Radicado há mais de três décadas em São Paulo, onde mantém as tradições maranhenses com o Bumba meu boi de Cupuaçu, no Morro do Querosene, o que lhe ensejou o merecido título de cidadão paulistano, outorgado há alguns anos pela Câmara Municipal da capital paulista, Tião Carvalho, maranhense de Cururupu, subiu ao palco do Buriteco Café (Rua Portugal, Praia Grande), ontem (23), para um show em que passeou por repertório autoral e clássicos de autores maranhenses.
“Muito obrigado pela presença de todos vocês”, agradeceu Tião, reafirmando o prazer de cantar no Maranhão, para maranhenses, após abrir sua apresentação com Dona tá reclamando (Domingos Minguinho), gravada pelo Cupuaçu em Toadas de bumba meu boi [Núcleo Contemporâneo, 2000].
Tião estica sua presença na ilha: ele veio participar do desfile do bloco Bota pra moer, na segunda-feira gorda de carnaval (12), capitaneado pelo Criolina, formado por Alê Muniz e Luciana Simões, em cujo Radiola em transe, disco mais recente da dupla, sua A menina do salão dialoga com A mulher mais bonita do mundo (Tião Carvalho), lançada por Tião em seu solo de estreia, Quando dorme Alcântara [Por do Som, 2003], também presente ao repertório de ontem. Além de ontem no Buriteco, ele anunciou nova apresentação na próxima sexta (2 de março), às 22h, no Laborarte (Rua Jansen Müller, 42, Centro).
Quando cantou De Teresina a São Luís (João do Vale e Helena Gonzaga), a flauta de Zezé Alves puxou O trenzinho do caipira (Heitor Villa-Lobos) como incidental. O flautista deixou seu microfone às pressas para salvar o óculos – que Tião Carvalho carregou mas não usou durante o show –, de ser pisado, enquanto o músico trocava o cavaquinho pelo triângulo.
A banda se completava com João Simas, que tocava sua guitarra com as pernas em posição de lótus na cadeira, a gaúcha Mariele Costa (percussão) e Erivaldo Gomes (percussão) – este o único abrigado ao lado de Tião no pequeno tablado do Buriteco.
Com um disco inteiramente dedicado à obra de João do Vale [Tião Canta João, Por do Som, 2006], o pedreirense foi dos mais presentes ao set list da noite: Baião de viola (João do Vale e Flora Matos) evoca as belezas (e de forma poética as misérias) de sua cidade natal, trazendo em si a típica sabedoria que lhe valeu o epíteto de “poeta do povo”.
Quando cantou a toada Itamirim (Chico Saldanha), Tião lembrou-se que foi ele quem gravou a música no elepê de estreia de Chico Saldanha, de 1988. “Se não me engano é Itamirim o nome do elepê”. O disco leva apenas o nome do compositor, mas o equívoco é compreensível: a última faixa do lado A foi o maior êxito do disco e é, até hoje, um dos maiores da carreira do rosariense.
Tião cantava e contava histórias: o samba Pantanal (Tião Carvalho) alude a um bar que frequentava, e Canção de ninar (Tião Carvalho), que começa como anuncia o título e torna-se um samba, foi feita para sua filha, “quando ainda estava na barriga”.
Sapaiada (Xavier Negreiros e Marquinhos Mendonça), com seu refrão envolvente, botou o público para acompanhar nas palmas, um dos grandes momentos do show – não foram poucos. Quando dorme Alcântara (Tião Carvalho) evoca outro bar, em São Luís, onde Tião e uma turma iam tocar e à meia noite viam as luzes da cidade, do outro lado da baía, se apagarem, quando o gerador era desligado, à época. Invariavelmente ouvia-se o comentário: “Alcântara dormiu”. “Com essa música eu participei do último grande festival promovido pela Rede Globo. Estive em três, primeiro acompanhando Giordano Mochel, depois acompanhando Ubiratan Sousa, e por último já com uma música minha”, contou, revelando parte da nobre linhagem artística a que pertence.
Cantou o Fogo de palha de Josias Sobrinho. Quando lembrou que dele havia gravado Dente de ouro em Quando dorme Alcântara – à venda ontem, bem como Tião canta João –, o público pediu o clássico. “Não estava no roteiro, mas nós vamos ter que fazer”, nem Tião nem a banda titubearam e o público cantou junto.
De sua irmã Ana Maria Carvalho, parceira do Boi de Cupuaçu, trouxe Até a lua, que emendou com Lua cheia (Bulcão e Godão), clássico de outro boizinho, o Barrica. O passeio musical de Tião foi até Cajapió (Erivaldo Gomes). Na sequência atacou com um medley de inéditas: Coco da minha sinhá (Tião Carvalho) e Coco das meninas (Graça Reis).
“Vamos fazer a saideira, lembrando essa figura que foi muito importante pra minha carreira, é pra mim uma espécie de madrinha musical. Todas as gravações que ela fez dessa música”, começou, referindo-se a Cássia Eller, que popularizou o samba Nós (Tião Carvalho).
Aos insistentes pedidos de “mais um”, Tião virou-se para a banda, sinalizando que atenderia. A noite foi fechada com um medley de João do Vale: Uricuri (Segredos do sertanejo) e Carcará, ambas em parceria com José Cândido.
Embaixador da cultura popular do Maranhão em São Paulo, onde vive, e por onde andar, ontem Tião Carvalho contrariou o dito popular: santo de casa faz milagre, era o que atestavam os rostos satisfeitos do público, mesmo a parte que ficou em pé, na calçada, do lado de fora do Buriteco.
O cantor Marconi Rezende. Foto: Anfevi Criação e Fotografias
Marconi Rezende comanda amanhã (9), a partir das 19h, o Bloco do Prazer, baile de carnaval batizado pela música de Moraes Moreira e Fausto Nilo, cujo verso “muito mais que o som da marcha lenta” é o slogan.
Mais conhecido por suas interpretações do repertório de Chico Buarque, Marconi Rezende, em entrevista exclusiva a Homem de vícios antigos, adianta o repertório da festa: “Não vão faltar as canções clássicas de carnaval, não só as marchinhas tradicionais, de salão, que vão ser executadas, uma boa parte só de forma instrumental pela banda. Eu vou cantar algumas delas, O teu cabelo não nega [de Lamartine Babo, João Victor Valença e José Raul Valença], Alá-lá-ô [de Haroldo Lobo e Nássara], as tradicionais, como a própria música que dá título à festa, Pombo correio [de Moraes Moreira, Dodô e Osmar Macedo], Coisa acesa [de Fausto Nilo e Moraes Moreira], Balancê [de João de Barro e Alberto Ribeiro]. Tem canções que eu adaptei para o carnaval, Proibida pra mim [do grupo Charlie Brown Jr., regravada por Zeca Baleiro] fica muito boa em levada de frevo, algumas canções de Chico eu adaptei, outras canções do rock nacional, como Exagerado, do Cazuza [parceria com Ezequiel Neves e Leoni]. [O baile] Tem uma característica de adaptação. Vou cantar umas de Zeca Baleiro e de outros maranhenses”.
Pergunto-lhe se a inauguração do Clube do Chico [Rua Uirapuru, 17, Calhau; entrada do Grand Park, primeira à esquerda], que abriga a festa de amanhã, melhora as perspectivas para produções dele e de artistas com quem mantém relações. “A intenção é essa, está sendo. Inauguramos, ainda é uma fase de observação, existem questões como a vizinhança, é uma área residencial. As perspectivas são sem dúvidas de melhoras, para mim e outros artistas, a intenção é juntar”.
A inauguração do Clube do Chico aconteceu com um show em homenagem aos 76 anos que a cantora Nara Leão teria completado no último dia 19 de janeiro, com a atriz Gisele Vasconcelos – que a interpretou em João do Vale – O musical, no Teatro Arthur Azevedo, no fim do ano passado. Marconi aponta para o futuro e anuncia produções que a casa receberá em breve. “O Clube do Chico é essencialmente Chico Buarque, mas não é uma coisa fechada, não é um Chico hermético [risos]. É um referencial, para outras coisas musicais que fazem parte de um contexto daquilo que eu acredito. Muita coisa pode caber no Clube do Chico. Minha intenção para essa fase atual é poder desenvolver projetos. Já temos algumas coisas quase agendadas, como por exemplo Zé Renato, praticamente fechado, para fazer em março, estamos acertando com Paulinho Pedra Azul”, revela.
No musical em que Gisele Vasconcelos interpretou Nara Leão, Marconi Rezende debutou no teatro: interpretou Chico Buarque e outros seis papéis. Pergunto-lhe sobre a experiência. “Foi exatamente essa palavra: uma experiência. Eu entrei como uma cobaia. Não que tenham me feito de cobaia, mas meu coração me fez sentir assim. Me entreguei às cegas a um negócio novo. Novo entre aspas, interpretar no sentido teatral é uma novidade, mas não deixa de ser algo que já estava vislumbrado na minha mente. Ao interpretar canções de fora da nossa realidade, a gente se transporta. Dessa forma, quando eu entrei, quando eu me inscrevi, a minha intenção era fazer Chico Buarque e cantar, somente. Mas o diretor me deu seis papéis, acho que ele queria que eu desistisse [risos]”.
Mas tu és motense ou só teu personagem?, pergunto-lhe, lembrando de uma cena ao final do musical, em que ele aparece trajando a camisa do rubro-negro maranhense. “Eu sou MAC [risos]”.
No Bloco do Prazer Marconi Rezende (voz e violão) será acompanhado por Adriano Cortez (trombone), Cláudio Lima (sax), Fernando Japona (contrabaixo), Ribão (bateria) e Ronaldo Rodrigues (bandolim). A noite terá ainda a discotecagem de Vanessa Serra. Os ingressos custam R$ 30,00. Reservas antecipadas podem ser feitas pelo telefone (98) 99988-9186.
Com 30 anos de estrada, a Eddie é menos conhecida – mas não menos importante – que seus pares de manguebit, principalmente Nação Zumbi e mundo livre s/a. Mas os meninos de Olinda já estavam na área quando o boom se deu e seguem firmes, fortes e tendo o que dizer.
No camarim, após o show da banda ontem (2), na última noite de Festival BR 135, Fábio Trummer me contou que o grupo foi convidado a gravar o disco de estreia no mesmo período em que Chico Science o fez. “Vamos lá! A gente só vai acontecer se for em bando”, vaticinava o malungo. A Eddie, com sua sabedoria, recusou: “Chico, nós ainda não estamos preparados para isso”.
Só estreariam em disco em 1998, com o ótimo Sonic Mambo. Nação Zumbi e mundo livre s/a já tinham dois discos cada uma e o vocalista da primeira já havia falecido em um trágico acidente automobilístico no carnaval do ano anterior. A pressa é inimiga da perfeição e o segundo disco só sairia em 2002, Original Olinda Style, título que bem cabe de rótulo ao som da banda, que mistura punk, rock, maracatu, ciranda, frevo, surf music e outros carnavais. Sobre este disco, uma curiosidade: a grana dos direitos autorais pela gravação de Quando a maré encher (Fábio Trummer/ Roger Man/ Bernardo Chopinho) por Cássia Eller, em seu Acústico MTV (2001), ajudou enormemente em sua feitura. A música, aliás, foi um dos pontos altos – e não foram poucos – do show vibrante de ontem, um passeio por todas as fases destes 30 anos de carreira – quase 20, se contarmos a partir do debut discográfico.
Fábio Trummer (guitarra e voz), Alexandre Urêa (percussão e voz), Andret Oliveira (trompete, teclados e samplers), Rob Meira (contrabaixo) e Kiko Meira (bateria) botaram o público para cantar, dançar e aplaudir. De Quebrou, saiu e foi ser só (de Morte e Vida, o disco mais recente, de 2015) a Veraneio (que batiza o disco de 2011), passando por Danada (de Metropolitano, de 2006), Desequilíbrio (de Carnaval no Inferno, de 2008), Sentado na beira do rio e Pode me chamar (ambas de Original Olinda Style).
Quando um fã mais afoito gritou pedindo por O Baile Betinha, Urêa retrucou, bem humorado: “você já quer acabar o show, rapaz?”. Fazia calor, Trummer deu mais um gole na long neck e agradeceu à polícia: “pelo expediente eles já podiam ter ido embora, mas ainda estão aí para garantir a segurança de todo mundo”. A programação da noite estava atrasada e ao se despedirem, lamentou, para desespero do ótimo público presente: “ainda tínhamos umas seis ou sete músicas”. Atenderam aquele pedido e não voltaram para o bis.
Em uma rede social da banda, um comunicado postado por volta de meio dia de hoje (3) anuncia a remarcação de um show em Londrina/PR para o ano que vem, em virtude de não terem conseguido “logística em tempo hábil para sair de São Luís”. O BR 135 marcou, então, o encerramento desta turnê da Eddie – não poderia haver coroamento mais adequado para ambos. Este mês a Eddie disponibilizará outro single do disco novo, a ser lançado em 2018.
Pessoalmente, Fábio Trummer é ainda mais simpático. Em seu braço esquerdo cheio de tatuagens, mostro a ela a mosca que dá nome à banda, que compareceu ao encarte do primeiro disco. Aos 47, ele entra de férias para curtir outra estreia: esperar a chegada de seu primeiro filho.
Musical e geograficamente o Baiana System está localizado entre a pernambucana Nação Zumbi e a carioca O Rappa. Como o nome indica, Russo Passapusso e companhia vêm da Bahia.
A sonoridade do grupo é uma salada que vai de samba-reggae, axé, pagode, rock, reggae, rap, um som urbano urgente que discute questões idem – especulação imobiliária, desigualdades sociais, racismo, trabalho – embaladas em bases de contrabaixo, guitarra, percussão, programações eletrônicas e a guitarra baiana na linha de frente. As projeções, com a máscara-símbolo do Baiana System em destaque, são outro elemento à parte, compõem o cenário mas estão para além disso.
Russo Passapusso é um showman sui generis: bota o público pra dançar, erguer os braços, fazer barulho, mas sabe que está ali para abrir cabeças, diferente da polícia que, Brasil afora, o faz a base de cassetetes, como ele mesmo disse, a frisar com um exemplo engraçado, de Salvador, em que policiais chegaram para espancar populares que estavam “fazendo a roda” e caíram na gargalhada em resposta às risadas com que foram recebidos. Ufa, foi por pouco. “Salve a polícia simpática, educada”, cumprimentou.
O vocalista e compositor se divertiu: fez a maior parte do show em frente ao palco, um nível abaixo da banda, dançando com um par de cazumbas que fazia as honras da casa. “Cadê o boi?”, perguntou ao perdê-los de vista. Várias vezes foi até o gradil cumprimentar o público, exalando simpatia.
Lançado ano passado, Duas cidades, base do repertório do show de ontem (30/11), na Praça Nauro Machado, na programação do Festival BR 135, figurou em quase todas as listas de melhores discos do ano. Lucro (Descomprimindo) dialoga diretamente com Aquarius, filme de Kléber Mendonça Filho estrelado por Sônia Braga: ambos têm a especulação imobiliária como personagem central.
Eletronicamente malemolente a faixa-título retrata o abismo social entre as periferias e bairros nobres de qualquer cidade do mundo: “diz em que cidade você se encaixa?/ cidade alta, cidade baixa”, provoca, reflete, a partir da realidade soteropolitana. “Dignidade é poder trabalhar”, diz verso de Mercado, em tempos de reformas trabalhista e previdenciária sob a égide golpista. O coro de “Fora, Temer!”, estimulado por Passapusso, soou tímido.
Não houve bis. O Baiana System dá seu recado – seco, duro, preciso, direto, urgente – mas não faz charminho.
São sete discos lançados em quase 20 anos de carreira, álbuns bastante diferentes entre si, o mais recente, Modo Avião, não dará as cartas no repertório de hoje à noite: o set list de Balada de Lucas, nome do show, foi escolhido pelos fãs, pela internet.
Multi-instrumentista, seu nome já frequentou fichas técnicas de discos de Marisa Monte, Chico Science & Nação Zumbi, Jussara Silveira e Caetano Veloso e Gilberto Gil – é dele a flauta em Baião atemporal, de Tropicália 2 [1993], faixa que homenageia seu tio Tom Zé.
A direção musical do espetáculo é de Xuxa Levy e Lucas Santtana, que não tocará nenhum instrumento para ficar livre para dançar e interagir com o público, sobe ao palco escoltado por Dudinha Lima (contrabaixo e guitarra), Jr. Deep Drumagik (batidas eletrônicas e samples), Rafa Moraes (guitarra) e Lenis Rino (percussões e octapad).
Por e-mail, Lucas Santtana conversou com exclusividade com Homem de vícios antigos.
Foto: Edu Pimenta
Lucas, você acaba de lançar disco novo. Em vez de optar por fazer o show de Modo Avião, você fará um show baseado em escolha popular pela internet. É mais um dado de tua enorme capacidade de se reinventar? Eu só quero fazer o show Modo Avião em teatros, com as pessoas sentadas. Não faz sentido fazê-lo em festivais e casas noturnas. Como meu show mais eletrônico com o Bruno e o Caetano já estava na estrada há cinco anos, senti a necessidade de criar um show novo, com novos arranjos, outra concepção. Chamei o Xuxa Levy para dirigir o show, coisa que nunca tinha feito antes. Queria sair um pouco de dentro da minha cabeça e acho que nesse sentido foi uma abertura positiva. Até porque já tenho quase 20 anos de estrada. Então para subir num palco e cantar uma música de 15 anos atrás você tem que se reinventar, sem dúvida. Se não há mais sentido e prazer em dizer aquilo, melhor não dizer.
Você tem discos completamente diferentes em sua carreira. A reinvenção constante é uma necessidade? Para mim sempre foi mais uma questão de tesão e de urgência. De precisar fazer um disco de dub, ou de violão ou mais eletrônico etc. Naquele momento é aquilo que tira meus pés do chão, me faz gozar, me faz sonhar acordado. Sinto que preciso fazer aquilo, que é urgente para mim fazer. Não sinto obrigação de que sempre seja diferente, simplesmente é assim que meu lado artístico tem se manifestado. E pago caro por essa escolha de mudar o tempo todo. Mas é isso, tenho que fazer reverberar a minha essência. Se me desconectasse dela é que pagaria um preço muito mais alto. Viver é correr riscos, poesia é risco. Ainda mais nos dias de hoje. Viver para instigar os outros.
Você é sobrinho de Tom Zé. No que este parentesco te ajudou e te atrapalhou? Qual o tamanho da responsabilidade em carregar essa informação no DNA? Não me atrapalhou em nada, até porque quase ninguém sabe desse parentesco [risos]. E nunca me fiz valer dele também apesar de ter muito orgulho e pertencimento. Estudando o samba [1975] é um dos cinco álbuns mais importantes da música brasileira. Há ali pela primeira vez a simbiose da canção com o ruído de maneira harmônica. Ao mesmo tempo um disco experimental e de cancioneiro popular. O uso de samples, ou a invenção deles, já que não existia ainda máquinas de sampler. Aquilo abriu as portas para muitas coisas que vieram a seguir, veja o disco do Rincón Sapiência [Galanga livre, 2017] que usa um sampler de Tom Zé.
Nesta apresentação você não tocará nenhum instrumento, ficando livre para dançar e interagir com o público. É possível que a ideia percorra outros festivais ou outras apresentações tuas? No último show com o trio eu tocava vários instrumentos. Era legal, mas isso me prendia muito ali. Tava com saudade de ficar livre para olhar no olho das pessoas, chegar mais perto delas e só me preocupar em cantar, em passar o recado. No show do Modo Avião também só tenho cantado. É como me sinto agora, pode ser que alguma hora mude de novo. Mas por hora é tudo que eu quero.
Seu show tem direção musical de Xuxa Levy, que produziu recentemente discos de Emicida e As Bahias e a Cozinha Mineira, colocando você lado a lado com o que de melhor a música brasileira tem produzido atualmente. Como você se sente em meio a essa cena? Orgulhoso de fazer parte de uma cena tão rica e diversificada, que só reafirma e fortalece tudo que veio antes de nós.
A seu ver falta atenção por parte dos meios de comunicação, que insistem na mesmice? Olhe, eu acho que basicamente falta educação no Brasil. Em todas as classes sociais. Falta diálogo e, sobretudo, maturidade. Ainda somos uma sociedade bastante imatura, e muito disso é por falta de educação. Os meios de comunicação são apenas mais um reflexo disso. Muito pior do que a mesmice é a irresponsabilidade desses meios, que vêm insuflando o ódio e as polarizações dentro dessa sociedade imatura. Os meios de comunicação só têm servido para deseducar e manipular uma massa de manobra de maneira inconsequente.
Que outros nomes você destacaria na atual cena independente brasileira? Todos que estão tocando no Festival BR 135 esse ano e muitos outros que não vieram esse ano, mas virão nos próximos.
Em Streets Bloom, seu clipe mais recente, você homenageia São Paulo, a maior cidade do Brasil. Agora chega pela primeira vez a São Luís, capital com características completamente diversas daquela megalópole. Quais as tuas expectativas? As melhores possíveis. De conseguir fazer um show legal para as pessoas. De trocar energia e ideias com elas. Mas, sobretudo, de fazer amigos. O que sempre mudou para mim em relação às cidades que já toquei várias vezes é que quando você faz amigos, voltar àquela cidade se torna algo completamente diferente. Em certa medida é como re-visitar parentes, entende? Tenho amigos de longa data em Recife, em Belo Horizonte, em Brasília… e voltar para tocar nessas cidades é saber da alegria de revê-los. Espero que role o mesmo em São Luís.
Quando você ouve falar em Maranhão, no que você pensa, musicalmente falando? As Radiolas, Tambor de Crioula, a festa do Boi, e mais recentemente do governo do Flávio Dino, que foi apontado pela FGV como o governo mais transparente do Brasil. Precisamos valorizar tudo que é público. Isso é ser patriota de verdade.
Lucas é Estrela desde o sobrenome. O guitarrista paraense colocou a multidão para dançar e aplaudir, ontem (25), na Praça Nauro Machado (Praia Grande), na programação do Festival BR 135 Instrumental.
É bastante jovem, pouco mais de 20 anos, mas toca como se tivesse mais tempo de experiência que de idade. Tem pose de rock star, mas é generoso: não quer o palco só pra si. O grupo que lhe acompanha, um percussionista, um tecladista e uma guitarrista que também toca banjo, se reveza na função de band leader. Todos falam, interagem com o público.
Lucas Estrela brilha e isto não é um trocadilho barato. Para além da música, o que por si só bastaria, usa uma camisa com paetês e um sapato lustradíssimo, parece que acabou de sair do engraxate, realçam-lhe o brilho.
É um homem bonito, com cabelos compridos inicialmente presos, mas que depois ele solta, balançando ao ritmo do que toca: siriá, tecnobrega, guitarrada, tecnoguitarrada, lambada. Nunca ouvi um brega de churrascaria tocado com tanta sofisticação. A sonoridade do quarteto faz o público parecer um enorme grupo de figurantes em cena de festa em filme de cineasta pernambucano com trilha sonora de DJ Dolores.
O Pará é tradicionalmente um celeiro de bons guitarristas. Lucas Estrela perpetua a tradição sendo moderno, ousado. Ano passado lançou Sal ou Moscou, seu disco de estreia. O primeiro a me falar dele foi o jornalistamigo Jotabê Medeiros, que assistiu a seu show no Se Rasgum em 2016, entrevistou-o e publicou uma matéria na CartaCapital. Quando comentei há poucos dias que o veria no Festival BR 135, o crítico musical mandou: “o garoto arrebenta”. De fato.
Ao fazer os agradecimentos, Lucas Estrela disse ter parentes no Maranhão, “metade da família no Pará, metade aqui em São Luís”. Várias pessoas na fila do gargarejo responderam ao cumprimento. Depois o artista desceu para o meio da multidão, empunhando sua guitarra, dançando e engrossando o coro de “Fora, Temer!”.
Ao anunciar o fim do show, Lucas Estrela ouviu de um ou outro tirador de onda mais exaltado: “toca Raul!” e “Calypso!”. Quando voltou para o bis, mandou: “vamos fazer mais uma. Não, vamos fazer logo mais duas” e seguiu com seu repertório autoral e dançante, cúmplice do público em êxtase do início ao fim.
O grupo Quartabê se apresenta pela primeira vez em São Luís hoje (24). O show acontece às 21h30, na Praça Nauro Machado (Praia Grande), na programação do Festival BR 135 Instrumental – a programação de hoje na praça tem início às 19h e por ela passarão ainda os maranhenses DJ Pedro Sobrinho e Black & Tal, o paraense Lucas Estrela, além do Instrumental Pixinguinha, às 17h, na Feira da Praia Grande. A programação completa pode ser acessada no site do festival.
O Quartabê estreou em disco em 2015, com o ótimo Lição #1 Moacir, dedicado ao repertório de Moacir Santos. Este ano lançaram o EP Depê, também dedicado ao repertório do genial maestro pernambucano, com participações especiais de Juçara Marçal, MC Sofia, Tulipa Ruiz, Tim Bernardes e Arrigo Barnabé.
Após uma baixa – a saída da contrabaixista Ana Karina Sebastião –, Joana Queiroz (saxofone tenor, clarinete, clarone e flauta), Maria Beraldo (clarinete, clarone e sax alto), Mariá Portugal (bateria) e Rafael Montorfano, o Chicão (teclados) acabaram de chegar de sua primeira turnê europeia. O agora quarteto passou por Alemanha, Áustria, Espanha, França e Portugal. Foram 10 apresentações em 22 dias.
“Rumamos para o Festival BR135, no Centro Histórico de São Luís do Maranhão! Primeira vez da banda no Estado! Estamos ansiosíssimos para chegar nessa cidade maravilhosa que é São Luís, num Festival lindão, DE GRAÇA, tão cheio de gente bacana tocando. Dia 24 (sexta)”, assim a banda anunciou sua chegada à ilha em um boletim distribuído por e-mail a seu fã clube.
Por e-mail a baterista Mariá Portugal conversou com exclusividade com Homem de vícios antigos.
O quarteto em foto de José de Holanda
Vocês estiveram recentemente em turnê pela Europa e gravaram um single na Alemanha. Como foi a receptividade do público? Este single aponta algum caminho para um novo disco? Na verdade gravamos um single na Espanha junto com a banda Forastero, dentro do Projeto SON Estrella Galicia, depois de ter dividido o palco no El Sol, em Madrid. Já participaram deste projeto Anelis Assumpção e Tulipa Ruiz. Este single significou principalmente uma troca de vivência com a banda, o que é uma forma muito interessante de entrar no ambiente musical do lugar, bem mais profundo que apenas fazer um show e ir embora. Passamos um dia inteiro no estúdio e gravamos uma música deles, e eles uma nossa.
No primeiro disco vocês homenagearam Moacir Santos. O próximo disco seguirá a trilha das lições de um mestre? Quem será o homenageado? Sim, já estamos preparando nossa Lição #2, que será novamente sobre um compositor brasileiro (que não podemos revelar por enquanto, mas quem for ao nosso show consegue adivinhar).
A Quartabê agora é um quarteto. Como é se adaptar à nova formação? Sim, desde setembro somos um quarteto. Como agora não temos baixista, dividimos a função do baixo entre nós quatro – ora o Chicão faz o baixo com sintetizadores, ora Joana ou Maria no clarone com auxílio de pedais, ora eu faço no MPC. Estamos bem felizes com a sonoridade que conseguimos, que sai do formato tradicional de quinteto de jazz que tínhamos com a Ana Karina Sebastião. Creio que essa mudança abriu uma série de possibilidades estéticas bem interessantes, e que com certeza refletirão no Lição #2.
A ida de Joana para uma residência artística na Argentina ano que vem pode vir a modificar novamente a formação do grupo? Ou ainda não se pensa efetivamente nisso? A residência da Jojô será de apenas duas semanas, mas a verdade é que já estamos acostumadas com o fato de nós quatro sermos muito ativas profissionalmente e termos projetos paralelos. Isso é uma das coisas que fazem com que a Quartabê seja a banda que é. Todos nós estamos bem empolgadas com as conquistas dos últimos tempos e a fim de fazer acontecer. Ao que tudo indica, 2018 será um ótimo ano para a Quartabê.
Vocês tocam pela primeira vez em São Luís. Quais as expectativas? Musicalmente, o que vem à sua cabeça ao ouvir falar no Maranhão? Estamos super empolgadas! Sabemos da riqueza musical maranhense e que tem muita gente esperando pela Quartabê por lá. Musicalmente nos vêm muitos nomes como os de Mestre Antonio Vieira, Dona Teté, Papete, a geração de Zeca Baleiro e Rita Benneditto, todo o mundo do Boi e do Tambor de Croula, toda a cena de reggae maranhense, Tião Carvalho, Lopes Bogéa… tantos outros. Pessoalmente, tenho uma história antiga com São Luís. Quando tinha por volta de 17 anos me hospedei junto com minha mãe na casa do percussionista Arlindo Carvalho. Aprendi muita coisa com ele e conheci vários outros músicos incríveis. Foi uma experiência inesquecível e transformadora.
E para além de musicalmente? Arroz de cuxá, camarão seco com farinha d’água do Mercado Central e Guaraná Jesus!
Qual a base do repertório que vocês estão preparando para tocar aqui? Será uma mistura dos nossos dois discos, Lição #1: Moacir e Depê (ambos dedicados à obra de Moacir Santos), com uma palhinha do Lição #2.
Você e Maria gravarão no próximo disco de Elza Soares. Para você, qual o significado de estar no sucessor de A mulher do fim do mundo? Sem dúvida é um privilégio imenso. Nos dá a sensação de que estamos fazendo parte de um momento histórico. Só temos a agradecer.
É inevitável: a poética de Estrela Leminski é impregnada de seu DNA. Filha de ninguém menos que Paulo Leminski e Alice Ruiz, suas composições, com parceiros diversos, entre os quais a mãe e o marido guitarrista Téo Ruiz, com quem divide discos, palcos e a vida, dão continuidade à melhor tradição (re)inventada pelo casal que agitou Curitiba nas décadas de 1970 e 80, quando a capital paranaense chamava a atenção de todo o Brasil por motivos mais poéticos.
Acompanhados por um power trio da pesada, Diego Perin (contrabaixo), Ruan Castro (guitarra) e Doug Vicente (bateria), Estrela Leminski (voz e efeitos) e Téo Ruiz (voz e guitarra) fizeram uma apresentação meio que de surpresa, na noite de ontem (12), no Reocupa (Rua Afonso Pena, Centro), em mais uma demonstração prática do conceito da casa, de ocupação artística do Centro da capital maranhense.
Vontade de fazer e brecha na agenda, entre um show em Teresina/PI e outro em Belém/PA (amanhã, 13, no Festival Se Rasgum), artistas dispostos a fazer sua arte chegar a mais gente, o cachê no melhor esquema “pague o quanto puder”.
O repertório do show é o do recém-lançado Tudo que não quero falar sobre amor, título longo e bonito, que embala 12 faixas, todas cantadas no show, a que Estrela, “desde sempre estudante de astrologia”, como declarou, acabou atrelando, cada uma a um signo – os poucos mas fiéis leitores que me perdoem, mas não vou conseguir lembrar que música corresponde a que signo.
Começaram o show por Quase feliz, parceria de herdeiras, Estrela Leminski e Anelis Assumpção, filha de Itamar, outro nome cuja poesia e melodia são evocadas no caldeirão de referências de Estrela e Téo. Depois foi a vez de Hit agressivo (Alice Ruiz/ Estrela Leminski/ Jossane Ferraz/ Téo Ruiz): “Tudo anda meio agressivo/ brigo com as ideias sem motivo/ não sou do tipo que se joga/ nem que fica para baixo/ quando tá indignado”, diz a letra.
Biografia (Bernardo Bravo/ Estrela Leminski/ Téo Ruiz) evoca o “vazio agudo/ ando meio/ cheio de tudo”, haicai da lavra de Paulo Leminski: “eu tô vagando na vida/ ando vivendo no vácuo/ minha cabeça tá cheia/ de tanto esvaziar”, cantam num trecho. O vento não ajudava, a noite estava quente. “Eu não sabia que aqui era mais quente que Teresina”, gracejou Téo. Adiante, perguntou: “a gente ouviu todo mundo falando que aqui é a Ilha magnética. Por quê?”. Da plateia alguém respondeu: “é por que depois que você vem você não consegue mais sair”. “Então já estamos todos magnetizados, pois estamos adorando”, retribuiu Téo.
Ruiz de mãe e Leminski de pai, Estrela se casou com um Ruiz. “A gente consegue explicar tudo, só não consegue explicar que não é irmão”, brincou. Eu, ué (Estrela Leminski/ Téo Ruiz), título palíndromo, é mais uma canção a demonstrar a alta voltagem poética da dupla-casal: “se tá confuso assim, sem saída,/ eu vou chamar meu outro eu/ se você duvida/ fui conviver comigo/ eu sei, isso é difícil/ até eu me confundi/ no início/ eu é osso/ eu é ócio/ eu é isso/ e foi virando vício”.
Uso da palavra (Bernardo Bravo/ Estrela Leminski/ Lívia Lakomy/ Mayara Santarem/ Renato Negrão/ Téo Ruiz) brinca com a própria língua portuguesa e suas contradições, de forma bem humorada, com ecos da Isca de Polícia: “vou dirigir a palavra mas não vou atropelar”, começa. O Blues do encanto (Luiz Rocha/ Téo Ruiz) preparou o terreno para Gostável (Estrela Leminski/ Lívia Lakomy/ Rogéria Holtz/ Téo Ruiz), facilmente um hit, tocassem a tevê e o rádio o que realmente vale a pena, a letra passeando entre diversas situações em que alguém lembra de outro alguém: “a culpa é sua se te esquecer é inviável/ você é que é uma pessoa tão gostável”.
Quando cantaram Novela das seis (Estrela Leminski/ Téo Ruiz), Estrela agradeceu: “obrigado por terem vindo. Obrigado por não estarem em casa assistindo tevê”. O título da faixa é o lugar em que alguma/s faixa/s do disco deveria/m estar, talvez não ela própria, seria pedir demais, uma crítica aos meios de comunicação: “entre a idade média e a idade mídia/ fogueira das vaidades distraída/ um argumento sem lógica/ contando sempre a mesma história”. No rodapé de cada faixa, no encarte do disco, uma observação sobre a música ou sua feitura. Nesta, diz o seguinte, vale refletir: “Muitos não leem a notícia mas já formulam sua opinião pela chamada. Já passamos pela idade média e agora parece que chegamos na idade mídia. Vamos ter que substituir o termo “jornalismo” pelo “manchetismo”?”.
É duro ter coração mole (Alice Ruiz/ Estrela Leminski) é trocadilho delicioso, enquanto Nosso livro (Estrela Leminski/ Téo Ruiz) é inspirada declaração de amor. A vida não é justa (Estrela Leminski/ Líria Porto/ Téo Ruiz) é tecida a partir de apetrechos de costura, metáfora da própria vida, esse zig-zag.
A próxima parada de Estrela e Téo é o Pará, amanhã (14), no Festival Se Rasgum. Em ritmo de carimbó, Poliamor (Estrela Leminski/ Téo Ruiz) cita o próximo destino: “esse amor não é gaiola/ você pode sair e voltar qualquer hora/ de Paris até o Pará/ esse amor tem passe livre/ é vip, gif, pra uns é fetiche/ um pinhão no tacacá”.
“Eu ouvi um mais um aí?”, riu Téo Ruiz, antes do bis. Alguém gritou “essa noite vai ter sol”, pedindo Luzes (Paulo Leminski). “Essa banda já toca com a gente há um tempão, mas essa a gente não ensaiou”, Estrela saiu pela tangente. Atacaram de Hard feelings (Itamar Assumpção/ Paulo Leminski), com a letra em inglês misturada a Vinheta I, que abre o disco de estreia de Itamar Assumpção: “Benedito João dos Santos Silva, Beleléu/ vulgo Nego Dito/ Nego Dito, cascavel”.
Referências explícitas, recado dado, não a poucos privilegiados, mas aos curiosos, que se dispõem a sair de casa para sacar um som, mesmo, às vezes, sem conhecer, como o próprio Téo Ruiz elogiou a disposição da plateia. “Ah, eu já sei por que tá tão quente. É o calor de vocês”, reiterou os agradecimentos ao público presente. A noite afinal teve sol, talvez por isso fizesse tanto calor em São Luís.
A cantora Ceumar durante sua apresentação ontem (4) na Ponta do Bonfim. Foto: Fafá Lago
A programação atrasou bastante e o por do sol que dá nome ao projeto acabou se transformando em luau. O público não arredou pé e acompanhou com atenção as três atrações que precederam Ceumar.
Eu nunca tinha visto/ouvido Vanessa Serra discotecar: em território predominantemente masculino ela desponta já como um nome importante, com repertório sensível ao ambiente (isto é, o que ela toca dialoga com o universo ao redor do evento), que demonstra profundo conhecimento de música brasileira – resultado de seus anos de jornalismo cultural e colecionadora de vinis, entre os quais esbanjou Papete, Zé Keti, Paulo Diniz, Raimundo Sodré, Roberto Carlos, Nara Leão, Betto Pereira…
Mano Borges (voz e violão), acompanhado de Darklilson (percussão), fez um show no estilo “som do barzinho”, passeando por um repertório de clássicos da MPB, entre Chico Buarque (A Rita), Peninha (Sonhos), Cesar Teixeira (Oração latina, num andamento muito festivo, destituindo o “hino” de sua solenidade), Zeca Baleiro (Mamãe Oxum, tema de domínio público adaptado pelo maranhense, cuja letra errou) e Caetano Veloso (A luz de Tieta). O projeto Ponta do Bonfim tem um público cativo: ele poderia ter apostado em uma coletânea de sua própria obra, embora não tenham faltado Bangladesh (Marco Cruz), que intitula seu melhor disco, Ça va (Mano Borges), Amagni (Koko Dembele, versão de Mano Borges) e, a pedido, Os nós (Mano Borges).
Fernando de Carvalho, acompanhado por Darklilson (que havia ido para acompanhá-lo e acabou tocando com Mano Borges de improviso) e Luiz Jr. (violão sete cordas), fez um apanhado de seus quase 20 anos de carreira, entre músicas de seus discos e constantes no repertório de shows temáticos que faz, como Saudosa maloca (Adoniran Barbosa), Lenda das sereias, rainha do mar (Vicente Mattos/ Dinoel/ Arlindo Velloso), Fiz a cama na varanda (Dilu Mello), O que vier eu traço (Alvaiade/ Zé Maria) – samba de que ele cantou apenas a primeira parte – e, entre outras, Cry me a river (Arthur Hamilton) – que gravou em disco com a participação de Alcione. Abriu o show com Canto de luz (Zé Pereira Godão), com a participação especial de Regina Oliveira (Grupo Lamparina), tocando caixa do divino.
Atração mais aguardada da sétima edição do projeto Ponta do Bonfim – Música, amizade e por do sol, Ceumar subiu ao palco às 21h20, divertindo-se com o vento e agradecendo a oportunidade de estar mais uma vez no Maranhão. “Sempre fui muito bem recebida aqui, desde a primeira vez que vim, em 2001, quando cantei no Canto do Tonico. O Maranhão me deu muita coisa, quando eu comecei a carreira, muita gente perguntava se eu era daqui”, apresentou-se para emendar Oração do anjo (Ceumar/ Mathilda Kóvak) e O seu olhar (Arnaldo Antunes/ Paulo Tatit). Depois lembrou Reinvento, parceria com Estrela Ruiz Leminski, “filha dos poetas Paulo Leminski e Alice Ruiz”. Na sequência, foi de Encantos de sereia (Osvaldo Borgez), do repertório de Silencia (2014), seu disco mais recente.
Depois de Cantiga (Zeca Baleiro), Ceumar lembrou-se de seu encontro com Josias Sobrinho, em meados da década de 1990, na casa de Zeca Baleiro, em São Paulo. “Eu pensei que era meu irmão do Maranhão, a gente tinha os mesmos cabelos, os mesmos olhos”, contou, rindo. “E eu gostei muito de um boizinho que ele fez para a filha dele, Luiza, e eu gravei no meu primeiro disco, como uma canção”, contou, anunciando As ‘perigosa’. Voltou a Zeca Baleiro em Boi de haxixe, seguida de Avesso (Ceumar/ Alice Ruiz).
“Quase todas as vezes em que venho a São Luís eu tenho a honra de poder contar com o auxílio luxuoso de um amigo que levou muito Maranhão pra meu primeiro disco, sonoridades incríveis, até hoje eu encontro músicos que me perguntam que som é aquele, referindo-se ao pandeirão com vassourinha, que Luiz Cláudio inventou”, contou, chamando ao palco o paraense radicado no Maranhão.
Revezando-se entre o pandeiro e o pandeirão, Luiz Cláudio acompanhou-a em Maldito costume (Sinhô), em que se reveza categoricamente entre as platinelas e o couro do pandeiro, Dindinha (Zeca Baleiro), Galope rasante (Zé Ramalho), em que ele imprime o andamento percussivo de uma tribo de índio maranhense. Em Gírias do Norte (Jacinto Silva/ Onildo Almeida) Ceumar trocou o violão pelo pandeiro e Luiz Claudio percutiu o pandeirão com baquetas, evocando uma zabumba. No mesmo esquema, Xodó de motorista (Dilson Dória/ Elino Julião), música que não está em nenhum de seus discos. De volta ao violão e ainda com Luiz Cláudio no palco voltou a Josias Sobrinho, em Rosa Maria, quando um grupo de mulheres da plateia espontaneamente fez um trenzinho circular o salão evocando o cacuriá e levando Ceumar a emendá-la a Maçariquinho (Pedro Caetano/ Clemente Muniz).
Novamente sozinha, demonstrou em Rãzinha blues (Lony Rosa) todo o poder de sua voz, espécie de autenticação do encanto de todos os ali presentes. Após as síncopes de seu violão em Achou! (Dante Ozzetti/ Luiz Tatit), uma demonstração de humildade de Ceumar. “Há alguns anos, quando eu estive aqui, eu tive a oportunidade de conhecer uma cantora e, de longe, acompanho sua trajetória, com atenção”, revelou, antes de chamar ao palco Tássia Campos, de surpresa, sem ensaio. Juntas cantaram Lá (Péri).
Ceumar cumpriu à risca o que anunciou ao subir ao palco: não havia roteiro, era seguir o coração. Todos os corações presentes estavam devidamente tocados enquanto ela procurava mais repertório. Mandou ainda Pecadinhos (Zeca Baleiro) e depois trocou o violão por um par de conchas, que percutiu ao longo de Onde qué (Sérgio Pererê), usando os saltos dos sapatos no tablado também como instrumentos. A plateia cantava em peso e ela desceu e circulou em meio a ela, esbanjando simpatia.
O povo queria mais e ela não se fez de rogada: voltou ao palco para encerrar com outra música que não figura em seus discos. Luiz Cláudio também voltou a acompanhá-la, fazendo o bis antes dos tradicionais pedidos de “mais um”. Já passava pouco das 23h quando encerraram o espetáculo com Engenho de flores (Josias Sobrinho).
A plateia estava em êxtase. Superadas todas as expectativas, quem há de dizer que Ceumar não é (também) daqui?
Há alguns anos uma enquete da revista Rolling Stone Brasil elegeu Acabou chorare (1972), dos Novos Baianos, o melhor disco da música brasileira em todos os tempos. A história é por demais conhecida: após uma estreia mais roqueira em Ferro na boneca (1970), a trupe de Moraes Moreira, Luiz Galvão, Baby Consuelo, Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor e companhia deu uma guinada rumo à brasilidade após uns encontros com o papa João Gilberto.
O conterrâneo (de Juazeiro, como Galvão) já havia revolucionado a música mundial como um dos inventores da Bossa Nova, com seu violão e seu canto sui generis. Ao encontrar o bando em um apartamento no Rio de Janeiro apresentou-lhes Assis Valente, compositor de sucessos de antigos carnavais, já falecido. A ele, os Novos Baianos somaram cavaquinho, bandolim e percussão: nA Cor do Som da comunidade hippie Jacob do Bandolim caiu no rock, Jimi Hendrix no choro.
“Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor”. O Brasil pandeiro do também baiano (de Santo Amaro) abre o que viria a se tornar um clássico – não à toa o bom público presente ao Fanzine Rock Bar na noite de ontem (14) cantou a íntegra de seu repertório a plenos pulmões. A Calabar, banda responsável pelo belo tributo, não se limitou a Acabou chorare.
A influência de João Gilberto não pararia por ali, no entanto. A faixa-título também tem seu dedo: Moraes Moreira e Luiz Galvão escreveram-na após ouvir a história contada por aquele a quem Caetano Veloso já se referiu como “melhor do que o silêncio”. Bebel Gilberto, filha de João, então uma criança, havia caído e chorou. Depois de superar a dor e enxugar as lágrimas, mandou em um latim infantil e particular: “acabou chorare”, inspirando o baiano de Ituaçu e seu parceiro de Juazeiro.
Surgida mais ou menos recentemente, a banda Calabar havia se notabilizado no cenário ludovicense ao estrear com um show-tributo ao mítico Transa (1972), de Caetano Veloso, que contava entre outros feitos com o violão de Jards Macalé e o trazia primeiro registro fonográfico de Angela Ro Ro, que toca gaita em Nostalgia (That’s what rock’n roll is all about), faixa que encerra o álbum.
O nome do grupo é inspirado na peça de teatro musicada Calabar: o elogio da traição (1973), de Chico Buarque e Ruy Guerra. Se “tradução é traição”, como atestam experts no assunto, está explicada a química no palco: não há cavaquinho ou bongô, por exemplo, é como se os Novos Baianos decidissem refazer Acabou chorare com a pegada de Ferro na boneca.
A Calabar é formada por Fernando Marques (contrabaixo, um monstro que parece ter saído de uma banda inglesa), Fernando Moreira (bateria), Paulo Muniz (guitarra e violão), Rômulo Rodrigues (guitarra) e Cláudio Leite Filho (voz, filho de Cláudio Leite, famoso na noite da Ilha sobretudo pelas releituras de Chico Buarque), e ontem contou com o reforço de Jéssica Góis (voz), que já havia feito uma apresentação inteira com a Pédeginja, um dos shows de abertura da noite, que teve ainda Marcos Magah e Tiago Máci (que este repórter não viu) – rouca por volta das duas da manhã, bateu o recorde de Juninho Paulista, que em 1994 disputou duas partidas pelo São Paulo Futebol Clube no mesmo dia.
O show da Calabar refez a íntegra do repertório de Acabou chorare – a banda não se preocupou com a ordem das faixas no disco, o que certamente seria óbvio demais, nem com os vocais masculinos e femininos divididos entre Moraes Moreira, Paulinho Boca de Cantor e Baby Consuelo. A faixa-título, por exemplo, no disco interpretada por Moreira, foi relida por Jéssica Góis no show de ontem. É preciso ter personalidade para certas ousadias.
Ainda que fora da ordem, um show apenas com o repertório de Acabou chorare seria curto e a Calabar espraiou-se por outras fases da carreira do grupo, lembrando clássicos como Samba da minha terra (Dorival Caymmi) e Na cadência do samba (Ataulfo Alves/ Paulo Gesta/ Matilde Alves), mais heranças joãogilberteanas.
“Mais um, Bahia”, pede o hino do tricolor baiano, cuja letra é emendada, em Cosmos e Damião (Luiz Galvão/ Moraes Moreira) ao Bim Bom de João Gilberto (ele de novo!), ao que a Calabar mixou, ao vivo, A rã (João Donato/ Caetano Veloso), Quando você chegar (Luiz Galvão/ Pepeu Gomes) e Bananeira (João Donato/Gilberto Gil).
Outra extra que não está em Acabou chorare, Dê um rolê (Luiz Galvão/ Moraes Moreira), recentemente abertura de novela na interpretação de Pitty, e seu mantra “eu sou amor da cabeça aos pés” era um pouco o resumo da comunhão das almas apreciadoras de boa música presentes ao Fanzine, reverenciando o frescor de um disco lançado há 45 anos. Não à toa, a festa, encerrada com Preta pretinha (Luiz Galvão/ Moraes Moreira), se chamava Baile tropical.
O público maranhense tem reencontro marcado com Rita Benneditto na próxima sexta-feira (8), aniversário de São Luís, ocasião em que a artista fará um show dentro da programação do Governo do Maranhão pelos 405 anos da capital. Ela sobe ao palco do Espigão Costeiro da Ponta d’Areia às 21h.
Como seu conterrâneo Zeca Baleiro, Rita também está completando 20 anos de carreira fonográfica em 2017: seu primeiro disco foi lançado em 1997, com produção dele e Mário Manga (ex-Premeditando o Breque), e repertório que incluía Antonio Vieira, Carlos Careqa, Márcio Greyck e Vital Farias, entre outros.
Em entrevista exclusiva a Homem de vícios antigos, por telefone, ela comentou o repertório do show, o início da carreira, influências, a importância do Maranhão em seu fazer artístico, as parcerias com Jussara Silveira e Teresa Cristina, novos projetos, a mudança de nome artístico e, assunto inevitável nestes tristes tempos, política.
Foto: Marcos Morteira
Você é uma das artistas maranhenses mais bem sucedidas nacionalmente, ao lado de Alcione e Zeca Baleiro, mas por outro lado faz poucos shows por aqui. A que você acha que se deve essa ausência e qual a sensação de reencontrar o público maranhense numa ocasião como o aniversário da capital do estado? Eu lamento muito que eu vá muito pouco a São Luís, que é a minha terra. Eu acabo tendo que concordar quando muita gente diz que santo de casa não faz milagre [risos]. Eu gostaria de ir sempre, uma ou duas vezes por ano, no calendário de festas de São Luís. É meu porto seguro, é o lugar onde eu comecei, são minhas referências, onde eu formatei toda minha história. Eu tenho um trabalho de pesquisa muito grande com a cultura popular brasileira, e especialmente a cultura do Maranhão. Eu sempre digo em qualquer lugar onde eu vou, que o Maranhão, junto com Pernambuco e Bahia, é a tríade máxima do Nordeste e da cultura. É o alicerce, por que as tribos africanas, o povo africano, o povo que se deslocou para essas regiões, o povo negro e ameríndio, tem um poder muito grande, concentrou um poder muito grande e estabeleceu uma cultura muito forte. Mas geograficamente o Maranhão se prejudica um pouco, por que não está muito próximo desses eixos aqui onde as coisas normalmente funcionam mais. Eu lamento muito que eu não consiga. Quando eu vou eu tento fazer um show no teatro, as pessoas acabam nem indo, meu ingresso custa 80, 60 reais, elas querem pagar 400 reais num desses caras aí. O Nordeste tem uma cultura popularesca muito grande, um consumo de sofrência e popozão [risos], eu não tenho como questionar, eu tenho um trabalho específico. Eu lamento que eu vá muito pouco a São Luís, eu me ressinto disso, mas tá tudo bem, a gente quando vai, vai feliz. Minha expectativa, sempre que eu vou, é maravilhosa, por que eu vou encontrar o público maranhense, eu vou fazer o melhor de mim cantando coisas minhas, coisas da minha terra, ainda mais quando é uma festa tão especial como o aniversário da cidade, por que concentra um número maior de pessoas, é público, é de graça, de graça entre aspas, por que nós pagamos impostos [risos].
Falando nisso, o que o público pode esperar em termos de repertório? Que banda te acompanha? Fale um pouco do show. Na verdade eu tou com uma banda agora um pouco reduzida, um trio, power trio mesmo, bateria, baixo e guitarra. É o Ronaldo Silva, que é filho do Robertinho Silva, que é um grande músico, percussionista, baterista, o Pedro Dantas, que é meio maranhense, carioca, foi criado aí no Maranhão, é baixista, toca hoje com a Lucy Alves, com a Vanessa da Mata, garoto novo e muito bom, e o Fred Ferreira, que é guitarrista aqui do Rio de Janeiro, está comigo já há um tempão, faz a direção. Eu reuni na verdade músicas de vários de meus trabalhos, não dá para fazer tudo, é apenas um show, tem outras atrações, o espaço dos shows serão divididos entre as pessoas que vão se apresentar [além dela sobem ao palco Carlos Gomes, Cláudio Fontana, Criolina e Tom Cléber]. Eu reuni canções de meus discos anteriores, Filhos da precisão, de Erasmo Dibell, Divino, que é meu com Zeca Baleiro, tem De mina, de Josias Sobrinho. Eu quero cantar Ilha bela, tem um tempão que eu tenho vontade de cantar, que é do Carlinhos Veloz e ele faz uma homenagem linda a São Luís do Maranhão, Tambor de crioula, de Oberdan e Cleto Jr., as coisas do Tecnomacumba, que todo mundo curte e gosta, Cavaleiro de aruanda, Moça bonita, Deusa dos orixás, estou pensando em fazer um reggae mais clássico, o Police and thieves, que foi um dos primeiros reggaes que eu ouvi, do Junior Murvin, quando eu morava na Cohab. Eu reuni várias coisas, quero fazer um show dançante, a gente vai estar na rua, na beira da praia, quero fazer uma festa bem legal. Vai ter reggae, vai ter macumba [risos], vai ter balada. Eu espero agradar meu público maranhense, eu não tenho o que dizer, nem reclamar, eu me sinto muito bem recebida pelo público do Maranhão. Mesmo indo pouco aí eu sei que as pessoas gostam de meu trabalho e a gente tem que ir na luta, fazendo, trabalhando, sempre com amor e alegria.
Tua carreira começa colada com Zeca Baleiro, vocês lançam os discos de estreia juntos, o teu primeiro produzido por ele com o Mário Manga, mas passado algum tempo vocês se descolam. Foi um processo natural esse afastamento? Ou é um afastamento só ilusório, vocês não se afastaram? Como é essa relação, hoje? A gente ficou muitos anos muito juntos, unha e carne. Eu sempre digo que eu sou a voz das canções de Zeca Baleiro [risos], e que ele é meu compositor, por que a gente tem realmente uma afinidade musical muito grande e também afetiva, nós somos do mesmo estado, a gente cresceu em São Luís. Eu acabei indo pra São Paulo, depois acabei convencendo-o a ir a São Paulo para morar, ele foi quem dirigiu meu primeiro show no Maranhão, o Cunhã, depois quando ele foi pra São Paulo ele acabou participando junto com Mário Manga da direção do meu primeiro disco. É uma pessoa extremamente presente no meu trabalho e eu tenho muito orgulho disso. Mas o tempo e o fato de ele ter ficado em São Paulo e eu ter vindo morar no Rio, isso naturalmente afastou a gente, afastou bastante. A gente tem pouco contato, porém, sempre que a gente tem contato é sempre amoroso, é sempre com afeto e boa memória das coisas. Agora mesmo ele me convidou para participar aqui de uma noite de forró que teve na Fundição Progresso. Foi ótimo nosso reencontro, a gente cantou várias músicas juntos. Sempre que a gente pode estar junto, a gente está, mas não mais como era antigamente, aquela coisa bastante presente e constante como era no período em que a gente se conheceu e no período em que eu morei em São Paulo. Acho que é natural, ninguém se perdeu, mas ninguém está mais tão próximo, a vida vai seguindo, a gente com ela, e as coisas vão mudando naturalmente. Mas eu tenho muito amor e muito respeito a Zeca, ao trabalho dele e tudo o que a gente viveu junto.
Ele acabou de lançar um álbum digital de duetos iniciando as comemorações de 20 anos de carreira, que é uma marca que você também atinge agora em 2017, do ponto de vista fonográfico. Vocês já tinham carreiras antes, mas o marco que se considera para efeito de comemoração, como ele me disse em uma entrevista, é o lançamento do primeiro disco. Você está preparando algum trabalho específico para celebrar este marco?
Encanto. Capa. Reprodução
Pra te falar a verdade eu nunca fiquei muito ligada nessa coisa de tempo. Tempo no sentido “ah, 25 disso, 30 daquilo”, acho que o tempo é muito relativo em relação a isso. Eu não gosto de demarcar esse tipo de tempo pro meu trabalho, tudo é tão cíclico, tão permanente e impermanente, que eu prefiro ir fazendo as coisas. Como hoje as mídias mudaram muito, os discos físicos quase não vendem, a gente está tendo que se desdobrar em formas de lançamento. Eu sempre tive como ponto forte de meus trabalhos os meus shows, os meus projetos. Por exemplo o projeto Tecnomacumba começou sem disco nenhum, só depois de três anos lançado que eu fui gravar o primeiro registro dele em estúdio. Ele durou 12 anos em cartaz, muito em consequência dos shows que eu fiz. Eu estou muito mais envolvida com os shows, os projetos de shows, do que necessariamente os registros disso, o disco. A produção é muito alta e acaba não tendo retorno do investimento. Mas a gente tem que estar lançando, sempre. Eu estou optando por lançamentos pequenos, de EPs ou single, não necessariamente um disco de 14 músicas. Estou com dois projetos agora em cartaz, o Zabumba Beat, que eu estreei aqui em São Paulo em agosto, que é uma reverência aos tambores do Brasil, de norte a sul, especialmente a zabumba, que é um instrumento africano que está presente em vários ritmos brasileiros, especialmente os ritmos do xote, forró, que junto com a sanfona e o triângulo formam a trindade máxima das festas juninas do brasil. Zaumba Beat por que de novo eu estou explorando os timbres eletrônicos, as possibilidades todas que a tecnologia pode nos dar, ressaltar o som original dos tambores, os couros verdadeiros, grandes, ancestrais. É um show que deu megacerto, além do Ronaldinho Silva eu chamei o Donatinho, que é o filho do João Donato para fazer toda a parte eletrônica, dos sintetizadores. E paralelo a isso eu também estou com um projeto chamado Suburbano Coração, que é totalmente diferente, sou eu e o maestro Jaime Alem, que foi maestro de Maria Bethânia durante muitos anos. A gente sempre quis estar junto, sempre quis fazer um trabalho nosso, e a gente se juntou em voz e violão, viola, são instrumentos de cordas. A gente estreou no circuito Sesi, agora está indo pra São Paulo, está começando a rodar. São dois projetos que eu estou bastante envolvida no momento. Paralelo a isso eu continuo fazendo o que eu hoje chamo de Tecnomacumba Encantada, por que eu juntei o Tecnomacumba com o Encanto, estou fazendo este show com os dois discos de carreira misturados.
Adorei os nomes dos projetos, Suburbano Coração e principalmente Zabumba Beat. Eu abro o projeto com Urrou, de Coxinho, uma vinheta, depois engato ele no Mimoso, de Ronald Pinheiro. Eu vou costurando, minha ideia é ressaltar os ritmos. Mesmo que eu escolha músicas tradicionais, como músicas de Luiz Gonzaga, ou João do Vale, Coroné Antonio Bento, a ideia é ressaltar os ritmos brasileiros onde a zabumba é muito presente. Estou tentando com isso destacar mais a ritmia do Maranhão. As pessoas conhecem pouco a ritmia do Maranhão, por que o compasso do Maranhão é diferenciado do resto do país. Enquanto todo mundo trabalha em quatro por quatro, no Maranhão a gente trabalha em três [risos]. Todos os ritmos são ímpares, o tambor de mina, o divino, as pessoas talvez tenham dificuldade em assimilar um pouco isso. Parece besteira mas não é. Tem De mina, que é uma música que eu gravei no Encanto, de Josias Sobrinho, eu quis destacar justamente o ritmo do tambor de mina, mas eu gravei num gênero que é extremamente atemporal, que é o rock. Por que tudo é rock! Destacar isso de uma maneira sem perder o valor do ritmo, sem perder a força da mina, por que é tão rica a nossa ritmia do Maranhão, que eu não sei nem te dizer quanto. Então eu quero nesse Zabumba Beat destacar mais ainda o tambor de crioula, o boi de zabumba, aquele ritmo alucinante do sotaque de zabumba, de Pindaré, de uma maneira que possa chegar a todos os lugares do mundo. Não tou preocupada em ser purista, nem quero destruir o que é original, e o que é a célula mãe. Eu quero apenas destacar a ritmia do nosso estado que é fantástica.
O nome inevitavelmente me lembrou o Bumba Beat de Otávio Rodrigues, eu não sei se você lembra do programa de rádio. Sim, eu me lembro. Me lembro muito disso, do Doctor Reggae e o Bumba Beat dele. Eu não podia botar Bumba Beat por que já tinha marca registrada.
Falar em marca registrada, você mudou o nome, há cinco anos, de Rita Ribeiro para Rita Benneditto, com dois n e dois t. Como é que você avalia essa mudança hoje, passados estes anos. Mudou algo na própria Rita ou foi só o nome artístico mesmo? Menino, eu já assimilei, graças a Deus, muito rápido.
O público também, não? Muita gente do Brasil, de vários lugares, ainda me conhece por Rita Ribeiro. Eu não entrei em nenhuma paranoia por isso. Eu não fiquei neurótica, nem reclamando. Me chamam de Rita Ribeiro, eu digo “olha, agora mudou”, na boa. Acho que tem tempo para ser assimilado. Acho que o que me deu muita força, me respaldou muito na mudança de nome foi descobrir que eu não tinha um público qualquer, eu tenho um público extremamente fiel a meu trabalho. Não é mais nem fã, é fiel mesmo. As pessoas estavam mais interessadas na minha música, na minha voz, do que necessariamente no fato de eu ter trocado o nome. Tem gente que “ah, eu preferia Ribeiro”, “ah, mas Benneditto tá lindo”. Eu acho maravilhoso, quisera eu há muitos anos já ter pensado nisso, por que é o nome que está dentro da minha história toda, meu pai se chamava Fausto Benedito Ribeiro, eu nasci na cidade de São Benedito do Rio Preto, aí perto dos Lençóis, eu sou devota de São Benedito, o preto velho das almas de angola, que eu reverencio na umbanda brasileira, e Benedito quer dizer abençoado. É um processo realmente lento, eu preciso cada vez mais ir enfatizando, mas já está tão assimilado, muita gente já me chama de Rita Benneditto, muita gente já se identifica, tanto é que meu próximo trabalho, quando eu resolver fazer um disco novo, eu não sei quando, vai ser Benedito seja, o nome.
Você tá ótima de títulos, hein? [Risos] Ai, que bom! Rita Benneditto, Benedito seja, tem até música. Eu fiz uma brincadeira com um repentezinho com meu nome. Eu sei que é um processo, não foi fácil, construir uma carreira de 20 anos, com Rita Ribeiro e ter que mudar, você tem que ter muita coragem, muita segurança no que faz, e paciência para fazer essa transição. Graças a Deus eu tive tudo isso e depois de cinco anos eu posso dizer que estou cada vez mais Benedito seja.
A gente falou já um pouco de Zeca Baleiro, você citou no repertório que está preparando para o show nomes como Carlinhos Veloz e Erasmo Dibell, e agora nestes novos projetos o Ronald Pinheiro, o Coxinho. Antes de vocês saírem para São Paulo e você migrar para o Rio, aqui você trabalhou com gente como Cesar Teixeira, Chico Maranhão e Josias Sobrinho. Eu queria que você comentasse um pouco a relação com estes mestres e apontasse outros nomes da música do Maranhão que você admira, respeita, reverencia, enfim, que são importantes para tua formação. Olha, você já falou tudo. Na verdade esses caras são a minha escola, mesmo. Chico Maranhão, Sérgio Habibe, Josias Sobrinho, Cesar Teixeira. É uma galera que eu tenho um grande respeito, são grandes mestres mesmo. Sem falar nos outros mestres, que são anteriores a eles, que são Mestre Felipe, Leonardo, Pai Euclides, e tantos outros mestres onde eu bebi na fonte. Eu tenho uma bagagem muito grande de coisas muito boas e ricas do Maranhão. Eu tive que sair da minha terra, infelizmente num período em que a gente não tinha muita opção de viabilização do trabalho local, por que, como eu te falei, geograficamente fica um pouco deslocado e a gente precisa circular. Mesmo o Rio de Janeiro sendo o caos que é, e é realmente um caos, as pessoas têm uma ilusão às vezes que o Rio de Janeiro, por exemplo, é uma cidade onde tudo acontece, mas não é tanto assim. O caos impera aqui, é muita gente batalhando por seus espaços, mas é necessário, por que tá tudo muito próximo de tudo. Se você precisa de um contato, de viabilização de alguma coisa, as coisas acontecem, eu não sei te explicar. É uma dinâmica outra, natural, é uma cidade cosmopolita, é uma cidade com uma projeção mundial. Eu trago mesmo comigo, “trago no bolso um colar e uma bola de meia” [cantarola De Cajari pra capital, de Josias Sobrinho], eu trago essa referência muito grande, fica muito claro para o povo daqui o quanto eu sou reverente a estrutura musical da minha terra. A maneira que eu canto, meu canto é muito influenciado por esse compasso que eu te falei. Eu, por exemplo, gravando Encanto, eu gravei Santa Clara clareou, de Jorge Benjor, ela é uma música feita em compasso quatro por quatro, “Santa Clara clareooou” [cantarola], eu transferi pro ritmo da mina, o Benjor pirou, ficou enlouquecido com o arranjo, eu mudei o compasso dela, eu desestruturei para torná-la uma oração dentro do tambor de mina. A mesma coisa eu fiz com Água do Djavan, “água pra encher” [cantarola], que eu trouxe para o universo do divino espírito santo, eu tenho naturalmente uma forma de cantar diferenciada sob influência da ritmia do Maranhão. Por tudo que eu vivi, absorvi, por ter nascido aí, por ter esse negro dentro de mim, o negro maranhense, do Daomé, do Guajajara, por ter essa influência do nosso povo muito naturalmente na minha história. Como disse Itamar Assumpção, que fez uma música pra mim, tá na cara que tá no sangue. Então, esses caras me influenciaram muito, são mestres comprometidos com a palavra, com a poesia, são mestres que têm um compromisso com a história, sem falar nos poetas todos, maranhenses, que são fantásticos. Nossa terra é muito rica. Eu lamento ainda que não tenha havido uma projeção a nível nacional do poder cultural do Maranhão, de uma forma comercial, mercadológica, do nível de Pernambuco e Bahia, só pra dar um exemplo. O Maranhão tem um potencial absurdo, era para ter um calendário de atividades culturais durante o ano, era para ter um carnaval multicultural, um São João multicultural, era para ter um intercâmbio. Isso é só o que eu acho, eu não tenho fórmula para nada. Mas eu acho que a gente já deveria estar num nível, não só eu, Alcione e Zeca Baleiro, mas tantos outros com potencial tão grande quanto o nosso, ou até maior, que possa projetar mais ainda a nossa cultura, tornar o Maranhão mesmo um estado… o norte está se projetando absurdamente, com a referência muito do bumba meu boi do Maranhão, e a guitarrada, o tecnobrega, o norte está bombando no sul do Brasil, não é só o açaí não [risos]. E a gente precisa entender, precisa se unir mais, por que a Bahia funciona? Por que os baianos se juntam para projetar essa história toda pra fora.
Você falou em multiculturalidade e intercâmbio. Em sua carreira você já dividiu discos com Teresa Cristina e Jussara Silveira. Eu queria que você comentasse um pouco as dores e as delícias desses processos. [risos] Quando a gente começa um projeto a gente tem sempre as expectativas de que ele seja o melhor possível, a gente quer, a gente acredita. As meninas são extremamente talentosas, cada um tem sua carreira. A ideia do projeto é minha, inclusive o nome, Três meninas do Brasil, meu pai tocava muito essa música pra mim, Meninas do Brasil, de Moraes Moreira [e Fausto Nilo], era eu e Teresa, a princípio, a gente acabou chamando a Jussara. Foi feito pela Manaxica Produções, que é meu selo fonográfico, produtora. A gente estava assim, aquela coisa, estávamos a fim de fazer. Ah, vamos fazer um disco de samba? Não, vamos fazer um disco que passe pela história do Brasil, contando coisas, referências minhas, de Jussara e de Teresa. Aí eu chamei o maestro Jaime Alem, foi meu primeiro contato com ele, nessa época ele estava envolvido demais com Maria Bethania, aí eu acabei envolvendo Maria Bethania na história, perguntei se ela não queria lançar o disco pelo selo dela, ela tem um selo chamado Quitanda na Biscoito Fino, o maestro fez a ponte, ela adorou o projeto, acabou que a gente gravou pelo selo dela. Foi um encontro feliz. A gente ficou dois anos só fazendo este projeto, a gente lançou o disco, fez shows, tinha sempre aquela dificuldade de conciliação de agendas, de cada uma ter seus projetos, sua carreira, acabava ficando conflitante, não casavam as datas, aí a gente resolveu encerrar. A gente já fez o disco, fez os shows, não conseguimos percorrer o Brasil todo, temos um disco aí lançado para a eternidade e um encontro nosso também marcado por um tempo. Foi muito bom. Depois eu gravei um outro disco com Jussara, lançado em 2014, chama Som e fúria, nós fomos para a Chapada Diamantina, é um disco surreal, sem comprometimento comercial nenhum, a gente queria fazer uma viagem pelos cantos matriciais brasileiros, onde a voz é o fio condutor, e a gente se meteu num sítio no Capão, na Chapada Diamantina durante 25 dias, produzidas por José Miguel Wisnik e Alê Siqueira, e saiu um disco assim que mais parece uma trilha sonora de um balé, de um filme. Eu particularmente gosto muito, uma viagem bem rica. Foi um desdobramento de meu encontro com Jussara, depois de Três meninas. Com Teresa a gente não realizou mais nada, com Jussara ainda deu esse fruto que é Som e fúria, a gente vai fazer show em novembro em São Paulo.
Além desse show no aniversário de São Luís, tua vinda te permite, dessa vez ou normalmente, passear, fazer coisas que você gosta no Maranhão? Em tua memória, o que você recomenda a turistas e nativos? O que não se pode perder em estando no Maranhão? Eu sempre dou um jeito de ir e tentar ficar um tempo. Eu vou ficar uma semana, estou louca para ir aos Lençóis, ficar pelo menos dois dias, tomar um axé daquela terra, daquele vento, daquela coisa toda, daquele portal. Pra mim os Lençóis são um portal, é uma riqueza, uma maravilha do mundo. Aquilo é um portal mágico, transcendente, você vai ali você se revê em todos os aspectos, como ser humano, você se redimensiona em todos os aspectos. Isso é uma coisa que eu pretendo fazer, pretendo também matar minha saudade da minha juçara, do meu banho de mar marrom, encontrar meus amigos, eu tenho observado que São Luís está com um movimento cultural bastante intenso, o Samba da Fonte, o reggae lá na Praia Grande, as coisas estão se movimentando, as pessoas estão se mexendo. A gente nunca foi de esperar por governo nenhum, sem desmerecer governo de ninguém, a cultura maranhense sempre foi independente nesse sentido, as pessoas sempre se reinventaram, as festas sempre aconteceram nas suas fontes. Se eu puder ir à Casa Fanti Ashanti eu vou, quero ver minhas amigas que eu amo. Quero ver se eu encontro Joãozinho [Ribeiro], Cesar Teixeira, meus queridos que eu gosto muito de estar junto. Tanta coisa que eu gostaria de fazer, ficar com a família, a família é enorme, sempre tem um evento, sempre a gente quer estar junto. É pouco tempo para fazer tudo que eu quero, mas eu quero usufruir o máximo que eu puder da minha terra e recomendo a quem vá a São Luís conhecer a cidade, a cidade é linda, o Centro Histórico eu não sei como está agora, a última vez que eu vi fiquei muito triste, estava muito detonado, isso me angustiou, mas a cidade continua com sua magia. Todas as pessoas que vão ao Maranhão, a São Luís, que voltam e me falam, ficam extremamente encantadas com o lugar, com a energia do lugar. E olha que a gente sabe dos problemas todos que nossa terra tem, as dificuldades todas. Eu não entendo por que reelegeram esse prefeito, um homem que não tem compromisso nenhum com a cultura, que não se identifica, não estimula, nem tem cuidado com a cidade. São coisas que eu não tenho resposta, só tenho a lamentar quando vou e vejo que a cidade fisicamente está abandonada, um patrimônio histórico desses jogado, sem nenhum cuidado. Também sei que tem muitas coisas boas acontecendo e eu quero só pensar nas coisas boas e nas mudanças. Acho ótimo que a gente esteja com outra administração no governo, por que isso nos tira um pouco daquela aura de poder oligárquico, que a gente vinha há 40 anos, acho que a mudança de poder é importantíssimo, para que a gente possa ter a capacidade de escolha, de avaliação. Então, eu acredito muito na minha terra, no potencial de minha terra e quero poder, na medida do possível, com meu trabalho, com minha voz, levar o Maranhão, para onde eu for.
Ainda falando um pouco das paisagens, dos pontos turísticos. Não sei se vai dar tempo ou se você vai passar por lá, faltou um que você cantou, com Edvaldo Santana, em seu último disco, você fez uma participação especial, em Ando livre. Ah, no [Bar do] Léo! Ah, eu quero ir. Você viu que música linda que ele fez? Linda aquela música, boleraço, maravilhoso. Eu falei: “cara, você fez essa música para eu cantar”. E ele disse: “foi”. E me botou pra cantar num tom altíssimo. Mas eu adorei, falei: “oh, que maravilha”. Mas eu vou lá sim, quero ir lá, inclusive para ouvir essa música com ele. Olha aí que lugar, que maravilha que São Luís tem, um lugar como esse. Aquele menino do Centro, também, como é?
O Chico Discos? Chico Discos também, que figura! Como é que essa figura construiu esse espacinho tão especial? Por isso que eu digo que o maranhense se reinventa. As coisas não param, as pessoas estão em movimento, precisam estar em movimento para que as coisas aconteçam. Aí é que o governo, as pessoas percebem que o movimento aconteceu. Mas eu acho o seguinte: mesmo vendo a dificuldade que todos os grupos culturais estão tendo no Maranhão, eu vi isso num São João em que eu fui, acho que ano passado, eu ainda vejo que os mestres estão ali na luta, na guerra, na batalha, para manter suas tradições vivas, por que não pode morrer, não tem como morrer. A gente tem que manter isso vivo na memória e no corpo dos jovens de hoje, para fazer a coisa continuar. É um trabalho bonito, e ficar pra história. “Maranhão, meu tesouro, meu torrão” [lembra o título da toada de Humberto de Maracanã].
Uma pergunta inevitável nestes tempos: você mora no Rio de Janeiro, onde a gente tem percebido de modo mais acentuado essa crise política e econômica, professores com salários atrasados, universidades correndo o risco de fechamento. Com que sensação você tem acompanhado ao longo do último ano e meio o noticiário político brasileiro? Cara, eu acho que nós estamos vivendo uma era do cão. Caótica e, sei lá, extremamente negativa e trevosa. Eu não sei por que tanto retrocesso, eu não sei como é que a gente pode avançar e a gente avançou, e depois retrocedeu de uma forma tão bruta. Ficou tão evidente que nós fizemos realmente uma situação ainda de escravidão, de subserviência, de ditadura, e na verdade estava assim um pouco camuflado por alguma teia que a gente não conseguia ver, mas que na verdade está enraizada demais na estrutura política e social brasileira. Realmente o pequeno grupo de empresários, gente que domina, a corte, pode-se dizer assim, ela não quer abrir mão de nada pelo povo, ninguém está interessado no povo, ninguém está interessado na melhora do país. Você vê, um cara desses ainda estar no poder, diante de tantas acusações, diante de tantas evidências, é por que ele não está sozinho, ele está com uma corja de abutres do mesmo nível dele, sustentando o processo que está lá. O Rio de Janeiro foi o estopim da história, a cidade está caótica, a violência voltou como uma onda imensa, assustadora, um tsunami, a gente dorme com rojões, tiros, parece assim que a gente está num desses países tipo Iraque, ou coisa parecida. A gente não sabe o que está acontecendo. Eu, graças a Deus, nunca sofri, nenhum tipo de violência, eu vivo realmente, posso dizer, até um mundo à parte dentro do universo carioca, mas eu vejo como é que a cidade está depredada, no sentido da insegurança das pessoas, do medo, do desespero, da revolta, da impaciência, da intolerância. Ninguém tem tolerância com nada, as pessoas estão se agredindo no meio da rua umas às outras. Isso está acontecendo num nível nacional e universal, mundial. Nós estamos vivendo momentos de grandes tensões mundiais, o planeta está realmente num processo de transmutação, é doloroso. A gente é uma transição, estamos passando por este processo de mudança, que a gente não sabe onde vai dar. Eu, como sou uma figura muito espiritualizada, eu sempre penso no melhor, eu sempre penso que todo caos gera mudança e é uma mudança sempre positiva, mas o processo está sendo muito doloroso, pra nós artistas, então, a gente tem sofrido baque assim brutal, sabe? De viabilização dos projetos, verbas despencando, até o sistema Sesc, que é um dos maiores sistemas culturais do Brasil, despencou nos orçamentos, os empresários locais não têm mais estrutura para levar os shows, os cachês caíram horrores, o Ministério da Cultura é uma coisa que a gente não sabe pra que serve nem o que é. Sucatearam a cultura brasileira. Em nível de criatividade, nós também estamos um pouco perdidos, o que está predominando hoje no Brasil, eu não estou aqui condenando nada, mas é o funk, o sertanejo e o brega, é só isso que a gente vê. Isso está sufocando a outra parte criativa da música, especificamente da música, tem muita gente fazendo coisa legal, mas tem oportunidade nenhuma, condição nenhuma de levar adiante, sem estrutura. Realmente é um momento extremamente delicado, não sei o que vai dar, não sei como é que a gente não consegue tirar esse cara, eu não vejo solução de ocupação. Ocupação pra mim é entrar naquele congresso e tocar uma bomba.
Concordo. É preciso inverter aqueles polos daquelas duas bacias, nada se justifica mais, a gente está se repetindo nas redes sociais, todo mundo “fora, Temer!, fora, Temer!, Temer, fora!”, e nada acontece, eles estão cagando e andando pra gente: “fodam-se vocês, nós vamos fazer o que a gente quiser, nós vamos aprovar leis que a gente quiser, nós vamos fazer e acontecer aqui e vocês não vão dizer nada”, e a gente não está dizendo nada, a passividade do povo brasileiro está num nível que a gente diz assim: “vamos pra onde, gente?” Eu não sei o que fazer, sinceramente eu não sei o que fazer. Tem horas que eu me sinto tão impotente. A minha maneira de protestar é através da minha arte, é através do meu canto, chamando a atenção das pessoas para o que a gente pode fazer juntos, o que a gente pode mudar, o que a gente não pode desistir, mas é pouco, é muito pouco diante da situação que a gente está vivendo, é nada. Eu sempre digo assim: “o palco é um palanque, o artista, um militante”. A gente tem que continuar resistindo, mas tá danado, tá puxado, tá difícil. E essa mudança estrutural da política, uma democracia em que você é obrigado a votar, eu não entendo isso, nunca entendi por que você é obrigado a votar em uma democracia, que gera esse bando de candidatos que na verdade são um bando de gente que vem pendurada em outros, só pra ocupar espaço, esses salários exorbitantes desses caras. Nem partidos de esquerda, que a gente já nem tem mais, se dignam a diminuir esse valor desses salários. Isso aí é um gasto absurdo para o povo brasileiro manter esses caras lá, no nível que eles vivem e usufruem. Cara, tudo errado! Universidades sucateadas, saúde sucateada, a dignidade do povo sucateada. Olha, eu realmente não estou com palavras muito boas para te dizer em relação a isso.
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Veja Rita Benneditto em De mina (Josias Sobrinho):
Acontece amanhã (19), às 21h, na Praça dos Catraieiros (Praia Grande), de graça, mais uma edição do tradicional Tributo a Raul Seixas, show que Wilson Zara apresenta desde 1992 – a primeira edição, realizada ainda em Imperatriz, onde morava o ex-bancário, foi intitulada A hora do trem passar, nome de uma das faixas de Krig-ha, bandolo!, clássico da discografia do roqueiro, de 1973.
É o primeiro disco solo de Raul Seixas, lançado no auge da repressão militar no Brasil, então governado pelo general Médici. O baiano acabou exilado, retornando ao Brasil no ano seguinte, com o estrondoso sucesso Gita (1974).
Clássico do solo inicial, Ouro de tolo é lembrada diante do momento político turbulento por que passa o Brasil, sob novo golpe desde o ano passado. “A reforma trabalhista de Temer é o ouro de tolo do momento”, diz o material de divulgação do show de Zara, prevendo gritos ecoando a hashtag mais usada nas redes sociais desde março de 2016: fora, Temer!
Zara (voz e violão) será acompanhado por Mauro Izzy (contrabaixo), Marjone (bateria) e Moisés Profeta (guitarra e efeitos; é dele o clique do frontman que abre e ilustra este post). No cartaz surgem os nomes de diversos sindicatos locais, a demonstrar o quão antenado era Raul Seixas e o quanto seguem vivas sua música e filosofia.
“Quando eu compus, fiz Ouro de tolo/ uns imbecis me chamaram de profeta do apocalipse/ mas eles só vão entender o que eu falei no esperado dia do eclipse”, dispara em As aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor (1974), um recado direto aos milicos que o exilaram.
Os tempos igualmente sombrios são outros e Raul Seixas, falecido 21 de agosto de 1989 – a data do tributo é sempre próxima –, é um dos que fazem falta para traduzir artisticamente este triste estado de coisas. Como Belchior, Cazuza e Sérgio Sampaio, para ficarmos em uns poucos exemplos de artistas proféticos a seu modo.
Diversão garantida no palco e na plateia, no Tributo a Raul Seixas, Zara e banda repassam boa parte do repertório do Maluco beleza. Nem precisa gritar “toca Raul!”.
E se é “fora, Temer!” o que o povo quer, fiquem com mais esta profecia do homenageado (de Rockixe, de 1973): “o que eu quero eu vou conseguir/ pois quando eu quero, todos querem/ quando eu quero todo mundo pede mais/ e pede bis”.
Cantora se apresenta hoje (22) em São Luís e conversou com exclusividade com o blogue
Karina Buhr é dona de uma das mais coerentes trajetórias artísticas do Brasil. A artista está acostumada a multiplicidades: é cantora, compositora, atriz, ilustradora e escritora. Com a infância passada entre o Recife natal e Salvador, hoje radicada em São Paulo, é cidadã do mundo. Vida, obra e militância confundem-se, não se sabe onde acaba uma e começa outra, tão impregnadas estão entre si, retroalimentando-se.
Com três discos solo na bagagem, ela já conta mais de 20 anos de artes, embora setores mais preguiçosos da grande mídia tenham saudado seu “aparecimento” como “novidade”, quando ela lançou o disco solo de estreia, Eu menti pra você, em 2010. Em 2015, com Selvática, o mais recente, Karina teve a capa, em que aparece com os seios à mostra, censurada por uma rede social. Se a vida te der limões, faça uma limonada: o tiro saiu pela culatra, o disco e diversos temas caros à artista acabaram ganhando ainda mais visibilidade.
Naquele ano ela esteve em São Luís em duas ocasiões: autora de Desperdiçando rima [Fábrica 231/Rocco,2015], participou da Feira do Livro; pouco depois voltou para apresentar Selvática durante a Aldeia Sesc Guajajara de Artes. Hoje (22), ela volta à ilha para um show no Festival Elas, evento idealizado e realizado majoritariamente por mulheres que desde quinta-feira (20), ocupa o sempre simbólico Convento das Mercês (Desterro). Sua apresentação acontece no pátio interno, às 23h30.
De acordo com seu slogan, o Festival Elas “promove cultura e poder feminino”. Mais que apropriada a presença de Karina Buhr. Por e-mail, ela conversou com exclusividade com Homem de vícios antigos.
Foto: Priscilla Buhr
Cantora, compositora, atriz, ilustradora, escritora. Ser artista multimídia é um imperativo destes tempos? É possível separar as várias Karinas? Em que faceta você se sente mais realizada? Pra mim isso não é “desses tempos” nem uma necessidade no sentido de “tenho que fazer mais coisas pras coisas rolarem mais”. Sempre fiz essas coisas todas e a cada hora uma se destaca mais, embora a música tenha acabado ficando de frente mesmo. Não tem como separar uma coisa da outra e não vejo muito como realização, no sentido de me sentir bem com o êxito de uma ou de outra. Não são várias, é tudo eu, na saúde e na doença [risos].
Pernambucana nascida na Bahia e radicada em São Paulo. O cosmopolitismo parece ser outra necessidade, hoje em dia. O quanto ajuda e atrapalha ser mais pássaro que árvore? Isso é uma realidade da minha vida desde sempre, não sei como é ser de outro jeito. Meu pai nasceu na Bahia, minha mãe em Pernambuco e eu sempre pulei de Recife pra Salvador, sentindo as duas como minhas cidades. São Paulo veio pelo Teatro Oficina e acabei adotando como minha também. Não acho que ajude nem atrapalhe, só é assim. E gosto muito assim.
Quando do lançamento de Eu menti pra você [2010] você foi saudada como “revelação”, com parte da crítica ignorando sua participação, para citar apenas o campo musical, em grupos como o Eddie e o Comadre Florzinha. Como você avalia o episódio? “O que era velho no norte se torna novo no sul” [risos]. Tem a ver com Rio e São Paulo serem considerados O Brasil e o resto ser “regional” e também tem machismo aí. Essa coisa de “novas cantoras”, de não saberem muito bem como tratar mulheres que cantam e compõem, de uma necessidade de colocar todas as cantoras no mesmo balaio – com recorte social também, afinal as cantoras de funk são tratadas como setor à parte, como se os outros setores todos tivessem também relação uns com os outros –, de me tratar como “nova cena”. Não sou nova cena, tenho 43 anos e comecei a tocar (nos maracatus Piaba de Ouro e Estrela Brilhante) em 1994. Enfim, tenho muita história antes de 2010, mas tem esse fetiche ainda de “São Paulo descobriu agora então existe a partir de agora”.
Sua obra e atitudes têm engajamento: letras de música, conteúdo de textos e ilustrações, engajamento presencial e virtual em causas, por exemplo, o feminismo e o movimento Ocupe Estelita, no Recife, para citar apenas dois. Nestes tempos duros, caretas e conservadores, é impossível ser diferente, não? Pra mim isso também sempre foi uma realidade, de acompanhar de perto essas coisas e de dar opinião e botar mão na massa. Na verdade gostaria de botar bem mais a mão na massa, faço bem menos do que gostaria. Acho que, de um modo geral, somos muito apáticos na ação. Falamos demais e fazemos pouco de fato. Fosse diferente a polícia não tava exterminando pretos e pobres.
Capa de Selvática, censurada pelo Facebook. Reprodução
Quando do lançamento de Selvática [2015], seu disco mais recente, a capa foi censurada por uma rede social. A que você credita a caretice e o ridículo do episódio? Como reagiu? Ao machismo, de novo. Mulheres estão nuas em todos os lugares, mas sob um olhar machista. Se elas resolvem ficar nuas do jeito que querem aí já é vandalismo. Na verdade essa censura, que é uma grande merda violenta e cafona, acabou alavancando não só a capa do disco como começaram discussões maravilhosas em torno dela e sobre liberdade dos corpos das mulheres e isso foi precioso. Uma coisa ruim gerou uma maravilhosa. Fiquei muito emocionada com esse desfecho e vendo questões que eu colocava nas músicas que ninguém tinha escutado ainda sendo levantadas a partir da capa. O que aconteceu depois é que foi bem ruim. Se você procurar na imprensa o que saiu sobre meu disco vai ler basicamente sobre meus peitos na capa. Dos meus três discos foi o mais fraco de imprensa a respeito do conteúdo mesmo, das letras e tal. Tem sempre o “o disco tem temática feminista”, que é uma frase que não diz absolutamente nada a respeito das composições. No caso, a frase correta seria “é um disco de temática feminista comentado por uma imprensa machista” [risos]. A sorte é que as músicas tocaram as pessoas e o público sacou tudo a fundo e de uma forma linda.
Selvática tem uma pegada mais punk, longe, no entanto, de rotulá-lo e/ou à tua obra. Essa guinada é sinal da urgência dos tempos? Acho que não. Não sei [risos]. O tempo sempre foi urgente.
Em 2015 você esteve duas vezes em São Luís. Participou da Feira do Livro e pouco depois cantou na Aldeia Sesc Guajajara de Artes. Quais as impressões e lembranças da cidade e do público? Foi maravilhoso, apesar de corrido. Fico triste de só ir aí correndo, dessa vez vai ser de novo assim. Quero voltar com calma, me devo isso, quero muito, sempre quis, chegar, ficar, respirar São Luís e essa maravilha toda, os tambores, a dança, que me ligam tanto a esse lugar.
Qual a expectativa para o show no Festival Elas? Espero que seja massa, que vá um monte de gente e quem for fique feliz também e a gente faça junto esse show. É sempre junto, né, o que fazemos no palco reverbera em quem assiste e o que quem assiste sente e faz toca na gente também. Essa é a mágica da brincadeira. E que maravilha ser no Elas, com esse mote de feminismo, de mulheres ocupando todos os espaços, como deve ser.
Como você avalia a importância de um festival desse nível, feito principalmente por mulheres, destacando o protagonismo feminino? É muito importante! Que a ideia se espalhe sempre! Quanto mais mulheres juntas falando, realizando, se encontrando e trocando mais a gente avança, mas a gente se fortalece.
Do golpe que tirou Dilma Rousseff do poder passando pela escalação do ministério, gestos, atitudes e declarações, o governo do ilegítimo é muito machista. O Brasil retrocedeu bastante. Há luz no fim do túnel? A luz do túnel são as mulheres todas se organizando e agindo. É sintomático a primeira mulher presidente ser arrancada do poder. Mesmo enquanto ela estava lá isso era muito visível, o machismo todo, acompanhamos tudo, né, os discursos contrários a ela eram sempre com uma carga machista que impedia até de se ter contato com o que queria o problema real. Temos que lembrar também que mesmo com Dilma na presidência o machismo era reinante. Retrocedemos em muitas coisas e uma coisa muito grave foi ela sempre ter se colocado contrária a legalização do aborto, por exemplo. Uma tristeza muito grande vê-la se resignar e tratar o assunto dessa forma. Estamos falando de direitos humanos das mulheres e uma presidente mulher foi totalmente incapaz de tratar isso da forma que merecia e que é urgente. As mulheres seguem morrendo.
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Veja Karina Buhr em Eu sou um monstro (Karina Buhr) no Cultura Livre:
Foi a cantora Lena Machado, quando de sua participação, quem sintetizou o sentimento de quem compareceu ontem (20) ao Anfiteatro Betto Bittencourt (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, Praia Grande), quando Chico Saldanha lançou Plano B, seu mais recente disco, o quarto da carreira, em um show de bolso.
“Para mim é uma honra enorme estar aqui, participar deste disco, deste show. Este aqui é o Plano BDe Buriti”, afirmou juntando a faixa-título com a música que cantam juntos, num trocadilho feliz – o disco quase muda de nome durante a elaboração do projeto gráfico. “Saldanha é imprescindível, é dessas pessoas que se não existissem a gente mandava fazer de buriti”, afirmou a cantora, o feitiço a favor do feiticeiro.
Um bom público foi prestigiar o compositor. A cidade tinha diversas opções a custo zero, como seu lançamento. Muita gente conhecida se reencontrava na plateia, mas a animação geral não tirou a atenção do que realmente importava: o desfile do bom repertório de Plano B, em que Saldanha foi acompanhado por Marquinhos (bateria e percussão), Rui Mário (sanfona), Luiz Jr. (violão sete cordas e guitarra) e Marcão (contrabaixo).
Saldanha abriu com Clichês e passeou por Afeganistão, Ela só queria ser Ella, Ela se move, Remoto botequim, Choro de memórias. É impressionante, e não sei se digo isto por estar por dentro do processo (meu nome figura, baita honra, como assessor de comunicação na ficha técnica do disco), mas a impressão é a de já conhecer aquelas músicas há tempos. Como se já nascessem clássicas.
Ou no dizer de Flávio Reis: “Saldanha é um artesão. Demora, leva um tempo de um disco pra outro”, a média de intervalo é de 10 anos, “mas não faz besteira”. Eu fico realmente feliz de ouvi-lo tocar no rádio, além do Santo de Casa.
Única música do repertório de ontem que não figura em Plano B, Itamirim, daqueles clássicos que a maioria das pessoas canta sem conhecer a autoria, fechou a noite como se espera quando se toca um hino: todo mundo cantando junto.
Compositor lança Plano B, quarto disco de sua carreira
Plano B. Capa. Reprodução
Chico Saldanha tem importância fundamental para a moderna música popular produzida no Maranhão. Para ficarmos em apenas dois bons exemplos: foi ele quem tocou, ao violão, para Papete, as músicas que viriam a emocionar o publicitário Marcus Pereira, que imediatamente tratou de garantir seu registro no antológico Bandeira de aço (1978); como integrante da primeira formação do Regional Tira-Teima, ao violão, acompanhou Chico Maranhão no igualmente antológico Lances de agora (1978), também lançado pela gravadora Discos Marcus Pereira. Os dois álbuns são considerados divisores de águas. O resto é história.
Consciente de seu papel e lugar, e sem afobação, o rosariense só estrearia em disco solo 10 anos mais tarde, no LP homônimo Chico Saldanha (1988), que traria ao menos um clássico de nossa música popular: a toada Itamirim, interpretada por Tião Carvalho. Antes, Saldanha já havia prestado reverência e registrado em disco, ao lado dos então também produtores Giordano Mochel e Ubiratan Sousa, as vozes e talentos singulares de Agostinho Reis, Antonio Vieira, Cristóvão Alô Brasil e Lopes Bogéa, no compacto Velhos moleques (1986).
Levou 10 anos entre a estreia de Saldanha e o segundo disco, Celebração (1988). A média se manteve entre estes e os títulos seguintes: Emaranhado (2007) e o recém-lançado Plano B (2017). Dois motivos parecem justificar tanta espera entre um e outro: o primeiro é que o advogado de formação realiza seus trabalhos às próprias custas; o segundo é o capricho com que ele mesmo cuida de cada detalhe. Modesto, ele cita a poeta polonesa Wisława Szymborska: “a imperfeição é mais fácil tolerar em doses pequenas”.
Plano B reúne algumas características comuns à carreira de Saldanha, sem que isso signifique mais do mesmo. Está lá sua versatilidade como compositor (sozinho ou em parceria assina as 11 faixas da bolachinha), passeando por balada, blues, reggae, xote, bumba meu boi, tango, choro e bolero, com pitadas de brega – “Chico sempre o aborda com uma ironia muito particular” – e “a lírica amorosa quase sempre presente”, como destaca o poeta Celso Borges em texto no encarte.
Entre os temas abordados comparecem o jazz (Ela só queria ser Ella), a guerra conjugal (na bem-humorada Afeganistão), a dor de cotovelo (a faixa-título, Fio desencapado, Mano a mano e Remoto botequim, que cita o Tango pra Teresa, de Evaldo Gouveia e Jair Amorim, além dos cantores de tango Carlos Gardel e Armando Manzanero), a São Luís de outrora (Choro de memórias), a dança (Ela se move) e o amor (De buriti), além de diálogos com o cinema (Pano rápido) e a música eletrônica (Clichês).
Participação especial mais constante dos discos de Saldanha, Zeca Baleiro comparece em Clichês, que abre o disco, muito além do que promete o título. Na faixa eles ligam os londrinos da Groove Armada com o madredivino Cristóvão Alô Brasil. Milla Camões faz o vocalize em Ela só queria ser Ella, invocando a homenageada. Nosly divide o vocal com Saldanha em Ela se move, parceria deles com Jamil Damous (cunhado de Saldanha que faleceu após as gravações), que cita os bailarinos Mikhail Baryshnikov e Rudolf Nureyev. Lena Machado fecha o time de participações especiais imortalizando um dito popular da região do Turi, no interior do Maranhão, em De buriti (Saldanha/ Jamil Damous).
O disco tem arranjos e direção musical de Luiz Jr. (guitarra, violão, violão sete cordas, viola caipira) e conta ainda com músicos como Daniel Cavalcanti (trompete), Kleuton (contrabaixo), Rui Mário (teclado e acordeom) e Wanderson Silva (percussão), entre outros. O projeto gráfico é de Amanda Simões, sobre peças artesanais (em fibra de buriti) de Vilma Rosane, fotografadas por Beatriz Maia.
Plano B é um disco delicado, comovente e vigoroso. A cada disco, Saldanha sempre nos leva a pensar que “valeu a pena esperar”. O título soa também como uma metáfora para alguém que passou a vida se dividindo entre o expediente das repartições e a música. Quem sabe agora, aposentado do plano a, não careçamos esperar tanto entre um Plano B e outro do artista – agora em tempo integral.
SERVIÇO
Chico Saldanha lança Plano B em show no próximo dia 20 de julho (quinta-feira), às 19h, no Anfiteatro Betto Bittencourt (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, Praia Grande), com entrada gratuita.