presente no disco mais novo do Magah, “As Coisas Mais Lindas do Mundo”. Queria agora focar um pouquinho no álbum, eu lembro que quando tu lançaste o “Z de Vingança”, há mais de 10 anos, já falava numa trilogia, né? Que depois veio “O Inventário dos Mortos” e agora “O Homem Que Virou Circo”. Acho que isso demonstra uma organização muito grande. Queria que você falasse um pouco desse processo, de criação do álbum, de composição. Como é que foi isso? MM: Rapaz, eu vinha escrevendo. Eu tinha a ideia de lançar esse disco, inclusive Celso foi comigo uma vez no estúdio, até para registrar algumas canções. Eu tinha a ideia do disco, o tema, algumas canções como “Ela Nunca Teve Ninguém”, eu já tinha algumas canções, “O Homem Que Virou Circo” e tal. E eu tinha ideia de registrar, de fazer esse disco. O problema é que toda vez que eu entrava no estúdio eu não achava uma liga com um produtor. O cara achava esquisito aquilo ali, queria me propor uma outra coisa lá e eu falava: “não cara, eu quero fazer isso aqui, independente de [qualquer opinião que] não, que isso aqui não vai dar certo”. Eu falei: “não, cara, eu não eu não dei certo até agora, eu não estou preocupado com isso, não, velho. Eu tô querendo registrar o disco, não interrompe a minha felicidade” [risos]. E aí eu tentava sempre, três tentativas com produtores diferentes e tal, até que encontrei com o Zeca e a gente começou a falar sobre o disco, que tem uma coisa que eu e ele, a gente gosta de coisas parecidas, assim, a gente não vê muito fronteira de música e tal. E quando a gente começou a pensar o disco eu remodelei muitas canções. Essa parceria minha com Celso, eu adoro essa música, sabe?, eu gosto demais dessa música. Eu chamei ele, essas coisas do Celso, é impossível não contar alguma coisa, “eu quero fazer uma música assim”, e ele me perguntou pelo telefone “onde é que tu tá?”; aí eu digo: “cara, eu tô aqui na casa tal”; ele: “me aguarda que eu tô chegando aí!” [risos]. Isso era Celso. E aí eu comecei a remodelar as canções, ia amostrando para Zeca, algumas coisas, “isso aqui tá bom, isso aqui não e tal”. E acabou virando esse disco. Eu fiquei muito satisfeito assim com o resultado, porque eu gravei exatamente o que eu queria gravar, não sei se eu tô respondendo tua pergunta. Mas outro dia eu vi uma coisa engraçada, o cara disse que eu que eu me vendi e tal. Eu digo: “pô, eu preciso olhar o comprador”, não tenho ideia de quem me comprou até agora, que eu fiz concessão. Pô, cara, se tu for escutar o disco, eu não entendo, não tem concessão, ali eu fiz exatamente o que queria, a gente nunca conversou sobre “não, vamos mudar isso aqui”, não. A gente não é bobo, né,cara? Não faria sentido. Não tinha porquê. Umas coisas assim engraçadas, quando a gente tava fazendo o disco, talvez valha o registro, é que vem eu e Zeca dentro do carro e eu falei assim, “pô, Zeca, eu quero te dizer uma coisa; rapaz, eu gostaria que tu não cantasse no disco”. E ele falou: “bicho, eu estou pensando a mesma coisa” [risos].
ZB: Todo disco que eu produzo eu canto e eu desde o início falei: “Magah, acho que nada a ver, vamos buscar outras pessoas, tentar o Odair José, Fernando Mendes, alguém com quem você tenha uma afinidade”. Eu preferi tocar, toquei teclado, percussão, assobiei no disco, criei as linhas de baixo, mas cantar, não [risos]. Eu cantar era um caminho fácil, óbvio. MM: Nós dois estávamos pensando a mesma coisa.
ZR: Como é que foi a costura das participações especiais de Bárbara Eugênia e Odair José? ZB: O Magah mostrou as músicas e tal, eu mandei as quatro que tinham esse acento mais brega descarado, embora o brega do Magah seja muito sofisticado, mas tem esse flerte com essa música mais popular, então mandei quatro e falei: “ouve aí, Odair!”, e ele falou: “eu gostei dessa, essa aqui é a minha cara”. E o desgraçado do Odair é tão talentoso, bicho, é aquela coisa, a gente cola no clichê, na lenda que se forma em torno do cara, às vezes deixa de ver o real, o cerne da coisa. Ele mandou a música transformada. Para melhor! Ele deu uma melhorada, a música já era boa.
ZR: Quase vira parceiro. ZB: Quase vira parceiro. É. Eu até falei: “Odair, você não quer? Você fez o arranjo”. “Não, eu não quero, é só como eu li a música. Eu gostaria que vocês gravassem assim”. O Magah falou: “porra, ficou demais”. Ele releu a música, se identificou, pegou o violão e fez. Mostrei, falei: “vamos fazer exatamente o que o Odair fez, só que com banda: bateria, baixo, guitarra e órgão”. Ficou aquilo. Gênio, né? O cara que tem um entendimento da música, da canção, como poucas pessoas. E a Bárbara eu tava produzindo o disco dela, calhou de, no mesmo tempo. O disco do Magah durou uns três anos, porque a gente começou em janeiro do ano da pandemia. 2020, né? A gente gravou as primeiras bases de voz e violão no Estúdio Zabumba aqui, levei. E aí a pandemia veio e ferrou tudo, né? Fez a gente postergar tudo. Aí fui fazendo devagarinho, voltei, fizemos mais uma bateria de canções, foi mudando também o repertório. Magah dizia: “ah, eu fiz uma nova safra aqui que eu acho que tem mais a ver” e assim foi. E a Bárbara estava justo em processo, ele falou: “adoro ela, cara, adoro o timbre dela. Vamos achar uma música?”. Quando ele mandou a parceria com Celso, eu falei: “é essa aí, vai ficar linda na voz dela”; ele não queria nem cantar [risos]; “tá tão bonita que eu não vou nem cantar”, ele me disse; o disco é teu, tem que cantar; e ficou lindona, né? Parece uma música assim, um folk americano dos anos 50, 60, tem um traço especial.
ZR: Quando a gente ainda estava esperando Baleiro, eu estava vendo um pedaço do ensaio e vocês falaram numa coisa de não fazer concessões, de não pensar na coisa de transformar o trabalho do Magah para ser palatável. E aí teve uma mudança na banda e, “ah, agora tá soando como Magah”; e eu disse: pode botar Magah com a Filarmônica de Berlim que sempre vai ter uma coisa brega e punk ali, que é o traço dele. Isso facilitou a produção do disco, essa coisa de não ter que repensar muita coisa? ZB: Não. Dificultou [risos]. É o seguinte: tem dois tipos básicos de gente no mundo: o cara que mesmo certo tá errado e o cara que mesmo errado tá certo. Magah é do segundo time. Então, assim, musicalmente falando por exemplo, ele tem uma forma de respirar, uma compreensão do ritmo da música, muito particular. Tem outros artistas que são assim: Chico. Chico César, tocar com ele é super difícil, porque ele tem umas coisas que não são óbvias, de compasso, ele mete os compassos, e é intuitivo, coisa de origem, atávico, quebra a matemática, bota um compasso de 5 por 8 no meio de um 4 por 4, é um negócio assim, e Magah tem, a seu modo também, com essa viagem roqueira que ele tem, faz compasso muito louco. Teve uma música lá que eu falei assim: “essa aqui a gente não vai conseguir botar metrônomo, botar um clique para poder depois a banda gravar”. Então o que que eu fiz? É aquela “Eu Gosto de Ler a Bíblia”. Eu falei: “grava aí do teu jeito, respira do teu jeito, canta do jeito que tu acha, o povo lá que se foda, a banda lá”; aí a gente foi, passamos uma noite lá, o Kuka [Stolarski], baterista, ficou contando os compassos, “não, aqui tem um compasso de cinco, aqui tem um compasso de três”; eu falei: “escreve a partitura aí, bicho, trabalha”; aí ele fez todo o mapinha, mas ficou sensacional, porque ficou do jeito que ele faria mesmo. A gente não tentou fazer caber numa quadratura mais careta, mas conservadora, mais lógica. Não teve isso. O rock dele tá preservado. Agora, talvez até porque o cara tá ficando um senhor, as canções, tem uma canção ou outra com uma certa doçura, tem uma raiva, uma revolta aqui, mas tem uma doçura ali, faz parte também. Mas não tem esse negócio de concessão, isso é besteira. O rock precisa também, os amantes do rock, desse imaginário rock, precisam dessa coisa meio antissistêmica, assim, “você se vendeu”. Eu lembro, vou contar um episódio. Quando eu gravei o Charlie Brown Jr., que inclusive era rock, mas uma galera mais assim, ficou, teve um happening punk, assim, lá em Recife, o pessoal no carnaval se virou de costas na hora que eu toquei a música, eles queriam que eu tocasse “Vô Imbolá”, “Heavy Metal do Senhor”, essa faceta mais atrevida, mais rítmica, pós-mangueBit, aquela coisa. E quando eu toquei eles se viraram. E outro garoto em Londrina falou assim: “me decepcionei com você, bicho, você se vendeu para o mercado”. Aí eu falei: “cara, não, rapaz, você não tá entendendo o que é isso, isso é outra coisa”. Aí eu voltei lá três anos depois, ele tinha me perdoado com “Pet Shop Mundo Cão” (2002) [risos]. “Tá perdoado, tá perdoado”. Então tem essa coisa, faz parte, “o cara se vendeu”,a gente também tinha isso quando jovem, curtia uns caras, aí de repente, Rita Lee (1947-2023) era isso, era uma loucura com Mutantes, com o Tutti-Frutti, depois entrou Roberto de Carvalho, só com o tempo que você vai avaliar, aquela obra também é fantástica. Era mais pop, era mais radiofônica, era mais comercial. Mas ainda assim era brilhante, era sensacional. Então, essas avaliações fazem parte também desse imaginário do rock. É bom até, né? Tem uma cena maravilhosa no documentário do Jards Macalé. Perguntam ao [cantor e compositor Gilberto] Gil: “Gil, mas o quê que você acha, Macalé, esse artista que nunca fez concessão?”. “Nunca fez concessão, é? Eu não conheço ninguém que nunca tenha feito concessão”. Não tem como viver sem fazer concessão. Mas não é o caso aqui.
ZR: Magah em estado bruto, mas de algum modo também, lapidado. MM: Bruto, porém nem tanto. ZB: Os brutos também amam [risos]. Essa coisa da produção, eu não sou assim um produtor, no sentido tecnológico do termo, como Liminha é, como Brian Eno é e tal. Eu sou produtor no sentido de arregimentar, de orientar, de dar um caminho. E de respeitar o que o cara é, porque se for pra descaracterizar, então, ele que arranje outro. É para extrair o melhor dele, se eu puder fazer, ajudar nisso, eu tô dentro. Se for para estragar, arranje outro. MM: Tem uma coisa que perde o sentido, porque o que, no caso, atraiu um produtor como Zeca, foi aquilo que os caras acham que você deveria como produtor, descaracterizar. Se o que te atraiu foi aquilo, é aquilo que deve ser preservado, é o coração. ZB: Lapidação era um termo mais técnico, de fazer, de botar bons músicos tocando, bons técnicos mixando, masterizando, dando timbres, esse cuidado com timbres, mas eu acho um disco rock pra cacete. Você não acha, não?
ZR: Sim, acho. Baleiro precisa ir para o cortejo [parte do elenco de “Dom Quixote de Lugar Nenhum”, musical de Ruy Guerra com trilha sonora de Baleiro, faria um cortejo àquela tarde, na Praia Grande], Magah precisa continuar o ensaio. Vamos fechar falando do show de amanhã, o lançamento d“O Homem Que Virou Circo”, no Reviver Hostel. Banda, participações especiais, e reforçar o convite para a rapaziada que tá assistindo a gente [esta entrevista foi gravada em vídeo, mas problemas técnicos impediram o upload no youtube]. MM: Pois é, a gente vai estar lançando agora, sábado, 27, amanhã, né?, “O Homem Que Virou Circo”, cheio de participações especiais. Em primeiro lugar, eu quero citar aqui a minha banda, a Magahdelic Band, é uma banda assim, é quase a The Band, tu tá entendendo?, só que no Maranhão [risos], então acompanhado da minha banda, a gente vai ter a Vanessa Serra, DJ que eu gosto pra caramba, o amor que ela tem pelo vinil, as coisas que ela põe lá.
ZR: Fala os nomes da banda. MM: Sim, citar os integrantes da banda. O Eduardo Pinheiro na guitarra, assim que eu olhei ele tocando, cara, primeira vez eu imediatamente chamei ele, “chega aqui, cara, vamos tocar ali”, ele já conhecia meu trabalho e tal e ficou contente para caramba, então o Eduardo na guitarra; o Gus Mendes que é um baixista também que eu olhei assim, garotão da noite. É só garoto, né? De idoso só tem eu. Eu só pego garoto!
ZR: A galeria do amor. MM: [risos] Quando eu lancei o “Z”, a canção que abria o show era esta, né, “Galeria do Amor” [do repertório de Agnaldo Timóteo (1936-2021)], e ficou todo mundo assim, esse cara, e ficou muito bonito. Aquilo ali é rock, aquela linguagem maravilhosa, libertária, linda. O Gus Mendes no baixo, o Diogo nos teclados e efeitos e meu querido Taylor na bateria. Essa é a Magahdelic Band, uma banda que tem uma facilidade para fazer concessão, então é a banda perfeita pra mim. ZB: Concession Band. MM: É, Concession Band [risos], a gente vai mudar o nome. E é isso, cara, se eu estiver esquecendo alguma coisa o Baleiro vai completar aqui a parada de sucesso. ZB: Nada mais a declarar. Só dizer que fico muito feliz de ter feito essa parceria com Magah. Peço desculpas pela demora na entrega do trabalho, mas a gente vai falar todo mundo ainda, que tem uma lista de agradecimentos. O show tem a produção de Aziz Jr., Samme Sraya, Tiago Máci, que também é nosso parceiro. MM: A participação da Dicy, cantando comigo “As coisas mais lindas do mundo”. Também vai ficar lindo com ela, cara, também sou fãzão. ZB: E é isso. Acho que a missão está cumprida, era fazer um disco, um disco genuíno, assim, não que os discos dele anteriores [não fossem], eu adoro os discos dele, mas quando eu ouvi as canções, falei, “poxa, eu sei exatamente o que fazer com isso, eu acho que sei exatamente o que fazer com isso”, sem também descaracterizá-lo, sem levar para um outro caminho, sem tentar fazer o que não é, porque as coisas são que são. O que não é o que não pode ser o que não é o que não pode ser o que não é, né? Aquela coisa lá [citando a música dos Titãs], então, eu ouço com o maior prazer esse disco, o que é um bom sinal, porque depois que eu produzo alguma coisa, eu passo um tempo assim, tenho um tempo de afastamento. Mas é um disco que eu ouço com muito prazer, boto, recebo amigos, boto para ouvir e as pessoas curtem muito as letras, né? Porque canção é mais do que só música, é a ideia também, né? E o Magah, nesse sentido, é um cara brilhante, tem ideias incríveis, originais e por isso ele é o que é.
O jornalista e fotógrafo foi o primeiro a tocar a banda no rádio, exatamente no dia 17 de dezembro de 1982, antes mesmo de o grupo estrear no mercado fonográfico, o que aconteceria no ano seguinte, quando Herbert Vianna (guitarra e voz), Bi Ribeiro (contrabaixo) e João Barone (bateria) lançaram “Cinema mudo”, disco que trazia “Química” (Renato Russo) no repertório, gravada por eles antes mesmo da Legião Urbana – em um disco ao vivo da banda, lançado após o falecimento de seu líder, Renato Russo afirma que Os Paralamas do Sucesso são padrinhos da Legião Urbana.
Para escrever sobre o novo disco conversei por telefone com Maurício Valladares e através de um aplicativo de mensagens com João Barone. Compartilho agora, com minha meia dúzia de leitores e leitoras, as sobras do Farofafá.
Os Paralamas do Sucesso com Maurício Valladares. Foto: José Fortes
DEPOIMENTO: MAURÍCIO VALLADARES
40 anos: o começo de tudo
A primeira página [de seu livro “Os Paralamas do Sucesso”, com texto de Arthur Dapieve, Senac, 2006] é a reprodução que teria sido o diálogo meu com o Hermano [Vianna, antropólogo], irmão do Herbert, que era ouvinte do programa na Fluminense e ganhou a promoção do Clash, com “Combate rock”, aí a gente conversando pelo telefone, “pô, então vamos nos encontrar, passa lá em casa e pega o disco”, ele morava em Copacabana, o papo, vários assuntos comuns, a gente se encontrou, eu dei o disco pra ele, a gente ficou conversando, e no final ele falou assim: “bom, a próxima vez que a gente se encontrar eu vou te dar a fita que o meu irmão tá gravando com a banda dele”. Eu falei: “ah, beleza, qual é a banda?”. Ele falou: “Os Paralamas do Sucesso”. Eu falei: “pô, mas que nomezinho mequetrefe” [risos do repórter]. Bom, o mundo girou, os dias passaram, ele me deu a fita, e aí quando eu recebi a fita e gostei, eu de cara, isso era dezembro de 1982, eles tinham gravado três músicas, “Vital e sua moto”, “Encruzilhada noturna” [“Encruzilhada agrícola industrial”], e uma outra música [“Patrulha noturna”], isso é fácil de descobrir, porque existe uma lauda do programa que circulou pela web, eu contando, falando que “hoje vamos receber uma nova banda, chamada Os Paralamas do Sucesso”, e a Liliane [Yusim] que fazia o programa comigo, ela lembra perfeitamente deles três no estúdio. E lembra que o Herbert ficou muito eufórico, porque ele achou que a gente ia tocar uma música e tocamos as três que existiam. E essa demo sumiu. O João Barone, principalmente, procura essa demo há anos, há décadas, e não acha esse áudio. E aí a gente ficou amigo. Em sequência pintou a coisa deles gravarem pela Odeon, negócio de capa, de fotografia e aí o bagulho foi crescendo. Mas eles estiveram no estúdio da Fluminense no dia 17 de dezembro de 1982. E a gente esteve juntos agora, sábado, dia 17 de dezembro de 2022, exatos 40 anos depois, que foi esse show deles lá na Barra [o show de lançamento do disco, no Qualistage] e eu fiz um som antes.
O programa de 1982. Acervo Maurício Valladares. Reprodução
Som original
[Pergunto se ele tinha noção de que havia lançado uma banda que iria longe] Não, não tinha. Aliás, ninguém tinha projeção de porra nenhuma. Ali, no caso, a Fluminense eram umas figuras que se juntaram pra fazer uma aventura. Eu já vinha da música, já escrevia em jornal de música, já tinha dado uma circulada, estava circulando pelo jornalismo e sempre fui muito fissurado em rádio. Então, pra mim, foi um caminho natural, pra outras pessoas não, vinham de comércio, mas gostava de música, rock progressivo, música brasileira e se juntou ali pra fazer a rádio, mas sem nenhuma perspectiva do que ia acontecer. O que me interessou, no caso específico dOs Paralamas e Legião Urbana, e eu poderia citar outras, é que [interrompe-se], pô, morreu o Terry Hall, ontem, do The Specials. Não sei se você lembra do Obina Shok [banda brasiliense da época], que era uma banda que misturava, eles todos eram ligados a diplomatas em Brasília, africanos, do Caribe, eles fizeram uma banda muito maneira, gravaram dois discos [“Obina Shok”, em 1986, e “Salleé”, em 1988], o primeiro é muito bom, o [Gilberto] Gil gravou com eles, a Gal [Costa] gravou com eles [ambos participaram do elepê de estreia]. Então, eles ali, o Obina Shok, em meados dos anos 1980, não tão no início, eles representavam aquele som que me interessava muito, que era essa mistura de música africana, com Caribe, então, aquilo me chamou atenção na demo deles, eu toquei pra caramba, o mesmo caso da Legião e dOs Paralamas. Era um som muito diferente do que se produzia pela garotada no Brasil, que ainda vinha com aquele ranço de rock clássico, da MPB tradicional, e eu tinha acabado de chegar de Londres, eu tava com essa sonoridade, 2Tone, The Specials, Police, e do rock, Joy Division, The Cure, Echo & The Bunnymen, eu tinha ouvido todas essas bandas no início. Então, quando você ouve uma demo de uma rapaziada que você sente o estilo dessas referências, aquilo te liga o alerta. Agora, perspectiva de que isso seria, que a Legião iria se transformar no que foi, Os Paralamas e outros tantos, não, zero, nenhuma.
“Um acumulador do caralho”
Isso é praticamente uma doença minha, eu sou um acumulador do caralho. Eu guardo tudo. Eu tenho ingressos, um exemplo que casa com isso que a gente está falando, eu volta e meia conto essa história: quem, que em 1984, guardaria um bilhete deixado na portaria do prédio, de um tal de Renato Manfredini, dizendo que estaria mandando uma fita pra eu ouvir? Eu guardei, esse bilhete do Renato [Russo, vocalista da Legião Urbana], ele tinha uma letra linda, desenhava muito bem, está no livro “Cartas brasileiras” [“Correspondências históricas, políticas, célebres, hilárias e inesquecíveis que marcaram o país”, Companhia das Letras, 2017, org.: Sérgio Rodrigues], é um livro maneiríssimo, tem carta de Lampião [o cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva] a Getúlio [Vargas, ex-presidente da República], passando por Dolores Duran [cantora e compositora] e o caralho a quatro, e está lá, numa página inteira, o bilhete do Renato pra mim. Qualquer pessoa pegaria aquele bilhete ali, de um anônimo, Renato Manfredini, ali, pô, legal, amassa e joga na lata do lixo. Hoje esse bilhete está eternizado num livro com cartas de D. Pedro II, Princesa Isabel, tá entendendo? Eu guardo tudo, cara. É um negócio preocupante, porque, bilhete de show, de jogo, agora a Rainha Elizabeth morreu, eu tenho bilhete de 1968, que eu fui num jogo com meu pai, seleção carioca contra seleção paulista, o jogo foi armado pra Rainha Elizabeth no Maracanã, um bilhete lindo, o ingresso do jogo. Eu tenho essa merda!
Outro livro com material do acervo
Esse livro eu não digo que está no forno porque o forno não foi ligado, mas ele está pensado, idealizado e prestes a ser ejetado. Esse livro, que a gente dá o nome fictício de almanaque, porque ele trata de outros assuntos, ele teria sido o livro anterior a meu livro de fotografia “Preto e branco” [Automática, 2016], que eu lancei em novembro de 2016. A primeira foto que está no livro deve ser de 1972 e a última deve ser de 2005, 6, quando eu parei de fotografar analógico e passei pro digital, por obrigação do mercado, e de coisas do Rio e de viagem, de show, pouca coisa de música, muita coisa de carnaval, futebol, muita rua, e esse livro “Preto e branco” ele ocupou o espaço do almanaque. O almanaque já estava começando a ser pensado, aí o Fernando Furtado, empresário do Skank, meu amigo, ligado em fotografia, gosta das minhas fotografias, falou “cara, essa ideia do almanaque é muito boa, tem a ver, mas você tem que fazer um livro de fotografia de arte, uma foto por página, bem impresso pra caramba, essa é a área que você tem que entrar”. Eu fiquei sensibilizado pela ideia do Fernando, falei com a Luiza Melo, editora, Christiano [Calvet] e Raul Mourão, eles acharam também e a gente inverteu o caminho da história. A gente começou a trabalhar no “Preto e branco” e deixamos o almanaque pra depois. Aí veio a pandemia e ficou meio que congelado. A gente retomou agora recentemente, juntar essas peças todas. O que seria o almanaque? Seria um livro das minhas histórias, do material que eu acumulei ao longo desses mais de 40 anos, com muita coisa do jornalismo, muita reprodução de matérias, dessa papelaria que eu tenho, cartaz, de disco autografado, um almanaque mesmo, das coisas que eu juntei.
Outro/s disco/s
Essa é uma ideia que tem surgido. Tem muita coisa. Essa semana eu falei poderia fazer o disco dO Rappa, por exemplo. Quando eles foram, acho que em 2000, no RoNca RoNca, o som tá bom pra caramba, com o [baterista e letrista Marcelo] Yuka, um repertório maravilhoso, poderia fazer. Como poderia fazer um disco que misturasse vários artistas, desde Cássia Eller na Globo, Renato [Russo] e Dado [Villa-Lobos] na Globo também, com áudio bom pra caramba, Rodrigo Amarante, [Marcelo] Camelo sozinho tocando umas maluquices do caralho, quando ele tava naquela porra de música desorientante. Enfim, poderia fazer tranquilamente. Mas cara, é uma burocracia. Eu só consegui fazer esse disco dOs Paralamas porque são Os Paralamas. Eu sou de quebrar a burocracia, de conseguir as autorizações, de resolver as coisas financeiras. [A relação de amizade com Os Paralamas] é determinante, se não fosse, não rolaria. Um outro compacto que eu lancei em 2005, 2006, com algumas das gravações na Oi FM, um compacto com Do Amor, Cidadão Instigado, Otto e Tulipa, é um compacto que a gente deu, promocional. Pra conseguir liberar isso ia ser um parto e pra vender, negociar esse bolo, como é que vai ser dividido, pô, burocracia é um negócio que eu corro dela. Então eu prefiro nem fazer, pra não me aporrinhar. Esse dOs Paralamas só foi adiante porque era uma oportunidade única: é agora ou nunca. São 40 anos da banda, são 40 anos do programa e aí alguém lá em cima mexeu com os botões pra coincidir esse 17 de dezembro com o show deles e o vinil estar pronto junto. É um bagulho, é mandinga, é muito louco.
O ritual de ouvir música
Outro detalhe interessante, que é bacana de as pessoas perceberem: ah, só vai sair em vinil? Só vai sair em vinil. Ele vai pra plataforma, o Zé [José Fortes, empresário dOs Paralamas do Sucesso] vai botar, mas não vai sair em cd. Porque ele não é só um artefato para ouvir música, ele representa uma forma de ouvir música, ele representa uma relação com a música, com a atenção que a música precisa ter, com o tempo que a música precisa ter. Você está ouvindo o lado a, você quer ouvir o lado b? Eu lamento te informar, mas você vai ter que levantar e vai ter que virar o lado do disco, ele não vai tocar automaticamente [risos]. Ele representa isso, eu não acho que seja só saudosismo, pode ser que o saudosismo seja uma das características disso, mas é essa informação que está sendo dada, de que a música, para ser entendida como música e como um duto de informação e de tudo o que está envolvido ali, ela precisa de tempo, ela precisa da sua atenção. Isso é assim. Esse é o conteúdo, a mensagem que vai nesse disco, independente do que esteja nele, mas fora, se você olhar de fora, pô, eu preciso ter atenção aqui.
Os Paralamas do Sucesso com Maurício Valladares e o empresário José Fortes. Acervo Maurício Valladares
ENTREVISTA: JOÃO BARONE
ZEMA RIBEIRO – Maurício Valadares foi o primeiro a tocar Os Paralamas do Sucesso no rádio, antes mesmo de o grupo ter lançado o primeiro disco. É simbólico que os 40 anos da banda sejam celebrados com o lançamento de um disco que registra uma participação de vocês em um programa dele, ainda no século XX? Gostaria de ouvi-lo sobre essa relação de trabalho e amizade e a importância dele para a banda. JOÃO BARONE – O Maurício é um cara que construiu uma reputação como homem do rádio. Ele, naquele momento, onde estava todo mundo surgindo, tava todo mundo emergindo daquela grande efervescência, que todo mundo sentia, com o final da ditadura, com a necessidade de reescrever um pouco a cena musical jovem, a nova cena musical que apontava ali naquele início dos anos 1980, e a Rádio Fluminense, que teve uma atitude muito pioneira e instigante, ela tocava as inúmeras fitas que chegavam para a programação da rádio, porque eles deram essa abertura, essa receita, de ir atrás do novo, do que estava surgindo, por conta de algumas entradas no mainstream, como foi o caso da Blitz, que marcou muito, como primeiro momento, na hora que abriu a porteira para uma nova expressão, dentro da música jovem, com o rock ganhando mais espaço, saindo um pouco daquele gueto que ele vinha, da classe média, do rock como a gente conheceu nos anos 1970, que era uma coisa muito restrita à classe média, aos universitários, na época em que universitário gostava de rock [risos]. Então, é claro que existe uma importância gigantesca nos grandes referenciais do rock brasileiro, que veio antes, nos anos 1970, Mutantes, Rita Lee, Raul Seixas, mas a geração dos anos 1980 foi responsável por ancorar definitivamente o rock na música brasileira. Então, o que a gente viu ali na Rádio Fluminense foi um momento inicial dessa grande abertura para o rock brasileiro e esse momento refletiu-se em todas as capitais do Brasil, em todas as regiões, foram aflorando as bandas novas de rock, especialmente daquela cena lá de Brasília, de onde Os Paralamas sempre faziam referência a Brasília. A gente é uma banda do Rio, mas Brasília sempre esteve no norte dOs Paralamas, tanto que até hoje muita gente acha que Os Paralamas são de Brasília [risos]. Mas o Bi e o Herbert, que moraram lá, conheceram aquela turma toda, do Renato Russo, do Dinho [Ouro Preto, vocalista do Capital Inicial], Plebe Rude, o caramba a quatro. Enfim, quando chegou esse momento dOs Paralamas levarem a fita até a rádio Fluminense, a gente teve a surpresa do Maurício Valladares tocar no programa dele a nossa fita e dali, já, as músicas da nossa fita começaram a tocar na programação da rádio, “Vital e sua moto” foi um hit, dentro daquela lista das bandas novas que eram pedidas pelos ouvintes, e o resto foi história. A gente no começo de 1983 assinou o contrato com a gravadora e o Maurício sempre teve essa visão, assim, mais ampla da cena do rock principalmente, onde ele sempre ia atrás da novidade, ia atrás da vanguarda, apesar de ele não gostar muito disso [risos], a gente sempre via o Maurício como o cara que apontava boa música, além de qualquer rótulo, de influência ou de vanguardista, o Maurício sempre gostou de boa música, de qualquer que fosse a era, do rock clássico, dos grandes vultos do rock, dos anos 1960, 70, e aí quando chegou nos 80 ele estava indo lá, atrás das novas tendências, tanto que o programa dele, o Rock Alive, era sempre assim, sempre colocava coisas diferentes, e aí a gente teve a sorte de começar uma amizade a partir dali. O Maurício já era fotógrafo antes de ser um cara da rádio e ele era um fotógrafo fora do comum, era um cara com um perfil muito artístico em termos de fotografia, ele nunca foi um fotógrafo profissional, sabe?, de trabalhar em estúdios e não sei o quê. O Maurício é um cara que a personalidade dele também está na fotografia que ele faz. Ele acabou trabalhando com [interrompe-se], a gente chamou ele pra fazer as capas do nosso disco [“Cinema mudo”, de 1983], ele foi o cara que fez a primeira foto oficial dOs Paralamas, para a revista Pipoca Moderna, ali no final de 1982, onde já anunciava-se o nosso show no Circo Voador em 1983, quando a gente abriu [pro] Lulu Santos. Maurício sempre foi um cara muito de personalidade, ele não é um fotógrafo como todo mundo acha que o fotógrafo é, aquele cara que sai tirando um milhão de fotos. O Maurício tirava meia dúzia de fotos e olhe lá [risos], ele busca o momento ideal para fazer o clique, ele não é o cara que sai numa roleta russa, tirando foto a três por quatro. A personalidade dele sempre se expressou muito nas fotografias, na música que ele apresenta. E esse disco que ele agora lançou é apenas um registro dos inúmeros registros preciosos que ele tem de muita gente bacana que participou das várias encarnações do programa dele de rádio. Quando ele saiu da Rádio Fluminense, depois veio com outro programa, que era o Ronca Tripa, depois virou Radiola e aí nos últimos anos, já vai fazer um tempão, uns 20 anos, virou o RoNca RoNca, e ele continua espalhando boa música pelo universo afora. A nossa relação de amizade foi crescendo com o tempo, o Maurício é um cara que virou parte dOs Paralamas, ele é um cara da nossa entourage, sempre referencial. Quando a gente vai fazer alguma coisa a gente mostra pra ele, a gente fala com ele, ele tem uma ingerência muito grande sobre a nossa organização. Os Paralamas somos nós três, mais o Zé Fortes, como teve o documentário [“Os quatro Paralamas”, de 2020, de Roberto Berliner e Paschoal Samora, disponível na Netflix], é o quarto Paralama, e o Maurício é um cara que a gente sempre conta com a opinião dele em qualquer situação, ele é uma espécie de oráculo prOs Paralamas e essa relação foi crescendo ao longo dos anos, ela foi se amalgamando com o tempo e a gente é compadre velho, depois desse tempo todo, 40 anos desde o dia em que ele tocou a gente pela primeira vez no rádio e essa amizade só fez aumentar com o tempo.
ZR – Os Paralamas do Sucesso foi a banda mais ousada do chamado pop rock brasileiro dos anos 1980, justamente por sua disposição em não se contentar com o pop rock, indo além, nas misturas, por exemplo, com o reggae e o ska. Pra você, além do contato com Gilberto Gil, o que foi definidor nesse aspecto? JB – Eu acho que o que caracteriza Os Paralamas é uma espontaneidade muito grande e um compromisso muito grande com o que a gente gosta mais de fazer, que é tocar. O Herbert foi desenvolvendo uma capacidade muito grande nesse dom que ele tem, de composição, mas ele faz tudo visando esse grande momento que é a gente tocar junto e ele poder tocar também, porque o Herbert, acima de tudo, é um guitarrista. É um cara que pensa, sempre pensou muito na guitarra, na composição. Ele foi evoluindo musicalmente ao longo desse tempo todo, ele foi colocando a mente dele a favor da música e pensando coisas musicalmente até mais ousadas do que a guitarra. Ele começou a pensar no piano, começou a pensar nos riffs de sopros, que hoje são parte integrante dOs Paralamas. Isso tudo sai muito da cabeça do Herbert, ele foi desenvolvendo essa musicalidade e a gente foi arriscando tudo no que ele pensava, o Herbert sempre foi esse músico excepcional, o cara que, musicalmente é o mais requintado dOs Paralamas, o Herbert estudou violão clássico, o Herbert sabia tocar bossa nova, e ele foi refinando a capacidade dele de letrista e hoje a gente tem esse legado das músicas dOs Paralamas que ele fez há tantos anos e todo mundo canta até hoje e não tem um ranço nostálgico, é uma coisa que funciona hoje em dia. O repertório dOs Paralamas está longe de ser uma coisa nostálgica, as músicas funcionam atualmente, as pessoas que descobrem a obra dOs Paralamas hoje em dia, a gente tem um público que cresceu com a gente, mas quis o destino que a gente renovasse muito o nosso público, por conta da nossa música, do que a gente fez antes, do que a gente faz eventualmente atualmente, mas esse aspecto dOs Paralamas continua funcionando até hoje, o nosso grande prazer em fazer o que a gente faz, em tocar junto e ir pra estrada, que é uma outra coisa que a gente gosta muito, de fazer show, quando a gente tem assunto a gente grava um disco e é assim que a gente funciona, com esse descompromisso, até certo ponto, de ficar indo atrás de fórmulas ou de receitas. A gente vai aonde o nosso arrepiômetro funciona. Talvez seja a melhor explicação dOs Paralamas, mais do que qualquer autorreferência de ousadia ou de não sei o quê. Naquela época a gente até tentou se diferenciar do bloco todo que tinha ali do rock brasileiro, o nosso terceiro disco [“Selvagem?”, de 1986] foi mais ou menos isso, a gente fez uma escolha realmente, estética, uma escolha conceitual, e de lá pra cá a gente foi explorando a musicalidade intrínseca que a gente tem. Umas horas a gente está mais reggae, umas horas a gente foi mais afro, uma hora a gente está mais balada, uma hora a gente está mais roqueiro, enfim, é isso que a gente faz, a gente explora as nossas personalidades musicais ao nosso bel-prazer.
ZR – O disco recém-lançado, com o material do RoNca RoNca de 1999, revela algumas influências de vocês, no sentido em que além de clássicos e lados b da banda, apresenta também Os Paralamas do Sucesso fazendo alguns covers. O que mais você destacaria neste registro? JB – O repertório que foi registrado nesse vinil que agora é lançado pelo Maurício Valladares, o RoNca RoNca, podia se dizer o RoNca RoNca sessions [risos], como eu falei, o Maurício tem um baú com registros incríveis de um monte de gente que foi ao programa dele fazer uma apresentação ao vivo, ali, em tempo real, foi gravado, mas era tudo ao vivo, a nossa participação foi ao vivo, a menina lá, a ouvinte, pediu para a gente tocar “Navegar impreciso” [Herbert Vianna] e a gente tocou ali, na hora. Esse repertório foi bem inusitado, que a gente apresentou ali no programa do Maurício, o Herbert puxou lá uns blues, puxou lá uma música do The Beat, do The English Beat [“The tears of a clown” (Henry Cosby/ Smokey Robinson/ Stevie Wonder)], e algumas músicas não tão conhecidas, não tão hits assim dOs Paralamas, e o que tem de interessante nesse registro é que ali a gente estava começando a rascunhar o que viria a ser o nosso Acústico MTV [1999], que a gente gravou dali a alguns meses, a gente começou a experimentar algumas coisas nesse formato acústico, apesar de o Herbert ter gravado com uma guitarra elétrica, mas a gente já estava ali esboçando um projeto pra gente fazer um acústico que seria meio na contramão da receita do formato, que era sempre pegar as músicas mais conhecidas e tocar com um violão, um bongozinho, então a gente estava pensando assim, ousadamente, num acústico onde a gente não traria apenas obviedades, então esse registro do programa do Maurício, que agora está saindo nesse vinil, é uma espécie de caviar, é uma tiragem limitada, de produção limitada, com um registro assim raríssimo dOs Paralamas despojados, e que tem um valor, assim, por conta dessa pré-produção, desse pré-registro do nosso acústico.
ZR – Em suma: o disco no RoNca RoNca está longe do que poderíamos chamar de caça-níquel e Os Paralamas tem lançado material inédito com certa regularidade, embora o último disco de inéditas seja de 2017 [“Sinais do sim”]. Estamos às vésperas de 2023 e eu queria ouvi-lo sobre o que você pode adiantar em relação a novidades da banda e sua expectativa como cidadão. JB – Pois é, a gente está adentrando aqui um ano novo com uma perspectiva muito boa de trabalho, que já começou nesse ano. Ao longo desse ano a gente teve praticamente um renascimento do show business, com o arrefecimento da pandemia, em alguns momentos houve uma preocupação e tal, mas a gente está longe daquele cenário terrível que foi 2020, 2021. Então a gente está um pouco nesse embalo, de momento mais promissor, nossa agenda está muito boa, a gente está trabalhando bastante, a gente vai retomar nossa frequência de encontros pra poder ver o material novo que o Herbert tem escrito, retomar mais, assim, a nossa rotina de criação mesmo, e isso não aconteceu porque durante a pandemia a gente se encontrou pouquíssimo nas horas em que a gente estava podendo se encontrar pra fazer shows e tal, e um ou outro ensaio, e aí ao longo de 2021, também, que foi um ano meio vagalume, acendeu, apagou, esse ano de 2022 foi muito promissor, que a gente caiu forte na estrada e nós ficamos sem tempo de fazer esses encontros pra tocar, pra levar som, pra compor e a gente com certeza vai retomar isso nesse ano que se inicia. Já que você perguntou, a gente está muito otimista com um certo alívio que a gente teve dentro da política nacional. A gente sabe que não é uma tarefa simples resolver os grandes problemas que o Brasil tem, mas o fato de a gente ter se livrado de um governo que tinha claramente um perfil fascista no seu discurso, na sua política nefasta, então já é uma melhoria. Eu acho que não vai ser nenhum passeio no parque o que a gente vai ter que fazer para reencontrar o rumo democrático no Brasil e todos os desafios que a gente sabe que existe, socialmente falando, principalmente, e é preciso muito bom senso pra gente não ficar sempre numa gangorra entre os dois extremos, da extrema-direita e da extrema-esquerda, a gente precisa achar um caminho do meio, onde a gente consiga tirar o grosso da população da miséria, do mapa da fome, fazer um investimento seríssimo na educação, fazer uma devassa fiscal, acabar com esse dinheiro todo que vai pelo ralo no nosso processo político e torcer pra que o Brasil volte a ser um país digno das riquezas e da gente que vive nesse país. Vamos torcer!
Live de Wilson Zara e banda teve transmissão em dezembro pelo youtube e redes sociais
Tributo a Raul Seixas. Frames. Reprodução
Para deleite do fã clube raulseixista, em 2020 o Maluco Beleza não deixou de receber sua homenagem, com o tributo anual que Wilson Zara tradicionalmente lhe presta. Apesar de 2020 entrar pra história como o ano em que a Terra parou, aumentando a profecia do roqueiro baiano, um show em formato live, realizado e transmitido ao vivo a partir dos estúdios da TV Guará saciou a sede daqueles que sempre ousam gritar “toca Raul!”.
Em quase três horas de live, veiculada pelo canal da TV Guará no youtube e pelas redes sociais do cantor, Wilson Zara passeou pelas diversas fases da curta mas profícua carreira de Raulzito, que nasceu em 28 de junho de 1945 e faleceu, em decorrência de pancreatite, em 21 de agosto de 1989 – dois dias antes, lançara “A panela do diabo”, seu último disco, dividido com Marcelo Nova (vocalista, guitarrista e compositor da banda Camisa de Vênus), com quem fez também sua última turnê pelo Brasil.
Na ocasião, Wilson Zara (voz e violão), se fez acompanhar de Moisés Profeta (guitarra e efeitos), Mauro Izzy (contrabaixo), Marjone (bateria), Dicy e Heline (vocais). No repertório, clássicos de Raul Seixas, a exemplo de “Cowboy fora da lei”, “Medo da chuva”, “Sapato 36”, “Tu és o MDC da minha vida”, “Sessão das 10” e “O dia em que a Terra parou”, entre muitos outros.
Patrocinada com recursos da Lei Aldir Blanc de Emergência Cultural, administrados pela Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão (Secma), a live teve apresentação de Danilo Quixaba, que, em meio ao repertório, bateu um papo descontraído com Wilson Zara, destacando aspectos da vida e obra de Raul Seixas.
O público, acostumado, nos últimos anos, a lotar praças públicas por onde Zara apresentou o tributo, este ano teve que se contentar com a apresentação em formato online. “Fiquei muito satisfeito com o engajamento do público. O vídeo foi muito visualizado, curtido, compartilhado, comentado, o que fez a gente se sentir diante de uma praça cheia, mesmo sem poder ouvir os aplausos”, comentou Wilson Zara.
Serviço – O Tributo a Raul Seixas será veiculado nesta sexta-feira (22), às 22h30, pela TV Guará (canal 23.1 na tevê aberta; 21 na TVN; 323 na Sky HD; e 23 na Net).
Assista à íntegra do Tributo a Raul Seixas no youtube:
Cantor Wilson Zara realizará show em homenagem ao artista baiano em formato live, no próximo dia 15
Divulgação
Era uma vez um baiano que acabou ganhando o apelido de Maluco Beleza, por conta do título de um de seus inúmeros clássicos. Esse roqueiro, fã de Elvis Presley e Luiz Gonzaga, previu “O dia em que a Terra parou”, canção que dá nome a seu álbum lançado em 1977.
Raul Seixas (1945-1989) não viveu para ver a pandemia de covid-19 fazer o planeta parar, não por um dia, mas por quase um ano. 2020 foi o ano em que ninguém pode dizer que não cumpriu a lista de resoluções de ano novo por pura falta de vontade. Muitos planos, quase todos, tiveram que ser adiados.
Foi assim também com o já tradicional “Tributo a Raul Seixas”, show anual realizado pelo cantor maranhense Wilson Zara, que desde 1992, quando estreou “A hora do trem passar”, em Imperatriz/MA, presta-lhe as devidas homenagens, sempre por volta da data de seu aniversário de falecimento, em 21 de agosto.
Mas o Tributo vai acontecer, se não nos moldes a que os fãs-clubes – de Raul Seixas e Wilson Zara – estão acostumados, do jeito que o ano e a pandemia permitem: no próximo dia 15 de dezembro (terça-feira), às 19h, em uma live transmitida a partir dos estúdios da TV Guará, raulseixistas de toda parte – graças à transmissão pela internet – poderão acompanhar o desfile de clássicos e lados b, num longo passeio pela vasta obra de Raulzito.
Além de músicas já citadas ao longo deste texto, Wilson Zara e banda – Mauro Izzy (contrabaixo), Moisés Profeta (guitarra), Marjone (bateria), Dicy e Heline (vocais) – passearão por repertório que inclui “Ouro de tolo”, “A maçã”, “Sessão das 10”, “Rockixe”, “Eu nasci há 10 mil anos atrás”, “Meu amigo Pedro”, “Gitâ”, “Sociedade alternativa” e “Cowboy fora da lei”, entre muitas outras. Um show que certamente vai deixar satisfeitos todos os que gritam “toca Raul!”.
Serviço – Realização da Zarpa Produções, o “Tributo a Raul Seixas” tem patrocínio da Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão (Secma), com recursos da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc. A transmissão da live acontece dia 15 de dezembro (terça-feira), às 19h, a partir dos estúdios da TV Guará, pelo site da emissora, além de seus perfis no youtube e instagram, e pelo perfil de Wilson Zara no facebook. A TV Guará apresentará o show em sua programação em data a ser confirmada posteriormente.
Em 2014, quando completou 40 anos de carreira, o paulista Edvaldo Santana meteu o pé na estrada. Com o case do violão às costas percorreu, de ônibus, todas as capitais nordestinas, apresentando em cada uma delas um show de voz e violão. Em São Luís, cantou para pouco mais de 30 pessoas, no Teatro da Cidade de São Luís, o antigo Cine Roxy. Quem estava lá, até hoje lembra do show, memorável.
Mês passado, em Teresina, cobrindo a Balada Literária e vendo, por exemplo, o show do parnaibano Teófilo Lima, antes de Rita Benneditto, na última noite do evento, tornei a me perguntar: por que é que o Maranhão não consegue, ou o faz raramente, dialogar com seus vizinhos Pará e Piauí? Por que não vemos com mais frequência artistas paraenses e piauienses se apresentando em São Luís e vice-versa?
Todo artista tem de ir aonde o povo está, já cantou o poeta, e às vezes ir aonde o povo está é uma questão de cara e coragem, glamour zero, artista igual pedreiro, como no título do álbum do Macaco Bong.
Digo tudo isto para dizer que quem está na ilha é Amanda Southier, cantora brasiliense radicada em Balsas, no sul do Maranhão. Ela se apresenta hoje (20), às 21h, no Talkin Blues (Cohajap), e amanhã (21), no mesmo horário, no Velho John Music Pub (Holandeses, Calhau). Em ambos os shows ela será acompanhada por Joabi Nalvi (contrabaixo), Marcio Glam (guitarra) e Bruno Montechese (bateria).
A vinda de Amanda à ilha tem a ver com um sentimento de gratidão de Wilson Zara, que abre o show de hoje. “A gente percorre o Maranhão e é sempre tão bem recebido por onde passa, mas é raro conseguir trazer artistas de outras cidades para tocar em São Luís e dar a recíproca do mesmo tamanho. Começa que trazer muita gente é caro, a coisa já esbarra no preço das passagens de ônibus. Mas conseguimos firmar algumas parcerias e realizar essa microturnê”, afirma. A pequena turnê ilhéu de Amanda Southier tem apoio da JR 4000, empresa de ônibus de Balsas que faz a linha até a capital, churrascaria Barriga Verde e Adventure Hotel.
A cantora já é um nome reconhecido da cena pop, tendo aberto shows de Biquini Cavadão e Detonautas, com quem dividiu o palco em julho passado, em Balsas, no encerramento do Festival de Verão da cidade.
O repertório de Amanda Southier passeia por clássicos do pop nacional e internacional e músicas autorais – Raul Seixas, Adele, Bruno Mars, Black Sabbath, Iron Maiden, Led Zeppelin, Nirvana, Rolling Stones. Vã realidade, seu ep de estreia, lançado em 2017, tem seis faixas, sendo quatro autorais, além de Se você fosse do mal, de Nosly, e um cover de Dream on, do Aerosmith.
O público de São Luís tem duas oportunidades de conhecer ou prestigiar ao vivo a música de Amanda Southier. Torço para que a vereda aberta por ela faça chegar à capital mais artistas do interior e que mais artistas da capital consigam se apresentar em municípios do interior.
Completamente autoral e cantado em inglês, álbum é recheado de referências
Older than time. Capa. Reprodução
Inteiramente cantado em inglês Older than time (2019), disco de estreia da banda maranhense Canyon, tem ecos de hard rock setentista e progressivo, suas grandes influências – o lançamento do álbum celebra os 10 anos da banda.
Jobson Machado (guitarra, voz e teclado), Léo Vieira (contrabaixo), Ramon Silva (voz, guitarra, teclado e synth) e Ítalo Silva (bateria) realizaram um disco vigoroso, que será lançado neste sábado (7), em show na Fanzine (Av. Beira-Mar, Centro), a partir das 20h – na noite se apresentarão também as bandas Evil Machine e Gallo Azhuu.
“Não há montanha alta o suficiente para mim”, manda a positividade de Fight them, que abre o disco. Todas as músicas são assinadas pela banda, com letras de Ramon Silva, que assina também o projeto gráfico de Older than time.
A quilométrica Hard life é realista: “bem vindo à vida difícil: lute ou caia/ bem vindo à vida difícil: sua dor é minha dor”, diz o refrão, de recado solidário, tão necessário nestes tristes tempos.
Sorceress trata de uma mulher misteriosa, “ela é o diabo/ não chame seu nome”, nas mãos de quem um homem é apenas um peão no xadrez da vida. Sleeping lady retrata uma desilusão amorosa, como se Lupicínio Rodrigues fizesse rock – ou a Canyon abolerasse. Seus mais de oito minutos são divididos em sete partes.
Iron giant debate a robotização do homem, transformado em máquina, despido de sentimentos e pensamentos. “Obsoleto, o futuro é meu passado”, diz um verso, situando o som e a poesia da banda no triste e desesperançoso Brasil de 2019.
O tema instrumental Lunar eclipse antecede a faixa-título, que parece deslocar o som da banda a uma espécie de limbo no espaço-tempo: “o futuro não guia meus passos”, diz verso que dialoga com o Millôr Fernandes de “o Brasil tem um enorme passado pela frente”. “Eu estou aqui desde antes de todos os deuses”, diz verso que conversa com o Raul Seixas de Eu nasci há 10 mil anos atrás.
Questions no answers fecha o disco com um convite que evoca o Paulo Leminski de Distraídos venceremos: “por favor, feche seus olhos/ liberte sua mente/ momento de distração”, começa a letra, que tem trecho cantado em falsete, de uma delicadeza comovente.
Um disco à altura da merecida festa pela década de existência da banda. Merece celebração.
Serviço
Show de lançamento de Older than time, da banda Canyon. No Fanzine (Av. Beira-Mar, Centro). Dia 7 de setembro (sábado), às 20h. Na ocasião se apresentarão também as bandas Evil Machine e Gallo Azhuu. Ingressos – R$ 20,00 (inteira) e R$10,00 (meia) – à venda nas lojas Over All (Tropical Shopping) e no Bar Beco 129 (Praia Grande).
Ronaldo Rodrigues, Luciana Simões e Christian Portela, da formação original da Bota o Teu Blues Band. Arte e fotografia: Laila Razzo/ Base SLZ
Não faltam atestados do parentesco entre blues e rock. Uma das provas mais recentes é a volta às origens dos Rolling Stones. Os roqueiros setentões voltam ao bom e velho blues em Blue & Lonesome, seu ótimo novo disco.
Há pouco mais de 20 anos em São Luís uma banda fez história na cena da cidade. Com seu nome incomum, a Bota o Teu Blues Band tornou-se lendária. Aproveitando a passagem do guitarrista Ronaldo Rodrigues pela Ilha, o grupo se reunirá para uma única apresentação nesta sexta-feira (27), no Fanzine Rock Bar.
A casa, definida no material de divulgação como “o mais novo local alternativo de São Luís”, iniciou suas atividades no último dia 14, com show da mítica Velhas Virgens. Em seu currículo já constam shows de Da Ghama (ex-Cidade Negra), Fauzy Beydoun e Cachorro Grande.
Gerente da casa, o músico Beto Ehongue (Canelas Preta, ex-Negoka’apor, ex-Som do Mangue), comenta a receptividade do público: “Foi maravilhosa. O público ficou fascinado com a casa, sua estrutura, acessibilidade, localização e principalmente com a proposta cultural da casa, que é de incluir São Luís no roteiro cultural do país, além de abrir espaço para a música feita por estas bandas”, contexto em que se insere esta reunião da Bota o Teu Blues Band.
Ronaldo Rodrigues, guitarrista da formação original, após uma temporada em Londres, acabou fixando morada no Rio de Janeiro, onde cursou o bacharelado em bandolim na UFRJ. Ex-integrante, em São Luís, de bandas como Palavra de Ordem e Som do Mangue, a partir da vivência musical na capital carioca, o músico acabou mais identificado com o chorinho. Mas nunca abandonou a guitarra. Ele comenta o prazer do reencontro com a cidade e com os amigos: “Sempre é muito bom rever os parentes e velhos amigos. Aproveito pra fazer algumas apresentações, como o evento Black & Tal, que realizo no Chico Discos e que se encaminha pra sua quarta edição [3 de fevereiro]. Dessa vez tem uma particularidade, que é reunir boa parte da Bota o Teu Blues Band, que fundei junto com os irmãos Burgue – Heremburgue e Indemburgo –, há 23 anos, pra fazer um show comemorando a amizade e o velho rock/blues. Pena eles não poderem fazer parte mas contaremos com Luciana Simões nos vocais e Christian Portela [guitarrista] que também fizeram parte da formação original”
“Está sendo uma divina nostalgia reviver a banda, o repertório. Apesar de quase não fazer parte do que toco hoje em dia, é prazeroso. Há muito tempo não tocava num projeto contendo o bom e velho rock e seu inseparável amigo blues [risos]”, continua.
Ronaldo anuncia a formação que subirá ao palco para este Bota o Teu Blues Band Revival e o que a banda está preparando: “Infelizmente Heremburgue e Indemburgo, baixo e bateria, respectivamente não poderão participar, mas nos deram o aval pra seguir adiante. Da formação original faremos parte eu [guitarra e bandolim], Christian Portela [guitarra, gaita e vocais] e Luciana Simões [vocais]. O repertório está baseado no que fazíamos há mais de 20 anos, muito blues e medalhões do hard rock lado B, como Iron Butterfly, Grand Funk Railroad, O Terço, Mutantes, entre outros… O baixo fica sob a batuta de Fernando Japona e a bateria de Thierry Castelo Branco”.
Entre os nomes, Japona acrescenta Cream e Deep Purple, e aponta novos rumos para a sonoridade da banda. “Ronaldo toca bandolim e curte choro, eu toco violão e curto folk, blues e samba. [Os arranjos] são funkeados, shuffles, traditional, soul, jazz! Progressivo também!”, lista.
A importância da Bota o Teu Blues Band é tamanha que Beto Ehongue destaca: “acho que foi o início do que chamamos da nova cena musical da cidade, contribuiu para o surgimento de outros grupos importantes da musica local atual”.
O hoje gerente do Fanzine Rock Bar conviveu musicalmente com Ronaldo Rodrigues: este foi guitarrista da Som do Mangue, cujo vocalista era aquele. “Ronaldo é multi, não só nos instrumentos, mas nas ideias, e era peça muito importante dentro do processo de criação do Som do Mangue, com uma bagagem imensa”, elogia.
A apresentação da Bota o Teu Blues Band olha para o passado, mas ao mesmo tempo aponta para o futuro. Ao menos o da relação da casa com a música produzida aqui. “Esta é uma bandeira forte da Fanzine, seja feita agora ou em outra época, e esse resgate da Bota O Teu é apenas o começo do que pensamos para a música local”, compromete-se Beto Ehongue.
Serviço
O quê: show da Bota o Teu Blues Band – com Luciana Simões e Os Carabinas Quando: sexta-feira (27), às 22h Onde: Fanzine Rock Bar (Av. Beira-Mar, Praça Manuel Beckman, próximo à Delegacia da Mulher) Quanto: R$ 20,00
The 42nd St. Band – Romance de uma banda imaginária. Capa. Reprodução
Renato Russo ainda era apenas Renato Manfredini Jr. quando, entre 1975 e 76, com de 15 para 16 anos de idade, recluso em seu quarto por conta de uma epifisiólise, rara doença óssea, escreveu The 42nd St. Band – Romance de uma banda imaginária [Companhia das Letras, 2016, 221 p.; org.: Tarso de Melo; tradução: Guilherme Gontijo Flores; leia um trecho]. O nome da banda tem origem no endereço do bar Stonewall, palco de um massacre a LGBTs, que o cantor já havia homenageado em seu primeiro disco solo, The Stonewall Celebration Concert [1994].
O livro é uma espécie de diário da banda, como se um fã recortasse revistas e jornais sobre os ídolos e guardasse os recortes em uma pasta. Há entrevistas, formações, discografia, cronologia. O futuro líder da Legião Urbana constrói seus personagens inclusive do ponto de vista psicológico, uma prova disso é o comportamento dos integrantes da banda que dá título ao livro durante as entrevistas.
Renato Russo demonstra profundo conhecimento sobre a música pop mundial. Sua banda – Eric Russell, protagonista de The 42nd St. Band, é seu alter ego – tinha Jeff Beck (ex-Yardbirds) e Mick Taylor (ex-Rolling Stones), misturando personagens reais a personagens imaginários.
O mesmo acontece com faixas gravadas pela banda. No livro, Let me die in your footsteps é de Russell (e não de Bob Dylan) e Close the door lightly (when you go) é de Dylan (e não dos Smiths). Há vários outros exemplos e fica explícito a adoração da banda imaginária – e do autor – por Beach Boys, Stones, Beatles, Dylan.
Há algo de premonitório na obra. Renato Russo acabaria sendo um dos maiores nomes do pop rock brasileiro em todos os tempos e o livro relata (ab)uso de drogas, shows lotados, turnês bem sucedidas, amor e ódio da crítica especializada e mortes trágicas – entre os membros das várias formações da The 42nd St. Band, John Robbins morre de overdose aos 45, John Buck em um acidente de avião aos 62, e Eric Russell de câncer de pulmão aos 67 (Renato Russo morreu há 20, aos 36, de complicações decorrentes do vírus da aids). Aloha, título de uma música de A tempestade [1996], último disco lançado pela Legião Urbana com Renato Russo ainda vivo, já aparece no romance, como uma das faixas gravadas pela The 42nd St. Band.
É um romance fragmentário, montado a partir de anotações (em inglês) deixadas por Renato Russo em diversos cadernos, que muito provavelmente não seria publicado se ele ainda estivesse vivo. Como os diários de sua passagem por um rehab – Só por hoje e para sempre – Diário do recomeço [Companhia das Letras, 2015, 168 p.; org.: Leonardo Lichote] –, The 42nd St. Band – Romance de uma banda imaginária ajuda a compreender a mente inquieta e o espírito criativo de um dos maiores artistas surgidos no Brasil na segunda metade do século passado.
Melhor nome de banda desde a Isca de Polícia do saudoso Itamar Assumpção, a Fábrica de Animais acaba de lançar seu segundo disco, pelo mítico selo Baratos Afins, de Luiz Calanca. O álbum, a exemplo do de estreia, leva apenas o nome da banda, inspirado no romance que o ator e escritor Edward Bunker escreveu quando de sua passagem pela penitenciária americana de San Quentin.
A máxima dos Stones se aplica perfeitamente à banda paulista: é só rock’n roll, mas eu gosto. Na verdade é mais que rock: Flávio Vajman (gaita), Cristiano Miranda (bateria), Fernanda D’Umbra (voz), Caio Góes (contrabaixo) e Sérgio Arara (guitarra) fazem um rock vigoroso, com pitadas de blues e letras de alta voltagem poética.
Seguindo a trilha das referências, umas mais, outras menos explícitas – capa e ilustrações são assinadas por Angeli –, Hendrix é a primeira palavra que ouvimos no disco, em De quando lamentávamos o disco arranhado (Beatriz Provasi/ Fábrica de Animais), sua faixa de abertura. Um delicioso rock’n roll sobre o fim de um relacionamento e seus símbolos.
Jogo de dardos (Marcelo Montenegro/ Cristiano Miranda) também é sobre separação: “saca só o tamanho do estrago/ o que tá escrito na fita não é o que tá gravado/ pode levar o Crumb/ eu só quero ficar com esse jogo de dardos”.
Tudo errado (Fernanda D’Umbra/ Fábrica de Animais) é um blues visceral sobre um amor impossível e cita Roberto Carlos de raspão: “eu sei, eu tô acostumada a sair sem pagar/ voltar de madrugada pro mesmo lugar/ passar os dias latindo em frente ao seu portão/ tá tudo errado”.
Noite daquelas (Marcelo Montenegro/ Sérgio Arara/ Fábrica de Animais) dialoga com Diversão (Sérgio Britto/ Nando Reis), hit dos Titãs: “posso até te ligar pra te convidar/ mas só de ouvir meu alô, você vai sacar/ que hoje não tem jogo nem beijo de novela/ pois hoje o que eu preciso/ é de uma noite daquelas”. A atriz band leader encarna a personagem protagonista da faixa numa interpretação de total entrega, afinal uma marca da grande cantora que é, e precisa urgentemente ser descoberta por mais gente Brasil afora – torço para que De carona com Fábrica de Animais (veja trailer ao fim deste post), documentário de Edson Kumasaka (autor da foto da banda no encarte do disco), tenha sucesso no In-Edit Brasil e cumpra esse papel.
Se bem observarmos, o amor permeia todo este Fábrica de Animais, o disco. Erro (Sérgio Arara) talvez seja um de seus nomes possíveis, não dizem que ele é cego? “Tem um erro encravado na parede da sala/ que atravanca minha vida/ que me fode em nome do amor”, dispara a letra, para arrematar: “erro, tente esquecer/ aceite sua sorte/ encare sua morte/ tenha ele o nome que for”.
A esperançosa Tarde demais (Cristiano Miranda/ Rubens K), uma das mais “tranquilas” do álbum, é sobre o amor possível: “tarde demais você falou algumas coisas banais/ não importa o que aconteça/ tarde demais você falou algumas coisas legais/ e era o que eu mais precisava”.
A irônica Água salgada (Fernanda D’Umbra/ Fábrica de Animais) evoca melodicamente Raul Seixas e toda a pré-história do rock, de nomes como Carl Perkins, W. Penniman e Neil Sedaka, entre outros, lembrada pelo baiano em 30 anos de rock (1973). “No meio do mar não adianta chorar/ o que não falta aqui é água salgada”.
Em Ritalina (Fernanda D’Umbra/ Sérgio Arara) a quase homônima Rita Lee é citada: “não vou mais ouvir Rita Lee/ vou tomar ritalina”, diz a letra, citando a droga hoje bastante popular, em meio a “prestar atenção nos detalhes desse mundo chato” e suas coisas aparentemente simples.
Som cafona (Sérgio Arara) é uma espécie de blues abolerado, mais uma faixa sobre fim de relacionamento e o balanço natural a que normalmente são levados os que passam por isso.
Nervosa, Bossa nóia (Sérgio Arara) fecha o disco em meio a mais um fim de relacionamento, e talvez a vontade de voltar, dialogando com Malandragem (Cazuza/ Frejat), sucesso de Cássia Eller: “princepezinho virou sapo, tchau!/ tem chulé meu sapato de cristal/ no truco nunca serei ás de paus/ essa vida é engraçada/ quando alguém sonha com fadas/ tem-se a sensação de não viver/ só que a minha fada é foda”.
Fechar o disco é modo de dizer: uma faixa escondida, sem título, explode num rock alucinante, escancarando o modus operandi punk da Fábrica de Animais. “Eu não tenho dinheiro”, repetem o verso carma, o que nunca foi uma desculpa para deixar de fazer, enquanto desconstroem símbolos do conforto da classe média.
Violentar o status quo foi desde sempre uma tarefa que coube ao bom e velho rock’n roll. “Vou prestar atenção nos detalhes desse mundo chato”, voltamos à letra de Ritalina, a Fábrica de Animais subvertendo-os e ajudando a tornar este mundo um lugar menos chato pra viver.
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Assista trailer de De carona com Fábrica de Animais, documentário de Edson Kumasaka:
Laura D. Macoriello é assessora de imprensa da Edições Ideal, por onde publicou os três volumes de Rock para pequenos – Um livro ilustrado para futuros roqueiros, além de Cinema para pequenos – Um livro ilustrado para futuros cinéfilos [Edições Ideal, 2013, 52 p.]. Os dois primeiros volumes de Rock para pequenos, dedicados aos gringos, microperfilou Angus Young, B-52, Beatles, Chuck Berry, David Bowie, Elvis Presley, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Kiss, Ozzy Osbourne, Ramones, Rolling Stones e Steve Harris (no primeiro volume) e Axl Rose, Bjork, Bono Vox, Bruce Dickinson, Chrissie Hynde, Dave Grohl, Dick Dale, Freddie Mercury, Green Day, Jeff Hanneman, Jerry Lee Lewis, Jim Morrison, John Lennon, Lemmy Kilmister, Metallica, Morrissey, Nina Hagen, Robert Smith, Sex Pistols e Van Halen (no segundo).
O recém-lançado terceiro volume [Edições Ideal, 2015, 44 p.; leia um trecho] é dedicado a nomes do rock nacional: Capital Inicial, Cazuza, Erasmo Carlos, Inocentes, Ira!, Kid Vinil, Legião Urbana, Mamonas Assassinas, Os Paralamas do Sucesso, Pitty, Raul Seixas, Rita Lee, Ronnie Von, Secos & Molhados, Supla, Titãs e Ultraje a Rigor.
Os livros são ilustrados por Lucas Dutra e trazem microperfis dos artistas e, espécie de narrativa fabular, algo como uma moral da história, linkando as vidas e obras a valores cotidianos que devem ser ensinados aos “futuros roqueiros”, como indica o subtítulo da trilogia – até aqui; indagada sobre um possível quarto volume, a autora disse não saber responder ainda.
A assessora/escritora conta que “a ideia surgiu do meu cotidiano com minha filha Olívia, 5, que na época do primeiro livro estava com três anos. Peguei situações que eu vivia com ela para dar as “lições” e achei legal dar uma breve explicação sobre os astros”.
A “lição de moral” do microperfil que abre o terceiro volume, dedicado a Cazuza, é “ser filho único é muito legal, podemos escolher nossos irmãos-amigos”. Encaro o livro como uma boa porta de entrada para as crianças ao universo do rock, especificamente o brasileiro, no caso deste terceiro volume. Pergunto-lhe se este papel deveria, em alguma medida, ser também das rádios e tevês. “Talvez. Acho que de alguma forma os próprios pais que gostam do estilo podem tentar introduzir isso desde cedo nos pequenos”, aponta. “Acho que a opção deve ser dada. Não teremos controle sobre eles [os filhos] para sempre, caso eles gostem de outra coisa mesmo conhecendo o rock, acho que o certo é respeitar”, continua.
Laura D. Macoriello se define como alguém que “gosta mais de Smiths do que de lasanha”. Indagada sobre a maior loucura que já cometeu por um ídolo, responde sorrindo: “Nossa! Nenhuma! Até porque acho que em se tratando de um ídolo, nada é considerado loucura, concorda? [risos]”.
Ao fim do volume, uma discografia básica aponta os principais discos dos artistas, para pais e filhos ouvirem juntos. A autora poupa a petizada de eventuais detalhes trágicos da vida e carreira dos microbiografados. É um livro sobre rock, mas sem sexo, drogas e mortes trágicas.
Francisco Lopes da Costa nasceu em 14 de fevereiro de 1964, num lugarejo, a Fazenda Catanha, entre Santa Inês e Bom Jardim. Filho do agricultor Antonio Costa de Sousa e da doméstica Maria Lopes da Costa, tem 10 irmãos – dois já falecidos –, entre os quais o cantor e compositor Luis Carlos Dias, que lhe ensinou os primeiros acordes.
O França de seu nome artístico é corruptela do nome de batismo: sua mãe o chamava “Franca” e os amigos “França”, sempre diminuindo o Francisco, que acabou virando Chiquinho, um de nossos mais requisitados instrumentistas. “Um guitarrista que toca bandolim”, define-se.
Seus discos estão impregnados de rock, choro e ritmos da cultura popular do Maranhão. O primeiro, descobriu assim que ouviu o clássico The Wall, do Pink Floyd. O choro e o Maranhão estão fundidos em Santa Morena, clássico de Jacob do Bandolim que incluiu um bumba meu boi no arranjo de sua gravação. Seu registro instrumental para Filhos da precisão, de Erasmo Dibell, virou prefixo de programa de rádio – Chiquinho França havia se tornado, ele próprio, uma paixão da infância, quando subia em um muro para captar o sinal de uma rádio brasiliense e ouvir as gravações dOs Incríveis para Czardas – que acabou regravando – e O milionário.
Reprovado na banda de Raimundo Soldado, ele não desistiu da música – sorte a nossa! Sobre estes e outros episódios, Chiquinho França deu seu depoimento à Chorografia do Maranhão, o 38º. da série, no Bar do Jósimo, na esquina das ruas do Alecrim e Pespontão, no Centro de São Luís – cidade pela qual se apaixonou, de onde nunca mais saiu.
Foto: Rivanio Almeida Santos
Seu primeiro trabalho foi vendendo bolo? Sim. Mamãe fazia bolos para a gente vender para conseguir a alimentação de casa. Eu comecei a trabalhar com 10 anos de idade. Inclusive nesses trabalhos que eu fazia na rodoviária foi aonde eu me encontrei com o choro. Foi na rodoviária de Santa Inês, ouvindo um ceguinho, chamado Francisco das Chagas, Chaguinhas, que chamavam. Um anão. Ele usava um megafone, esses megafones é que eram a rádio das pequenas cidades. Não tínhamos sinal de televisão nessa época, até os anos 1970. Só pegávamos o sinal da rádio Nacional de Brasília. Era o contato que a gente tinha assim com a música. Na época o choro era um sucesso. É até hoje, mas na época a gente ouvia na programação de rádio.
Como era o ambiente musical em tua casa? O que se ouvia de música lá? Quase nada. Nem rádio a gente tinha. Era tudo no do vizinho. Muita pobreza, pobreza mesmo! Eu me lembro de rádio na minha casa, já fui eu que comprei, um radinho de pilha sem antena, eu tinha que subir no muro do quintal para sintonizar a rádio Nacional para ouvir Czardas [música do violinista e compositor italiano Vittorio Monti] tocada pelos Incríveis [grupo musical da Jovem Guarda] e O milionário [título aportuguesado de The millionaire, música do guitarrista e compositor inglês Mike Maxfield] também pelos Incríveis, eu achava aquele instrumental a coisa mais linda do mundo. Ambas eram prefixo e sufixo de um programa que eu, infelizmente, não recordo mais o nome. Mas eu sabia exatamente o horário em que o programa começava e terminava e eu ia lá para o muro para ouvir. Eu já sabia que eu queria ser músico mesmo, que eu era músico. Eu já tinha certeza disso.
A partir de que momento você teve essa certeza? Desde que eu, criança, ouvia as músicas. Isso me chamava a atenção e me remetia a um êxtase, digamos assim, eu saía dessa vida aqui, me pegava imaginando eu tocando aquele instrumento. Me impressionava muito como eles imprimiam o áudio nos vinis, eu ficava olhando para aquele vinil, tudo isso me causava curiosidade com relação ao áudio, eu tinha muita curiosidade com relação a esse tipo de gravação. Ficava me imaginando ali, sabia comigo que eu tinha que aprender a tocar um instrumento. Até que com 12 anos de idade eu dedilhei um violão que meu irmão Luis Carlos Dias [cantor e compositor] conseguiu emprestado com um amigo e estava lá em cima da cama dele. Foi a primeira vez que eu tive contato com um instrumento. Mas eu já curtia o ceguinho lá na rodoviária.
Ele tocava algum instrumento ou só usava o megafone? Ele tocava cavaquinho numa afinação inventada por ele. Eu não consegui pegar um acorde dele. Ele usava um amplificador delta que era alimentado por umas baterias de carro e um arame amarrado no pescoço [segurando o megafone], que ele cantava, e a esposa dele tocava pandeiro. Não tinha acompanhamento, ele tocava só as melodias, era só ele esse pandeiro. E harmonizava, ele fazia a melodia e dava um acorde, era um som distorcido, a amplificação do som muito ruim. Na rodoviária antiga de Santa Inês, ali na Laranjeira. Quando eu não estava na escola ou vendendo eu estava ali ouvindo-o tocar. Eu jogava a moeda, ele ouvia, eu cansei de ouvi-lo tocar [os choros] Tico-tico no fubá [Zequinha de Abreu], Brasileirinho [Waldir Azevedo], Vê se gostas [Waldir Azevedo e Otaviano Pitanga], Delicado [Waldir Azevedo], enfim, essas músicas, Dilermando Reis [violonista], ele tocava algumas coisas, Waldir Azevedo [cavaquinista] e o próprio Jacob do Bandolim [Jacob Pick Bittencourt, bandolinista]. Esses choros todos ele tocava lá, eu já curtia.
Desse teu encontro com o violão emprestado de Luis Carlos Dias, dali já deslanchou? Não, não. Luis Carlos não deixava eu pegar, eu era muito criança, o violão era dum amigo dele. Ele apareceu tocando [cantarola] “hoje é o dia do Santo Reis” [trecho de A festa do Santo Reis, de Márcio Leonardo, sucesso na voz de Tim Maia], eu decorei esses acordes. Quando ele largou o violão eu percebi que tinha facilidade, ritmo, aptidão para a música. Eu comecei a economizar uns trocados, o violão foi o do Luis Carlos, meses depois ele comprou um violão e fui na sombra dele, aprendendo os primeiros acordes com ele.
Então o violão foi teu primeiro instrumento. Hoje você toca vários. A partir de que momento você passou para outros? O Luis Carlos já entrou numa banda, começou a tocar guitarra. Ele foi sempre me influenciando, eu fui seguindo os passos dele. Eu entrei numa banda de baile, a gente chamava de conjunto, era Chica Cão, ela tocava acordeom, tinha uma banda de forró. A gente passava a noite inteira tocando, eu aprendi os primeiros acordes, ela me ensinou aquela harmona [harmonia], e eu viajava com ela para tocar forró naqueles interiores ali, Alto Alegre, a gente andava de lancha, Rio Pindaré, tocando esses bailes a noite toda, começando de nove até cinco da manhã.
Tocando violão? Tocando já guitarra.
Além de você e Luis Carlos há algum outro músico na família? Meu avô tocava acordeom, mas era só para tomar as pinguinhas dele. Trabalhava na roça, chegava, fazia aquelas melodias de Luiz Gonzaga mais fáceis, só pra curtição mesmo, não foi profissional.
Como foi a reação de teus pais quando você e Luis Carlos começaram a enveredar pelo caminho da música? Foi surpreendente e até inusitada. A coisa que eu tinha mais medo era de falar isso para minha mãe. Eu trabalhava de manhã, vendia leite, bolo, doces na rodoviária, e à tarde eu estudava. E aí surgiu uma oportunidade de viajar para Imperatriz. Eu escutei num parque de diversões na cidade um cara requisitando músicos para formar uma banda em Imperatriz. Aí ele me encontrou: “rapaz, ouvi falar que você toca”, eu já tocava nessa bandazinha pequena de forró.
Você tinha que idade? 14 anos. Aí eu digo: “eu não vou, minha mãe não deixa, eu estudo, e aqui eu ajudo a trabalhar”. E ele: “não, eu falo com tua mãe”. E minha mãe deixou. “Meu filho, olha, se isso for bom pra ti, é isso que você quer, eu já percebi, pode ir. Mas lá arranje um jeito de estudar também”. Aí eu fui dessa forma, parti para Imperatriz, pra começar uma carreira musical mesmo, profissional nessa época.
E como foram as coisas em Imperatriz? Como foi sua inserção? Eu fiquei apenas três meses e voltei. O cara que me levou, me levou para tocar numa cidade do Pará, próximo à Marabá, eu não vou recordar o nome agora, para tocar num cabaré. E não falou pra mim. Eu não me adequei, fiquei com medo, e voltei pra Santa Inês. Fui trabalhar com Raimundo Soldado [cantor e compositor maranhense] em Caxias. Eu fui pro Raimundo Soldado substituir um guitarrista chamado Elias, um monstro de harmonia. E eu, fraco, estava começando. Eu só toquei um baile, fui reprovado. Um cara me chamou, “pô, Chiquinho, os músicos acharam que você tem que estudar mais” e não sei o quê. De lá eu fui tocar nos Jovens, uma banda mais pop. O Raimundo Soldado tocava muito forró, apesar de as músicas dele serem brega, as harmonias que o guitarrista fazia eram uma coisa absurda. Ele agradava muito, foi sucesso nacional. Raimundo Soldado ainda hoje toca em rádio em São Paulo. Ele estourou um disco todinho na [gravadora] Copacabana.
E o que te tirou do forró e do pop? Ainda ali pela rodoviária de Santa Inês tinha uma loja de instrumentos. Naquela época quem fazia sucesso era essa rapaziada aí, [os cantores] José Augusto, Fernando Mendes, Wanderley Cardoso, o próprio Roberto Carlos. A gente ouvia essa música, basicamente. E tinha dois álbuns duplos, empoeirados, mais de dois anos lá encalhados, e eu curioso, fui ouvir, tinha uma vitrola para você ouvir o vinil antes de comprar. Era o The Wall, do Pink Floyd, aquele branco, duplo, e o outro era Minha História, um álbum verde, uma coletânea, de Chico Buarque de Holanda. Eu achei aquilo muito diferente. Aí fui trabalhar para comprar, o cara me vendeu num valor barato, um custo assim, já queria se ver livre, me vendeu duas peças maravilhosas, e achando que estava me enrolando, que estava me vendendo um material de péssima qualidade [risos].
E estava mudando tua vida? Estava me dando caminhos, abrindo portas para eu tocar música de qualidade. Me apresentou o melhor do rock progressivo, que é Pink Floyd, e Chico Buarque de Holanda, que é referência de nossa música popular brasileira.
Se você tivesse que nominar quem você considera teus principais mestres, quem você citaria? São muitos. O ceguinho é o primeiro. Depois eu conheci Armandinho [Macedo, bandolinista] tocando bandolim. Antes de conhecer o trabalho de Jacob do Bandolim eu conheci o Armandinho tocando Jacob do Bandolim, aí foi impactante. A Cor do Som, eu comprava tudo dA Cor do Som, e o outro, Pepeu Gomes [guitarrista], que também toca bandolim. Eu lembro de um pot-pourri que ele começa, já fazia com banda, era tudo muito diferente. É o que eu faço hoje nos meus shows, eu gosto de tocar com banda, e não é inventando, é o que os baianos já faziam, Pepeu e Armandinho. Então, Pepeu Gomes, Armandinho, Robertinho de Recife [guitarrista]. Aí vêm os grandes mestres, Jacob do Bandolim, Pixinguinha, gosto de George Benson [guitarrista], David Gilmour [guitarrista e cantor, vocalista do Pink Floyd]. São meus mestres que me inspiram, minha fonte para a música. Luis Carlos Dias me ensinou os primeiros acordes, mas ele já mudou para Imperatriz e eu fiquei em Santa Inês. Depois eu aprendi, mas ninguém me ensinou: eu aprendi olhando todo mundo tocar.
Depois que você assumiu a música, você trabalhou com outra coisa? É possível viver de música? Só música! Eu sou um operário da música, eu vivo de música. Não é fácil, não. Você tem que ser artista duas vezes. Eu sou produtor, ultimamente meu faturamento é muito mais como produtor que com meus próprios shows, eu faço muito pouco show, toco muito pouco, me apresento pouco por aí.
Mas não por falta de vontade. É por que você vai ficando mais exigente, cada vez mais. Eu dispenso show se não for para fazer com qualidade. Só pelo cachê eu não vou, mesmo às vezes precisando. Por esse respeito, eu tenho muito cuidado com a qualidade, de como eu vou me apresentar. E isso tem imprimido um respeito, eu sinto que eu tenho esse respeito no mercado por conta disso.
São quantos discos gravados até aqui? Cinco cds e um dvd. O primeiro foi um vinil, Novos tempos, o segundo foi o primeiro cd, Em cartaz, o terceiro foi Chiquinho França Instrumental, aquele da capa vermelha que tem os instrumentos na capa, o quarto foi Chiquinho França Instrumental, que eu estou vestido de azul, com uma guitarra branca. Na verdade são quatro cds, os outros dois foram coletâneas, o que tem o dedo assim [faz o gesto de legal, com o polegar erguido] foi o quinto, e o sexto foi o Solos, gravado ao vivo no Teatro [Arthur Azevedo], que é cd e dvd.
E agora saiu esse conjunto bonito. É, agora a gente fez uma nova coletânea [Som do Mará, em cd e dvd]. Eu estava sem disco e fiz aquela coletânea, ficou bem apresentado, gostei do material gráfico.
A partir de quando o bandolim entra na tua vida? Quando eu fui reprovado e dispensado e mandado embora da banda do Raimundo Soldado, quando eu estava saindo com minhas malas, o baterista, que era um cara que ficamos amigos, dormíamos no mesmo quarto, em duas redes, ele conversava comigo e dizia: “rapaz, não desiste, você tem talento, por mim você ficava”. Ele pegou e ligou para seu Cícero, da banda Os Jovens, de Codó, e o cara veio me buscar, eu nem voltei pra Santa Inês, fui direto pra Codó. Lá a recepção foi outra, era uma galera mais jovem, já tocava mais pop, eu já tocava algumas coisas dA Cor do Som. Lá eu me encaixei, fiquei tocando seis meses. E falei pra seu Cícero, que eu gostaria de comprar um bandolim. E ele foi em Teresina e trouxe um bandolim de presente pra mim, um bandolim Trovador. Aí eu não dormi mais, fui estudar bandolim.
Você nasceu em Santa Inês, foi para Imperatriz, depois Codó. Como é que foi até chegar em São Luís? Fui para Imperatriz e formamos a banda Bumbum de Bebê. Era eu, Luis Carlos, eu tocava na Bumbum de Bebê, na parte acústica, bandolim, Luis Carlos, violão, Alfredo Varela, bateria, e Zé Raimundo era o crooner, vocalista. Quando entrava a banda eu tocava contrabaixo e Luis Carlos era guitarrista, ele tinha mais nome, foi o melhor músico, guitarrista e vocalista daquela região na época. Quando nós trocamos o nome para Banda Quatro, aí eu assumi a guitarra e Luis Carlos o contrabaixo. Eu fiz meu primeiro show em Imperatriz, instrumental, e aí percebi a coisa de começar a tocar música instrumental. O primeiro disco, vinil, gravado em Imperatriz, que eu fiz de favor, no estúdio do Carlito Santos, na [rua] Coronel Manoel Bandeira, em Imperatriz, o disco chegou, eu coloquei nas lojas, e eu passava de 30 em 30 dias para pegar a grana, e estavam lá todos os discos [risos]. Rapaz, eu não consegui vender um exemplar nas lojas. Eu já tinha até vergonha, um cara ficava com pena de mim, um dono de loja, “pô, Chiquinho, não vendeu nenhum”. Eu gravei Filhos da precisão, do [cantor e compositor Erasmo] Dibell. Esse vinil veio pra cá pra São Luís e virou tema de abertura do programa MPM, que César Roberto apresenta, ele abria e fechava [o programa Mirante Popular Maranhense] e nas entrevistas tocava Filhos da precisão instrumental.
Foi a primeira gravação de Filhos da precisão? Antes do próprio Dibell? Foi. Foi antes do Dibell gravar. Destacou essa música instrumental, eu fiz um show instrumental, tentei fazer o lançamento desse disco em Imperatriz várias vezes, público nenhum. Eu tentei fazer um show instrumental no Teatro [Ferreira Gullar]. Chico Brasil era gerente do Armazém Paraíba, em Imperatriz. Eu falei “Chico, eu quero fazer um show instrumental no teatro. Tu patrocina?” Ele disse “na hora!”. Ninguém colocava gente naquele teatro, nem Neném Bragança [cantor]. Luís Brasília me deu a mídia na Mirante e aí nós fizemos uma mídia de um concerto instrumental no teatro. Na época a gente cobrava, tipo 10 reais hoje, como se fosse na moeda corrente de hoje, e os shows nacionais lá eram 60. Aí eu puto de raiva cobrei 60 reais, pra ninguém ir mesmo. Meu amigo, venderam todos os ingressos quatro horas da tarde, a 60 reais, e a gente teve que fazer duas sessões. Ganhei dinheiro e fiquei surpreso, uns 30 dias sem entender.
Que ano foi isso? 1983.
Uma coisa que se percebe em teu trabalho é o diálogo permanente entre rock, choro e ritmos da cultura popular do Maranhão. É intencional? Você se sente mais à vontade nesses gêneros? Há quem até me critique, “pô, teu disco não dá para ouvir, vem num estilo, de repente muda, não tem um estilo”. Mas são os estilos que eu gosto. Como é que eu vou fazer? Só se eu fizer discos diferentes. Eu fico com ciúme de fazer um disco só de guitarra e não colocar meu bandolim. É intencional mesmo, é meu estilo, é minha forma de fazer. Já tem pessoas que curtem isso, é interessante, é complicado você querer agradar todo mundo. É o que eu costumo dizer: eu nunca gravo o que eu não gosto. Agora, dentro do repertório que eu gosto, eu tento conciliar com o que meu público curte. Eu sempre escolho meu repertório no palco. Primeiro eu toco, se eu sentir que não houve empatia, eu fico “essa entra, essa não”, é dessa forma que eu monto meu repertório. Tem dado certo.
Além de bandolim, guitarra, baixo e violão, você toca algum outro instrumento? Na verdade eu toco guitarra e bandolim, são meus instrumentos. Nem violão, eu não acho que sou um violonista. Agora no estúdio eu toco até teclado, emendando, né? Mas eu não diria que eu toco. É guitarra e bandolim mesmo.
Algum projeto de disco pensado para breve? Eu sempre estou. Estou com um projeto agora, um trabalho novo, autoral, com ritmos maranhenses. Eu vou pegar, fazer uns dois sotaques de boi, cacuriá, tambor de crioula, pegar isso e transformar numa pegada universal. Pegar células desses ritmos, estou devendo há muito tempo. Era para esse ano, mas eu vou me ocupar, acabei aprovando um projeto na lei [estadual de incentivo à cultura] e consegui captar junto à Cemar [Companhia Energética do Maranhão] e estou trabalhando esse projeto, que é viajar com esse show Som do Mará, só que está indo com outro nome, não vai ser Som do Mará. Esse projeto foi criado para a Vale. O nome ficou Sons e Trilhos, a gente ia fazer o percurso até Parauapebas. Eu vou ficar ocupado com esse projeto até meados de outubro. Então eu não vou ter tempo de fazer esse meu trabalho esse ano, que seria Francisco 5.1, eu estou completando 51 anos de idade e é a sonoridade de dvd.
Fora os teus, que discos têm teus instrumentos na ficha técnica? São muitos, eu não vou lembrar [longa pausa, pensativo]. O Canta Imperatriz [disco com as finalistas de um festival de música da cidade] é um disco que ficou bom, que eu gosto, o projeto Viva 400 Anos [festival realizado em São Luís por ocasião dos 400 anos de sua fundação] tem o dedo da gente, eu assinei a produção daquele trabalho, aquele disco que Augusto [Bastos] produziu, Louvação a São Luís [disco comemorativo dos 390 anos da capital maranhense]. Aí tem os discos de Luiz Jr. [violonista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 4 de agosto de 2013], participei, toquei bandolim, [os cantores e compositores] Zeca Tocantins, Neném Bragança, Wilson Zara. São pequenas produções em disco.
Você tem quantas composições? Muito pouco. Acho que umas 40. Mas nenhum choro. É incrível, eu gosto de choro, mas não consigo fazer. Eu tento, mas nem guardo, não gosto. Eu componho na pressão, eu sou um “jingleiro”. Se tu deixar aqui, pode passar à tarde para pegar, mas sou meio preguiçoso para compor. Mas choro eu não consigo.
Com essa tua dificuldade em compor choro, você se considera um chorão? Não, não me considero. Eu sou meio desconfiado. Por que eu não toco choro, aquele choro tradicional, eu não consigo ficar ali, tocar do jeito que é. Eu pego, boto uma correia no bandolim, faço com batera [bateria], contrabaixo, uma coisa mais pop, e já fiquei sabendo que tem chorão que não gosta. Eu acho que eu sou um guitarrista que toca bandolim.
Pra você, o que é o choro? É a nossa música brasileira, é o nosso jazz. Se duvidar, é o jazz mais bonito, mais complicado, mais rico do mundo, se formos colocá-lo no patamar de jazz. O choro normalmente tem três partes. Tem choros que têm três tons diferentes. Se você realmente não for um músico que conheça o choro você não sai tocando choro. Só se já conhecer as melodias e tiver uma noção do que é choro. Pode ser o músico que for, ele se perde, não acompanha. É complicado! O choro é abrangente, é baião, é frevo, é xote.
Ele pode ser bumba meu boi? Pode ser cacuriá? Pode, desde que se tenha a pegada do choro.
Você fez isso bem em Santa Morena [Jacob do Bandolim]. É, coube ali, ficou legal, né?