Um é especialista em jazz, o outro em rock. Ambos têm programas de rádio dedicados aos gêneros a que se dedicam. Um tem livros publicados sobre o assunto, o outro tem uma banda. Estamos falando dos Pellegrini, pai e filho, Augusto e Paulo.
Hoje eles se encontram no palco do Amsterdam (Lagoa), no show Do blues ao rock, que promoverá o encontro de Augusto Pellegrini com a Mr. Simple, de Paulo Pellegrini (voz e teclado), Otávio Parga (contrabaixo), Marcio Reis (guitarra) e Nuna Gomes (bateria).
No repertório caprichado, nomes como Elvis Presley, Ray Charles, Eric Clapton, Beatles, Pink Floyd e Louis Armstrong, entre outros. O show acontece às 21h30min e os ingressos custam R$ 20,00. É pra mais que se sentir em casa: é pra se sentir em família.
O blogue voltará ao assunto em tempo hábil, mas avisa, de já: Ronaldo Rodrigues tocará na próxima terça-feira (28), às 19h, no Teatro da Cidade (antigo Cine Roxy), ocasião em que se apresenta naquele palco o grupo Jorge Amorim e Tribo. Os ingressos custam R$ 20,00.
Do rock e blues ao choro: 14º. entrevistado da série Chorografia do Maranhão cursa bacharelado em bandolim na UFRJ e planeja para breve uma apresentação de seu grupo, Novos Chorões, em São Luís
Era um sábado ensolarado e o Regional Tira-Teima passava o som para uma apresentação na Barraca Paradise (Av. Litorânea). Naquela ocasião o músico Ronaldo Rodrigues daria uma canja com eles, antes de receber alguns amigos na casa dos pais, onde se hospedava, para uma deliciosa favada.
Bandolinista e chorão, Ronaldo já foi – ainda é, melhor dizendo – guitarrista e bluesman. Teve passagens por grupos em São Luís – Palavra de Ordem, Bota o Teu Blues Band e Som do Mangue, hoje Nego Ka’apor – além de uma temporada em Londres, onde chegou a tocar no palco paralelo de um festival que tinha ninguém menos que James Brown no palco principal.
Ronaldo Pinheiro Rodrigues Filho nasceu em 28 de março de 1977, filho dos administradores de empresas Raimundo Pinheiro Rodrigues e Maria Ceci de Miranda, que a princípio desencorajaram-no do ofício. Mas Ronaldo teimou. E considera seu tio Solano [Francisco Solano, violonista sete cordas, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 26 de maio de 2013] – integrante do Regional Tira-Teima, ele acompanhou parte da entrevista – o maior responsável pelo que é hoje.
Cursando o bacharelado em bandolim na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ronaldo tem vindo semestralmente à Ilha, matar as saudades de familiares e amigos. Planeja para entre dezembro e janeiro trazer para cá uma apresentação de seu grupo, Novos Chorões, chancelado pelo homem-dicionário musical Ricardo Cravo Albin. Voltar à Ilha em definitivo não está em seus planos. Ao menos não por enquanto.
Além de músico, você tem outra profissão? Não. Hoje em dia sou só músico. Estou estudando na UFRJ, fazendo o bacharelado em bandolim, com o professor Paulo Sá. É o primeiro curso de bacharel na América Latina, não tem outro. Não tem ninguém ainda que tenha se formado, tem três alunos na minha frente, mais antigos. São duas vagas por ano. A tendência é aumentar. Por ser a única da América, o pessoal de fora, até dos Estados Unidos, está procurando vir para cá.
Eu sabia de cursos de bandolim na Itália. O [bandolinista] Jorge Cardoso foi estudar lá. Então, o Paulo Sá, o doutorado dele é de lá.
Quando você partiu para o Rio? Em 2007. Eu trabalhava com navegação e larguei tudo para ir pra lá, pra arriscar, como tou arriscando até agora.
Você atuou em outras áreas antes de se dedicar integralmente à música. Eu morei quatro anos na Inglaterra, onde aprendi a falar bem o inglês. Devido ao inglês, quando voltei pra cá, eu consegui um emprego com navegação, que exige inglês. Aí fui pegando jeito e passei cinco anos fazendo isso.
Como era o universo familiar na infância? A música era forte? Não. Música lá em casa é bem difícil. Meus pais não têm esse costume de escutar música, não é uma prática deles.
Como é que começou teu interesse por música? Através dos amigos, que gostavam de música, pelas amizades da adolescência. Eu tenho um amigo chamado Cassiano Viana, jornalista, está lá no Rio, a gente se fala com frequência.
Quais foram as primeiras descobertas musicais? Parece que antes de cair no choro você passou pelo rock. Pelo blues. Então, esse Cassiano Viana tinha uma banda chamada Palavra de Ordem aqui, bem antiga, era pop rock. Eu comecei tinha 11, 12 anos, ele me ensinou a tocar baixo. Aliás, eu tava pegando baixo, e pedi à minha mãe um contrabaixo e ela veio com uma guitarra, que ela não sabia a diferença de baixo e guitarra [risos]. Como eu não sabia tocar nada também, peguei a guitarra. Aí começou o rock assim, fiz parte de uns grupos de blues.
Você lembra o nome desses grupos? Tem a Bota o Teu Blues Band, foi uma delas, e a Palavra de Ordem, antes de ir pra Londres. Na família, além de Solano, tem Jean Carlos, que escuta muito rock progressivo. Ele ia muito no [programa de rádio] Vertentes, que era na Mirante, com [o radialista] Gilberto Mineiro. Com ele eu escutei muito progressivo, ele sempre me apoiava pra tocar, o filho dele tava morando uma época na Inglaterra e ele ofereceu, se eu quisesse ir pra lá passar um tempo. Eu não tava conseguindo passar em vestibular nenhum aqui. Aí eu fui pra lá, com a guitarra debaixo do braço.
Lá você também estudou? Lá eu toquei em várias jams de blues, jam sessions, aí teve um grupo de rock chamado Plastic Grapes, Uvas de Plástico. Com eles eu até toquei num festival, que é comparado com o Woodstock, o Woodstock que rendeu. Quando a gente tava num palco paralelo que dava uma parada a gente escutava James Brown, que ainda era vivo, no palco principal. Acho que em 1999 ou 2000.
Você aprendeu a tocar com mais ou menos que idade? Que já sentia certa segurança… Acho que com 15, 16 anos.
Lá em Londres você passou quatro anos só tocando? Não. Lavei e limpei muito prato [risos]. Mas tentando sempre na música. Aí com quatro anos resolvi voltar. Até então eu escutava muito rock e muito blues. Fui me interessar por música brasileira lá. A concorrência, é que nem um gringo chegar aqui e querer tocar choro e samba. Um dia eu toquei Garota de Ipanema [Vinicius de Moraes e Tom Jobim] sem querer, brincando, e todo mundo ficou assim, ahn?
E como é que começou essa história do choro? Quando eu voltei de Londres eu falei “vou tocar choro, quero tocar choro”. Liguei até pra Solano pra pedir umas aulas de violão. Eu não fazia noção do que era. Ele disse: “traz teu instrumento aqui, vamos fazer uma roda”, e eu cheguei com um violão de aço. Aí ele disse: “não, encosta teu instrumento aí”, e eles ficaram tocando, eu fiquei vendo, acho que tava o Tira-Teima todo. No final, eu falei que tocava guitarra, e Celson [Mendes, violonista] tirou uma guitarra do carro dele e um amplificadorzinho. Aí eu falei “eu não toco choro. Eu toco blues, jazz”, ele tirou um tema de jazz, e aí eu fiquei à vontade.
Voltando pra Londres: tua descoberta da música brasileira, digamos assim, ela começou com aquele brincar com Garota de Ipanema ou houve algum disco? Como foi? Eu paguei uma aula para um professor do Rio Grande do Sul, não recordo o nome dele agora, eu o vi tocando uma vez num barzinho, música brasileira, peguei um cartão e ele dava aula e eu comecei a ter aulas com ele, aulas muito boas. Ele perguntou: “você quer fazer o quê?” “Eu quero tocar música brasileira”. Tinha muita MPB, bossa, Vinicius de Moraes, Chega de Saudade [Tom Jobim e Vinicius de Moraes], Tom Jobim.
No teu universo familiar não teve muita vivência musical. Teus pais nunca te atrapalharam? Nunca pediram que você se desinteressasse pela música? Um pouquinho. Aqui em São Luís tem pouco acesso à cultura, à arte, é uma coisa meio assim, underground, eu acho até normal eles se preocuparem em ter um filho que vai se especializar em uma coisa que vai dar o quê, né? Demorou um pouquinho para eles apoiarem. Hoje em dia eles apoiam muito. Tanto é que eu estou lá, graças ao apoio deles.
E o bandolim? A partir de quê a escolha por este instrumento? Solano viu que eu tinha facilidade com melodia e o bandolim é um instrumento melódico e ele sugeriu que eu comprasse um. Solano é da família, eu chamo de tio, primo do meu pai. Eu lembro muito bem de um barzinho que tinha lá perto do Barramar e Solano falou pra papai: “Ronaldo tá nesse negócio de música, então vai pra Escola de Música [do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo], bota na Escola”. Mas conselho que é bom… Se fosse desde aquela época…
Então Solano tem uma grande responsabilidade pelo que és hoje. Se perguntarmos então quem foi a pessoa que mais te influenciou? Claro! Foi Solano, sem dúvida. E o Tira-Teima [Solano diz que o levou para o regional].
Ele foi estagiário do Tira-Teima? [risos] Foi. Inclusive fui eu quem apresentou o [flautista] João Neto pra vocês [fala diretamente para Solano, que concorda]. Eu já conhecia João Neto de outros carnavais. Ele tava no Rio, na Escola Portátil, ele apareceu aqui, a gente se encontrou, e eu disse: “rapaz, tem um pessoal aqui que é bom pra porra!”.
João Neto também é um cara que vem do blues e do rock para o choro. Vocês já tinham tocado juntos antes? Juntos não. Eu tocava no Som do Mangue [banda liderada por Beto Ehongue, hoje Nego Ka’apor], ele na [banda] Mandorová, a gente dividiu uma noite uma vez. Era a mesma turma.
Como foi a tua inserção no choro no Rio de Janeiro? Você hoje ocupa um espaço, é reconhecido por nomes como Ricardo Cravo Albin. Como é que foi esse processo? Foi aquilo, assim, eu cheguei com meu instrumento debaixo do braço.
Quem te deu aula aqui de bandolim? Ninguém. Foi sozinho. Tem uma figura muito importante, que foi o Moraes, toca violão, é um bom compositor, foi até certo estágio na Escola de Música. Com ele eu estudei teoria musical. Eu pensei que quando acabasse o livro de teoria musical todas as perguntas estariam respondidas, mas só fez aparecer mais perguntas. Música instrumental, não só o choro, mas o jazz, o Moraes me ajudou muito. Eu cheguei no Rio com uma bagagenzinha, tanto teórica quanto prática. Fui à Escola Villa-Lobos, um curso técnico, onde encontrei o Paulo Sá, ele estava montando ainda o curso da UFRJ, e ele deu esse toque logo no começo e propôs que eu fizesse o vestibular quando acontecesse. Na Escola Villa-Lobos foi que eu conheci os meninos, que a gente formou o grupo lá. No dia da prova [de seleção].
O que tem nesse disco? [um demo com que Ronaldo presenteou a chororreportagem] Esse disco é um cartão de visitas. Tem músicas, tem nossos contatos, ele só roda no PC, tem um releasezinho. Tem três composições. Choros, que a gente sentou pra conversar, criar um conceito. Dois nomes surgiram: [os grupos] Água de Moringa e Tira Poeira. Era mais ou menos alguma coisa entre as duas coisas o que a gente estava querendo criar. Era mais esse conceito de fazer uma música instrumental, além de choro, bem elaborada, com um toque mais moderno, sofisticado. A gente está tentando pegar essa cara.
Qual a idade dos Novos Chorões? Vai fazer seis anos. Eu falo seis anos, mas os dois primeiros anos foi mais a gente aprendendo mesmo, todo mundo se juntando com o objetivo de tocar bem e sabendo a deficiência de cada um, mas cada um batalhando, evoluindo, estudando.
Vocês saíram já chancelados pelo Ricardo Cravo Albin. O que isso significa? A gente fazia um choro na feira de antiguidades da Praça XV, a gente arriscou fazer passando o chapéu, sem nenhum patrocínio. Em um desses o Ricardo estava lá presente e convidou a gente a abrir os saraus que ele fazia no Instituto Cravo Albin, na Urca, lá onde ele administra, toma conta. Aí tivemos a chance de tocar com [o bandolinista] Joel Nascimento, o Sarau com Joel, a gente fez umas quatro, cinco vezes com ele.
Quando você faz a transição do blues para o choro, houve um abandono do blues ou hoje você usa elementos do blues para tocar choro? Eu carrego muitos elementos da guitarra para o bandolim, mas eu parei de fazer isso por que estava atrapalhando. São duas linguagens diferentes. Eu vejo mais hoje em dia na faculdade as técnicas do instrumento. Eu pensei que o bandolim fosse me ajudar na guitarra, mas não ajuda muito não. São técnicas realmente diferentes.
Você continua tocando guitarra? Continuo.
Em grupos de rock? Não. Lá no Rio eu estou acompanhando um baterista chamado Jorge Amorim, que é um baterista de música autoral, tem muito da world music, morou mais de 19 anos fora, nos Estados Unidos, na Europa, e nos encontramos lá no Rio e propôs a gente levantar o trabalho dele aqui. Eu tinha outros músicos com quem estava tocando guitarra, jazz. A gente levantou esse repertório e tem tocado por aí.
Você foi para o Rio, se inseriu na movimentação chorística carioca, conquistou um espaço considerável para o grupo. Dá pra viver de música lá? Dá pra sobreviver. Falta muito. Acho que a gente dá um passo de cada vez, priorizando a qualidade do trabalho, pra gerar trabalho, bons trabalhos. Trabalhando em projetos também. A gente tem projetos separados, a maneira como vamos preparando, a gente vai estudando, já conseguimos algumas coisas com Sesc, Prefeitura, faz muito barzinho. Ainda é meio apertado, mas é questão de tempo. Todos do grupo vivem de música. Eu vim aprender a ser músico há pouco tempo: tem que se dedicar muito.
As coisas têm mudado de uns tempos pra cá, mas no Maranhão o artista ainda é o faz tudo: pensa projeto, carrega caixa, ensaia, toca, canta. Existe alguma diferença do Rio? Como é a realidade de vocês, hoje? Tem isso no Rio também. O produtor só vai se interessar em produzir algo, quando aquele algo tá pronto ou meio pronto. A gente continua se produzindo ainda, mas vai chegar um ponto que vai despertar interesse do produtor que faça isso pra gente. Antes da internet o mercado era outro, o artista não estava tão na pista como está hoje. Mas ainda é isso, a gente fazendo projeto, ensaiando, carregando as coisas.
Você toca em outros grupos? Acontece de fazer substituições, principalmente entre alunos da escola, quando alguém não pode, me indica e vice versa. Mas basicamente eu tenho tocado só com os Novos Chorões e com o Jorge Amorim.
Você se considera um chorão? O que significa ser chorão, para você? Eu me considero um chorão. Ser chorão é você saber aplicar a linguagem que o choro oferece. Cada estilo de música tem sua linguagem, os seus detalhes específicos. Ser chorão, acho que é isso, é saber que gênero é aquele, de que maneira aquilo é tocado, é composto. Ser chorão é mais aquele músico que se especializou naquele gênero, no caso o choro, e que muitos [músicos] não são abertos a outros [gêneros]. O choro está na música instrumental e a música instrumental é bem abrangente, tanto é que o choro abrange outros ritmos, não só o choro: você tem a polca, tem o maxixe, o frevo, a valsa, a ciranda lá em Pernambuco, o bumba meu boi aqui.
Tem o Beatles in choro [caixa de discos em que diversos instrumentistas tocam músicas dos Beatles em ritmo de choro, sob a batuta do cavaquinhista Henrique Cazes] Por que os Beatles, as composições deles são bem tonais como é o choro. O blues, por exemplo, já não é. Eu tive muita dificuldade para partir para a música popular brasileira por que meu ouvido sempre foi modal, por que o blues é modal. Os Beatles é isso, as composições dão certinho com o choro por que tem todo esse tipo de composição, tônica. O choro vai mais ainda, tem as modulações, são três partes. Os Beatles normalmente são duas partes, tem choro de duas partes, mas encaixa legal. Antigamente eu tentava fazer uma comparação do choro com o jazz, mas tem mais diferenças do que semelhanças. A semelhança é justamente na mistura da música erudita com a música negra.
O improviso. O improviso nem tanto, por que o choro ele é mais preso pra improviso do que o jazz, o jazz é muito mais aberto. É uma característica do jazz. Até harmonicamente ele te dá liberdade para o improviso.
A semelhança talvez seja mais cultural. O jazz ainda é uma manifestação de confirmação das raízes negras. Aqui não tem isso. O choro foi elitizado.
Mas você não acha que dá pra dizer que o jazz é o choro dos Estados Unidos e o choro é o jazz do Brasil? Acho isso muito perigoso. Outra semelhança que tem é justamente a acessibilidade do negro, através das bandas militares. Lá também, quando surgiram, muitas bandas marciais deram chances a pessoas sem condições de uma educação musical e onde foram expostas ideias.
Qual a importância do choro para a música brasileira? O choro representa o que a música brasileira tem de melhor pra mostrar. É o que o Brasil tem de melhor para mostrar com relação à música. É o mais elaborado, é o bem feito, mostra o poderio de composição dos brasileiros, sua identidade.
Você parece muito à vontade na seara do blues e do choro. Você se sente mais à vontade na tristeza do blues ou na alegria do choro? Boa pergunta! Não sei. Acho que as duas coisas. É o yin e o yang. Eu nunca tinha pensado nisso.
Como você observa o movimento do choro, a cena, hoje no Brasil? Durante muito tempo o choro foi associado à “música de velho”. De uns tempos para cá parece ter havido uma mexida nessa ordem. Com certeza! A gente vê no Rio a Escola Portátil. É de super importância o que o pessoal está fazendo: pegar uma garotada, muita gente nova se interessando, vendo a importância que o choro tem e eu acho muito legal a oportunidade de ter o pessoal tarimbado dando os toques específicos daquele gênero de música. Quem quiser tira bom proveito daquilo e tem muitos jovens que estão fazendo isso. O cenário da música lá no Rio, tem muita gente nova, muita gente boa.
Como é a relação dos mais novos com os mais velhos? É generosa, de competição, de desconfiança? Acho muito bem vinda. Eu costumo fazer parte de uma roda de choro todos os sábados na [loja de instrumentos musicais] Bandolim de Ouro. Tem muita gente com idade, que eu considero chorões. Sempre que a gente chega eles gostam. Falam “ah, vocês que vão continuar” e tal. Voltando a falar da cena, acho que o Rio caiu um pouquinho. Teve um boom, mas acho que está aparecendo mais coisas em São Paulo. Recife sempre foi um polo diferente e independente, tem a sua escola. Até [o bandolinista] Luperce Miranda, falando de bandolim, lógico, Jacob [do Bandolim] foi a escola que mais foi passada, mas Luperce é uma escola completamente diferente, é outra técnica. Depois de formar estou querendo fazer um doutorado sobre isso, a influência italiana no Brasil. A maneira que ele toca é um bandolim napolitano, a maneira que Luperce toca tem mais trinado, estou estudando ele.
Qual o significado de Jacob para o bandolinista moderno? Jacob além de fazer muitas composições clássicas de choro, fez muitas composições moderníssimas, apesar do discurso conservador que ele tinha. Tem que passar por Jacob, não tem jeito!
Quais as tuas maiores referências para blues e para choro. Olha, blues, eu escutei muito Clapton. Sou fascinado por Eric Clapton [guitarrista e cantor]. Tive tudo dele. Estou passeando mais pela praia do jazz hoje em dia. O blues eu larguei um pouquinho. O blues te limita um pouco, esse ouvido tonal, eu fiquei muito preso ao blues. Tenho escutado muito jazz, escutado as guitarras de Charlie Christian, o primeiro jazzista que tirou a guitarra do acompanhamento e botou no solo, [os guitarristas] West Montgomery, aí vem Joe Pass, George Benson, eu tenho ouvido mais isso. Mas o blues é essencial pra tocar jazz. No choro tem Pixinguinha. Acho que é o grande mestre, até mesmo em relação a essa mudança do choro bem tradicional, que veio de Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazaré. Aí Pixinguinha vem e dá uma quebrada, depois daquela viagem à Europa com Os Oito Batutas. É a referência mais completa.
Que chorões, hoje, te chamam mais a atenção? Eu tenho admirado muito o maestro Laércio de Freitas [pianista]. Ele seria um. No bandolim tem o Ronaldo do Bandolim [do Trio Madeira Brasil], que é muito bom, pra mim é o melhor, com relação ao instrumento, hoje em dia. Tem o Danilo Brito, que tem uma técnica, uma mão direita impressionante, com muita naturalidade. Vi um show dele no Rio, fiquei impressionado. Admiro muito os professores também. O Paulo Sá toca choro, mas o disco dele é bem eclético. [O cavaquinhista] Henrique Cazes, peguei aula de prática de conjunto, [o violonista] Marco Pereira, harmonia profissional, tem uma cabeça muito moderna, excelente improvisador.
A renovação de que você fala que acontece no Brasil, você também tem percebido no Maranhão? Sim, sim. Quando eu saí daqui, tinha o Tira-Teima fazendo, era só o Tira-Teima. Apresentei João Neto pra Solano, ele passou a ir com frequência e era só isso. Agora, depois de uns anos, quando eu voltei, já tinha uns três bandolins. Eu fiquei impressionado a última vez que eu estive aqui, toquei com o Tira-Teima no Barulhinho Bom e o João Neto trouxe o Robertinho [Chinês, cavaquinhista e bandolinista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 28 de abril de 2013], impressionante. Ele tem uma facilidade, uma técnica apuradíssima. Fiquei feliz de ver.
A primeira vez que ouvi falar em Pitomba como nome de uma editora foi mais ou menos há cinco anos. Era uma reunião entre amigos, inclusive livreiros, sobre a organização de uma editora e Bruno Azevêdo, que tinha ideia semelhante, foi contatado, aparecendo já com a sugestão do nome Pitomba, que causou estranheza geral. Achei até bom para os textos que ele fazia, bastante influenciados pela linguagem dos quadrinhos, mas ruim para os livros que tínhamos em mente publicar de imediato, sobre São Luís e o Maranhão. O projeto da editora “séria”, entretanto, gorou muito cedo. A obsessão de Bruno com a Pitomba, felizmente, não.
Conseguiu, então, um logotipo canalha para o selo, uma pitomba que é também uma bomba, expressando de forma bem inteligente a dupla face da coisa, e começou a publicar livros e outros materiais. Os livros sempre trazem seis tópicos colocados como manifesto, programa ou algo similar, ou talvez apenas uma grande tiração com isso tudo, afirmando que a palavra “não é palavra, antes de ser ouvida” e, se há de ser dito, “que seja dito com cacófatos e microfonias, pra que, assim, quem ouça também diga” (…) “porque a informação não se pertence e a posse de ter é a posse de dar e é essa posse que reivindicamos”. No resumo, “porque para além do caroço, que é quase tudo, existe a casca, que se quebra, e existe a polpa, que se quer: pitomba!” Sacou?
Pois é, muita gente sempre torceu o nariz pra esse “manifesto” da Pitomba, mas ele continuou lá. Nesse tempo ainda inicial, Celso Borges voltava de São Paulo, após vinte anos, enquanto Reuben da Cunha Rocha fazia o caminho inverso, não sem antes eles se cruzarem, resultando na invenção de uma revista sem periodicidade ou critério de classificação. Decidiram embarcar no nome e na tirada do logotipo e batizaram a nova cria com o mesmo nome da editora.
Nascia a Pitomba, uma revista fora do sério, pra provocar e avacalhar, na trilha da literatura, das artes, mas num clima underground, de liberdade e doideira, que aqui sempre é difícil. Nada muito sofisticado, apesar da elaborada e agressiva diagramação, nem de bairrismos, nordestinismos e outras baboseiras, tão comuns em publicações regionais, apesar de trazer em seu cerne um princípio corrosivo que se volta diretamente contra a antiga cultura ateniense e contra a exaltação publicitária da cultura popular.
Material cru, pra saborear com sangue: poesia variada (da boa e da ruim, quem sou eu, hein), traduções, frases-bomba, desenhos malucos, fotografias, quadrinhos, novelas, fotonovelas, pornografia variada, sátira política, crítica cultural e o que mais pintar. Em quase três anos e apenas cinco números lançados, acredito que este seja um caso muito estranho em que nem os editores nem os (poucos) leitores parecem saber ao certo do que trata mesmo a revista e até o que esperar dela. Justamente aí, no entanto, reside o melhor da coisa. Existe uma diferença entre a editora e a revista, a primeira saiu da cabeça de Bruno e é dirigida por ele, a segunda, não. Mas uma é a cara da outra na disposição anárquica, no traço de caravana.
Pitomba não chegou a se configurar como “movimento” ou “coletivo”, é bem menos complicada, nem tem objetivo claro ou programa é, antes, fruto de uma f(r)icção de individualismos, que se estimulam e energizam no coletivo. Talvez se resuma mesmo apenas a um “estado de espírito”, uma caravana aberta aos acasos, onde ressoa a necessidade urgente de acelerar a destruição de determinadas ideias canonizadas sobre cultura e literatura, num lugar onde estes termos tornaram-se sinônimos de tombamento, de exaltação vazia. Para isto, apostaram decisivamente na estratégia do atrito. Como disse Celso em entrevista: “eu acho que tem que manter o atrito, é uma característica da revista. Isso a gente não tem que abrir mão, nem é essa coisa do atrito, é a coisa da irritação mesmo”.
Na cultura da afirmação e do elogio em que vivemos, mergulhados na sedação da mediocridade, a estranheza e o incômodo que a revista pode causar se traduziu apenas no silêncio, no desconhecimento puro e simples. Nada de espantar, Narciso só repara nos seus próprios movimentos e na situação atual da cidade, quatrocentona em estado terminal, não consegue esboçar mais nenhuma reação senão aos clichês do próprio espetáculo.
Entretanto, tal reação (ou ausência de) nunca mudou nada na determinação dos editores, na lógica radical explicitada por Reuben: “nós não temos apoio, portanto faremos”. É um caso de combinação, de articulação entre o individual e o coletivo, de pulsações que se encontram na mesma pegada. Sem a diagramação, a anarquia e a putaria de Bruno, a revista perderia sua linguagem mais atual e desconcertante; sem Celso, a cara da poesia, sua capacidade de misturar códigos e, principalmente, a disposição de juntar, a revista sequer existiria; e sem Reuben, perderia na crítica cultural, feita diretamente ou através de traduções que são também finas transposições de situações, reflexões, e na experimentação, ou seja, perderia em densidade e aventura, risco.
No geral, um não gosta de poesia, enquanto outro não vive sem ela, nem se sente à vontade com os quadrinhos e outro transita mais facilmente entre estas linguagens; um gosta de brega, outro é roqueiro de raiz, mas aberto, ouve de tudo, enquanto outro anda garimpando todo tipo de experimentalismo e doidice sonora. No fundo, eles terminam se encontrando na eletricidade do rock e na firme disposição em embaralhar e ampliar o escopo do que seja literatura, sem nenhuma preocupação com convenções, prêmios, público, nada.
Pra fazer a revista, não é fácil, é uma briga. Segundo o depoimento dado em entrevista preciosa ao Vias de Fato, feita por Zema Ribeiro e Igor de Sousa, Celso precisa tocaiar Bruno e “hostilizá-lo” para a coisa começar a sair do papel e das ideias para o computador. Recolher o material nem é tanto o problema quanto traduzir isso tudo em forma gráfica, em diagramação. O processo costuma ser mais fácil quando está presente o ponto de união entre os extremos, Reuben. Mas ele mora longe, tornando o lance mais complicado. Foi o que vimos neste segundo semestre. Celso, envolvido com várias coisas, não obteve êxito na tocaia e Bruno conseguiu escapar, colocando todos os esforços no Isabel Comics! ano II, no Baratão 66 e outras iniciativas da editora Pitomba. Era muito difícil mesmo a missão de Celso, mas agora ele terá a ajuda de Reuben para tocaiar e prender Bruno, o passo decisivo para a elaboração da Pitomba.
Não tem a revista no final do ano (e que ano intenso!), mas tem uma festa de arromba da editora nesta quarta 11/12, no QG de quase todas as experiências de doideira que tem rolado nos últimos anos por aqui, o Chico Discos. É a Pitomba espocando pra valer, lançando de uma tacada mais quatro publicações de seu já variado catálogo, que até agora comporta quadrinhos, “novela trezoitão”, poesia, ensaios, “romance festifud”, e experiências para além de qualquer classificação.
É o caso do livro de Reuben, As Aventuras de Cavalodada em + Realidades Q Canais de TV, o mais louco dos novos lançamentos. Manipulando principalmente o aforismo e outras formas fragmentárias, como o anúncio, a citação, a colagem, no ritmo da escrita sintética das redes, saturada de visualização e sonorização, o livro destila veneno pra todo lado, numa percepção ácida e virulenta da cultura do espetáculo e da brutalização do cotidiano. Respira e transpira todo o clima de insurreição cultural que já se insinua claramente em certos círculos da moçada mais criativa das cidades.
Em movimentos rápidos, toca em temas como circulação e apropriação dos espaços urbanos, através de figuras tão inesperadas como o mijador de rua e o skatista; a crise dos sistemas de signos, através do pixador (assim mesmo), “cavalo das ruas”, o anunciador do “estado da escrita na realidade onde vivemos”; ou as relações entre diamba e bruxaria, vale dizer, entre a maconha e experimento de sensações, a questão crucial da alteração da percepção num mundo de sobrecarga visual e atrofia de sensibilidades.
As Aventuras de Cavalodada estão carregadas da experiência urbana contemporânea, da redefinição da relação com o espaço, buscando discernir a “camuflagem superposta da comunicação das ruas”. Tenta mesmo fundir novamente cidade e literatura, na esteira dos modernistas mais radicais, e neste sentido é texto complexo, um grito contra o “pensamento pobre” e o “pensamento conveniente”. Pode até ser lido como pura curtição, mas, no fundo, é de leitura densa, na leveza enganosa da colagem de curiosidades ou reflexões ditas de maneira extemporânea.
Depois de alguns trabalhos publicados, entre eles o incrível O Monstro Souza, seguramente um dos retratos mais cruéis e cômicos já feitos da cidade de São Luís, realismo fantástico do século XXI, Bruno traz à luz o Baratão 66 (ou 69, depende da hora), uma novela em quadrinhos, misturando erotismo, sátira e crítica de costumes, ao seu estilo. Agora, no entanto, aparece mais afiado, com o controle maior do ritmo e do entrelaçamento das partes da narrativa, feita em camadas que se revelam aos poucos, como um saco infindável de surpresas.
Este é um traço em que ele vem caprichando, principalmente com a experiência de A Intrusa, novela erótica em 12 capítulos, publicada originalmente como folhetim no jornal alternativo mensal Vias de Fato e também já disponível em forma de livro pela Pitomba. O enredo, desta vez, se desenrola numa casa que, durante o dia, funciona para depilação, cuja especialidade são os desenhos nos pelos pubianos, o Baratão 66; e, durante a noite, transforma-se num puteiro, o Baratão 69, onde se aceita tudo, menos “fazer cu fiado”.
Bruno fala da sacanagem e dos puteiros como traço identitário do maranhense e satiriza um futuro reconhecimento como patrimônio da cultura, através da instalação da Casa de Cultura Baratão 66. A trama é cheia de surpresas, envolvendo Francinete, a dona do bordel e seus ataques com as lembranças do marido, suas filhas e a ambição de deixarem a vida de puta, o porteiro apaixonado pelo padre, mas com obrigação de comer a velha matrona, o representante da Piu-Piu, franquia de desenho de boceta e o governador, sonho de dez entre dez putas do Baratão que almejam algum golpe na dureza da vida.
A edição é cuidadosa e os desenhos de Luciano Irrthum são um ponto alto, onde afinal se materializa todo o tom de excesso da trama. O livro saiu com duas capas diferentes, à escolha do freguês e é repleto de detalhes gráficos. Tem ainda um posfácio escrito por quem entende do riscado. Enfim, uma beleza, presentão de natal, “quadrinhos para toda a família!”.
O pacote traz também o livro de Celso Borges, O futuro tem o coração antigo, uma experiência com “poemas fotográficos” e imagens do centro antigo, em fotografias tiradas por alunos do Curso Técnico em Artes Visuais do IFMA, utilizando um dos métodos mais antigos, sem lentes, com câmeras feitas à mão, com latas ou caixas, um furo em um dos lados e um pedaço de filme no outro. É o método pin hole, criando imagens não muito nítidas e que podem sofrer deformações ou alterações variadas, dependendo do formato das caixas e do tempo de exposição do filme à luz.
O resultado é um encontro conflituoso do poeta consigo mesmo e com a cidade, numa superposição de suas metamorfoses, em que os tempos se embaralham e a poesia tornada palavra-imagem e palavra-som (o trabalho se completa com o vídeo, feito em colaboração com Beto Matuck) se volta sem melancolia ou saudosismo, mas não sem saudade, para uma cidade que, numa palavra, simplesmente morreu, não existe mais. A edição, como sempre nos trabalhos de Celso, é caprichada, o texto todo datilografado numa máquina Hermes, criando um detalhe estético forte associado à questão do tempo, papel de primeira, textura em preto e branco, formato retangular, capa dura. Um luxo.
Tem ainda um romance que é a estreia de Jorgeana Braga na prosa, A Casa do Sentido Vermelho, ela que tem um livro de poesia publicado na Pitomba. Este ainda não li, vou adquirir no lançamento, mas já comecei a gostar pela capa, sem contar o que ouvi falar acerca da beleza de sua escrita. A conferir.
Enfim, com site na rede, um cartel de cerca de dez publicações (já com material fora de catálogo), uma caixa de madeira novinha pra venda ambulante e, principalmente, muita irreverência e disposição para chutar o pau da barraca, a Pitomba está em festa e justa celebração, literalmente “cuspindo os caroços”. Editora, revista, espaço de criação, base de lançamento… É Pitomba neles!
Ainda lembro bem que da primeira vez em que ouvi falar – ou da primeira vez em que fui a um show, a ocasião já não lembro bem – entendi errado: em minha cabeça a banda se chamava Pé de Ginga. Isto por que, visto o show, notei que ginga não lhes faltava, gingado de sobra mesmo em momentos mais lentos, menos dançantes, em que o vocalista e guitarrista Paulo César Linhares encarna um bardo a recitar em meio às melodias, embora as alternâncias entre, digamos, dança e poesia, não delimitem necessariamente o momento de dançar e o momento de pensar, de se ligar nas letras da banda. Tudo é forte e bem amarrado, as forças poéticas e melódicas características interessantes da Pedeginja, este sim o nome real e interessante do grupo.
A trupe sem os metais
E que grupo! Uma superbanda: André Grolli (bateria), Jéssica Góis (voz), João Vitor de Miranda (o Jovi, voz), Paulo César Linhares (voz e guitarra, principal compositor), Pedro Vinicius (guitarra) e Sandoval Filho (contrabaixo). A formação se completa com um poderoso trio de metais, outra característica que se sobressai na sonoridade da banda: Bigorna (trompete), Davi Neves (saxofone tenor) e Paulo Vinicius (saxofone alto). A turma estreia agora com Contos Cotidianos, disco que brota maduro, pronto para o consumo de apreciadores de boa música. De jovens para jovens de todas as idades.
Conto de um pé de ginja, faixa de abertura do disco, antecipa seu conteúdo, funcionando como um cartão de visitas do grupo, que diz a que veio neste prefácio, para usarmos uma referência literária, fazendo jus ao título desta estreia. Longa demais para ser uma vinheta, é autorreferente e tira um sarro de São Luís, terra natal da galera. “Um pé de ginja furou os azulejos/ e lombrou o azul colonial ludovicense/ com a pujança de seus ramos multiformeados”, diz a letra. E promete: “seus frutos percebidos não hão de ter donos/ espalharão sementes onde quer que haja ouvidos atentos”.
“Se você me dissecar não vai sobrar tom sobre tom”, diz a letra de Salsa de um ex-amor, em que o compositor parece querer enganar-se de propósito: dissecando a Pedeginja restam Tom Jobim, cujos ecos bossanovistas podem ser ouvidos também na faixa seguinte – Condução, em que transparece o bom humor da banda – e em Quadro somático, além da referência explícita a Caetano Veloso e seu antológico Transa.
Vovó de férias no séc. XXI é uma versão bem humorada, provavelmente carregada de pitadas biográficas, de alguma parenta mais velha da turma, com recados sutis a gente da laia de Jair Bolsonaro e Marco Feliciano: “a família já não é mais a trindade/ tem pai com pai e mãe com mãe,/ bem à vontade”.
Candidata a hit radiofônico, Pernas curtas é, como entrega o título, uma canção sobre as mentiras que todos nós contamos, “pode ser por muito/ ou por algo banal”. Talvez é sobre relacionamentos entre amigos, musicalmente um mergulho na surf music: “talvez eu tenha/ aquilo que você precisa/ para amar alguém”, começa a letra. E mais adiante: “talvez só falte/ um belo caqueado”. E ainda: “por mais que a chaga/ de ser seu melhor amigo/ e a sua fama de mulher/ sem coração me digam não”. Poeticamente um salto no abismo entre o bolero e a tragédia grega.
Se “a cachaça/ já perverteu este momento” a Pedeginja o traduz em O pensamento, outra música sobre relacionamentos. Não poderia faltar um reggae e Tire o seu cavalo da chuva é um recado direto, bilhete de fim de caso pra que não reste qualquer esperança: “e se você espera/ que eu vá voltar/ tire o seu cavalo da chuva/ que ele vai se resfriar/ de tanto me aguardar”. Mas a esperança, essa espécie de fênix teimosa – redundância intencional –, é novamente acesa antes do fim do disco, na valsa Sobre falsas musas: “a lama que cobre as ruas/ não ofusca um sorriso seu”. Também sobre relacionamentos, O velho violeiro fecha um ciclo.
A Pedeginja nasce assim. Brota entre os azulejos, vem “di cum força”, para dar um passo além na paisagem sonora do pop rock que se produz no Maranhão. Sem perder o gingado.
Serviço: Contos cotidianos, disco de estreia da banda, será lançado em show nesta sexta-feira (15), às 19h30min, no Teatro da Cidade de São Luís (antigo Cine Roxy). Ingressos e discos – a produção não informou o valor – à venda na bilheteria do teatro.
Não sei quantas vezes tenho ouvido, algumas não sem razão, a frase acima nos últimos anos. A ausência de políticas e ações mais efetivas de real valorização da área – e não se fala aqui apenas de prédios tombados pelo patrimônio histórico, mas também da valorização do patrimônio humano – explica-a em parte, assim como, em menor escala, a evasão de órgãos públicos, comércios e bares, deixou-a aos ratos, baratas e outros bichos escrotos.
É o cartão postal da cidade, cenário de comerciais, paisagem no imaginário de qualquer turista que a tenha visto na tevê ou ouvido alguém falar.
Ao “a Praia Grande está abandonada” soma-se agora o “a Praia Grande está tomada pelo crack”. As drogas em geral só chegam ali, como em qualquer lugar, pelo vazio deixado, inclusive por nós mesmos. Mas o problema do bairro não é só o consumo de drogas, ou mais particularmente de crack, como às vezes se quer crer: ele é mais um elemento, num conjunto de violência e ausência de infraestrutura, entre outros. Além do mais, sabemos, o crack não é um problema exclusivamente praiagrandense: é um problema social espalhado pelo Brasil e pelo mundo, cuja solução é mais complexa do que o que mostram inconvincentes propagandas no nível do “é possível vencer” e da defesa da internação compulsória – o que este blogue é terminantemente contra.
Dois exemplos louváveis de reocupação da Praia Grande aconteceram recentemente entre setembro e novembro: a 7ª. Feira do Livro de São Luís e a 8ª. Aldeia Sesc Guajajara de Artes, encerrada ontem (1º.), promovidos pela Fundação Municipal de Cultura (Func) e Serviço Social do Comércio (Sesc), respectivamente. Provaram que, com programação de qualidade, o bairro do Centro Histórico da capital ludovicense volta a ser a menina dos olhos de turistas e autóctones.
Os movimentos precisam continuar, cada um fazendo a sua parte, mas sem essa de “cada um no seu quadrado”: artistas fazem o que sabem, plateias aplaudem, a iniciativa privada incentiva, apoia, patrocina, e o poder público garante as condições para que este conjunto se torne possível – atualmente a presença do Estado por ali apenas é percebida apenas na figura da polícia, em geral em atuações desastradas, inclusive com a circulação de viaturas onde não é permitido o trânsito de veículos.
Amanhã (3), às 16h, um grupo de artistas se reúne para “ocuparte” os degraus da Escadaria Humberto de Campos (a do Moiras Drinks, subindo a rua João Gualberto, da Livraria Poeme-se). É o Ocupa com Arte – Rock & Blues, evento gratuito que visa continuar a citada reocupação cultural da Praia Grande.
Dará conta de todos os problemas (históricos) do bairro? Irá resolvê-los todos? Certamente não. Mas cumprirá um papel importante. A que devemos nos somar.
Não é fácil classificar a música de Babi Jaques e Os Sicilianos – assumisse o grupo uma sigla ela seria quase “beijos”. Talvez seja mesmo tarefa impossível e dizer simplesmente liquidificador sonoro certamente soaria clichê. É pop, é rock, é blues, é frevo, é música popular brasileira, mas é muito mais que isso. Ecos de tropicalismo e manguebeat – justificado pela conterraneidade com Chico Science, a quem, aliás, sampleiam na vinheta de abertura de Coisa Nostra, seu disco de estreia –, mas também da vanguarda paulistana de Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção. Ao menos aos ouvidos deste modesto crítico, impossível não lembrar, de cara, das experiências do pianista em Clara Crocodilo.
Talvez pelo fato de a banda ser formada por personagens. O que justifica a multiplicidade, Barbara Jaques, a vocalista, assumindo diversas formas durante uma performance. O disco enquanto suporte – um cd com encarte ou as faixas soltas nas esquinas virtuais para download – não é suficiente para cabê-los. Qualquer busca no google levará o leitor/ouvinte a biografias inventadas – o que pode reacender propositadamente ou não a fogueira em torno da polêmica um tanto vazia e insossa sobre o assunto.
Em Coisa Nostra, disco e show com que chegam à São Luís, por exemplo, travestem-se de mafiosos oriundos da cidade imaginária de Nostrife, evidente soma de máfia e Recife, sua (verdadeira) terra natal. Babi Jaques pode ser numa faixa cantora de cabaré, noutra dublê de desenho animado, versátil cantora é o que é, afinal de contas. Sua música está próxima da poesia, melodias e harmonias são trilha sonora para a palavra, onde cabem ainda teatro, cinema, circo e, por que não?, música.
Coisa Nostra chega após a participação da banda em coletâneas e na trilha sonora de filmes. Produziram e lançaram ainda o documentário Sabe lá o que é isso, investigando as transformações do frevo, o título um verso do Hino de Batutas de São José, cuja releitura moderna o disco traz de brinde. É a estreia de um grupo que parece ter nascido pronto. São apenas quatro anos de carreira, mas o que se ouve e vê é pura maturidade musical. Alexandre Barros (bateria), Babi Jaques (voz), Thiago Lasserre (baixo) e Well (guitarra) garantem diversão nostrifense aos estrangeiros que se aventuram por seu disco e shows.
Hoje eles aportam em outra cidade imaginária, de tantas alcunhas um tanto já sem sentido: Athenas brasileira, Ilha do amor. Certamente não conhecem a lenda da serpente e é capaz dela despertar para dançar e se divertir – e fumar!: o afundar de São Luís fica pra outra ocasião, hoje no máximo o chão vai tremer ali na Praça Nauro Machado e arredores, onde às 23h Babi Jaques e Os Sicilianos armam sua (fan)farra musical, de graça, dentro da programação da 8ª. Aldeia Sesc Guajajara de Artes. A festa está garantida, como na letra de Evocação sem número: “E não importa se acabou fevereiro/ meu carnaval dura o ano inteiro”.
O quarteto se apresenta ainda em Itapecuru-Mirim (3/11) e Caxias (8/11), antes de continuar as aventuras por Piauí, Ceará, São Paulo, Uruguai e Argentina.
Jazz, blues e rock dão o tom em letras sobre o cotidiano e o amor na estreia do trio carioca
ZEMA RIBEIRO ESPECIAL PARA O IMPARCIAL
Rosto [Bolacha Discos, 2013] é o disco de estreia do Sylvio Fraga Trio, formado pelo próprio (voz, violão e guitarra), Marcio Loureiro (contrabaixo elétrico) e Mac Willian Caetano (bateria). A formação dá a pista: as 12 faixas ficam entre jazz, blues e rock, influências confessas dos integrantes.
Mas o álbum soa brasileiro. Carioca, para ser mais preciso. Embora o grupo tenha se formado lá fora, quando o band leader fazia mestrado em poesia em Nova York. A maioria do repertório de Rosto foi concebida lá e amadurecida aqui.
O cotidiano está retratado nas letras, mas tratado com outras lentes. Embalo, por exemplo, é um convite para um happy hour: “Vem correndo meu amor/ estou aqui, no nosso bar!”. Cada rastro será gesso, dos versos “Já está muito quente/ em Niterói a barca sente”, faz lembrar os Novos Baianos e Jards Macalé, que já homenagearam a barca-personagem musical. Em Barata voa algumas indagações românticas: “mas o que posso fazer?/ e você já dormiu à luz/ dessa televisão/ mas o que posso saber?/ um beijo na testa/ que sonha e sai de manhã”.
Balé é poesia pura: “O universo apenas olha/ olha as saias cortando o escuro/ Planetas rodando e caindo de maduros”. Maduro este disco de estreia, a qualidade um elemento comum a suas faixas, todas assinadas por Sylvio Fraga – sozinho ou em parceria.
Uma curiosidade, em tempo: no coro da última faixa, Circus, é possível ouvir a voz de Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central no governo Fernando Henrique Cardoso. O economista é pai do líder do grupo, também graduado na área. Sua voz une-se a outras para cantar versos como “ai ai o amor/ se não arde, não há/ se não for/ só quem arde provou/ só quem sabe o que arde/ ai o amor!”.
O disco está disponível para download gratuito no site do trio.
Marcos Magah prepara O homem que virou circo, sucessor de Z de vingança, a bem sucedida estreia, discos de uma trilogia sobre mágoa, solidão e morte. Autobiógrafo musical, o punk lírico conversou com o Vias de Fato, vindo diretamente de uma sessão de gravação.
TEXTO E ENTREVISTA: IGOR DE SOUSA E ZEMA RIBEIRO FOTOS: ZEMA RIBEIRO
Los Perros Borrachos já haviam pedido a conta e estavam prestes a ir embora, quando o cantor e compositor Marcos Magah, mais de uma hora de atraso, adentrou o Cafofo da Tia Dica, aconchegante boteco por detrás da Livraria Poeme-se, na Praia Grande. Chegou desculpando-se: estava no Paranã, em uma sessão de gravação de seu novo disco, O homem que virou circo. “Todo mundo só fala desse negócio de Praia Grande. Ninguém cita o Paranã. O Paranã é um bairro importante, cara”, protestou. A conta foi reaberta.
Magah quer armar o circo, digo, lançar o disco, até o fim do ano. Trata-se do aguardado sucessor da estreia Z de vingança, que chegou ao mercado no fim de 2012 e rapidamente esgotou a tiragem inicial, de 700 cópias. Uma nova fornada foi providenciada e tem saído bem, nas melhores casas do ramo e nas não poucas apresentações que o músico tem feito em palcos diversos na capital maranhense [nota do blogue: a mais recente, domingo passado, 18, no Sebo no Chão, no Cohatrac].
O processo só foi possível graças a um produtor de Manaus, que se deslocou até São Luís com todo o equipamento de gravação – as sessões duraram oito dias, na casa do músico –, e ao escritor Bruno Azevêdo, que, maravilhado com o som punk rock bregadélico do artista, resolveu assinar o projeto gráfico e bancar a prensagem do disco, lançado por seu selo Pitomba.
“Primeiro disco, até onde eu saiba, a não recalcar o elemento do brega local como parte da música que ajuda a definir o lugar, que não faz brega involuntário. Magah raciocina através do brega, saca de rock e escreve pra caralho! O resultado é um disco poderoso, tristíssimo e de peito aberto”, classificou Bruno Azevêdo ao justificar seu voto em Z de Vingança, o único que Magah levaria na lista dos 12 discos mais lembrados da música do Maranhão, publicada no Vias de Fato de abril/maio.
Aos 42 anos, ludovicense, o autor de Viagem ao centro da queda é um “homem lúcido e perigoso” “fazendo rocks duros e pensando em Dolores Duran”, para tentarmos explicar o homem através de sua própria obra. Autobiográfico, Magah é punk e lírico. Integrou a banda Amnésia, que ajudou a consolidar uma cena punk em São Luís, na segunda metade da década de 1980. Não nega influências que vão dos Rolling Stones a Pinduca, passando por Cólera, Ratos de Porão, Richard Hell e Voidoids. E é capaz de fazer música sobre os olhos de uma camelô que “vende bugigangas no centro da cidade”.
Vias de Fato – Como está o processo de gravação do disco novo. E você pretende lançá-lo quando? Marcos Magah – Rapaz, eu queria lançar no final do ano, está indo bem devagarzinho, com cuidado. Eu acho que essas são as melhores músicas que eu já fiz, então eu estou sendo cuidadoso. O Z eu gravei dentro de oito dias. A gente trabalhava de oito horas da manhã até às três da madrugada, saca? A gente comia em cima dos equipamentos. Era um negócio assim porque o produtor só tinha 10 dias para passar aqui. Ele veio de Manaus. O jeito que eu gosto de trabalhar é assim. Esse jeito que eu estou trabalhando agora eu não gosto. É tudo muito moroso. Eu não tenho esse pique da morosidade, eu sou um cara agoniado demais [risos].
O que você considera mais relevante para a produção do teu som? O que é que você ouve e que faz a tua cabeça? Rapaz, eu mesmo na época do punk, sempre escutei esse negócio da música brega. Odair José, por exemplo, hoje é muito badalado, mas naquela época gostar de Odair José era quase uma ofensa. Precisa entender também o que era o movimento punk naquela época, para as pessoas que não viveram aquela época, porque o movimento mudou tanto desses vinte anos pra cá, que eu falo algumas coisas e ninguém entende. Esses dias eu estava comentando com um cara que em 1985, 86 eu tinha 13 anos e você pegava um ônibus com aquele pessoal, aquela coisa punk e as pessoas… o ônibus ia lotado e as pessoas ficavam em pé, mas o banco do teu lado ninguém sentava. É uma coisa assim, parecia que tinha uma baba em cima de ti, sabe? Era um negócio desgranhento, não tinha MTV, essas revistas sobre rock, não tinha nada disso. Então, a Amnésia [banda em que Magah tocou e ajudou a consolidar a cena punk ludovicense], pra tu entender, surgiu num terreno limpinho, não existia banda de hardcore, por exemplo. As influências que a gente tinha era Dead Kennedys, Exploited, Cólera, Ratos de Porão. A gente passava o dia ouvindo música, era uma loucura, uma paixão maluca, era uma doença.
A gente quem? Eu, Carlos Pança, Carlos Amaral, que hoje mora em Salvador, que era o baterista do Amnésia, era uma pequena turma. E o Cohatrac tinha uma pequena turma do punk. Essas influências, por exemplo, eu vejo até hoje no meu som. Na forma do Redson, do Cólera, de tocar guitarra. É uma coisa que eu trago até hoje comigo. Inclusive coisas de palco, aquela coisa “eu vou morrer hoje aqui, cara!” [risos]. Mas sem aquela coisa dramática, tu tá entendendo?
Você tocando guitarra lembra muito o Keith Richards [guitarrista dos Rolling Stones]. Ah, tem muito de Stones, sempre teve. Tem uma coisa do Stones que não é uma coisa deliberada, “ah, eu vou imitar”. Mas de tanto ver, de tanto escutar, é uma coisa que peguei do Keith Richards por osmose de tanto ouvir. Foi essa coisa do jeito de corpo, sabe? Aquele negócio que ele bate a guitarra e meio que solta, como quem diz “eu não tenho nada a ver com esse crime” [risos], “não fui eu que atirei nesse cara” [risos]. Essa coisa assim, meio interpretativa, cara, eu trouxe. Tem um negócio maluco que no meio do punk eu sempre fui um cara meio esquizóide. Nunca fui um cara muito bem aceito. Porque, por exemplo, naquela época eu adorava discos de Pinduca [cantor paraense, maior expressão do carimbó], eu tinha, era meio maluco. Então, ontem eu tava conversando com um cara e ficava “pô, eu preciso voltar a escutar Pinduca”, tem um clássico dele, “vou tomar banho de cheiro, pra ficar cheirosinho pra Iaiá” [cantarolando]. Aí tinha aquela guitarra [imita o som da guitarra]. Até hoje tem esse negócio dessas palhetadas. Eu tenho uma música chamada Levada do despejo que se tu olhar a guitarra é Pinduca. Agora o jeito é tosco, é punk mesmo [risos].
A Amnésia não deixou registro? Foi até que ano? A Amnésia lançou demos que ficaram assim… até as pessoas esquecerem. A Amnésia foi uma banda muito popular, cara. Não só dentro de São Luís, mas no nordeste inteiro. Brasília, por exemplo, a gente vendia demo adoidado. Durou de 87 a 2002. Durante esse tempo a gente tinha uma popularidade enorme, de ir para outra cidade e parecer que [os fãs] iam virar o carro. Quando a gente saía da cidade jogavam camisas pela janela do ônibus. E a galera correndo atrás e continuavam a jogar camisa. Aqui em São Luís se for procurar pelas pessoas que viram e acompanharam esse processo, o público tinha uma adoração absurda, a tal ponto que as bandas de abertura tinham um público de 600 pessoas. Se eu tivesse o público da Amnésia… Eu fiz um péssimo negócio, cara! Entendeu? Em lançar o Z de vingança e abandonar o Amnésia. Se eu fosse um cara com o mínimo de visão, eu deveria continuar tocando aquela porcaria daquele som velho. Mas como eu sou um cara corajoso…
Mas o Amnésia acabou por causa da sua carreira solo? Não. Acabou, porque, cara, banda de rock tem uma hora que… o cara com 17 anos fazendo um underground bravo, acaba com qualquer pessoa. Viajar em ônibus, em pé duro, fazer circuito pesado, tocar aqui em São Luís, como a gente tocou, saca? E aquelas outras coisas, muito álcool, muita droga. Tem uma hora que neguinho pira! Fica meio doido, tá entendendo? Cansa. Já tinha integrante vendendo instrumento pra comprar disco. Daí não dá! Não dá! Chega um momento que não dá! E como eu sou obcecado, se a gente tiver uma banda junto, eu vou te enlouquecer, porque eu vou querer que tu trabalhe o mesmo tanto que eu trabalho. E os outros caras não tinham o mesmo foco que eu tinha. E aquilo, cara, é uma frustração terrível. Tanto que eu não sinto saudade dessa época. Eu sofri pra porra, porque eu queria que as coisas andassem. É o tipo daquela coisa de moleque, a coisa não parou, eu fui dando seguimento àquilo ali. Por mim, a banda não teria durado tanto assim. Apesar de ser uma das pessoas que a carregou nas costas.
E nesses 10 anos entre o fim da Amnésia e o Z de vingança, o que você fez? Eu fiquei de bobeira por um tempo, bebendo muito. Frustrado, pelo final do casamento. Depois, eu me aborreci de vez e fui para o interior. Nesse intervalo eu morei duas vezes no interior. Morei em São Mateus e Pedreiras. E passei tempo em outras cidades, como Santa Inês, por exemplo.
E o que você foi fazer nessas cidades? Eu fui trabalhar. Fui trabalhar num depósito de madeira, onde eu peguei a manha de vender madeira. E depois em serraria. Fazer porta, janela, lixar porta. Sempre fiz uns trabalhos meio malucos, uns trabalhos de estivador, carregando caminhão. Em Pedreiras eu montei um lance com computador, fazia uns trampos. E eu, como sempre gostei muito de ler, adaptei muita monografia. Acho que isso dá até cadeia, né? Mas eu me formei, mais ou menos, em umas cinco, seis áreas [risos]. Era isso que eu fazia. E paralelamente a isso, eu fiquei tocando em bandas de brega, saca? Tinha umas bandinhas de brega por lá, eu me inseria e ia tocar com os caras, foi onde eu aprendi muito.
Sempre guitarra? Sempre guitarra. Sempre mal tocada.
Magah, você tem formação acadêmica? [Espantado] Eu? Não, cara! Eu tenho paixão por livros. Todo mundo me pergunta, quando a gente começa a conversar sobre literatura, “mas tu te formaste em quê?”. Eu não me formei em nada. Eu sou estivador. Tá entendendo? [risos]
Se você fosse dizer que tem outra profissão além de músico. Eu diria que tenho um carinho pela estiva. Eu gosto de trabalhos braçais. Eu gosto de fazer força.
E esse carinho por livros, você mantém uma biblioteca em casa? Eu tive uma época em que eu pirei completamente, falo isso até em Dedos e anéis [faixa de abertura de Z de vingança]. Lembrando que todas as minhas músicas são reais. Tinha uma época que eu tinha uma biblioteca grande e ela foi se espalhando por vários locais. Grande não, razoável. Grande quem deve ter é Sarney. Sarney deve ter uma biblioteca grande. Mas esses livros foram se espalhando. Eu ainda tenho coisa como John Fante, por exemplo, que eu não deixo, não largo. Tem umas coisas como Émile Zola, que neguinho acha chato, Germinal, por exemplo, que acho interessante. Os livros do coração eu mantenho até hoje. Mas tem coisa que dei. Eu sou um cara muito roubado até hoje. Acabaram de me roubar o [dvd] No direction home, do Bob Dylan. Eu não tenho muito apego a essas coisas. Quem não tem apego nesse mundo, se fode. É o mundo do material, do tátil. E se você não se apega, as pessoas te roubam.
Você não trouxe nadinha aí, não? [risos] Tá querendo me roubar, sacana? [risos] E eu acabo perdendo também. Tem a coisa também de andar muito. Eu moro numa cidade, moro um tempo numa casa, aí saio daquela casa. Na época em que fui morar em Santa Inês, eu trabalhava numa serraria e morava num quartinho dos fundos, cortando tábua. Nessa época eu fiquei com roupa, guitarra e livro. Não tinha como. Muita coisa ia se perdendo. Tu não tem onde guardar.
Dá pra dizer se houve alguma fase da tua vida que você viveu de música? Rapaz, eu sempre vivi pra música.
Mas nunca viveu da música? Hoje eu vivo disso. Eu até estava tendo uma discussão com um cara: que não existe, na minha cabeça, um mercado de música no Maranhão. Existem caras que se grudam na aba do Estado e conseguem viver desses projetos. Esses caras vivem de brechas que o Estado dá pra eles, de amizades. Mas, se eles fossem largar o Estado e tentar viver de música, talvez não vivessem. Vivem de concessões fraternais e generosas. Mas, assim, não existe um trabalho como o meu… viver de música é um ato muito louco. De heroísmo, de paixão. Porque eu produzo um show aqui, faço um show acolá, é assim que eu vivo. Produzo não sei o quê… o cara me dá, tipo, R$ 2.500,00. Eu pego essa grana, vivo muito humildemente assim. E me viro. O que me propus a fazer bem feito e que eu tento fazer 24 horas. Eu me propus a viver disso e segurar as consequências, mas não é fácil. Eu acho que a gente está tentando dar um norte para uma galera que tá vindo aí. Porque, pra mim, a galera que vai fazer a música maranhense bacana tá por aí. Eu escutei o disco da Nathália Ferro, eu adorei o disco dela. Eu gosto da menina, da Acsa Serafim, muito bacana o trabalho dela. Então, a gente está tentando dar um norte pra essa galera. Tem que ter algum louco, lunático que diga é possível a gente fazer esse caminho dessa maneira. Mas tem que ter entrega e coragem, porque senão não faz.
Você acha que a música brasileira e a música maranhense, em particular, padecem hoje de originalidade? Eu acho que a música mundial está passando por uma crise de originalidade. Quando eu falo que sempre volto pras antigas é por causa disso. Me parece sempre muito parecido, copiado, “eu quero ser um Neil Young”. Eu, particularmente, não quero ser ninguém. Agora, eu acho que aqui em São Luís, as pessoas que eu fico vendo que fizeram um trabalho, esse menino, por exemplo, o Phill Veras, eu o considero realmente um menino com um talento maravilhoso, mas ele, a meu ver, padece dessa coisa.
A los-hermanização. Exato! Eu acho que o Los Hermanos já faz o seu trabalho muito bem feito, são os caras mais indicados para fazer a música dos Los Hermanos. Eu, Magah velho aqui, acho que tenho que descobrir o meu jeito e escutar meu som interior. Se eu for fazer igual a eles, eu vou fracassar, porque não é real. Aí o cara diz assim, o cara não fracassou, porque ele está em São Paulo e indo bem. Quando eu falo fracassar não é mercadologicamente, tá entendendo? É artisticamente. Esse é que é o problema, porque às vezes você… há brechas para o copia e cola, tanto é que eles é quem povoam e poluem por aí, nas rádios e nas TVs. Mas quando você vai embora desse planetinha é sua honra que você vai deixar. Esses dias eu estava conversando com um amigo meu sobre a Rita Lee. Pô, Rita Lee passou os anos 80 até pouco tempo só fazendo disco porcaria, cara. Agora Rita Lee tá indo embora. Eu acredito que um artista dessa ordem diz assim: “pô, eu bem que podia ter tido um pouco mais de coragem e ter lançado um puta disco, com a bagagem que eu tenho”. Eu acho que tem um pouco disso. Quando eu for embora, o que vai ficar aqui é a obra. É a única vaidade que eu tenho. No dia que eu for embora daqui, a única coisa que eu quero que fique é a minha obra. Os homens vão, mas as obras ficam.
Você considera a sua obra original? Eu não tenho o direito de dizer isso, cara. Não sou eu que tenho que dizer isso. Isso quem diz são as pessoas. Ou não. Dizem que é uma porcaria. Mas também não me importa, não.
Mas a pergunta é no sentido crítico mesmo. Quando você fala que fulano está fazendo uma música que é copia de Neil Young ou Los Hermanos, eu sei que não está apontando o dedo na cara de ninguém. Estou fazendo a pergunta no sentido de uma autocrítica mesmo: como tu percebe a tua obra? Eu acho que, na verdade, esse disco, estou muito ansioso para terminar de gravá-lo e lançá-lo, O homem que virou circo, porque eu ainda nem arranhei o que quero fazer. Ainda não dei o primeiro arranhão na superfície. Mas eu acho esse trabalho um trabalho de referências. Se você, por exemplo, escutar os teclados e escutar o cd de Jerry Adriani, você vai identificar os teclados, com umas guitarrinhas fuleiras que são muito parecidas com os do primeiro disco do Camisa de Vênus, o baixo típico do brega dos anos 70. Eu acho que eu usei as referências que eu tinha, que eu queria dar. Mas é preciso entender que meu trabalho é um trabalho com conceitos. Eu não faço assim: componho um monte de músicas, acho elas legais, vou e gravo. Não. Eu tenho um conceito. Eu quero trabalhar o tema da solidão. Eu vou desenvolver em cima desse conceito. Aí eu vou desenvolver uma sonoridade que também seja cabível com esse tema. Eu tenho uma trilogia: mágoa, solidão e morte. É um tema alegre, não? [risos] A trilogia dO homem que virou circo é isso: o Z é sobre mágoa, O homem que virou circo é sobre solidão e o MIF – cemitério dos cachorros é sobre morte. Eu trabalho assim. Eu tava numa fase meio braba da minha vida, e me propus a fazer três discos para não enlouquecer e resolvi dividir os temas. Peguei o Z, e comecei a escrever músicas só sobre mágoa, sobre a possibilidade de sair dali. Às vezes eu brinco que o Z é um manual de práticas de fuga, como fugir, como se livrar de uma mágoa violenta. Um manual de mágoa e fuga. Aí eu comecei a escrever músicas que só tinham a ver com esse tema. Pra isso eu desenvolvi um personagem que no Z é um homem lúcido e perigoso, nO homem que virou circo é o próprio, e no MIF também. É o mesmo personagem, só que em cada disco ele vai tendo um nome, agregando novos valores e a personalidade dele meio que vai se transformando nesse processo todo. Até a onda da morte.
Vingança com Z. Por que Z de Vingança? Eu sou apaixonado por essa letra, bicho. E é um trocadilho gostoso, pra deixar no ar. Porque se eu dissesse V de Vingança, pô, tem filme. E todo mundo sabe que vingança se escreve com V. Um dia eu acordei, morava eu e meu baterista aqui na [rua] Jansen Müller, levantei, sem molecagem nenhuma, e esse título me veio à cabeça. Antes de eu começar a escrever o Z. Eu passava o dia todinho falando isso, Z de Vingança. Porque eu tinha um negócio com o Z. Porque eu falava assim “esses caras me estreparam, mas vai ter a volta do Zorro”. E aí eu comecei com essa onda de a volta do Zorro e o Z do Zorro sempre me acompanhando. Aí eu montei um estudiozinho chamado A Volta do Zorro e fiquei com essa coisa do Z, do Z, até que pipocou. E eu sou um cara vingativo pra porra. Dentre outras qualidades nobres, a vingança [risos]. Eu achei bacana assim, me veio, pá, abracei!
Como foi o processo de financiamento do Z de Vingança? Normalmente se mascara esse lado da música. Ele custou 65 centavos. Porque eu pensei primeiro. [Fala como se se dirigisse diretamente aos leitores do Vias de Fato e não aos repórteres:] Vocês que têm raiva de mim, eu estou desinflacionando o mercado da música no Maranhão [risos]. Foram dois pães que eu comprei com o próprio corpo. Então, se você não gosta de mim, se manque, porque eu estou transformando o mercado da música no Maranhão. Sabe por que 65 centavos? Porque eu enviei as músicas pro cara e ele ficou alucinado e se tocou de Manaus pra cá. Nós gravamos em oito dias, mixamos em um e masterizamos em outro. Ele me entregou e foi embora. Saca? Super feliz! Não me cobrou nada. O cara cobrava cinco mil reais num estúdio onde ele morava lá. O cara se tocou de lá pra cá. Então, quer dizer, eu só posso acreditar no que eu faço. Tá entendendo? Porque para eu convencer um cara com umas músicas gravadas fuleiramente num computadorzinho e esse cara se tocar de lá pra cá, meu brother, chegar e dizer “vamos!”, e pegar o equipamento dele, bancar passagem de avião ida e volta, ficar na minha casinha velha e dizer “vamos montar a porra desse disco” e “isso aqui vale ser registrado. O que tu vai fazer com isso, eu não sei. Mas, eu quero gravar isso aí”. E aí, em vez de eu ir até Manaus, Manaus veio até mim.
Eu me lembro do Bruno [Azevêdo] falar muito entusiasmadamente do disco. “Rapaz, tu tem que ouvir isso aqui”. E que era uma coisa nova na música do Maranhão. Qual foi o papel de Bruno nesse processo? Qual foi a importância? Porra! Toda. Total. Porque eu não conhecia Bruno, nem sabia quem era ele. Quer dizer, já o tinha vista algumas vezes pela rua. Sabia de uma banda em que ele tocava. Mas ter visto assim, como estamos aqui, eu o via passando na rua. Uma vez um cara falou “ó, aquele é o baixista da Catarina Mina [banda de que Bruno Azevêdo foi baixista, com Djalma Lúcio (voz e violão) e Eduardo Patrício (bateria)]”. Não sabia quem era o cara. Pablo [Habibe, guitarrista, editor da revista Bezouro] uma vez chegou na minha casa… pra tu ver, por isso que tem aquela frase em Caixa de Pandora [faixa de Z de vingança], “o que eu sinto é o que eu mais sei”. Eu sou um cara que acredito na minha intuição, porque se eu negar a minha intuição, velho, eu tou fodido. Um belo dia eu estava em casa sozinho andando alucinadamente de um lado pro outro. Já estava com esse CD gravado, pensando “o que eu vou fazer com isso?” Bateu na minha porta o senhor Pablo Habibe, que eu não conhecia… não conhecia ninguém! Eu sou um ermitão. Fico trancado em casa. Não saio de casa pra nada. Só saio à noite para ir ao Chico [Discos, bar], porque nós já somos amigos seculares. Você não vai me ver em noite, em festa. Eu não vou pra essas coisas. Eu sou um cara caseiro. Passo o tempo todo em casa. Eu sou chato. Só. Eu gosto de viver só. Bateram na minha porta, Pablo Habibe, Acsa Serafim e Fábio Pereira, que hoje está substituindo o Pablo, que quebrou o braço. E falaram “e aí, o Ryan tá aí?”, meu baterista estava morando comigo e tava fazendo bateria pra eles. Aí eles entraram lá em casa e eu falei assim, “cara eu tenho um disco. Vocês são músicos?” Porque a solidão tem uma hora que ela enche o saco, você precisa falar com alguém. Tem um limite. Tu passa três, quatro, cinco dias trancado em casa, mas tem uma hora que tu pega uma sacola da Vivo e começa a conversar com ela [risos]. Eu mostrei o disco pra eles. Porra, o Paulo ficou “éééguas”. Ele e o Fábio ficaram alucinados. Aí ele começou, “porra, rapaz, que diabo é isso?” Eu lavando louça e a gente conversando. O Pablo levou o disco, “tem um cara que precisa escutar isso aqui: Bruno Azevêdo”, eu não sabia quem era. Levou. Fiquei preocupado. Quando eu vi estava correndo atrás, “vamos lançar, vamos lançar!”, começou a jogar na internet, ficou mais empolgado do que eu. Fiquei surpreso, o disco começou a vender e gente dizendo “legal”. Pra mim era um disco muito a cara de [rádio] AM, um toque de experimentalismo. O Bruno é responsável por tudo, eu chamo ele de meu patrão, ele fica puto quando eu digo isso [risos]. A Pitomba bancou, eles acreditam em mim. Eu sou um cara feliz, sem nenhum tostão no bolso [risos].
Uma vez, conversando com Bruno, ele disse que não teria lançado O Monstro Souza [Pitomba, 2010] se não tivesse o investimento do Souza [proprietário da barraca de cachorro quente mais famosa de São Luís, que inspirou o livro de Bruno], que deu uma grana e ele pode imprimir o livro. Z de Vingança não existiria sem Bruno. Quem Marcos Magah financiaria se tivesse grana? Eu financiaria o disco do Tiago Máci. Pra mim, esse cara é um dos melhores que já pintou de música em todos os tempos aqui. É um compositor de calibre pesado. De todo coração: um dia eu vou produzir o disco do Tiago Máci. Eu quero fazer. Eu acho muito bom, cara. Ele me lembra um pouco o [compositor] Cesar Teixeira, um gênio. Às vezes eu o olhava com fascínio, apesar de ele [Cesar] não ter nenhuma influência na minha música. Que às vezes tem aquela coisa que você olha para o cara e ele não tem nenhuma influência na tua música, mas que tu admira ele pra cacete.
Eu li em algum lugar que você está produzindo o novo cd de Claúdio Lima. Eu estou fazendo uma pré-produção do disco dele. Na verdade ele quer produzir com um cara de Londres. Ele me chamou para acrescentar esse lance que ele viu no Z e gostou muito, aqueles efeitos que tem de psicodelia e aquela guitarrinha fuleira. Cláudio é muito doido! O primeiro cd dele é genial, ainda bem que entrou lá [na lista do Vias de Fato], eu me senti vingado.
E qual seria a tua lista? Pô, mas tu tá me sacaneando! Eu não sou homem de lista! [risos]. O que eu posso te dizer é que entraram coisas ali que me… pô, olhar ali Nonato e seu conjunto [O som e o balanço, 1975], o próprio disco do Claudio [Claudio Lima, 2002], o Bandeira de Aço [de Papete, 1978] eu sabia de ia dar, pá, pá, pá, na cara de todo mundo. Mas, agora, por exemplo, tiveram coisas que não entraram e poxa…o segundo disco de Raimundo Soldado [Raimundo Soldado, 1981] tinha que aparecer [risos]. Mas tudo bem. Raimundo Soldado perdoa todos vocês! Vocês estão salvos.
Nem com o Z de Vingança nem no Amnésia você tocou em evento público bancado pelo Estado? Com a Amnésia eu fiz coisas muito esdruxulas. Em 1989, todo mundo era anarquista e os caras do Amnésia tinham uma tendência meio marxista. E eu nunca fui um cara muito ligado nessa coisa, sabe? Aí a gente tocou em 1989, no Comício do Lula, aqui na Praça Deodoro, pra umas 12 mil pessoas. Eu acho que poucos sabem disso. Falam muito bem da Amnésia. Ninguém fala mal. Parece que quando a gente morre ninguém fala mal. Mas, eu não, nunca toquei. Eu toco em barzinho, nessas casinhas, no Chico, não chamando o Chico de casinha. Toco no Chico, no Odeon [bar recém fechado na Praia Grande], toco, sei lá, no Miguelitos [casa de comida mexicana no Vinhais]. Entendeu? É uma coisa pequena. Toco por 300 contos. Eu pretendo fazer um caminho que brinque com essa coisa do popular e tal, mas que seja o meu caminho. Eu acho que meio que todo mundo tá num caminho padrão: vou fazer não sei o quê, vou ser contratado, vou para São Paulo. Eu vou fazendo um caminho mais mambembe. E a obra vai te respaldando ao longo dos dias, porque Z de Vingança é um disco, mas isso é trabalho longo. Vou fazer outro [disco], com uma sonoridade que acredito. É a construção. Ter credibilidade perante as pessoas que gostam do meu trabalho. Eu sou franco e jogo duro, não abro mão daquilo que eu gosto. Eu acho que é isso que constrói uma carreira. Não só boas músicas, mas um caminho que o público meio que se orgulha. Que aquela meia dúzia de pessoas olhe pra ti e diga “eu respeito esse cara”. Eu admiro muito o Marcelo Nova [roqueiro baiano, vocalista e guitarrista do Camisa de Vênus], uma cara de público pequeno, mas que você respeita o cara. Eu acho que credibilidade também é importante, porque neguinho pelo sucesso tá querendo fazer qualquer coisa. Eu também não sou um ingênuo de dizer “não, eu não faço isso”. Eu não tenho esses pudores, essa coisinha da culpa cristã. “Eu sou limpinho, eu não faço, eu não me envolvo”. Se eu quiser fazer uma turnê no interior, eu utilizo os mecanismos que estão à minha disposição para poder chegar nesse público que eu quero chegar. Eu vejo a coisa beligerante, de guerrilha, eu uso as armas que eu tenho. Mas eu também não vou pegar uma lança e enfiar no meu rabo e dizer “ah, morri como herói”. Não é assim.
Mas você tocaria num evento patrocinado pelo governo do Estado, por exemplo? É uma pergunta boa, cara. Eu nunca pensei sobre isso. Eu acho isso tão improvável que nunca me passou pela cabeça. Eu não acho que o governo do Estado um dia vá me chamar para tocar num evento seu. Eu acho que o governo do Estado tem o seu time. Eu não estou nesse time. É uma situação hipotética inimaginável. Eu sou um marginal!
Você falou sobre a intuição que permeou a construção de Z de Vingança. Você acredita em Deus? Porra, quando neguinho fala em Deus é esse papo sempre muito complicado. Eu sou um homem de muita fé. Existe algo que é muito complicado. Eu creio que a gente, em termos de física, a gente não sabe de nada. A luz é a coisa mais rápida que viaja no universo, talvez seja só brincadeira de criança. Rapaz, eu não gosto de fugir de pergunta assim [risos]. A pergunta é se eu acredito em Deus. Sim. Da forma como eu o concebo. Eu acredito mais nas coisas que eu não vejo, do que nas coisas que vejo [risos].
E qual é a forma que você concebe Deus? Não sei. Acho que a gente vai cair num lugar comum. Energia. É muito difícil trabalhar com esse tipo de coisa. Eu acho que passa mais pelo campo do sentimento. O vocabulário humano é muito pobre para tentar te dizer em palavras como concebo Deus. Acho que essa é uma questão metafilosófica muito complicada. É um sentimento bom. Eu gosto de ser ingênuo.
Uma coisa que eu tendo a comparar quando te escuto é com Wander Wildner. Gosto demais. Apesar do Pablo, meu guitarrista, dizer “não deixa esse cara ser comparado contigo, aquilo é uma desgraça!” Eu adoro Wander Wildner. Inclusive eu vejo similaridades não só com a nossa música, mas no jeito de viver. Wander é assim também. Esses tempos ele largou a profissão de músico e foi trabalhar numa funilaria na Alemanha. Trabalhava durante o dia na funilaria e à noite tocava. Eu vejo similaridade no jeito de pensar, de viver, a trajetória no punk também. Wander Wildner sou eu. Eu sou Wander Wildner [risos].
Intuindo que você não se preocupe muito com isso: Marcos Magah está pronto para subir ao palco do Teatro Arthur Azevedo e receber um Prêmio Universidade, seja lá em que categoria concorrer? Eu tou pronto pra tudo. Sou um homem de combate. Não tenho medo de nada. E outra coisa, esse negócio de “ah, eu não vou”. Eu não tenho medo de sujar minha mão. Depois eu limpo no paletó do garçom que estiver passando, ou do governador, melhor ainda se ele estiver de branco. Eu não penso nessas coisas, nem passou pela minha cabeça. Eu nunca fiz música para receber prêmio. Tanto que quando eu fiz o Z ele ia ficar pra mim.
Você não se preocupa, então, com o público, quando compõe? Nem um pouco. Se eu me preocupar, eu já fracassei. Isso é conversa de perdedores. Quando eu falo fracassado não é o fracasso construído pela sociedade de consumo. É uma coisa da tua verdade. Eu faço música pensando em mim, tanto que eu sou um cara egoísta pra caralho, moro sozinho e não consigo dividir a casa com ninguém.
Marcos Magah é MPM? Eu nem sei o que diabo é isso.
Música Popular Maranhense. Eu não! Eu faço música pro mundo, para todo mundo que quiser ouvir. Eu não tenho nada a ver com isso aí.
Como você define a música que faz? Rapaz, infelizmente a gente tem trabalhar com rótulo. Eu sempre brinquei em dizer que eu primeiro fazia “magahlismo”, assim, muito pretensiosamente. A arrogância também tem o seu lado romântico, mas é uma brincadeira, lógico. Eu brinco de chamar de rock-bregadélico, que é um termo que acho legal. Essa é a definição mais próxima do que eu faço. Também não estou preocupado em ser original não, cara. Agora eu escuto um som interior, que vem de dentro de mim. Quando eu lançar O homem que virou circo, eu vou mostrar para vocês, é um disco que não tem começo e não tem fim. Sabe no cinema, que os atores ficam na frente e a trilha sonora fica atrás?! O que eu fiz com esse disco, a trilha sonora vai pra frente e o ator fica atrás. Quando a música termina, o diálogo dos atores continua. O disco nem começa e nem tem fim. Ele começa com a voz de um menino dizendo “ei, moço, por que o senhor virou circo?” Então ele não tem começo, porque o começo dele é o fim do Z e termina com uma vaia sonora, que é o que vai começar o MIF também. Esses três discos estão interligados. Aí tem um lance da literatura e do cinema também. É isso O homem que virou circo, ele não tem fim, nem começo. É muito doido esse disco. É gente falando, é gente vaiando, cadeira quebrando, copo… enquanto isso a música tá rolando.
Cantora uniu-se à banda carioca Os Outros e dedicou disco ao universo poético na obra de Roberto Carlos.
ZEMA RIBEIRO ESPECIAL PARA O ALTERNATIVO
Não é a primeira vez que Teresa Cristina dedica um disco inteiro à obra de um compositor. Sua estreia, em 2002, com o Grupo Semente, se deu em A música de Paulinho da Viola, disco duplo em que passeou pelo repertório do portelense.
Há pouco mais de 10 anos ela foi figura de proa na redescoberta do samba a partir da Lapa, bairro carioca que deu ao Brasil diversos outros talentos do gênero. Teresa Cristina seria rotulada como sambista – ou cantora de samba –, limite que quase nunca coloca, por exemplo, Paulinho da Viola entre nossos grandes compositores. Como se o samba fosse coisa menor.
A intérprete não precisava provar nada para ninguém, mas, versátil, mostra que é bem mais que sambista ao dedicar um disco inteiro à obra de Roberto Carlos. Ou, antes, ao universo “real”, já que não se limita a composições dele, solo ou em parceria com Erasmo Carlos.
Roqueira – A fórmula é conta que fecha certeira: Teresa Cristina + Os Outros = Roberto Carlos (Deck, 2012) passeia por um repertório que o faz fugir do óbvio, a começar por “transformar” a cantora em roqueira. Pela ousadia é um disco tão ou mais importante que As canções que você fez pra mim (1993), que Maria Bethânia dedicou ao repertório do ídolo da Jovem Guarda, para ficarmos em um exemplo mais ou menos próximo.
Com um disco lançado – Nós somos os outros (Bolacha Discos, 2006) – a banda carioca acompanha Teresa Cristina ao longo de 14 faixas, que viraram disco de estúdio após o encontro dela com o quarteto para um show em homenagem a Roberto já há alguns anos. O vocalista Botika canta solo em Você não serve pra mim (Renato Barros). Além dele, Os Outros são Eduardo Sodré (guitarra), Rafael Papel (guitarra) e Vitor Paiva (baixo e ukulele).
Yuri Villar (sax tenor, sax soprano, flauta e triângulo), Ricardo Rito (teclado e sanfona) e Antonio Neves (bateria) completam a “cama e mesa” de Teresa Cristina, garantindo o ar roqueiro e jovem-guardista do disco – embora o repertório se concentre na fase entre o “movimento” e o romantismo mais desbragado que culminaria na novelesca e comercialíssima Esse cara sou eu.
Aos descontentes com o Roberto de hoje em dia, um disco para ser ouvido sem susto: a música mais nova é Cama e mesa (1981). Emoções, do mesmo disco, por exemplo, ficou de fora, como Detalhes (1971), do disco em que foram pescadas Como 2 e 2 e I love you. A quem o acha datado, não o conhece, ou conhece apenas dos especiais de fim de ano na Rede Globo, este disco é ótima introdução, um rebobinar competente de parte importante de sua obra.
Escoltada pelOs Outros, Teresa Cristina mostra versatilidade em homenagem a Roberto Carlos
Teresa Cristina + Os Outros = Roberto Carlos: repertório
1. Ilegal, imoral ou engorda (Roberto Carlos), 1976
2. A janela (Roberto Carlos e Erasmo Carlos), 1972
3. Como 2 e 2 (Caetano Veloso), 1971
4. Proposta (Roberto Carlos e Erasmo Carlos), 1973
5. O moço velho (Sylvio Cesar), 1973
6. Do outro lado da cidade (Helena dos Santos), 1969
7. O portão (Roberto Carlos e Erasmo Carlos), 1974
8. Você não serve pra mim (Renato Barros), 1967
9. Quando (Roberto Carlos), 1967
10. Nada vai me convencer (Paulo Cesar Barros), 1969
11. Cama e mesa (Roberto Carlos e Erasmo Carlos), 1981
12. I love you (Roberto Carlos e Erasmo Carlos), 1971
13. As curvas da estrada de Santos (Roberto Carlos e Erasmo Carlos), 1969
14. Despedida (Roberto Carlos e Erasmo Carlos), 1974
Faça como eu que vou como estou porque só o que pode acontecer/ é os “pingo” da chuva me molhar (Os “pingo” da chuva, 1974)
Depois de um bem sucedido tributo ao capixaba Sérgio Sampaio, apresentado por duas vezes em São Luís, a cantora Tássia Campos volta aos palcos, desta vez para homenagear Os Novos Baianos. Tanto o primeiro quanto a trupe musical de Moraes Moreira, Luiz Galvão, Paulinho Boca de Cantor, Pepeu Gomes e Baby à época Consuelo são marcas fundamentais na formação musical de Tássia, cuja estreia em disco deve acontecer em breve.
Casada com o contrabaixista João Paulo, com quem tem um filho, Felipe, ela divide os amores entre eles e a música. O marido toca na banda que a acompanhará em Tássia Campos F. C. – Sorrir e cantar como Novos Baianos, longo título do show que pega emprestado os títulos do disco de 1973 dOs Novos Baianos [Novos Baianos F. C.] e de sua faixa de abertura [Sorrir e cantar como Bahia]. A formação se completa com Edinho Bastos (guitarra), Jesiel Bives (teclado), João Neto (flauta) e Joel Monteiro (bateria). No palco, a cantora contará ainda com as participações especiais de Alexander Carvalho (ex-Daphne), Djalma Lúcio (ex-Catarina Mina), Lena Machado e Yuri Brito. A abertura fica por conta da sempre competente, pesquisada e animada discotecagem do DJ Franklin, parceiro da cantora já de outras empreitadas.
Com um time desses não deve ser à toa que Tássia carrega o sobrenome Campos: predestinada, como em outros shows/partidas, deve receber muitos aplausos da plateia/torcida a cada música/drible. É gol!
Tássia Campos F. C. – Sorrir e cantar como Novos Baianos acontece nesta quinta-feira (20), às 23h, no Odeon Sabor e Arte (Rua da Palma, 217, Praia Grande). Os ingressos custam R$ 10,00 e podem ser adquiridos no local. Sobre o show e o futuro, a cantora conversou com este blogue.
ENTREVISTA: TÁSSIA CAMPOS A ZEMA RIBEIRO
ZEMA RIBEIRO – Para começar com um trocadilho futebolístico, que seleção a plateia pode esperar, em termos de repertório?
TÁSSIA CAMPOS – O repertório faz um passeio pelas minhas predileções na discografia dOs Novos Baianos. O show ‘tá todo feliz, cheio de boas mensagens. Rearranjamos algumas coisas, também tem momentos onde apenas alguns instrumentos tocam…
A banda que vai te acompanhar não tem violão ou cavaquinho na formação, instrumentos fundamentais na musicalidade dOs Novos Baianos. Não é um pouco “arriscoso” recriá-los sem os dois instrumentos ou faz parte do processo de, digamos, desconstrução que pretendes levar ao palco? Todos os meus shows têm um padrão fiel à proposta estética do meu trabalho. Confesso que se eu incorporasse cavaquinho, violão e pandeiro no show deixaria de ser eu. Quando tu me perguntou sobre o set list eu esqueci de dizer que a escolha, além de delicada, se tornava mais difícil, pois eu tinha que escolher algo que funcionasse com o formato que tenho. O show vai ser mais elétrico mesmo. E como te disse: os rearranjos fazem isso pela música. Recriá-las, dar uma cara nova, mas sem que ela perca a essência é o desafio do intérprete. Conto com João e Edinho pra pensarem junto comigo e definirmos os motes. Eles são sensíveis e como nossa linguagem é parecida eles incorporam e executam com maestria. O risco a gente sempre corre, mas também a gente se adapta e faz as coisas com os recursos que temos. Quem for ao show pode esperar um show feito com carinho e cuidado.
Os Novos Baianos significaram um sopro de frescor na música brasileira, sobretudo pela fusão de rock e choro que impregna seus principais discos, sobretudo Acabou Chorare (1972), que completa 40 anos. O que o show trará dessa fusão? E o que há de novidades em meio aos rearranjos? Sempre trouxe comigo o que tem de subjetivo no trabalho dOs Novos Baianos e embora não tenha vivido esse tempo, os discos foram importantes, pois reafirmavam meus ideais de liberdade, a minha queda pela contracultura e, claro, pelo Tropicalismo. No show, as tentativas em rearranjar as melodias “empenadas” de Moraes Moreira, resultaram em algo menos “empenado”. A gente deu uma limpada e sofisticada na sonoridade, por que os trabalhos dos caras, quando não são apenas arranjos de violão, as músicas contêm muita informação… Essa limpada serve pra imprimir minha identidade nas canções, o que é algo que busco sempre quando interpreto um trabalho. Tenho uma predileção pela simplicidade, mas sem perder a sofisticação musical. É uma encrenca, mas rolou naturalmente.
Teu disco de estreia, hoje em fase de gravação, trará uma música de Moraes Moreira, da fase pós-Novos Baianos, elogiada pelo próprio. O que significou pra ti gravá-la e receber este elogio empolgado do autor? Ela entra no show? A música se chama Nesse mar, nessa ilha [a sexta faixa de Moraes Moreira, de 1975, primeiro disco solo dele]. Conheci através de um amigo que disse que queria ouvir a canção na minha voz. Achei de uma delicadeza e poesia tão profunda que decidi gravar. Então conheci o Edu Krieger, um sambista da nova geração carioca. A gente cantou junto e ele se interessou pelo meu trabalho. Daí ele sugeriu uma parceria e eu fiquei de pensar em algo… Quando eu ouvi a gravação do Moraes Moreira, pensei logo no sete cordas do Edu e quando ele veio aqui em São Luis novamente, gravamos a música. Ensaiamos no hotel em que ele ‘tava hospedado e o Edu disse: ‘vamo’ gravar com o axé do compositor? Então ele ligou pro Moraes Moreira e conversamos ali por uns 15 minutos. Ele me perguntou sobre a música e disse: “canta pra eu lembrar?” [risos]. Ele nem se lembrava da música, mas ficou contente com minha escolha e disse que só deixava eu gravar com uma condição: que depois mostrasse pra ele, porque ele ficou curioso. Geralmente os cantores e cantoras que gravam Moraes Moreira gravam as mais conhecidas e essa é praticamente inédita. Depois de gravar, fizemos uma pré e eu mandei, sem mix nem nada. Receber o elogio dele foi emocionante, até por que não foi um elogio vazio. Ele me apontou critérios, prestou atenção em como me apropriei da canção, talvez seja a sensação que tenho sentido de ilha mesmo. Ela não entra no show de quinta, porque ainda quero deixá-la inédita.
Um show com o repertório inteiramente dedicado aOs Novos Baianos é o segundo tributo que tu presta em pouco tempo. Antes, o escolhido foi Sérgio Sampaio, dito “maldito”, pouco conhecido, embora fundamental na formação musical de muitos artistas contemporâneos importantes. Os Novos Baianos são mais festejados, conhecidos, populares, apesar de passados 40 anos do lançamento de seu mais festejado, conhecido e popular disco. O nome do show, aliás, é chupado do título de um disco deles, Novos Baianos F. C., e da primeira música desse disco, Sorrir e cantar como Bahia. Pela fuga da obviedade de que tu já falou, o que a plateia pode esperar, em termos de seleção de repertório? Foi fácil selecionar? Tu escolheste sozinha o set list? Como se deu esse processo? Eu decidi esse ano prestar homenagens a compositores que foram importantes pra feitura da minha fisionomia artística. Sérgio Sampaio é essencial, pois é o cara com que me identifico no que ele quer dizer, a poesia é rica e tem um efeito forte pr’aquilo que acredito na arte, que é a fusão de qualidade e sentimento. O Sérgio Sampaio, embora lado b, fazia melodias, arranjos bonitos, linhas melódicas que fugiam da obviedade e claro, as letras com muitas verdades. Sempre me preocupo com a mensagem das canções. Embora diferentes um do outro, Sérgio Sampaio e os Novos Baianos têm em comum essa fuga dos clichês, essa observação da vida por outros ângulos, um recorte da realidade otimista. Eu venho tentando ser otimista. É uma questão de saúde pra mim acreditar no que canto. Se até meus gritos em silêncio me deixam rouca, que eu grite em alto e bom som o que acredito através das canções, já que vou ficar rouca de qualquer jeito. O título Tássia Campos F. C. foi uma brincadeira, roubando a capa do disco mesmo… [risos] e o subtítulo Sorrir e cantar como Novos Baianos é alusão a Sorrir e cantar como Bahia, uma das minhas músicas preferidas daquele LP. Decidir a set list é sempre delicado, principalmente de compositores com obra vasta e atemporal, como é o caso dos outros compositores que já homenageei. Em meus shows sempre convido participações, colegas de profissão ou mesmo quem eu ache que executaria a canção a contento. Penso sempre em nomes inusitados que geralmente não estão associados ao estilo desenvolvido por mim e pra isso tenho que pensar em músicas que casem com a proposta do show e que eu imagino o artista que vai cantar comigo. É muito mais subjetivo do que prático. É intuitivo e sempre deu certo.
Uma aura mística perpassa toda a história dOs Novos Baianos, a vida em comunidade, o uso de drogas, o encontro com João Gilberto, que lhes apresentou o Brasil Pandeiro de Assis Valente… Você fala em subjetividade e intuição e alia isso ao domínio das técnicas musicais, unindo o saber cantar ao bom gosto. Se é que é possível calcular, quanto cada coisa é importante para você e, na sua opinião, para os artistas da música, em geral? Éguas!!! Os Novos Baianos viveram uma utopia que deu certo por um tempo determinado. Quando vi o [documentário Filhos de João – O] Admirável Mundo Novo Baiano [dirigido por Henrique Dantas], o Tom Zé, em seu depoimento disse que Os Novos Baianos realizaram uma tarefa nunca antes vista, não sei se exatamente nessas palavras, mas foi este o sentido, e eu concordo. Quando te falei em contracultura é exatamente isso da utopia. Deram um upgrade no estilo de vida underground, alternativo. Creio que “libertário” é a palavra. Fazer música libertária e é bem aí que fico fascinada. Pois eles viveram isso como verdade e deu certo. E quanto ao uso de drogas não sei avaliar bem, pois não acredito que as drogas tenham comprometido a qualidade musical deles. Pro meu trabalho e pro que busco pra ele tem sido superpossível aliar intuição e ainda assim manter uma qualidade técnica. No tempo em que artistas “moderninhos” lançam cds audíveis mas fazem um som ao vivo completamente comprometido, quanto à execução de seus trabalhos, seja por falta de experiência, cancha ou estudo mesmo, prefiro me manter à margem disso, procurando ser o melhor que posso ao vivo. Acredito muito que o palco é o solo sagrado do artista e lá ele tem que procurar ser profissional. Por isso, chamo músicos profissionais pra fazerem os shows comigo, a gente se encontrou e todos estamos comprometidos com o trabalho. A banda é como a roupa que me veste e, claro, se ‘tou com uma boa banda ‘tou bem vestida e as coisas acontecem com mais segurança. É meu compromisso com a canção. Não dá pra matar música alheia. Ou faço um show direito, ensaiado, bem tocado e redondo ou não saio de casa. E meu amor pela música é como o amor que sinto pelo meu filho, é imaculado. Mesmo com toda dedicação em fazer um trabalho tecnicamente aceitável, audível e que satisfaça minhas aspirações, o amor prevalece e creio que é isso que me faz buscar o fazer bem feito sempre. Ainda estou engatinhando, mas daqui a um tempo já vai dar pra caminhar.
O que o público pode esperar de Tássia Campos a curto, médio e longo prazo? Esse ano tem sido bom, produtivo. Fiz pelo menos um show por mês desde março. É gratificante poder construir um público e me sentir responsável por ele. As coisas têm acontecido de forma natural e todos os trabalhos que fiz este ano têm servido pra amadurecer e embora eu tenha convites pra fazer shows fora daqui ainda não sentia que o trabalho estava pronto. Mas agora está. Acredito ser importante as coisas acontecerem a seu tempo. Como já tenho interiormente bem definido o que quero, agora é a hora de olhar pra frente. Depois do show do dia 20, ainda tenho apresentações no projeto BR-135, capitaneado por Alê Muniz e Luciana Simões, no Ceprama. Esse show vai ter um formato estranho, pois não pude levar a banda completa. Fiz um novo show pra ocasião, um repertório bem bacana, pra funcionar só com guitarra semiacústica e baixo. E tenho também show na 7ª. Mostra Sesc Guajajara de Artes e é com essa apresentação que já inicio os trabalhos do disco que tá saindo, um show inédito e que pretendo trabalhar por todo 2013, aqui e em outras cidades. O que o público pode esperar de mim? Uma artista mais madura, com uma sonoridade mais firme e coesa. Embora tenha 26 anos apenas, não me considero uma moderninha, eu gosto das coisas bem feitas. Acho que isso é sinal do meu respeito pelo público e o comprometimento em estar levando às pessoas muito mais que diversão. Claro que me divirto estando no palco, mas a música é a minha vida e eu levo tudo isso muito a sério. O que o público pode esperar é alguém que não tá brincando de música. E a médio prazo é viajar mais, ir mostrar meu trabalho em outras cidades. Começaremos por Brasília, depois a gente vai descendo. Em dezembro começam as correrias pra uma turnê de bolso. Pretendo começar a escrever um blog pra falar de cada cidade. Lembrando que esses shows estão em negociação e são de caráter independente. Não tenho financiamento de editais, nem de bancos, nem de empresas. Claro que não fecho as portas pra isso, mas por enquanto vou na raça mesmo, a convite de casas de shows. As expectativas pra este ano e pro próximo são as melhores e conto com o apoio do público, dos blogueiros e dos amigos pra continuar a caminhada numa cadeia produtiva e fortalecer o tecido cultural, levando a música feita aqui pra troar nos ouvidos do país todo! Tenho muito receio de que a sensação insular de São Luis não me deixe sentir o sopro dos ventos do continente. Acho que todo artista tem que subir em outros palcos. Além de talento e coragem o artista, na minha opinião, tem que ser de qualquer lugar. Estou otimista com o futuro! Quero viver dignamente fazendo o que amo.
*o título é surrupiado da carta de Galvão (Joãozinho Trepidação) a Augusto e Aroldo (sic) de Campos, no disco de 1973. O P. S. diz assim: “Eu tinha vontade de mandar tudo isso pra João Gilberto por nada.
Os primeiros acordes sugerem um tango a la Astor Piazzolla (1921-1992). Logo, porém, vêm versos familiares, mas em outra língua: “amó aquella vez como se fuese ultima/ besó a su mujer como se fuese ultima”.
O músico argentino Fito Paez
Construcción, versão portenha para o clássico de Chico Buarque, é o carro-chefe de Canciones para Aliens, novo disco do argentino Fito Paez, 49, que acaba de ser lançado no Brasil.
Chico surge também em outra faixa. Dessa vez de viva-voz. Faz um duo com Fito em Tango (Promesas de Amor), composição do japonês Ryuichi Sakamoto.
“Já tinha ouvido Chico cantando em espanhol e achava fantástico. No disco soa como quem se aventura num outro terreno, mas com seu estilo, sem perder a identidade”, diz o argentino à Folha.
Não é de hoje que Fito realiza intercâmbios com a música popular brasileira. Gravou uma versão de Track, Track, dos Paralamas do Sucesso, e teve sua Un Vestido y un Amor imortalizada por Caetano Veloso no álbum Fina Estampa.
“O Brasil é essencial no meu trabalho. Busco muita inspiração ali e acho que a troca tem aumentado.”
O álbum traz também outras versões. A ideia da reunião de reinterpretações surgiu quando foi convidado para gravar um bolero do mexicano Armando Manzanero para uma coletânea.
A partir daí começou a escolher faixas que gostaria de regravar. “Não é um álbum conceitual. As escolhas foram todas subjetivas”.
Estão no disco músicas do norte-americano Marvin Gaye (Baila por Ahí), do francês Jacques Brel (Ne me Quitte Pas), do argentino Charly Garcia (Yo no Quiero Volverme tan Loco) e do chileno Victor Jara (Te Recuerdo Amanda), entre outras.
Fito conta que não teve problemas com relação a direitos autorais, exceto com a viúva de John Lennon, Yoko Ono, que vetou uma versão de Across the Universe[grifo do blogue].
Sobre o músico Luis Alberto Spinetta, morto em fevereiro, declara que a Argentina perdeu alguém da envergadura de um Caetano Veloso para o Brasil. “Nós mesmos não chegamos a compreender ainda a riqueza de seu legado. É algo que vai ser descoberto com o tempo. É um poeta do rock. E nos deixou um baú cheio de tesouro”, completa.
Rock brasileiro – História em imagens [documentário, Brasil, 2009, 70min., direção: Bernardo Palmeiro], exibido ontem (9) no Maranhão na Tela, traça um panorama da cena rock no Brasil desde o seu início até os dias atuais. Do nascimento, entre a Jovem Guarda e a Tropicália, com Roberto e Erasmo Carlos, Gilberto Gil e Os Mutantes, passando por Novos Baianos e Raul Seixas – talvez o nome mais importante do gênero no Brasil até aqui –, até a falta de rebeldia e excesso de emotividade de nomes contemporâneos como Fresno e NX Zero.
É um filme linear e extremamente didático, perfeito para iniciantes no assunto – o filme foi feito para uso em escolas, fico sabendo depois da sessão. A montagem tem seus defeitos, com excesso de branco nos cortes e “colagens” das imagens anunciadas no título – fala-se, por exemplo, em Secos & Molhados, e fotos de Ney Matogrosso, João Ricardo e Gerson Conrad, integrantes do revolucionário conjunto, sobrepõem-se umas às outras, tentando em vão uma unidade. Incomodam também as capas de discos de Raul Seixas passando em frente ao depoimento de Charles Gavin (ex-baterista de Ira! e Titãs, responsável pelo relançamento em cd de discos fundamentais da música brasileira, hoje apresentador de programas sobre música no Canal Brasil).
Outro defeito pode ter sido justo a falta de recorte: impossível cumprir a promessa do título em pouco mais de uma hora de filme. O assunto dá muito pano pra manga e nomes importantes são esquecidos ou subestimados. Tim Maia, por exemplo, tem sua importância para o rock nacional, seja ao ensinar Roberto e Erasmo a tocar violão, seja ao influenciar Os Mutantes – “Qualquer semelhança com Tim Maia é mera coincidência”, nos avisam Rita e os irmãos Baptista no encarte do Jardim Elétrico (1971) –; Chico Science parece ser apenas mais um, surgido nos anos 1990. Não é. Francisco Ciência – como o chamaria um radical Ariano Suassuna – é o responsável pelo último movimento da música brasileira, o manguebeat, uma personalidade importantíssima no panorama da música brasileira recente.
Pitty, num depoimento que soa meio arrogante, diz algo como “não é por eu ser baiana que eu tenho que colocar um berimbau no rock”, referindo-se ao hibridismo que muitos tentaram, sem sucesso – ou com sucesso e sem qualidade. Acerta a moça ao dizer que na Nação Zumbi isso soa(va) natural, sem forçar a barra – eu acrescentaria aí o mundo livre s/a, para ficar apenas em mais um nome do movimento pernambucano. Lobão e Lulu Santos, gostemos ou não, são outros dois nomes simplesmente “esquecidos”. Vivas à lembrança de Júlio Barroso e sua Gang 90.
Embora o filme não traga imagens raras não deixa de ser pelo menos engraçado analisar o figurino de astros como Cazuza – com uma calça coladíssima num Rock in Rio – e/ou as bermudas e camisas coloridas d’Os Paralamas do Sucesso – noutro. Ou no mesmo. Ou num Hollywood Rock, sei lá.
Embora reconheçamos as dificuldades para se conseguir falar com determinados artistas, a voz em off do narrador é recurso que poderia facilmente ser dispensado com mais depoimentos. Os de Liminha são um capítulo à parte: tendo tocado com Os Mutantes, produziu discos d’Os Paralamas do Sucesso, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Nação Zumbi, entre outros. Ele, quase a própria história do rock brasileiro.