Ao contrário de shows em que, em geral, o uso de celulares e câmeras é proibido (em vão) pela produção, a plateia que assistiu Claudio Lima sábado passado (27), no Cine Teatro da Cidade de São Luís, foi das mais educadas que vi em muito tempo. E a colheita de imagens e posterior postagem nas redes sociais foram incentivadas, logo no texto de abertura, que anunciou a subida do cantor ao palco.
“Coloquem seus celulares no silencioso, mas não os desliguem: fotografem e filmem e postem nas redes sociais”, dizia o texto. Em seguida, solicitou, para gargalhadas da plateia: “este show está sendo gravado. Guardem manifestações como “lindo! Gostoso! Arrasou, qualhira!”, para os intervalos das músicas”. Pedido pronta e educadamente atendido.
Gritos de “lindo!”, “gostoso!” e “viado!” foram ouvidos ao fim da primeira música, Boi tarja preta (Celso Borges/ Alê Muniz). “Tá bom, gente! Já chega!”, pediu Claudio Lima entre a timidez ensaiada e o domínio absoluto da cena – sua performance nunca é exagerada, a serviço tão somente de sua voz, de dar ênfase ao que canta.
O show de lançamento de Rosa dos ventos coroava de forma brilhante uma ideia acalentada há ao menos cinco anos. O show seguiu à risca o roteiro do disco, à exceção de Lástima (Giovanne Chaves), que cantou sentado, acompanhado apenas pelo teclado de Rui Mário.
A inclusão da inédita comprova o que Claudio Lima disse em entrevistas de divulgação do show: já está catando repertório para um próximo disco. Em Rosa dos ventos gravou apenas nomes maranhenses – incluindo ele, em seu début como compositor – e quase apenas inéditas, a exceção justamente a faixa-título, já registrada pelo compositor, Bruno Batista – “mas eu cantei antes”, também frisou em diversas entrevistas, lembrando os prêmios de melhor música e melhor intérprete que ele e Bruno levaram, respectivamente, no Festival Viva 400 Anos de Música Popular, que em 2012 celebrou os 400 anos de fundação da capital maranhense.
Claudio Lima, que a exemplo de seus discos anteriores, assina o projeto gráfico de Rosa dos ventos, também era autor do belo cenário em que desfilou o repertório do disco, acompanhado por Eduardo Patrício (programações eletrônicas, bateria e percussão), Pablo Habibe (guitarra), Davi Oliveira (contrabaixo), Memel (guitarra), João Neto (flauta) e Rui Mário (teclado e sanfona).
Em Eu não sou refém da maioria (Claudio Lima) trouxe ao palco o bailarino Luciano Teixeira que, a princípio enrolado numa bandeira do Brasil, foi literalmente até o chão coreografando o funk. “É uma honra, pra mim, pra vocês, pra toda a equipe, podermos fazer arte em tempos tão sombrios”, disse o cantor em determinada altura do espetáculo. Fervorosamente aplaudido após cada música, não foi diferente após o comentário.
Após São Luís (Variações líricas a partir de uma abertura de programa de reggae) (letra de Celso Borges sobre melodia de Michael Rilley), Claudio Lima tornou a brincar com a plateia: “não precisam pedir bis. Ele já está institucionalizado. A gente vai sair e volta pra fazer”. Voltaram aos gritos de “mais um, mais um!”, prontamente atendido. Cantou Bis (Cesar Teixeira), de onde tirou o verso que dá título a seu disco anterior, Cada mesa é um palco (2006). Foi o único momento em que o cantor e os seis músicos estiveram todos juntos no palco ao mesmo tempo, quando Claudio Lima os apresentou ao público.
O disco e a figura escolhida para título apontam em todas as direções, norte, sul, leste, oeste. Rosa dos ventos, disco e show, e Claudio Lima aglutinam e distribuem beleza. Seu público não é refém da maioria e justamente por isso estava ali.
*
Roteiro do show
1) Boi tarja preta (Celso Borges/ Alê Muniz)
2) Salomé minha dor (Fernando Abreu/ Marcos Magah)
3) Não seja burra, baby (Walquiria Almeida/ Claudio Lima)
4) Caminhos ocultos (Der wegweiser) (Franz Schubert/ Claudio Lima)
5) Pingão (Tiago Máci)
6) Parapapá (Claudio Lima/ Mário Tommazo)
7) Esmolas (Bruno Batista)
8) Não sou refém da maioria (Claudio Lima)
9) Melodia sentimental (Claudio Lima/ Mário Tommazo)
10) Lástima (Giovanne Chaves)
11) Só me resta regar tuas petúnias (Claudio Lima/ Marcos Tadeu)
12) Falta flauta (Claudio Lima/ Marcos Tadeu)
13) Nem os cadáveres sobreviverão (Marcos Magah/ Acsa Serafim)
14) Rosa dos ventos (Bruno Batista)
15) São Luís (Variações líricas a partir de uma abertura de programa de reggae) (Celso Borges/ Michael Rilley)
Em seu terceiro disco, cantor revela-se também compositor. Rosa dos ventos será lançado em show no próximo dia 27 de maio
Rosa dos ventos. Capa. Reprodução
POR ZEMA RIBEIRO
Cada disco de Claudio Lima é único. O artista não repete fórmulas, se arrisca, ousa, nunca se acomoda em uma zona de conforto. É um dos mais talentosos cantores brasileiros em atividade. A cada disco, cuida de cada detalhe: da seleção de repertório – só canta o que lhe emociona – ao projeto gráfico: artista talentoso também nessa seara, já emprestou seus dotes a discos de Bruno Batista e Cecília Leite.
Isto talvez explique o grande intervalo entre um trabalho e outro: cinco anos de Claudio Lima (2001), a estreia, a Cada mesa é um palco (2006), dividido com Rubens Salles, pianista baiano radicado nos Estados Unidos, e mais de 10 entre o segundo e este Rosa dos ventos (2017), que lançará em show no próximo dia 27 de maio (sábado), às 20h30, no Cine Teatro da Cidade de São Luís (antigo Cine Roxy, Rua do Egito, Centro) – os ingressos antecipados custam R$ 20,00, à venda na Livraria Leitura (São Luís Shopping); no dia do espetáculo, R$ 30,00, na bilheteria do teatro.
A história de Rosa dos ventos, o disco, começa em 2012, quando Claudio Lima levou para casa o troféu de melhor intérprete no Festival Viva 400 Anos de Música Popular, que celebrou os 400 anos de fundação da capital maranhense. A composição de Bruno Batista, que gravou-a em seu Lá (2013), levou a estatueta de melhor música e com o dinheiro do prêmio, Claudio Lima começou a arquitetar o novo álbum, cuja realização se completou com o patrocínio do Centro Elétrico através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura do Maranhão.
Em Rosa dos ventos o artista debuta como compositor: sozinho ou em parceria, assina metade das 14 faixas, alicerçadas pelas bases eletrônicas de Eduardo Patrício, com quem divide a produção musical. A ele, com seus loops, efeitos sonoros, sintetizadores, baixo, marimba e programação de xilofone, somam-se João Simas (guitarra, baixo, teclado e loops de bateria), Pablo Habibe (guitarra e violão), Rui Mário (sanfona, piano e violoncelo), Roberto Chinês (cavaquinho e bandolim) e João Neto (flauta).
Há poema de Walquiria Almeida musicado (Não seja burra baby), versão de Franz Schubert (Der wegweiser virou Caminhos ocultos), o funk Não sou refém da maioria, cuja mensagem pode ser uma espécie de cartão de visitas do cantor, além de parcerias com Mário Tommazo (Parapapá e Melodia sentimental) e Marcos Tadeu (Só me resta regar tuas petúnias e Falta flauta).
O cantor em retrato de Alison Veras
Antenado, Claudio Lima reúne ao menos três gerações de compositores maranhenses na ativa, atestando a si mesmo como um “pescador de pérolas”, expressão que não à toa já intitulou disco de outro grande cantor brasileiro.
Rosa dos ventos abre e fecha com o olhar poético sui generis de Celso Borges sobre a cultura popular e a capital maranhense: a toada Boi tarja preta (parceria com Alê Muniz), em que dessacraliza o bumba meu boi, e a pedra de responsa São Luís (Variações líricas a partir de uma abertura de programa de reggae), versão para o clássico Shaperville, de Michael Riley.
Marcos Magah também comparece com duas músicas ao repertório: Salomé minha dor (parceria com o poeta Fernando Abreu) e Nem os cadáveres sobreviverão (com Acsa Serafim), ambas já testadas (e aprovadas pelo público) em shows de Claudio Lima. Quem também lhe fornece um par de pepitas é Bruno Batista: Esmolas e a faixa-título. O repertório se completa com o samba Pingão, de Tiago Máci, recheado de ludovicensidade, crítica social e fina ironia.
Claudio Lima faz música e é impossível rotulá-lo além disso. Sobre a demora deste Rosa dos ventos o que se pode dizer é que valeu a pena esperar. Ele afirma já ter repertório e já estar trabalhando no próximo disco, mas a letra de Não sou refém da maioria pode responder a eventuais cobranças mais apressadas: “não me queiram enquadrar/ em nenhum padrão vulgar/ onde eu tenha que concordar/ o meu molde se quebrou”.
Não é apenas cada disco de Claudio Lima que é único: ele próprio o é.
Juraildes da Cruz começou a despontar em festivais de música em 1976, mesmo ano em que Xangai lançava seu primeiro disco. Sua estreia fonográfica só aconteceria em 1990, com O cheiro da terra.
O baiano é um dos maiores intérpretes do tocantinense, responsável pela popularização de seu talvez maior hit, Nóis é jeca mais é joia – título de um disco que dividiram, lançado pela Kuarup em 2005 –, uma crítica a nosso complexo de vira-latas, com seu refrão direto: “se farinha fosse americana, mandioca importada/ banquete de bacana era farinhada”. A música venceu o Prêmio Sharp (hoje Prêmio da Música Brasileira) em 1998, na categoria melhor música regional.
Outras composições de destaque de Juraildes da Cruz são Dodói (gravada por Titane em Sá Rainha, de 2000), Quem ama perdoa (lançada por Genésio Tocantins e regravada por Xangai em seu disco mais recente), e Meninos (gravada por Dércio e Doroty Marques no antológico Monjolear, disco infantil de 1996), que parece traduzir sua sina: “quero acordar com os passarinhos/ cantar uma canção com o sabiá”, diz um trecho da letra.
Versátil, sua música pode tanto trazer crítica social quanto cantar o cotidiano de camponeses ou o amor, o mais universal dos temas. Tudo isto certamente comparecerá ao repertório de sua apresentação no próximo domingo (7), às 16h, no Sarau Sereno Cultura e Arte (Rua das Perçoeiras, 100, Quintas do São João), em São José de Ribamar, com ingressos popularíssimos a apenas R$ 10,00. A primeira visita do artista ao Maranhão aconteceu há mais de 10 anos. Ele conversou com exclusividade com Homem de vícios antigos.
Juraildes da Cruz se apresenta neste domingo em São José de Ribamar. Foto: divulgação
É a primeira vez que você vem ao Maranhão? Não, a primeira vez foi em 2005, pela Funarte [a Fundação Nacional de Artes, órgão vinculado ao Ministério da Cultura].
Naquela ocasião você chegou a passear, conhecer algo? Dessa vez que eu estive aí pela Funarte não tive a oportunidade de passear, conhecer o Maranhão, por que foi bem rápido.
Nessa vinda agora, com mais tempo, pretende conhecer? E da música do Maranhão, você já foi apresentado a algum nome? Há alguém de quem se lembre? Não sei se dará tempo, mas será uma boa oportunidade. Conheço Zeca Tocantins, Carlinhos Veloz, Zeca Baleiro…
Você começou a carreira na mesma época em que Xangai, no entanto tem uma discografia menor. A que você credita isso? Eu não comecei a carreira na mesma época; eu comecei muitos anos atrás, em 1976, 78, em festivais, participei do festival da Tupi, onde participaram vários ícones da música popular brasileira, na época começando, Oswaldo Montenegro, Elba Ramalho, Zé Ramalho, até o Caetano Veloso participou desse festival, Jackson do Pandeiro estava lá. Nós tivemos a oportunidade de participar desse festival, então aí que a gente começou. Eu comecei mesmo a partir de meu primeiro disco, que foi em 1990. O primeiro disco do Xangai foi em 1976 e o meu primeiro foi em 1990, então há uma caminhada já bem longa do Xangai, bem anterior à minha.
Suas músicas mais conhecidas foram gravadas por Xangai, Genésio Tocantins e Titane. O que estes parceiros e intérpretes significam para você? O Genésio Tocantins foi meu primeiro parceiro, a gente trabalhou juntos, passamos por vários festivais. Xangai foi meu maior incentivador, admira meu trabalho, grava músicas minhas até hoje, e a Titane também gravou uma música, Dodói, são pessoas assim, que ajudaram a semear a semente de Juraildes da Cruz.
Qual a base do repertório desta sua apresentação em São José de Ribamar? A base do repertório são algumas músicas mais conhecidas. Como é um público mais específico, tem músicas novas, músicas de reflexão, músicas com uma leitura de nosso tempo, nossa sociedade, e também ligadas ao lado espiritual.
Sua Nóis é jeca mais é jóia venceu o Prêmio Sharp, atual Prêmio da Música Brasileira. Passado algum tempo e após o sucesso da música, o brasileiro parece ainda não ter se livrado de seu complexo de vira-latas. Por que você acha que o brasileiro aprecia tanto e tenta imitar o que vem dali, às vezes pouco se importando com artistas e obras mais interessantes? Na verdade, os maiores meios de comunicação do Brasil são, nada mais, nada menos, do que uma central dos Estados Unidos em nosso país. Como já dizia Elomar, a maior ogiva nuclear que os Estados Unidos lançou no mundo não foi a bomba atômica, e sim o cinema, onde eles colocam, através do cinema, sua cultura, seu jeito de ser, a sua aparentemente melhor maneira, a melhor moda, entende? Então o Brasil não é diferente de outros países que são minados em sua cultura, em seus costumes, pela força da mídia internacional. O que parece que vem de fora sempre será mais bonito para quem não tem uma informação, quem ainda é provinciano, no sentido de valorizar sua cultura. Então, vamos sempre ter essa, melhor não dizer sempre, um dia poderemos ser mais originais e valorizar mais o nosso quintal, o que é nosso, o que é Brasil.
Você falou sobre a interferência americana na soberania nacional. Como avalia o atual momento político vivido pelo Brasil? O momento mostra um Brasil exposto, com todas as fraturas possíveis expostas, uma casa totalmente arrombada, sem dono e por isso mesmo sucateada de todos os lados. Realmente é o fundo do poço, só há uma alternativa: emergir, renascer. Acho complicado, pois não temos peças de reposição confiáveis. O ideal seria que novos no poder representassem mudanças, transformação pra melhor e que não fosse apenas um novo jeito de continuar sangrando o país.
Lembrando que este governo é machista, ano passado você venceu um concurso de músicas sobre a lei Maria da Penha. É uma preocupação tua, em teu trabalho, trazer sempre uma mensagem importante, de cunho social? Meu pensamento tem uma função crítica também, é com se [eu] fosse um sentinela, observador dos acontecimentos. O compositor tem essa oportunidade de retratar a sociedade e tornar acessível, trazer de forma mais clara o que está oculto aos olhos da multidão.
*
Ouça Nóis é jeca mais é jóia (Juraildes da Cruz), com o autor:
Os caminhos musicais de Kleber Albuquerque e Rubi começaram a se cruzar há 20 anos, quando o segundo ouviu o primeiro disco do primeiro e foi procurar o lendário Mário Manga (ex-Premeditando o Breque) para produzir também seu disco de estreia.
Suas estradas continuaram se cruzando ao longo da carreira, com um participando de discos do outro (Kleber é um dos principais compositores do repertório de Rubi), além da participação comum em trabalhos de artistas como Zé Modesto.
No fim do ano passado estrearam o show Contraveneno, batizado por parceria de Kleber com Flávvio Alves, poeta-produtor à frente da Sete Sóis, que lança os discos da dupla, e com que passaram por São Luís em outubro passado. O show virou disco. Era o horizonte comum que faltava em suas trilhas.
O clima intimista e delicado do show foi transposto para o registro, gravado ao vivo no estúdio Parede Meia. Rubi (voz e violão requinto) e Kleber Albuquerque (voz e violão), que assina o projeto gráfico do disco, são acompanhados por Mário Manga (violoncelo) e Rovilson Pascoal (guitarra e violão).
Kleber Albuquerque é um dos mais sensíveis e talentosos compositores de sua geração e Rubi está entre os melhores cantores do Brasil, quando se conjugam suas qualidades vocais e a seleção de repertório.
Poderiam ter optado por fazer um disco com o melhor destes 20 anos, mas talvez isso soasse óbvio demais. Entre as músicas de seus repertórios a mais conhecida é Ai (Kleber Albuquerque/ Tata Fernandes), já gravada por ambos: “Deu meu coração de ficar dolorido/ arrasado num profundo pranto/ deu meu coração de falar esperanto/ na esperança de ser compreendido”, diz a letra.
Procura no Google e Geração (ambas de Kleber Albuquerque) completam a parte mais conhecida do repertório, ao lado do choro Cerol e da faixa-título, gravadas no disco Outras canções de desvio, de Flávvio Alves, parceiro de Kleber Albuquerque em ambas.
O gosto pela chamada música caipira é outra praia comum da dupla, evidenciada pelos registros plangentes de Castelo de amor (Nenzico/ Creone/ Barrerito), do Trio Parada Dura, que abre o disco, e Eta nóis (Luli/ Lucina).
Kleber e Rubi mostram que suas antenas captam ainda sinais tão distantes quanto os do pernambucano Juliano Holanda (de quem gravam Sem tempo) e a argentina Maria Elena Walsh (Como la cigarra).
A quem não conhece o trabalho de Kleber Albuquerque e Rubi, Contraveneno é ótima porta de entrada. A quem já conhece, há provas de que a safra de inéditas mantém o nível que pavimentou suas estradas – comuns: a caymmiana Milonga da noite preta e o hilariante reggae Papai Noel tomou gardenal (ambas de Kleber Albuquerque), que conta as aventuras de um bom velhinho que se cansa dos sininhos de natal e se aventura por outros ritmos na Jamaica e no Brasil.
Do repertório do Premeditando o Breque, Lava rápido (Wandi Doratiotto) fecha Contraveneno. Uma homenagem aos vanguardistas-paulistas, competentemente representados no disco por Mário Manga. Muito justa: afinal de contas, foi com ele que tudo começou.
[íntegra da entrevista publicada hoje nO Imparcial]
Em Gatos e ratos, seu novo disco, o cantor e compositor goiano ajusta a mira contra a classe e o sistema políticos. Ele se apresenta em São Luís no próximo dia 7
Gatos e Ratos. Capa. Reprodução
Odair José não é um artista de meias palavras. Sempre foi explícito e cantou o que quis. Tanto que incomodou ditaduras na América Latina e setores conservadores da Igreja Católica, como revelou o historiador Paulo César de Araújo em Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar [Record, 2002, 458 p.].
Gatos e ratos, seu mais novo disco, 36º. de inéditas da carreira, segue essa trilha. É um disco explícito, com a mira ajustada ao sistema político brasileiro e seus representantes. O álbum reivindica direitos abertamente.
Foi gravado por um power trio, com uma pegada roqueira que sempre interessou ao artista, em geral injustamente rotulado meramente de brega. Odair José (voz e guitarra), Junior Freitas (guitarra, contrabaixo, teclado e piano) e Caio Mancini (bateria e percussão) põem os dedos nas feridas. Sem firulas.
Foto: Rama de Oliveira
FAIXA A FAIXA
A faixa-título é uma metáfora. Embalada pela sonoridade rock’n roll que permeia todo o disco, aparentemente é música romântica, mas desde ela, que abre o disco, Odair José começa a dar seu recado. Com as guitarras se sobressaindo, Carne crua joga luzes sobre as populações de rua.
Tema recorrente em sua obra, o preconceito é o tema de Moral imoral. Trânsito é um protesto contra a violência no trânsito, espécie de competição insana em que se transformou o fluxo de veículos e pedestres nas grandes cidades. A liberdade sexual é o mote de Segredos, em que Odair José volta a falar abertamente de homossexualidade: “o caminho do céu passa perto do inferno/ antes que anoiteça abra a porta do armário/ quem guarda segredos tira onda de otário”, diz a letra.
Em A culpa é do Henrique uma crítica incisiva à corrupção. Ainda com as baterias apontadas para a classe política, Cobrador de impostos se volta contra a carga tributária no Brasil. A cor do pecado é talvez a mais direta das faixas de Gatos e ratos. Aborda o preconceito racial, critica governantes, diversas políticas sociais e a ausência do Estado, tocando num dos assuntos mais polêmicos quando se trata de direitos humanos: os direitos de pessoas privadas de liberdade. “A superlotação nos presídios chega a ser desumana/ quem pensa que isso corrige comete um engano”, canta.
Em Açúcar mascavo, Odair soa como uma espécie de professor de amor, calejado pelas próprias experiências. Como entrega o título, em Livre, que encerra o disco, o artista volta ao tema das liberdades, sempre presente em sua obra. Este disco não poderia ser diferente.
Odair José apresenta o show A noite mais linda do mundo, no próximo dia 7 (sexta), na Casa das Dunas (Av. Litorânea), às 21h. Os ingressos custam entre R$ 40,00 e 60,00.
O artista conversou por telefone, com exclusividade, com Homem de vícios antigos.
Foto: Rama de Oliveira
Homem de vícios antigos – Você sempre foi um artista que cantou o que quis, de modo explícito. Esse seu novo disco, Gatos e ratos, ajusta a mira na classe política do país. Como você observa esse momento conturbado que o país atravessa? Odair José – Você falou bem: eu sempre fui um cronista das coisas que vejo. Eu sempre falei de uma forma muito explícita, o meu recado sempre foi na reta, eu nunca dei volta. Por isso mesmo, até, no passado, eu tive dificuldades, às vezes, com a censura do governo, e tenho até hoje dificuldade ao dizer as coisas com essa censura hipócrita da sociedade. Eu escrevo justamente sobre o que eu vejo, mais do que o que eu sinto. O que eu vejo é que nós estamos vivendo uma época muito difícil, no mundo todo, mas no Brasil especificamente, de uns anos pra cá, eu vou cada vez ficando mais assustado com a falta de ética na política brasileira. Como isso interfere na vida do cidadão? Totalmente. A política brasileira é um reflexo da sociedade? Pode ser. E é isso que é mais assustador ainda.
Você sofreu censura da ditadura militar brasileira e da igreja católica, embora esse assunto só tenha vindo à tona por iniciativa do historiador Paulo César de Araújo, no livro Eu não sou cachorro, não. Ídolo popular, o Chacrinha também apontou o dedo pra você e outros cantores famosos da época. Como é que você relembra esses fatos, hoje? Eu tive muita dificuldade com determinados segmentos. Segundo pesquisas, eu fui o segundo mais censurado deste país. Isso não é uma glória, isso é uma coisa muito chata, isso não é para se comemorar, é para se lamentar. Com respeito ao Chacrinha, eu tive dificuldades com Chacrinha no sentido de que, quando ele se desligou da TV Globo eu fui contratado pela TV Globo. Eu não podia, naquele momento, me apresentar no programa que ele tinha no canal de televisão dos Diários Associados. Então o Chacrinha começou a fazer uma campanha muito grande contra o Odair José, especificamente. Mas mais por conta desse negócio do contrato. O Chacrinha eu acho que não tinha nada exatamente contra o Odair José. Mas ele chegou a ir até o João Calmon, que era o superintendente geral dos Diários Associados, para pedir a não execução de meus discos nos Diários Associados, que naquele momento tinha uma rede de rádio muito grande no Brasil. Mas isso terminou não acontecendo e depois, mais tarde, depois do contrato vencido com a Globo, acabei me apresentando no Chacrinha e ficou o dito pelo não dito. Mas eu sempre tive essa dificuldade. A Igreja Católica especificamente nunca me olhou com bons olhos, por conta dos meus questionamentos. Eu sou assim meio pé atrás quando as pessoas manipulam. Eu vejo o povo sendo manipulado por segmentos religiosos e isso incomoda as pessoas.
Você também foi pioneiro ao trazer em sua obra temas como as empregadas domésticas e as prostitutas. Há alguns anos a PEC das domésticas causou furor em setores da elite nacional. Você se considera um visionário? Eu vou falar primeiro da prostituta. Eu tenho um sonho, eu estou com 68 anos e possivelmente eu não vá ver isso, nem se eu vivesse 150, mas eu tenho um sonho desde 1972, quando eu fiz a música Eu vou tirar você desse lugar, que é contando a história do cara que se apaixona por uma prostituta e casa com ela. A minha intenção era chamar a atenção para um problema existente. Isso é um fato, isso acontece e não acontece de agora: acontece há mais de 2000 anos. O meu sonho, que eu disse que não vou ver, é ver a prostituição sexual ser reconhecida como trabalho. Ter uma carteira, ter o reconhecimento da sociedade e não ser visto como uma podridão, como uma coisa marginalizada. Isso é um absurdo, é uma hipocrisia maior que o mundo. Esse sonho talvez eu não vá realizar, eu tenho dito isso no microfone, tenho dito isso no palco quando vou cantar a música. Tem duas coisas que eu sonho: gostaria de ver o comércio do sexo, que é uma coisa tão antiga, o que seria do mundo se não fossem as prostitutas? Os homens fazem uso disso há quantos anos? Seja de que segmento social for, ele já fez ou vai fazer isso. E por que ignorar isso? E também o negócio da maconha: acabar com a discriminação da maconha, [esse discurso de] que tem que criminalizar, que quem usa maconha é bandido, e não é. Tem que liberar! Eu falei em uma música em 1974, a música A viagem, já falando sobre isso. Enquanto não resolver também essa hipocrisia, por que tem setores importantíssimos que lucram com isso. Essas coisas todas têm que ser revistas na nossa sociedade. Com respeito à empregada, na nossa sociedade a empregada servia pra tudo: pra trabalhar tipo escrava, pra ser escrava sexual do patrão ou do filho do patrão e assim ia, e não era reconhecida profissionalmente. Eu falei para chamar a atenção, na época as pessoas até ironizaram a canção, e só no governo da Dilma, em 2014, é que houve alguma coisa em benefício das empregadas domésticas. Eu não me considero um visionário, eu apenas vejo as coisas e falo e às vezes incomoda. Como você falou do Gatos e ratos, eu estou falando um monte de coisas e às vezes as pessoas podem não gostar. Mas alguém tem que falar. Eu não me sinto bem não falando, acho que é minha função como cidadão.
Ainda nos anos 1970 você deu uma guinada na carreira ao gravar a ópera-rock O filho de José e Maria [de 1977]. Que está fazendo 40 anos este ano.
Isso! Este novo disco foi gravado apenas com você e mais dois músicos, no formato roqueiro de power trio. O rock sempre te interessou? Sempre me interessou. É engraçado isso, as pessoas se assustarem um pouco com isso, mas quem me conhece de perto, [sabe que] eu sempre fui ligado a esse tipo de coisa, essa coisa de rua e o rock é uma coisa de rua. Eu sempre gostei, eu ando com a guitarra no pescoço desde meus 15 anos de idade. Odair José sempre se apresentou pelo Brasil como um trio, quando muito um quarteto. Às vezes as pessoas se assustavam. Em determinado momento, quando eu tinha condições de levar produções maiores, eu não levava, por que eu achava que eu tinha que me apresentar daquele jeito. E era uma coisa meio incoerente, por que às vezes o disco tinha sido gravado de uma outra maneira, por uma questão de mercado, de gravadora, de filosofia de gravação, você às vezes usava outros instrumentos que não fossem a guitarra, o baixo. Mas agora que estou tendo a liberdade para fazer isso. Eu já quis fazer em 1977, O filho de José e Maria ia ser gravado como foi gravado agora o Gatos e ratos. É que na época a gravadora mais uma vez não permitiu. Mas eu tive a felicidade de ter o Azimuth junto e fizemos um grande disco. Há 40 anos foi gravado um disco que hoje você escuta, você há de concordar, tem muita qualidade, tanto na gravação quanto na execução dos músicos. Ele foi muito bem pensado. Agora eu estou conseguindo fazer isso: eu sempre me apresentei pelo Brasil afora, eu e mais dois ou três músicos. Era esquisito, por que de repente, o cara ouve um disco, aquele monte de instrumento, violino, sopro e não sei o quê, e quando vai ver o show via um cara com a bandinha pequenininha de garagem, e agora eu estou procurando ser honesto, eu sou isso aqui. Eu vou fazer o show e o cara vai ouvir o Gatos e ratos. Eu consigo levar aquele som pro palco.
Uma forma até de tornar tua obra ainda mais popular, já que isso permite circular com menor custo. Isso é um ponto. Outro ponto é o seguinte: eu acho que não tem como não ser popular uma coisa, você falando de coisas que estão no dia a dia das pessoas, com guitarra, baixo e bateria, quando muito, às vezes, um piano ou um teclado, com três acordes, quatro acordes, que é a música que eu faço. Onde isso não é popular? Eu acho que é popular. E como você falou: fica mais fácil até de eu andar por aí.
O maranhense Zeca Baleiro tem alguma responsabilidade nessa nova fase desse culto a Odair José, contribuiu de alguma maneira para conquistar novos fãs. Como vocês se conheceram e como pintou essa amizade? Sim, é engraçado isso. Na verdade, minha proximidade com Zeca começou com 2005 ou 2006, já se vão 11 anos. Quando o Zeca apareceu eu fui a um show dele no Rio, no antigo Teatro da Lagoa, nem falei com ele, ele apareceu para tocar e eu fui assistir com um amigo meu. Eu gostei do Zeca. Mais tarde tive a oportunidade de tocar com o Zeca numa noite num Sesc aqui de São Paulo, o Sesc Ipiranga. Depois o Zeca participou daquele tributo que fizeram em homenagem a Odair José [Eu vou tirar você desse lugar, de 2009], ele cantou Eu, você e a praça, e eu e o Zeca começamos a nos encontrar, a nos apresentar, ficamos amigos. Zeca é uma pessoa muito generosa, acho que isso é do maranhense, eu me dou bem com um monte de maranhenses. O Zeca é um cara boa praça pra caramba, inteligente, focado, sabe fazer a leitura das coisas. Eu tinha pensado em 2009, por aí, 2010, “ah, eu não vou gravar mais discos, não, eu já tem música demais, acho que não precisa, eu tenho tanta música”. Eu vou pro palco e não consigo cantar todas, o povo ainda fica pedindo, dizendo que eu não cantei a que ele queria. Meu show é um show que não satisfaz, por que eu saio do palco e “ah, você não cantou minha música”. Você não consegue cantar tudo, né? Foi quando o Zeca me convidou para fazer um disco lá na Saravá [Discos, selo de Zeca Baleiro]. Eu falei: “ah, Zeca, eu não tou a fim de fazer disco, não”. E fiz aquele disco até dizendo que seria o último disco da minha carreira. Depois eu me interessei de novo pela coisa, acordei de novo.
Ainda bem. Ainda bem, né? Ele é gente muito boa, gosto muito do Zeca.
Por falar nele, qual a expectativa por este show aqui na terra natal do amigo? A minha expectativa é grande. Faz tempo que eu não vou aí. A última vez eu estive com o Zeca, cantei três músicas a convite dele. Antes, fazia tempo que eu não ia a São Luís. Eu estou rodando, já fiz três shows em São Paulo, sábado fiz Belo Horizonte. Eu procurei o Zeca para saber de que forma eu poderia me programar em São Luís. Ele estava nos Estados Unidos, nem cheguei a falar com ele, achei o Ricardo Pororoca e falei: “bicho, eu tenho que passar por aí”. Quero até mandar um abraço pro Ricardo, aí da Casa das Dunas. E depois falei com Zeca, e ele me disse: “vai cantar numa boa casa”. Eu estou levando um show, deveria se chamar Gatos e ratos, mas o Ricardo botou A noite mais linda do mundo, que também tá bom. Meu show, minha intenção é divertir as pessoas, matar as saudades minha e das pessoas das canções, mas também mostrar as coisas novas, cantar um pouco do passado, mas também não esquecer o presente.
Então o repertório vai ser um pouco de Gatos e ratos e um pouco dos clássicos da carreira? Claro! Vou cantar tudo. Vou cantar músicas do Gatos e ratos, de O filho de José e Maria, do Dia 16. O show dura mais ou menos uma hora e 40 minutos, dá para cantar umas 22 músicas. Vou cantar uns 15 clássicos, aqueles que eu acho que têm a ver. Qual é a intenção? Fazer as pessoas pararem para pensar: o que é que esse cara tá falando aí? Eu vou tirar você desse lugar, A pílula [Uma vida só (Pare de tomar a pílula)], essas estarão no show.
Hoje o que te desperta interesse? O que você tem ouvido e te chamado a atenção? Eu tenho ouvido pouco. É um erro meu, mas eu tenho ouvido pouco. Os meus ídolos continuam sendo os mesmos lá de trás. No Brasil, se você vai ouvir alguma coisa, eu vou no trabalho alternativo. Os grandes talentos estão no nosso trabalho alternativo. Infelizmente os trabalhos que estão na grande mídia estão uma mesmice danada. Eu, inclusive, estou querendo ser uma alternativa a essa mesmice, eu não quero ser essa mesmice. Quem repete fórmulas não faz arte, faz negócio. Eu acho que você vai encontrar arte no trabalho alternativo.
Nesse meio alternativo você citaria nomes? Tem um monte, mas como eu te disse eu tenho escutado pouco, sou meio desatento. Se eu for citar um ou outro eu vou esquecer tantos. Tanta gente boa. Vou citar um, por exemplo: O Terno. É um power trio ótimo. Todas as linhas do alternativo são boas, por que o cara quando faz um trabalho alternativo está pensando na arte. Aposto que aí em São Luís tem, como deve ter em todos os estados brasileiros. Mas aí fica essa coisa dessa grande mídia, mostrando essa mesmice toda que não é música, não é arte, isso é um negócio. Esse tipo de coisa eu não gosto, que me desculpe o povo brasileiro, mas eu não gosto.
Além de Gatos e ratos ser um disco muito explícito é um disco em que inevitavelmente você volta a temas sobre a liberdade, a liberdade de fazer o que quiser, as liberdades individuais. Estamos vivendo quase uma nova ditadura sem os tanques nas ruas. Houve uma jornalista, uma colega sua, que me disse que se esse meu disco tivesse sido feito na década de 1970 ele não teria sido liberado, música nenhuma. Eu concordo com ela. Eu falo desse metro quadrado em que as pessoas estão enquadrando a gente. Eu concordo com você. Nós estamos vivendo uma ditadura hipócrita de tal forma, essa coisa da sociedade, está assustadora. Eu pensava que não fosse ver duas coisas: o avanço da tecnologia, que eu tinha certeza que ia acontecer, mas achava que eu em vida não veria, e estou vendo. A tecnologia todo dia surpreendendo a gente, e a medicina em paralelo a isso também, só não temos esse progresso da medicina nos hospitais públicos. Eu pensava que com o passar dos anos eu fosse ver a melhora do ser humano como um todo. E eu vejo, parece que o ser humano tá piorando. Eu não sei se é por essa opressão. No meu disco, tem uma música chamada Livre, que eu questiono isso: quem é verdadeiramente livre? Ninguém é. Nesse disco eu estou clamando as pessoas para pararem com esse preconceito sexual das pessoas. As pessoas têm preconceito sobre a opção sexual, como em Moral imoral eu falo isso. Deixa cada um ter sua opção sexual, para de meter o dedo. Eu falo no trânsito. O trânsito em qualquer capital brasileira, São Luís, Rio, São Paulo, Goiânia, Recife, as pessoas estão em uma disputa insana, é uma coisa louca. As pessoas têm que se acalmar. Eu vejo muita esperança nessa juventude mesmo para ter uma melhora. Nós, os adultos, gente próxima à minha idade que está no poder, isso aí só tá levando pro brejo. E vivemos sim um momento muito difícil: só faltam os tanques na rua.
Você falou em tecnologia. Como você se relaciona com ela? Baixa música, vê youtube, usa redes sociais? Eu não sei mexer com isso. Eu sou um cara das cavernas. Eu demoro para trocar de celular, por que toda vez que eu troco eu demoro dois anos para aprender a mexer. O mundo digital permitiu a gente tanta coisa boa, é uma liberdade. Eu sei que tem muita coisa errada, mas é uma liberdade. Eu posso fazer o meu disco, ele pode chegar até você, o público pode ter a liberdade de ouvir o meu disco sem ele estar passando por um filtro de programação de grandes mídias. Não que eu tenha nada contra a grande mídia, mas você sai daquele quadrado, você está livre. Eu vejo isso de uma forma muito boa.
Inclusive muita gente conheceu, para ficar em um exemplo que a gente já falou, O filho de José e Maria através de sites de download, youtube. Não é, cara? Hoje O filho de José e Maria é um sucesso. Ele está na minha carreira como uma coisa importantíssima. E o disco foi crucificado, foi desclassificado há 40 anos. Por que um círculo pequeno de mídia, um círculo pequeno de quem mandava determinou que ele não seria um sucesso. Hoje ele está aí, e quem gosta de O filho de José e Maria? Gosta o pessoal mais jovem, que está aí nos youtubes da vida, nas redes.
Às vezes é preciso tempo para reconhecer a grandeza de uma obra, de um artista. Outro dia eu fui fazer um show aqui em São Paulo, no Sesc Itaquera, que é um lugar aberto, gigantesco. Depois do show eu fui falar com as pessoas e tinha uma garota do Rio de Janeiro, de Nova Iguaçu, aquela região da baixada. E ela falou que eu só tinha tocado duas músicas de O filho de José e Maria. “Ah, eu achei que você ia tocar mais, você tem que ir ao Rio apresentar esse projeto”. Ela virou pra mim e disse assim: “que aliás é um projeto que só vai ser compreendido daqui a 40 anos”. Eu virei pra ela e falei: “então lascou, por que ele já tem 40” [risos]. Eu tou fazendo disco pra não lucrar com ele nunca.
Quase 1.500 almas lotaram completamente ontem (11) o Centro de Convenções Pedro Neiva de Santana para prestigiar um histórico encontro de gigantes: MPB-4, Toquinho e Ivan Lins (por ordem de subida ao palco) trouxeram à ilha o espetáculo com que comemoram seus 50 anos de carreira, com produção local de Mário Moraes e Alegria Produções. Vinham de Teresina/PI, onde a apresentação foi cancelada por falta de público.
“50 anos da gente, mais 50 do Toquinho, mais 50 do Ivan Lins, que eu acho que esconde a idade, são na verdade 150 anos de música”, brincou Miltinho (voz e violão), após abrirem com De frente pro crime (João Bosco/ Aldir Blanc).
É um show descontraído, não há guerra de egos ou coisa que o valha. Estão todos irmanados em oferecer o melhor de si, em nome da música, com muito bom humor. “Espero que vocês aí gostem. Aqui no palco, podem ter certeza que adoramos”, continuou Aquiles (voz) – o grupo se completa com Paulo Malaguti (voz, teclado e percussão) e Dalmo Medeiros (voz e percussão, ex-Céu da Boca).
Destaque, na apresentação do MPB-4, para a sequência Chico Buarque, em que entoaram Yolanda (Pablo Milanés, versão de Chico Buarque), Apesar de você, Roda viva e Cálice (Chico Buarque/ Gilberto Gil).
A interpretação de Amigo é pra essas coisas (Aldir Blanc/ Silvio Silva Jr.), certamente uma das mais aguardadas da noite, foi algo sublime, de arrepiar, um show à parte.
O espetáculo como um todo, não podia ser diferente, era uma espécie de antologia ao vivo. Não à toa surgiu Toquinho, violão em punho, atacando de Tarde em Itapuã (Toquinho/ Vinicius de Moraes). Ainda com o MPB-4 no palco desfilou seu repertório infantil: A casa (parceria com Vinicius de Moraes), Ar (O vento) (idem), A bicicleta (Mutinho/ Toquinho), O caderno (Toquinho/ Mutinho) e Aquarela. Em meio a tudo isso, O pato (Toquinho/ Vinicius de Moraes), com direito a incidental de Miltinho imitando a voz do Pato Donald ao entoar Ninguém me ama (Antonio Maria). “O pato tá fodido!”, gracejou ainda no timbre do personagem da Disney.
Discípulo de Paulinho Nogueira, Toquinho reverenciou seus mestres do violão, incluindo Gente humilde (Garoto; a música depois ganhou letra de Chico Buarque e Vinicius de Moraes) no repertório. Não esqueceu também seu primeiro sucesso: Que maravilha (parceria com Jorge Ben). Tampouco deixou de fora Samba de Orly, outra parceria “adulta” com Vinicius de Moraes.
Antes de sair do palco, anunciou Ivan Lins, que seria acompanhado, na percuteria, por outra lenda viva da música brasileira, o que garante a sigla-soma do título desta resenha: João Paraíba, integrante do mítico Trio Mocotó – que gravou com Jorge Ben no início da carreira, e com o jazzista Dizzy Gillespie, cujas sessões, por anos desaparecidas, renderam o ótimo Dizzy Gillespie no Brasil com Trio Mocotó, gravado em 1974 e lançado apenas em 2010.
Pouco depois de subir ao palco, Ivan Lins reclamou do excesso de luzes de celulares apontados em direção ao palco. Alegou desconcentrar-se e pediu a compreensão da plateia. Em sequência, pouco ligando para se a plateia atendeu ou não a seu apelo, passeou por repertório autoral, incluindo, entre outras, Abre alas, Lembra de mim e Madalena, além de Sou eu (parceria com Chico Buarque). A plateia foi ao delírio.
Foi um show recheado de histórias engraçadas, muito bem humorado. Toquinho, por exemplo, lembrou de quando o compositor e cronista Antonio Maria se passou por Vinicius de Moraes ao encontrar uma mulher muito bonita num avião, lendo um livro do poetinha – não havia no livro foto de seu autor e Maria morria de medo de aviões. Levou a mentira até o fim, tendo saído com a mulher, a quem convidou para jantar. Ao encontrar Vinicius, contou: “você broxou!”.
Ivan Lins lembrou-se de quando, entrevistado por Alcione, Tom Jobim respondeu que a única saída para a música popular brasileira era o aeroporto – resposta que ele não mudou apesar da insistência da direção da emissora. “Era um tempo em que a Globo ainda tinha programas de tevê dedicados a boa música. Mas isso foi há muito tempo”, afirmou, entre o lamento e a galhofa, para aplausos da plateia.
Lembrou-se também de Cauby Peixoto, gravando um “difícil” como “difíxil”, como se imitasse o Jorge Ben de Por causa de você menina, o “você” pronunciado como se grafado com x. Lembrou-se até de Latino, que gravando uma participação em um disco, foi advertido várias vezes pelo diretor: “você desafinou”, seguido de “está fora do ritmo”, “tem que ter sentimento”. Ao que o cantor retrucou: “eu sou só um: ou canto afinado, ou no ritmo, ou com sentimento”.
O apoteótico final reserva o encontro no palco de sete grandes artistas, passeando por Regra três e, no bis, Quem te viu, quem te vê, dos onipresentes Vinicius de Moraes (parceria com Toquinho) e Chico Buarque, respectivamente. “Noite de gala”, como (quase) diz a letra da saideira.
BASTIDORES
Passagem de som de 50 anos de música. Foto: Zema Ribeiro
Pouco antes do show, Homem de vícios antigos foi até os camarins e conversou rápida e exclusivamente com os astros da noite
Homem de vícios antigos – Vocês têm uma relação com o Maranhão de longa data, desde que defenderam Gabriela, num festival em 1967, e depois gravaram Descampado verde, ambas de Chico Maranhão. Qual a sensação de visitar a terra de um parceiro das antigas? Vocês mantêm algum tipo de contato até hoje? Há algum número de Chico Maranhão previsto no roteiro?
Aquiles – Não. A gente não canta há muito tempo Gabriela, nem Descampado verde. Descampado verde por acaso eu até ouvi recentemente a gravação. Eu falo com ele por facebook, ele disse que vai a São Paulo e a gente está combinando de se encontrar para tomar uma cachaça. Ele falou que vai para passar um tempo, tem umas coisas para fazer, e a gente vai se encontrar. A gente foi muito junto com ele, no início da nossa carreira, exatamente aquele festival, outros festivais, a gente andava junto, era uma turma de amigos que por acaso cantavam, faziam sucesso, a gente ficou bem próximo naquela época, depois cada um espalhou. A gente já veio algumas vezes, fazia tempo que a gente não vinha à São Luís e eu espero que para vir uma próxima vez não demore tanto.
Vocês estão comemorando 50 anos de carreira, começaram dentro de um período turbulento da história brasileira, a ditadura militar. Que paralelo vocês fazem com o momento político vivido no Brasil, hoje?
Aquiles – Quando a gente começou a gente vivia sob uma ditadura. Agora a gente não vive sob uma ditadura, ao contrário, estamos em um regime democrático, mas existe uma crise política muito forte, que em alguns momentos parece até que não estamos em uma democracia. Mas o fato é que a gente está numa democracia e temos que descobrir jeitos de endireitar o que está torto, completamente torto.
Você tocou muitos anos com Papete, que nos deixou recentemente. Qual o lugar e a importância de Papete?
Toquinho – Eu conheci o Papete e trabalhei com ele durante muitos anos. Fizemos tantos shows, fora do brasil, aqui. Papete era um dos melhores percussionistas do mundo. Ele tinha uma precisão incrível, matemática, parecia um cientista tocando percussão. Ele tocava tudo, eu fazia meus discos com ele. Eu queria fazer uma escola de samba, ele gravava toda a escola de samba, gravava o bumbo, depois o pandeiro, depois o tantã, repinique, ele fazia instrumento por instrumento, gravava tudo. Cantava muito bem, fez vários discos importantes, resgatando toda uma cultura popular, tanto daqui quanto de outras regiões do Brasil. Era um músico fantástico, trabalhou com pessoas importantes, não só comigo, com Vinicius, Almir Sater. Fiz uma turnê com ele, só violão e percussão na Itália, nós trabalhamos muito, gravamos muito, muitos discos. Eu tinha uma confiança enorme musical nele, como amigo também, claro. Dividimos vários momentos, não só no palco, mas no cotidiano, fizemos grandes investidas musicais. Meus discos quase todos foram gravados com a percussão do Papete. Era um dos maiores percussionistas do mundo, não só do Brasil. Acho que se ele tivesse ido para os Estados Unidos ele seria um percussionista como alguns brasileiros que estão lá e são conhecidos mundialmente. Ele seguramente estaria ali no nível desses grandes músicos, mas aqui no Brasil ele fez um trabalho muito bonito mesmo, vai deixar saudade e uma lacuna que não pode ser preenchida facilmente. Ou melhor, não vai ser preenchida à maneira dele. Ele tinha uma sensibilidade, uma precisão e uma sutileza para tocar que realmente eu não vejo em outros percussionistas até hoje.
Você ficou muito conhecido por Aquarela, há pouco na passagem de som você tocou O vento, A bicicleta. Tua obra vai muito além dessa faceta infantil. O fato de você ser mais reconhecido por ela te incomoda?
Toquinho – Eu não concordo com isso, não acho que eu sou conhecido como música infantil. Acontece que essas músicas estão ficando mais que as outras. É um dos caminhos que eu segui. São gerações que estão passando e elas ficam novas para as crianças que estão vindo e vai ficando, de geração em geração. Essas músicas não estão morrendo. Tarde em Itapuã é uma geração que ouviu. Quando você pega Aquarela, A bicicleta, O caderno, os colégios estão fazendo festa de final de ano com elas. As crianças estão vendo essas canções como canções novas. O cara que tem 50 anos hoje cresceu ouvindo essas músicas, o filho dele, pode ser que ele já tenha netos. Na minha geração eu sou o único que tem essa vantagem. O que tem de gente, criança no shopping que vem me pedir autógrafo, às vezes a mãe quer o autógrafo, faz a criança cantar [risos]. Toda essa geração de 15 anos me conhece, pode conhecer o resto, mas vem por esse lado. Vem aqueles adultos falar comigo: “cresci ouvindo sua música” [risos]. [O disco] A Arca de Noé foi [lançado em] 1980, nós estamos falando de quase 40 anos. Aquarela é de 1983, são 33 anos. Quem tem 40 anos hoje, tinha sete quando ela foi feita. Isso que você ouviu [na passagem de som] é por que nós temos um momento no show só de música infantil. É de um show que eu faço com o MPB-4, nós resgatamos essa célula do show. Eu não posso deixar de fazer no show um momento lúdico. Eu tou pra fazer um show, uma produção grande, só de música infantil. Eu tenho quatro discos de música infantil, A Arca de Nóe [volumes] 1, 2, Casa de brinquedos e os Direitos da Criança [Canção de todas as crianças, de 1987], que é uma coisa reconhecida pela ONU. O público mais forte que existe é o infantil, ele carrega três quando vai assistir, leva mãe, pai, tia, avó.
Vinicius de Moraes é tua maior saudade na música?
Toquinho – Ele me dá saudade mais pessoal do que musical. [Quando] Ele morreu, um ano antes eu já estava trabalhando sem ele. Me dá saudade dessa hora, ele aqui tomando uísque, o que ele diria do Brasil hoje, seria muito bom ouvir a piada dele com o Tom Jobim, eram pessoas muito inteligentes. Faz falta isso, o que eles diriam de tudo, que músicas eu teria feito com ele esse tempo todo. Mas ao mesmo tempo eu esgotei com o Vinicius. Foram 10 anos, a gente morava junto, foram mais de 130 músicas, mais de 1000 shows. Chegou um momento que tinha que parar a parceria, ele foi embora na hora que tava madura já a coisa. Parece que ele me deu um aval para seguir a carreira sozinho, e foi um grande aprendizado com ele, que eu tou usufruindo até hoje, nós estamos falando dele até agora. Ele quem me passou esse lado infantil, esse lado lúdico, eu nunca pensei que eu fosse fazer música infantil na minha vida. Ele era muito mais jovem que eu, o tempo inteiro, eu era muito mais o fio-terra da relação, ele era o cosmonauta, o Vinicius era jovem, eu era muito mais velho. Eu comecei a musicar os poemas infantis dele, O pato, O pinguim, brincando, nunca pensei que a gente ia ficar disco. A gente gravou na Itália, a gente não tinha coragem de gravar no Brasil, essas cançõezinhas, a gente não tinha noção de como ia ficar. Na Itália estourou o disco, La casa [cantarola trecho de A casa em italiano]. Aí o Vinicius falou “vamos gravar no Brasil”. Chamamos vários artistas, que é A Arca de Noé, Chico, Milton Nascimento, todos toparam, foi um estouro, especial de televisão, Globo. A gente percebeu que tinha um caminho que estava aberto, era o blá blá blá, o refrãozinho, a gente começou a fazer isso de uma maneira mais séria, sem subestimar a criança. Tá dando no que deu. Estou com um trabalho muito bonito para fazer com o Elifas Andreato, que é A casa dos sonhos. São sentimentos que ganham vida e cada sentimento tem uma canção. O primeiro sentimento que eu fiz foi a mentira, é uma personagem maravilhosa, é ela quem canta. Tem muita coisa para se fazer no mundo infantil, eles me ensinaram muito, as crianças. É muito mais difícil você fazer música infantil, tem que ter humor, e ao mesmo tempo não subestimar a criança. Tem coisas que ela não entende que vai perguntar pro pai, aí o pai já tem que se interessar pela música. O caderno é um exemplo típico, é uma canção que as pessoas se emocionam até hoje. É uma canção infantil, mas ao mesmo tempo não é, você mexe no emocional da mulher, da menina, o caderno acompanha a gente desde os primeiros rabiscos, passando por várias fases. É infantil isso? Não sei, mas ficou sendo. Aquarela? Nunca foi música infantil, é uma música, só que as crianças adotaram, a publicidade da Faber Castell foi importante, tem 25 anos já, fazendo Aquarela, Aquarela, claro, as crianças adotaram isso, a coisa do lápis de cor. A vida é feita de circunstâncias, você não tem às vezes a intenção de fazer aquilo ou de dar a dimensão que ela assume, é a vida que faz isso, não sou eu. Eu só faço a música.
Você é um dos artistas brasileiros de mais prestígio internacional. Qual o segredo?
Ivan Lins – Essa aceitação não sou eu só, é toda uma comunidade de compositores que mantiveram dentro de sua música as raízes brasileiras. O grande diferencial que tem nisso tudo é o fato de que nós temos raízes brasileiras no nosso trabalho e ao mesmo tempo, quer dizer, nós temos a influência da música clássica, do jazz, da música folclórica brasileira. Nós somos uma mistura e a forma como nós desenvolvemos essa mistura é que cria essa identidade. Nossa linguagem é completamente diferente da deles. Tem similaridade nos acordes, nas harmonias, mas nós temos uma maneira muito particular de compor, e eu estou inserido nisso. Minha forma de compor agrada muito a eles pelas melodias e harmonias. Minhas harmonias vêm de Antonio Carlos Jobim, vem de Milton, vem de Dori [Caymmi], Ravel, Debussy, basicamente, Carlos Lyra, são assim os mais importantes. E veio também do jazz, antes de começar a compor eu era pianista de jazz e bossa nova, nem cantava, só música instrumental. Essa mistureba toda, a gente tem uma maneira muito particular de processar as informações, a gente percebe que fora, em outros lugares, é o que os encanta, surpreende. O Brasil também tem uma coisa, nós não temos uma escola definida de música. O Quincy Jones falou uma vez uma frase que eu achei incrível: “eu fico impressionado como vocês fogem da didática harmônica que é ensinada nos conservatórios. Vocês, depois de um dó maior perfeito, colocam um si menor com sétima, nona, décima primeira, com a maior naturalidade e totalmente fora da didática, e fica lindo, e fica lindo” [risos]. Talvez até pelo fato de grande parte da gente não estuda música da maneira como a música é ensinada no primeiro mundo, nesses conservatórios. Brasileiro é muito intuitivo e isso é o que faz com que a gente crie essa identidade completamente diferente, e eles levam um susto.
O pernambucano Siba é um artista em constante processo de reinvenção. Entre meados dos anos 1990 e 2000 liderou o Mestre Ambrósio, banda que ajudou a consolidar o movimento manguebit. Com o fim do grupo, formou, com músicos da zona da mata pernambucana a Fuloresta do Samba. Só depois estreou em carreira solo, com Avante [2012], um bem-humorado disco de tons autobiográficos.
Em 2015 lançou De baile solto (seus discos solo e com a Fuloresta estão disponíveis para download no site do artista), com letras em geral com conteúdo político de grande força. Em Marcha macia, que abre o disco, por exemplo, criticava a tentativa de ingerência do poder público de mexer nas tradições dos maracatus em Pernambuco, com que trocadilha o título do álbum.
De baile solto foi o disco com cujo show Siba baixou na ilha no final de 2015, no Festival BR 135. Ele volta à cidade amanhã (10): se apresenta às 22h no Fanzine Rock Bar (av. Beira Mar, Praça Manoel Beckman, próximo à Delegacia da Mulher, Centro). Os ingressos custam R$ 40,00 (20,00 para estudantes com carteira e demais casos previstos em lei).
A produção local do show é novamente do BR 135, que pretende, ao longo do ano, realizar algumas apresentações, como a preparar o clima para o grande festival no Centro histórico – a edição de ano passado teve, entre as atrações, os também pernambucanos da Nação Zumbi.
Na apresentação de amanhã Siba (guitarra e voz) será acompanhado por Atife (guitarra), Thomas Harres (bateria) e Mestre Nico (percussão e voz). O artista conversou com exclusividade com Homem de vícios antigos.
Foto: José de Holanda
Qual a base do repertório do show desta sexta em São Luís? Esse show tem uma formação reduzida, é um quarteto que vai aí pra São Luís. São duas guitarras, bateria, percussão e vozes, e eu tenho usado este formato pra experimentar com repertório de vários momentos, desde a Fuloresta, do Avante, e também bastante coisa do De baile solto. Mas é uma formação que tá em metamorfose, sempre experimentando novas possibilidades, já tentando talvez apontar aí a direção para um novo projeto, esse ano ainda ou no ano que vem.
Em De baile solto você volta pela primeira vez em disco ao repertório do Mestre Ambrósio, com a regravação de Gavião. Qual a sensação da revisita? A música Gavião foi regravada no De baile solto por que ela tinha uma relação muito profunda com o repertório, primeiramente musical. O De baile solto é um disco muito marcado pela retomada da rítmica que eu sempre tive como principal no meu trabalho, que é a da música de rua de Pernambuco, e Gavião era uma das músicas mais importantes, pra mim, no Mestre Ambrósio. Sendo que depois a letra dela tomou uma dimensão muito particular. Em contraponto com as letras mais diretamente políticas do disco, Gavião acaba se ressignificando, ao lado das outras músicas, eu acho.
Você se consagrou como rabequeiro, no Mestre Ambrósio e na Fuloresta, mas na carreira solo se acompanha com guitarra. Há uma razão para a mudança? E qual a chance de a rabeca reaparecer? Com relação à rabeca eu considero o instrumento como uma ferramenta, somente. O instrumento não tem um valor em si, embora que o meio de onde ele vem ou a linguagem que ele representa pode sim agregar valor ou subtrair. No caso da guitarra, foi meu primeiro instrumento e eu precisei retomá-lo no momento onde eu carecia de mais recurso musical, que a rabeca é um instrumento, embora muito expressivo, também bastante limitado. Foi mais este motivo mesmo de retomar a guitarra, nenhum outro não, e até então tem sido meu instrumento principal.
Tua formação musical se dá entre ambientes urbanos e rurais e isto fica claro em tua música, sempre dançante. Há uma preferência? Há um lado com o qual você se identifique mais ou tudo se equilibra e se completa? Esse contraste de urbano e rural ele é um pouco falso, eu acho, hoje no Brasil. Especialmente na música que eu faço, que eu pratico, não dá mais nem pra falar em mundo rural na Zona da Mata norte, que é o berço desses estilos que são a base do meu trabalho. De um modo geral são estilos que já são urbanos há décadas. A grande diferença está no fato de eles serem classificados como cultura popular e daí são formas de expressão que costumam sofrer bastante preconceito e ocupar sempre um lugar inferior na qualificação, no nosso panorama cultural de modo geral. Mas o rural em si, ele já é coisa do passado.
Outra característica muito marcante de tua obra é o conteúdo fortemente político, notadamente este disco mais recente. Como você tem acompanhado o noticiário acerca do conturbado momento político que atravessa o Brasil? Eu acompanho o momento político do Brasil com muita preocupação, eu acho que é um momento muito pernóstico. As grandes forças mais reacionárias, o acúmulo de dinheiro e poder está se multiplicando e se reforçando de um modo assim assustador. Ao ver a versão da grande imprensa prevalecendo a gente fica com um sentimento de que a gente quase que perdia a oportunidade de ter construído um país melhor nos últimos anos aí. Continuo acreditando na possibilidade de o povo brasileiro de encontrar saídas, mas este realmente é um momento bem preocupante, que acho que vai reverberar negativamente por muito tempo ainda. A gente segue resistindo por que é a única maneira e cada um tem que encontrar o seu modo de escape, de saída, e tentativa de construir pelo menos pequenos modos de afirmação positiva dentro disso tudo.
Ronaldo Rodrigues, Luciana Simões e Christian Portela, da formação original da Bota o Teu Blues Band. Arte e fotografia: Laila Razzo/ Base SLZ
Não faltam atestados do parentesco entre blues e rock. Uma das provas mais recentes é a volta às origens dos Rolling Stones. Os roqueiros setentões voltam ao bom e velho blues em Blue & Lonesome, seu ótimo novo disco.
Há pouco mais de 20 anos em São Luís uma banda fez história na cena da cidade. Com seu nome incomum, a Bota o Teu Blues Band tornou-se lendária. Aproveitando a passagem do guitarrista Ronaldo Rodrigues pela Ilha, o grupo se reunirá para uma única apresentação nesta sexta-feira (27), no Fanzine Rock Bar.
A casa, definida no material de divulgação como “o mais novo local alternativo de São Luís”, iniciou suas atividades no último dia 14, com show da mítica Velhas Virgens. Em seu currículo já constam shows de Da Ghama (ex-Cidade Negra), Fauzy Beydoun e Cachorro Grande.
Gerente da casa, o músico Beto Ehongue (Canelas Preta, ex-Negoka’apor, ex-Som do Mangue), comenta a receptividade do público: “Foi maravilhosa. O público ficou fascinado com a casa, sua estrutura, acessibilidade, localização e principalmente com a proposta cultural da casa, que é de incluir São Luís no roteiro cultural do país, além de abrir espaço para a música feita por estas bandas”, contexto em que se insere esta reunião da Bota o Teu Blues Band.
Ronaldo Rodrigues, guitarrista da formação original, após uma temporada em Londres, acabou fixando morada no Rio de Janeiro, onde cursou o bacharelado em bandolim na UFRJ. Ex-integrante, em São Luís, de bandas como Palavra de Ordem e Som do Mangue, a partir da vivência musical na capital carioca, o músico acabou mais identificado com o chorinho. Mas nunca abandonou a guitarra. Ele comenta o prazer do reencontro com a cidade e com os amigos: “Sempre é muito bom rever os parentes e velhos amigos. Aproveito pra fazer algumas apresentações, como o evento Black & Tal, que realizo no Chico Discos e que se encaminha pra sua quarta edição [3 de fevereiro]. Dessa vez tem uma particularidade, que é reunir boa parte da Bota o Teu Blues Band, que fundei junto com os irmãos Burgue – Heremburgue e Indemburgo –, há 23 anos, pra fazer um show comemorando a amizade e o velho rock/blues. Pena eles não poderem fazer parte mas contaremos com Luciana Simões nos vocais e Christian Portela [guitarrista] que também fizeram parte da formação original”
“Está sendo uma divina nostalgia reviver a banda, o repertório. Apesar de quase não fazer parte do que toco hoje em dia, é prazeroso. Há muito tempo não tocava num projeto contendo o bom e velho rock e seu inseparável amigo blues [risos]”, continua.
Ronaldo anuncia a formação que subirá ao palco para este Bota o Teu Blues Band Revival e o que a banda está preparando: “Infelizmente Heremburgue e Indemburgo, baixo e bateria, respectivamente não poderão participar, mas nos deram o aval pra seguir adiante. Da formação original faremos parte eu [guitarra e bandolim], Christian Portela [guitarra, gaita e vocais] e Luciana Simões [vocais]. O repertório está baseado no que fazíamos há mais de 20 anos, muito blues e medalhões do hard rock lado B, como Iron Butterfly, Grand Funk Railroad, O Terço, Mutantes, entre outros… O baixo fica sob a batuta de Fernando Japona e a bateria de Thierry Castelo Branco”.
Entre os nomes, Japona acrescenta Cream e Deep Purple, e aponta novos rumos para a sonoridade da banda. “Ronaldo toca bandolim e curte choro, eu toco violão e curto folk, blues e samba. [Os arranjos] são funkeados, shuffles, traditional, soul, jazz! Progressivo também!”, lista.
A importância da Bota o Teu Blues Band é tamanha que Beto Ehongue destaca: “acho que foi o início do que chamamos da nova cena musical da cidade, contribuiu para o surgimento de outros grupos importantes da musica local atual”.
O hoje gerente do Fanzine Rock Bar conviveu musicalmente com Ronaldo Rodrigues: este foi guitarrista da Som do Mangue, cujo vocalista era aquele. “Ronaldo é multi, não só nos instrumentos, mas nas ideias, e era peça muito importante dentro do processo de criação do Som do Mangue, com uma bagagem imensa”, elogia.
A apresentação da Bota o Teu Blues Band olha para o passado, mas ao mesmo tempo aponta para o futuro. Ao menos o da relação da casa com a música produzida aqui. “Esta é uma bandeira forte da Fanzine, seja feita agora ou em outra época, e esse resgate da Bota O Teu é apenas o começo do que pensamos para a música local”, compromete-se Beto Ehongue.
Serviço
O quê: show da Bota o Teu Blues Band – com Luciana Simões e Os Carabinas Quando: sexta-feira (27), às 22h Onde: Fanzine Rock Bar (Av. Beira-Mar, Praça Manuel Beckman, próximo à Delegacia da Mulher) Quanto: R$ 20,00
[Sobre Cronovisor – Renato Russo, de corpo e alma, Cine Teatro da Cidade de São Luís, sexta-feira, 20/1]
Foto: ZR (20/1/2017)
Costurado por depoimentos de Renato Russo (1960-1996) e projeções diversas, Cronovisor – Renato Russo, de corpo e alma é um passeio por grandes sucessos da Legião Urbana. O nome do espetáculo é tomado emprestado de uma máquina do tempo supostamente inventada por um padre italiano e destruída pela Igreja Católica século passado.
Samuca Luna, cantor e psicólogo, se apresenta sozinho no palco, acionando as projeções a partir de um laptop e cantando, ora acompanhando-se ao violão e por um par de bumbos acionados com os pés, ora por bases pré-gravadas.
O espetáculo funciona bem como tributo ao líder da maior banda de rock já surgida no Brasil, mas não vai além disso. Entre sucessos como Ainda é cedo, Geração Coca-cola, Meninos e meninas, Pais e filhos, Giz e Teatro dos vampiros, entre outras, informações por demais conhecidas da vida de um personagem bastante documentado, dado o interesse contínuo por Renato Russo, mesmo 20 anos após sua morte.
É um erro, aliás, afirmar, sobre uma das poucas músicas do roteiro não assinadas por Renato Russo, que ele tornou sua Hoje a noite não tem luar (versão de Carlos Colla para Hoy me voy para Mexico, de C. Villa, A. Monroy e M. Pagan, sucesso dos Menudos). A música é um hit póstumo da Legião Urbana, registrada durante um intervalo da participação do grupo no Acústico MTV – o show, gravado em 1992, o segundo da série no Brasil, só foi lançado em disco em 1999.
As outras músicas não assinadas pelo homenageado são o Opus 17, de Robert Schumann, que Renato Russo ouvia obsessivamente perto de morrer, e Love of my life (Freddie Mercury), hit do Queen, que Luna mescla a Os barcos. Em Por enquanto, uma homenagem a Cássia Eller (1962-2001), para delírio da plateia que lotou o Cine Teatro da Cidade de São Luís.
Antes de cantar Baader-Meinhof Blues, a projeção exibiu a estrela vermelha símbolo da organização guerrilheira alemã que dá título à música. Vestido numa camisa vermelha, Samuca tirou onda: “calma, gente! Não é a estrela do PT!”. Ao cantar Que país é este? a projeção exibiu as fotografias de todos os presidentes da república, incluindo os militares, com os respectivos mandatos, de Deodoro da Fonseca ao ilegítimo, cuja foto, acompanhada da legenda “atual” foi saudada por gritos de “Fora Temer!” em uníssono, coro que se repetiu para acompanhar a letra quilométrica de Faroeste caboclo.
Com Samuca Luna cantando, sobre bases pré-gravadas, Vento no litoral e Tempo perdido, mais dois hits da Legião Urbana, o show termina entre a sensação de missão cumprida, isto é, lotar o teatro e emocionar o público, e a falta de risco e ousadia a um mergulho mais profundo na vida e obra de Renato Russo, artista que sempre arriscou saltos sem medir distâncias.
O percussionista Luiz Claudio. Foto: Rivanio Almeida Santos/ Chorografia do Maranhão
Em depoimento à Chorografia do Maranhão, série publicada pelo jornal O Imparcial, o percussionista paraense Luiz Claudio lembra a chegada por acaso à São Luís, onde acabou fixando residência graças a uma paixão: um tambor de crioula que ou/viu na Praça Deodoro.
Um dos mais renomados percussionistas do Brasil, Luiz Claudio já tocou com muita gente grande: Celso Borges, Cesar Teixeira, Ceumar, Chico César, Lena Machado, Rubens Salles e Zeca Baleiro, entre muitos outros, além da irmã Anna Claudia. Integrou ainda grupos como o Som da Lata – em que alunos, além de aprender a tocar percussão, confeccionavam seus próprios instrumentos a partir de materiais reciclados – e o Choro Pungado, um dos mais inventivos da cena choro do Maranhão, com sua mistura entre o gênero e ritmos da cultura popular do estado.
Hoje (15) o músico apresenta o show Encantaria no projeto Palco 42, do Laboratório de Expressões Artísticas do Maranhão, o Laborarte (Rua Jansen Müller, 42, Centro), com entrada franca. É um show solo de percussão, em que o músico exibe suas múltiplas facetas, tocando diversos instrumentos, de cajon a caixa do divino, passando por tambor grande, zabumba e maracá, entre muitos outros.
A percussão orgânica de Luiz Claudio é acompanhada por trilhas gravadas. É um mergulho profundo do músico pelos batuques, os instrumentos às vezes configurando-se extensões de seu corpo.
A apresentação acontece na Sala Cecílio Sá (Laborarte), às 19h. Na sequência, outra apresentação de peso: um dos maiores compositores brasileiros, Chico Maranhão relembra clássicos de sua trajetória, iniciada ainda na década de 1960.
Não há nada que Alexandra Nicolas faça sem capricho e verdade. Talvez isso explique a demora de sua estreia no mercado fonográfico, acontecida apenas em 2013, com Festejos [Acari], inteiramente dedicado ao repertório de Paulo César Pinheiro, quando já contava quase 20 anos de carreira.
Aquele disco, inconscientemente talvez, já apontava na direção do Nordeste, região à qual ela dedica o repertório de Eu vou bulir com tu, show com que tem percorrido praças públicas de São Luís. Ela faz questão de afirmar(-se), logo no início do espetáculo: “Para quem não me conhece, eu sou Alexandra Nicolas, cantora ma-ra-nhen-se!”, diz, escandindo as sílabas.
É tamanho o cuidado e o carinho com que a cantora prepara seus espetáculos que a coisa não acaba – tampouco começa – no espetáculo em si. Quem já viu, percebe isso em “detalhes” como o figurino – dela e da banda que a acompanha – o palco, a luz, o som. Parece óbvio dizer isso, mas não é.
Sua entrega no palco é total, valendo-se de recursos aprendidos em formações em canto – no que a formação acadêmica em fonoaudiologia certamente ajuda –, dança e teatro. O verbo-mote do show, do título da música de Antonio Barros e Cecéu, é traduzido ao longo do espetáculo, quando ela bole com músicos, com público, com o marido-produtor, dedicado, jogando nas 11, atento a cada detalhe, vendendo discos, trabalhando desde muito antes e até muito depois do show, para que tudo aconteça com perfeição.
Era a sexta apresentação da temporada, espécie também de testes para o repertório do disco. A banda, cada vez mais afiada: Wendell Cosme (cavaquinho, guitarra e direção musical), Nataniel Assunção (bateria), Wanderson Silva (percussão), Carlos Raqueth (contrabaixo), David Ginja (sanfona), João Neto (flauta), Rony e Gil (vocais) – lenda viva da música brasileira, o maestro Zé Américo Bastos subiu ao palco e assumiu um teclado em Bulir com tu, quando Alexandra continuou cantando, agora dançando com Carlinhos de Jesus, outra lenda viva do Brasil. Este agradeceu a oportunidade de voltar a São Luís, lembrando a importância de Zé Américo no início de sua carreira.
Ontem (10), Alexandra transformou o Espigão Costeiro da Ponta d’Areia em pista de dança, com boa parte do público “bulindo” o esqueleto em um tapete vermelho estendido em frente ao palco – havia bailarinos profissionais para quem quisesse se arriscar, mas dançaram casais, crianças e, em determinada altura do espetáculo, o bailarino Carlinhos de Jesus desceu para dançar com a plateia. “Eu estou cumprindo minha promessa, trouxe Carlinhos de Jesus para dançar com vocês”, declarou Alexandra, após anunciar a participação especial – ele protagoniza com ela o videoclipe de Bulir com tu, primeira música de trabalho de seu novo disco, a ser gravado e lançado ano que vem.
Com seu carisma e bom humor, Alexandra Nicolas provou, no Dia Internacional dos Direitos Humanos, que todo mundo tem o direito de ser feliz. E quem passou pelo Espigão na noite de ontem o foi, ao menos na cerca de hora e 15 minutos de sua apresentação. 10 de dezembro é também o dia do palhaço e ao cantar Leque moleque (Alceu Valença), ela trocou o “Valença-ça” da resposta à pergunta, na letra: “e o palhaço quem é?/ Alexandra!”.
Outros destaques da noite foram Maria, Mariazinha (Aloísio Ventura), Espumas ao vento (Accioly Neto), Forró do beliscão (João do Vale/ Ary Monteiro/ Leôncio), O segredo do coco (João Madson) e, como o Maranhão se espraia entre o Nordeste e o Norte, numa deliciosa “confusão” geopolítica e cultural, No meio do pitiú (Dona Onete) e o Carimbó do macaco (Pinduca), a saideira, em que botou a banda para tocar – e Carlinhos de Jesus para dançar – a música paraense em ritmo de reggae, samba e arrocha. “Me arrocha, Carlinhos! Martin, eu te amo!”, declarou, para diversão da plateia.
Dois recordes quebrados, shows históricos, a Praia Grande reocupada com arte e coros em uníssono: “Fora, Temer!”
Isqueiros e celulares acesos para Liniker. Foto: Laila Razzo/ BR 135
Em seu quinto ano, o Festival BR 135 superou todas as expectativas e parece que qualquer coisa que se diga dele soará clichê – inclusive isto.
Colocando São Luís na rota do circuito brasileiros de festivais, alguns longevos, outros tão ou mais novos que o “nosso” BR, como é simplesmente abreviado – e chamar o BR de nosso é mais que legítimo! –, mas já demonstrando vigor – e aí já disputamos as atenções de igual pra igual.
Se não, vejamos: que outro/s festival/is brasileiro/s consegue/m reunir numa mesma edição Nação Zumbi, Di Melo e Liniker e os Caramelows, para ficarmos apenas nos headliners, já que havia outras ótimas atrações na programação?
“A única saída é o aeroporto”, dizia um jocoso Tom Jobim, sobre a situação brasileira, noutros tempos. 52 anos depois do golpe que implantou a ditadura civil-militar no Brasil, um novo golpe, político-jurídico-midiático, destituiu a presidenta Dilma Rousseff, legitimamente eleita, para ascender o vice-decorativo ao posto de presidente-decorativo.
Mas por que falar de política em um texto sobre cultura, mais especificamente sobre um evento cultural? Se você ainda se pergunta isso, das duas uma: ou apoia os golpistas ou está muito por fora.
Os malungos da Nação Zumbi e um primeiro recorde quebrado. Foto: Laila Razzo/ BR 135
Já na primeira noite de BR 135 – batizado com o nome da única entrada e saída de São Luís por via terrestre –, a de quinta-feira (24), as atrações foram unânimes em compartilhar do grito da galera: um mar de gente – outro clichê – entoava o coro de “Fora, Temer!”, com a recíproca verdadeira de bandas como Venga Venga (um duo de djs), DuSouto e Nação Zumbi. Estes, encerrando a noite inaugural, quebravam um recorde de público do festival. Há quem fale em 10 mil pessoas na Praça Nauro Machado e arredores.
“Estamos fazendo o podível e o impodível e nada é impodível para o imorrível”, gracejou Di Melo, outro pernambucano, lenda vivíssima – chegou a ser dado como morto, depois reapareceu –, cujo álbum de estreia passou anos esquecido até tornar-se cult e cantado a plenos pulmões pelo ótimo público que lotou a Praça da Criança na segunda noite de festival (quinta-feira, 25). Aqui cabe um elogio também à banda local que o acompanhou.
“Foram só 40 minutos de ensaio, estes músicos são maravilhosos”, derramou-se ao se referir a João Paulo (contrabaixo), Rui Mário (teclado), Fofo (bateria), Hugo Carafunim (trompete), Danilo Santos (saxofone) e João Simas (guitarra). Com todos os presentes cantando seu repertório de cabo a rabo – mesmo as poucas músicas de Imorrível, disco lançado este ano, nem se sentiu falta de backing vocals, para repetir o refrão “calma, calma, calma, calma, calma!”, de A vida em seus métodos diz calma, da estreia Di Melo, de 1975.
Por falar em atrações locais, a noite central foi também a “noite do empoderamento feminino”, quando o palco da Nauro Machado – difícil falar em palco principal – foi totalmente das mulheres: Nathália Ferro, Tássia Campos, Núbia e Lei di Dai mandando a real.
Luciana Simões e Bruno Batista, antes de Alê Muniz subir ao palco e completar a participação do Criolina. Foto: Laila Razzo/ BR 135
Outros destaques locais foram a volta da Pedeginja, entre o repertório de Contos cotidianos, seu disco de estreia e inéditas, Beto Ehongue e os Canelas Preta, que aproveitaram os ótimos público e clima do Festival BR 135 para a gravação de um dvd ao vivo, e Bruno Batista, que apresentou novamente aos ludovicenses o show Bagaça, baseado no repertório de seu último álbum, com participações do casal Criolina (Alê Muniz e Luciana Simões, idealizadores e produtores do BR 135), de Léo Chermont (guitarrista da Strobo, banda paraense que faria show na sequência) e acompanhado de André Bedurê (contrabaixo), Gustavo Souza (bateria), Márcio Guimarães (guitarra) e Estevan Sinkovitz (guitarra).
Bruno Batista afirmou com todas as letras o que, de algum modo, todos tínhamos certeza: “o BR 135 é a coisa mais revolucionária que aconteceu na cena cultural do Maranhão nos últimos tempos”. Certamente referia-se ao conjunto Festival BR 135, que além dos shows promove feira criativa e intercâmbios os mais diversos, além do Conecta Música, evento paralelo que envolve debates, palestras, mesas redondas, oficinas, rodadas de negócio – sem falar na histórica roda de samba na Feira da Praia Grande, na tarde de sábado (26), reunindo Patativa e a Turma do Vandico.
Como anunciou Leminski, “essa noite vai ter sol”. Teve, para Liniker. Foto: Laila Razzo/ BR 135
Mas o mais surpreendente ainda estava por vir: fechando a última noite de festival (sábado, 26), Liniker e os Caramelows fizeram um show para um público ainda maior que o da Nação Zumbi. Havia gente pendurada nas árvores. Um festival com dois recordes sucessivos quebrados não é qualquer festival.
Quando ela cantou Zero, acompanhada, obviamente, pela multidão, isqueiros e celulares se acenderam, quase antecipando em algumas horas a barra do domingo – na memória de quem esteve presente ainda não se apagaram.
O imorrível Di Melo ontem na Praça da Criança. Foto: Marco Aurélio/ BR 135
Barulho foi a palavra mais repetida por Di Melo ao longo de seu histórico show, ontem (26), na Praça da Criança (Praia Grande), na segunda noite da programação do Festival BR 135. Era uma saudação, referindo-se ao próprio som: “barulho para estes músicos maravilhosos!”, “barulho para todos vocês que vieram até aqui”.
O pernambucano esbanjou vitalidade, suingue e simpatia e não cansou de agradecer à produção do BR 135, leia-se o duo Criolina, Alê Muniz e Luciana Simões, pela oportunidade de se apresentar pela primeira vez na ilha.
Lenda vivíssima, a história é bastante conhecida: Di Melo lançou um excelente disco de estreia em 1975, mas o álbum demorou décadas para ser cultuado. O show de ontem foi majoritariamente baseado nesse repertório e o ótimo público cantou tudo junto a plenos pulmões.
Di Melo havia sumido do mapa e sido dado como morto. Reapareceu e assumiu a alcunha de Imorrível, título de seu segundo álbum, digamos, oficial, lançado este ano – o site do artista lista outros nove discos caseiros, feitos ao longo destes mais de 40 anos de carreira.
Ontem subiu ao palco trajando boina, óculos escuros e uma camisa com sua própria efígie – anunciando que na banquinha ao lado do palco era possível comprar camisas, CDs e LPs –, acompanhado de uma competentíssima banda local: João Paulo (contrabaixo), Fofo (bateria), Rui Mário (teclado), Hugo Carafunim (trompete), Danilo Santos (saxofone) e João Simas (guitarra). “Músicos maravilhosos, a gente teve 40 minutos de ensaio”, elogiou, tirando onda.
Além de Di Melo [1975] o repertório trouxe quatro músicas de Imorrível [2016]: Dioturno, que ele dedicou ao parceiro Waldir da Fonseca, recém-falecido (o outro parceiro é B.Negão, que no disco participa da faixa), Barulho de Fafá (na sequência de Se o mundo acabasse em mel, do disco inaugural, a música que também tem mel na letra: “Parei na filha da dona Emília e do seu Antônio/ ela é bonita e tem mel de abelha no olhar”, começa), Navalha e Milagre (quando tocou violão), agradecendo novamente ao público e à produção, tocando um reggae (parceria com Larissa Luz, que participa da faixa no disco) justo na Jamaica brasileira.
Não faltaram os hits Kilariô (que abriu e fechou a apresentação, a única do bis), A vida em seus métodos diz calma, Aceito tudo (Di Melo/ Vidal França), Minha estrela, Má-lida e Pernalonga.
Pouco depois da metade do show, Di Melo mandou, outra vez referindo-se ao entrosamento com a banda: “Estamos fazendo o podível e o impodível e nada é impodível para o Imorrível”. Está explicada a magia.
Se a alguém restavam dúvidas sobre a consolidação do Festival BR 135 (veja a programação completa) no calendário cultural do Maranhão, a noite de ontem (24) tratou de dirimir. Em sua segunda passagem por São Luís, a primeira em um show gratuito, os pernambucanos da Nação Zumbi refizeram ao vivo o repertório de Afrociberdelia, um dos discos fundamentais do movimento manguebit, que completa 20 anos neste 2016.
Maior banda do Brasil em atividade, a Nação Zumbi demonstra um vigor ainda maior no palco – e qualquer um que conheça qualquer disco, com ou sem Chico Science à frente, sabe o peso da banda. Por falar em Chico Science, cujo falecimento também completa 20 anos no próximo fevereiro, sorte a nossa Jorge Du Peixe ter assumido os vocais e a banda ter continuado de ali em diante, sempre surpreendente.
Em geral elegantes, artistas costumam dizer que tanto faz tocar para 10 ou para milhares de pessoas. Mas sabemos que, geralmente, quanto mais público melhor. E o público de São Luís fez bonito: lotou a Praça Nauro Machado, na Praia Grande, para ver/ouvir os malungos. Arrisco dizer: estávamos diante de uma quebra de recorde, ao menos em se tratando do BR 135 – não ouso estimar a quantidade de público por pura inabilidade.
Em cerca de hora e meia de show, a Nação Zumbi mostrou o peso e a atualidade do repertório de sua mistura de africanidade, cibernética e psicodelia – a justaposição que dá título ao disco de 1996, considerado o 18º. melhor disco da música brasileira pela revista Rolling Stone Brasil.
Não faltaram clássicos para botar o público para cantar junto e dançar: Macô (Jorge Du Peixe/ Bid/ Chico Science), Samba do lado (Nação Zumbi/ Chico Science), Manguetown (Lúcio Maia/ Dengue/ Chico Science), Criança de domingo (Cadão Volpato/ Ricardo Salvagni) e Maracatu atômico (Jorge Mautner/ Nelson Jacobina). O bis extrapolou Afrociberdelia, lembrando Blunt of Judah e Meu maracatu pesa uma tonelada, de Nação Zumbi [2002], e Quando a maré encher (Fábio Trummer/ Roger Man/ Bernardo Chopinho), de Rádio S.Amb.A. [2000]
Um satélite na cabeça, título de uma das faixas de Afrociberdelia, também lembrada ontem, se traduziu em um satélite por cabeça: todo mundo sintonizado. A antena parabólica na lama, um dos símbolos do manguebit, hoje parece fácil de ter sido fincada. Nos paralelepípedos do centro histórico de São Luís é mais difícil, mas a Nação Zumbi conseguiu.
Em tempos de golpe e dos sucessivos ataques à cultura brasileira, convém reafirmar a importância e a resistência do BR 135. Na noite de ontem, a primeira das três da programação, Venga Venga, a ótima DuSouto e a Nação Zumbi foram unânimes (e acompanhados pelo público) nas palavras de ordem (a hashtag) do momento: fora, Temer!
O trio durante o lançamento de Melhor do que parece, no Auditório Ibirapuera, em São Paulo. Foto: Thany Sanches
Em texto sobre a banda em seu site, O Terno se apresenta como um “power-trio de canção-rocknroll-pop-experimental de São Paulo”, mas é claro que é bem mais que isso. Há ecos das décadas de 1960 e 70 em seu som, sobretudo da Tropicália, mas longe de cheirar a mofo ou a um de seus antídotos, a naftalina.
Não são pautados pelo saudosismo – a propósito, de um tempo em que nem viveram, mas que conhecem bastante pelos discos e pela história – e atualizam o movimento, reprocessando suas influências explícitas.
Melhor do que parece. Capa. Reprodução
Tim Bernardes (guitarra e voz), Guilherme d’Almeida (contrabaixo) e Biel Basile (bateria) acabam de lançar seu terceiro disco, Melhor do que parece [2016]. Sábado passado (19) estiveram na Ilha, para um show no Cidade Velha Pub – elogiaram o público ludovicense.
As citações à Tropicália, veremos, não são despropositadas, nem mera mania de crítico de encontrar um antecessor a qualquer novidade que apareça. O trio agradou a Tom Zé, um dos nomes mais interessantes do movimento, ainda na ativa – acaba de lançar, aos 80 anos, Canções eróticas de ninar [2016]. O Terno participou do EP Tribunal do feicibuque [2013] e do álbum Vira lata na via láctea [2014] – em ambos há parcerias de Tim e Tom.
Por motivos de força maior, Homem de vícios antigos não esteve na plateia dO Terno, sábado passado. Mas o blogue entrevistou Guilherme d’Almeida por e-mail – a ideia era publicar o papo antes do show, mas as respostas só foram recebidas depois da passagem do grupo pela cidade.
O início da carreira de vocês, com covers de Beatles e Mutantes, colaborou para a aproximação com Tom Zé, de quem vocês já participaram de discos? Participar de gravações com o Tom Zé foi uma grande honra para nós. O convite veio através do [jornalista e produtor musical] Marcus Preto, que reuniu artistas da nova geração para gravar no EP Tribunal do feicebuqui, onde participamos de duas músicas. O trabalho ainda rendeu mais algumas gravações que foram incluídas no disco Vira lata na via láctea. Sobre o início da banda não sei dizer se o fato de um dia termos tocado músicas de outros artistas colaborou para o encontro, mas foi uma boa escola para aprender mais sobre arranjos e sonoridades, apesar de O Terno nunca ter sido uma banda cover.
66, seu disco de estreia figurou em várias listas de melhores em 2012 e lhes deu vários prêmios. Ao fazê-lo vocês tinham noção da seriedade da coisa ou essa repercussão toda lhes causou surpresa? A repercussão do nosso primeiro disco foi muito boa para nós, que ainda estávamos começando nossa trajetória. O clipe de 66 foi um grande diferencial nessa fase, pois chegamos em públicos que não imaginávamos através do compartilhamento na internet. Acho que não tínhamos muita ideia de onde o disco poderia chegar, mas fizemos todo o trabalho com muita seriedade e planejamento, pensando repertório, clipes, datas de lançamentos e show com o intuito de levar o som o mais longe possível.
O segundo disco de vocês, que leva apenas o nome da banda, é autoral e foi realizado graças a financiamento coletivo, mecanismo a que cada vez mais artistas têm recorrido. Em tempos de golpe e crise, como vocês preveem o futuro da música independente no Brasil? Acho que essa cena indie no Brasil está cada vez mais autodidata e, de fato, independente. O caminho pela frente parece bem obscuro, mas acredito que os músicos e o público saberão criativamente driblar essas adversidades.
As influências da Tropicália seguem em Melhor do que parece. É intencional ou é algo do qual simplesmente vocês não conseguem se desligar, de tão introjetado em seu DNA musical? Não acho que seja intencional ou ocasional, é apenas uma questão estética que nos agrada. O disco traz diversas referências para alem da Tropicália: as gravações da Motown e da Capitol, bandas e artistas atuais como [o cantor, compositor e multi-instrumentista canadense] Mac de Marco, [a banda americana] Fleet Foxes, entre outras. Não costumamos pensar em influências como fórmulas diretas para isso ou aquilo, mas nossa formação musical tem uma base grande em comum, o que resulta em arranjos, timbres, formas que remetem certos períodos ou artistas.
E sobre São Luís, quais as impressões sobre esta primeira vez dO Terno na Ilha? Foi quente! Público muito atencioso, cantando as músicas junto e um dos maiores calores que já passamos em cima do palco!