Elomar Figueira de Melo, ou simplesmente Elomar, é dono de uma das mais consistentes obras musicais do Brasil. Recluso, pouco sai de sua fazenda em Vitória da Conquista, sua cidade natal.
O compositor, violonista e criador de bodes – Elomar foi a inspiração para o Bode Orelana, famoso personagem de Henfil – estará em São Luís para um concerto único no próximo dia 23 de outubro, às 20h30, no Teatro Arthur Azevedo. Ensaiando o Riachão do Gado Brabo, o espetáculo, mesclará repertório consagrado e inédito do artista, que no palco será acompanhado por seu filho, o violonista João Omar.
Este apresentará parte do repertório inédito, algumas peças que serão registradas em João Omar interpreta Elomar: peças para violão solo, disco que deve lançar em breve.
O concerto que Elomar apresentará em São Luís anuncia uma mudança de fase em sua carreira. Ensaiando o Riachão do Gado Brabo deve ser o último disco (e concerto) com canções. Daí em diante o artista deve se dedicar à composição de óperas e outros trabalhos de maior fôlego – o que, na verdade, ele já vem fazendo, em paralelo, há algum tempo.
O público terá ainda a oportunidade de ouvir O robot e Mulher imaginária, temas da trilha sonora de um espetáculo teatral de autoria do próprio Elomar, O mendigo e o cantador. O compacto em que as músicas foram gravadas, ainda na década de 1960, não chegou a ser lançado. Dois sambas da fase inicial de sua carreira também compõem o repertório da noite.
Por si só um concerto de Elomar já é algo que vale muito a pena. Diante de tudo isso, torna-se simplesmente imperdível. Os ingressos, à venda na bilheteria do teatro, custam R$ 70,00 (plateia), R$ 60,00 (frisa) e R$ 50,00 (camarote, balcão e galeria).
Há quem não entenda o fato de eu gostar de assistir a shows “repetidos”. Como se todo show fosse igual. Todo show é diferente, cada show é um show. Mesmo discos, há aqueles tão bons que não se consegue ouvir duas vezes, com novas nuances percebidas a cada audição. Mas deixemos de abobrinhas.
Antes de adentrar o Teatro Arthur Azevedo na última quarta-feira (10) eu já sabia que encontraria um Pau Brasil diferente do que eu havia visto e ouvido há mais ou menos sete anos. Por diversas razões, entre as quais destaco duas: o repertório diferente e o próprio amadurecimento musical de seus integrantes.
Se naquela ocasião eles acompanhavam Monica Salmaso nas músicas de Noites de gala, samba na rua, disco dedicado à obra de Chico Buarque, agora, sem o ornamento da voz da cantora, dedicavam-se a um repertório instrumental rico e variado. Tocaram temas autorais (Pingue-pongue, de Paulo Bellinati, Caixote de Nelson Ayres, entre outros), Heitor Villa-Lobos (Bachianas Brasileiras nº. 4 – Ária e Cantiga, com que abriram o espetáculo), Moacir Santos (Agora eu sei e Coisa nº. 10), Tom Jobim (Saudade do Brasil) e Baden Powell (Pai, com que encerraram o espetáculo, sem direito a bis).
O concerto do Pau Brasil encerrava um ciclo: a comemoração de seus 30 anos de carreira, cuja turnê percorreu cidades em Minas Gerais, Mato Grosso, Pará e Maranhão. Bem humorados, disseram da felicidade de voltar ao palco “dessa maravilha que vocês têm aqui”, o Arthur Azevedo, e anunciaram a viagem que farão em sequência, para a Noruega, onde gravarão disco novo.
O bom público presente ao teatro pode ouvir em primeira mão algumas músicas que estarão neste novo trabalho, entre elas Caixote, xote de Nelson Ayres cujo título confunde-se com o Caixote que reúne sua obra completa – sobre o que brincou o baixista –, exceto o mais recente Villa-Lobos Superstar, ótimo disco dedicado à obra de Heitor Villa-Lobos com as participações especiais do quarteto Ensemble SP e do sempre inspirado cantor Renato Braz.
Nelson Ayres (piano), Teco Cardoso (flauta e saxofones), Rodolfo Stroeter (contrabaixo), Ricardo Mosca (bateria) e Paulo Bellinati (violão) – da esquerda para direita na foto que ilustra este post – tanto na escolha quanto na execução das peças, mostraram ao público ludovicense por que são um dos grupos instrumentais mais interessantes do país que lhes empresta meio batismo.
A música popular brasileira tornou-se uma sigla importante após os grandes festivais, tidos como sua era de ouro, nas décadas de 1960 e 1970. Nenhum país tem uma música popular tão interessante quanto o Brasil, justo pela sofisticação que carrega.
O que parece contraditório é o trunfo do longevo Pau Brasil, grupo que chega aos 30 anos neste 2014, cuja turnê comemorativa passa por São Luís nesta quarta (10), às 20h30, no Teatro Arthur Azevedo.
O quinteto formado por Nelson Ayres (piano), Paulo Bellinati (violão), Ricardo Mosca (bateria), Rodolfo Stroeter (contrabaixo) e Teco Cardoso (flauta e saxofones) é a perfeita tradução da ponte entre erudito e popular sem linhas de segregação que acabam por fazer da música o que temos de melhor.
Não é à toa que este grupo se chama Pau Brasil. A sequência é lógica e pode soar óbvia: desta árvore nativa extraiu-se o nome do país, da madeira vem a maioria dos instrumentos, deles a música, obtida a partir do virtuosismo destes gênios, de relevantes serviços prestados, em grupo ou sozinhos, aos ouvidos mais exigentes, ao longo destes agora devidamente celebrados 30 anos de carreira.
Noites de gala, samba na rua, de Monica Salmaso, é um destes casos, um bom exemplo: no disco da cantora, cujo repertório é inteiramente de Chico Buarque, o grupo fez a cama para que a cantora reinventasse o compositor, trazendo novidade e rara beleza ao que já parecia definitivo, as gravações já conhecidas de músicas que ela regravou. Particularmente lembro-me do show, no mesmo Arthur Azevedo, em que, num determinado momento, a cantora beijava Teco Cardoso, seu marido, celebrando o amor pela música, contaminando a plateia apaixonada – impossível manter-se impassível.
Quem não conhece o Pau Brasil certamente há de se apaixonar. O repertório longe do óbvio, além de composições dos membros do grupo, passeia por nomes como Ary Barroso, Baden Powell e, entre outros, Heitor Villa-Lobos, a cujo repertório é dedicado Villa-Lobos Superstar, seu mais recente disco, que lhe garantiu os troféus de melhor disco e melhor grupo instrumental no 24º. Prêmio da Música Brasileira. O disco conta com as participações especiais do quarteto Ensemble SP e do cantor Renato Braz. O show traz um breve panorama da história da música e dos ritmos brasileiros.
Também amanhã, às 18h, o Pau Brasil dialogará com o público interessado sobre a concepção musical e de arranjos, em interação com os presentes – músicos, professores e estudantes de música e público em geral. Tanto para a oficina quanto para o espetáculo as entradas são gratuitas, devendo ser retiradas na bilheteria do teatro a partir das 14h.
Repertório da apresentação, de mais de duas horas, não se limitou, no entanto, à obra do compositor
Peças de Elomar foram interpretadas por Xangai próximas à concepção. Fotosca: Zema Ribeiro
Com um set inspirado, João Liberato (flauta) e Ricardo Vieira (violão de sete cordas) abriram o espetáculo Xangai canta Elomar, apresentado ontem (19), no Teatro Arthur Azevedo. O duo, que acompanhou o baiano na maior parte da apresentação, atacou de Água e vinho (Egberto Gismonti), Santa Morena (Jacob do Bandolim), Livre para chorar (Ricardo Vieira) e Café 1930 (Astor Piazzolla). Esta última precedida de referências ao autor da maior parte do repertório da noite e seu gosto por tango.
O repertório, em mais de duas horas, não se limitou a Elomar, embora bastasse. Eugenio Avelino, o Xangai, ao saudar a plateia citou diversos amigos maranhenses, entre os quais João do Vale, Turíbio Santos e João Pedro Borges, o Sinhô – que estava na plateia –, a quem dedicou o espetáculo. “Esta cantoria é pro senhor, Sinhô!”, trocadilhou.
“Isso aqui não é show. É uma cantoriazinha? Pode ser. Agora quando bota esses dois meninos vira um concerto”, afirmou sorrindo, referindo-se aos músicos. “Vai ser legal por que Elomar pensa sua composição para orquestras reduzidas, vocês não estão ouvindo aqui, estes dois, uma orquestra sinfônica?”
Autêntico show man, Xangai cantou, tocou violão, assobiou (imitando um canário em Qué qui tu tem, canário?, parceria dele com Capinan), recitou, contou causos e ilustrou parte do processo criativo de Elomar, contando a história de algumas letras e trazendo ao público uma espécie de glossário, fundamental para o entendimento de suas peças.
A obra de Elomar – que se apresentará com o filho João Omar (violão) no Arthur Azevedo em outubro – não é simples. Tem uma linguagem toda particular, vocabular e musicalmente falando. Dele Xangai cantou, entre outras, Na estrada das areias de ouro, A pergunta, Puluxia das Sete Portas, A meu Deus um canto novo, Curvas do rio, O violeiro e ainda recitou a letra de Cantiga do Estradar. As quatro primeiras estão em seu ótimo Xangai canta cantigas, incelenças, puluxias e tiranas de Elomar [Kuarup, 1986].
Xangai ainda cantou Estampas Eucalol (Hélio Contreiras), Deusa do asfalto (Adelino Moreira), que começou a dedilhar ao violão imitando a gagueira de Nelson Gonçalves, como se este apresentasse o compositor, Em nome do sol (parceria com o ídolo Jacinto Silva) e Paletó (com Manduka).
Das duas últimas contou as histórias: Jacinto Silva, então hospedado em sua casa, um dia acordou e disse que sonhou e que estava fazendo uma música. Cantarolou: “O sol continua brilhando/ o sol também nasceu pra você”. E emendou: “agora termina!”. Os dois concluíram a parceria, gravada por Silva em Caruaru capital do forró (1996).
A história com Manduka – filho do poeta Thiago de Mello e parceiro de Dominguinhos em Quem me levará sou eu – remete a uma apresentação de Xangai com Elomar no Teatro Arthur Azevedo em 1994: no camarim, após o show, ele entregou-lhe o papel com a letra. Xangai demoraria 17 anos entre perder e achar o papel e musicar a parceria, já depois de Manduka ter “feito a passagem”: “ele me deu a letra vivo e depois voltou para me dar a melodia”, disse.
Apesar de insistentes pedidos, Xangai não cantou o ABC do preguiçoso (Ai deu sodade), tema de domínio público recolhido pelo historiador baiano Fábio Paes, gravada pela primeira vez pelo cantor há 30 anos. É bom que o público comece – já é até tarde – a se acostumar: suas possibilidades são bem maiores e o cantor provou, não apenas ontem, que não é um one hit wonder.
No bis, após uma breve participação especial da esposa do violonista cantando Tico tico no fubá (Zequinha de Abreu), acompanhada por ele, Xangai terminou a apresentação com Arrumação (Elomar). A plateia em coro entoou o refrão “futuca a tuia, pega o catadô/ vamo plantá feijão no pó”, que depois se misturaria aos aplausos de pé sob os quais o trio se retiraria do palco.
Dos ritmos da cultura popular do Maranhão ao choro, o passeio desenvolto do percussionista Wanderson, 17º. entrevistado da série Chorografia do Maranhão
Wanderson dos Santos Silva iniciou sua trajetória artística no bumba meu boi mirim Capricho Sesiano, organizado por Dona Laura, professora de artes das unidades Lara Ribas e Ana Adelaide Belo do Serviço Social da Indústria, popularmente conhecidas como Sesi do Santa Cruz e Sesi da Alemanha.
Nascido em 11 de abril de 1980 na Maternidade Benedito Leite e criado por perto do primeiro, o percussionista até hoje mora no Conjunto Radional. Filho de Silvio Matos da Silva, farmacêutico falecido, e Maria Ribamar dos Santos da Silva, cabelereira, Wanderson seguiu as trilhas percussivas: do Capricho Sesiano passou ao Barrica, em paralelo aos estudos e ao esporte – chegou a disputar várias edições dos Jogos Escolares Maranhenses e formou-se em Administração.
Membro do Regional Chorando Calado, grupo que integrava o cardápio musical do Bar e Restaurante Chico Canhoto à época do Clube do Choro Recebe, o músico hoje se orgulha de já ter tocado com quase todos os chorões da cidade.
Professor da Banda do Bom Menino do Convento das Mercês, atualmente Wanderson está em estúdio, gravando um disco instrumental autoral, um passeio por toda sua formação musical, o que inclui bumba meu boi, tambor de crioula, tambor de mina e choro – um pé na modernidade sem tirar o outro da tradição. Ele conversou com a chororreportagem no Chico Discos, antes de seguir para o Teatro Arthur Azevedo, onde seu set percussivo já estava montado para mais um show de sua agenda.
Como era a vivência musical na tua casa, na tua infância? Geralmente era aos fins de semana, meu pai só descansava aos domingos, então ele botava o som o dia todo para tocar. Eu escutava Altemar Dutra, essas músicas mais ou menos dessa época, Roberto Carlos.
Ele comprava discos? Comprava discos, cds, k7s. Até hoje eu guardo, tenho comigo.
Que outras vivências musicais você tinha? Em casa, praticamente foi assim, influências também de meus irmãos mais velhos, que eram quem botavam o som na época, tipo Titãs. Meu outro irmão que escutava bastante samba, por incrível que pareça, hoje é evangélico e não escuta mais nada. Eu via a turma de meus irmãos tocando. Lá onde eu moro a influência musical é praticamente zero.
Mas eles tocavam instrumentos? Brincavam de tocar percussão, atabaques, faziam aquela rodinha de samba.
Daí veio a tua vontade de aprender a tocar percussão? Também teve aquela influência da escola. Por volta da terceira série, por aí assim, eu cantei no Capricho Sesiano [grupo de bumba meu boi formado por alunos do Serviço Social da Indústria – Sesi]. Cantei lá, toquei durante uns três anos seguidos, Moça Laura [professora de artes], chegamos até a viajar para Belém.
Como você escolheu o estudo da percussão? Por volta de 14 anos de idade comecei a me interessar por tocar. Eu sempre escutei bastante música regional, bastante boi, sempre gostei de boi, das músicas daqui da região. Eu tinha uma irmã, Darlene, ela pegou e me levou pra Madre Deus. A gente foi, digamos assim, beber da fonte. Eu quero aprender, eu vou na Madre Deus, naquela época era assim, os melhores percussionistas tocavam na Madre Deus. Peguei minha mochila e fui com ela. Fui fazer o teste para o Bicho Terra, não era aquele alvoroço que é hoje, a gente ainda tocava como bloco tradicional, na rua. Fiz o teste e fiquei. De lá comecei a ter as influências de ritmo, comecei a pesquisar, ir pra Madre Deus, estudar percussão. Por volta de 1994, 95, por aí assim. Ainda não tinha nem projeto Viva [de revitalização e construção de praças em diversos bairros da capital] nem nada.
Você não chegou a buscar outra profissão? Na época eu fazia assim: eu tive influências também, depois, de canto coral. Eu cantei três anos no [Coral] Lilah Lisboa, de Chico Pinheiro [professor da Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo e membro das bandas da Companhia Barrica e Bicho Terra]. E paralelamente, na escola, eu fazia esportes. Normal, jogava basquete, JEMs [os Jogos Escolares Maranhenses], essas coisas tudinho. Mas sempre paralelo com o estudo da música. Em 2001, 2000 eu já fui trabalhar de auxiliar administrativo, no Laboratório Salomão Fiquene, aí eu saía de lá, quando era época de São João eu ia tocar, época de coral eu ia pro coral, era tudo ali perto, o coral era na São Pantaleão, o laboratório era no Apicum.
Você sempre recebeu apoio da família, da mãe, do pai, para trilhar o caminho da música? No começo foi difícil. Minha mãe ela queria que eu estudasse, como toda mãe, estudar, fazer vestibular. Meu grande passo para a música foi depois do falecimento de meu pai. Meus irmãos viram e disseram “vamos pra cá!”, por volta de 96, quando eu entrei na Escola de Música.
Quando você cita o falecimento de seu pai, ele era o mais radicalmente contra? Não. Ele era a favor de tudo. A mãe que geralmente era “não, é pra estudar”. Fazia parte de tudo, mas não podia largar o estudo. Por exemplo: se fosse pedir um livro de música, aí era difícil ela entender, hoje a gente já tem como garantir.
Antes da Escola de Música você já tocava profissionalmente? Eu tocava com o Barrica. Toquei com o Barrica 15 anos, cheguei novinho lá.
Que instrumentos você tocava lá? Todos os instrumentos de ritmo regional. Eu entrei pra tocar no Bicho Terra. De lá fiz um teste e passei pro Barrica. Eu fui o primeiro a ser de fora da Madre Deus a entrar pro grupo, de percussão. Era só gente do meio. Dessa forma foi que eu procurei a Escola de Música e outras fontes, por que por ser de fora tinha preconceito, botavam até o pé pra eu cair tocando.
Com quantos anos você entrou na Escola de Música? Eu entrei em 1996, com 15, 16 anos.
Pra estudar percussão mesmo? Pra estudar cavaquinho. Não tinha o curso de percussão.
E aí? Estudei, toquei cavaquinho durante uns quatro anos. Toquei nesses grupos de samba, tocava em rodas de samba, fui um dos primeiros cavaquinhos do Retoque, um grupo que tinha lá no Belira. E paralelamente tocava percussão no Barrica. Meu primeiro instrumento na Escola de Música foi violino. Só que quando eu peguei o violino eu não me adaptei e o instrumento era caro. Peguei uma poupança que eu mesmo fiz, naquela época mamãe não apoiava, a poupança eu fiz com um bolão da Copa [do Mundo] de 1994, ninguém acreditou que o Brasil ia pros pênaltis, eu ganhei o dinheiro todinho. Saquei o dinheiro e comprei meu primeiro cavaquinho, meu primeiro instrumento. Aí mudei de curso. Meu primeiro professor, na época, foi até Raimundo Luiz [bandolinista, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 15 de setembro de 2013]. Depois de Raimundo que eu fui ter aula com Juca [do Cavaco, professor de cavaquinho da EMEM]. Depois é que entrou o curso de percussão na Escola de Música. Mas paralelamente eu já tocava percussão no Barrica e estudava cavaquinho na Escola. Tinha essa coisa dessas influências do samba, e eu misturava essa coisa do samba com os ritmos regionais. Até no Barrica.
Quando você mudou para percussão na Escola? Eu fui da primeira turma. Acho que 1997, 98.
Nem terminou o curso de cavaquinho? Não, eu tranquei. Paralelamente eu fazia os dois. Depois me decidi pela percussão.
Quem são teus principais mestres da percussão? Na Escola era Jeca, meu professor. Dei uma parada durante uns dois anos, fiquei só no Coral, parei por conta de problemas familiares, tava jogando JEMs, quando eu retornei, já era Nonatinho [percussionistado Instrumental Pixinguinha] o professor.
Você disse que passou uns 15 anos no Barrica. Sua saída de lá é mais ou menos recente. A que se deveu? A eu me profissionalizar mesmo. A eu correr atrás do meu trabalho.
No sentido de que o Barrica é um espaço amador? Não, no sentido de que o Barrica tem um dono e eu resolvi ser meu próprio dono. Decidi virar um profissional da música. Lá são pequenos cachês, é de grupo. Lá você não é visto, é visto o grupo: a Companhia Barrica.
Hoje você consegue viver de música? Consigo. Hoje eu tenho outros trabalhos paralelos, mas eu consigo.
Quais são esses trabalhos paralelos? Eu tenho minha carreira acadêmica. Sou graduado e pós-graduado em administração. Estou pensando em dar aulas em faculdade. Justamente visando um futuro, por que a carreira musical tem certos limites, na minha opinião. Na Europa o cara é dentista e toca na orquestra, não tem essa história de ser músico e ser só músico, tu tem outra alternativa, tu pode fazer as duas coisas paralelamente. Eu bati muito de frente aqui, o cara é só músico, quer ser só músico. Infelizmente o nosso mercado não dá pra isso. Eu tenho amigos que moram fora, vivem de música e vivem bem. É o que eu sempre digo: tu quer viver bem ou tu quer sobreviver? São coisas bem diferentes.
Antes de formado, você conseguiu viver bem de música? Com música você sobrevive. Viver bem, bem, é difícil. São poucos os que conseguem.
Você não acha que no teu caso essa condição decorre de ser um cara novo? Tipo, daqui a 10 anos você poderia estar vivendo bem de música? Eu acho que o mercado, aqui em São Luís, é um pouco complicado. Talvez se eu fosse pra fora.
Quem são os percussionistas que você mais admira aqui em São Luís? [Carlos] Pial, meu amigo, me ajudou bastante quando comecei a tocar. O próprio Jeca, aquela história, a gente não descarta da onde a gente veio. Zé Pretinho, um cara bom pra poxa. E outros, os grandes mestres. No Barrica, quando entrei, como passei por muito preconceito, eu ia comendo de outras fontes, pra já chegar lá sabendo. Em vez de aprender só lá, como eles não queriam me ensinar, “não, tu é de fora, então eu não vou te ensinar, se tu quiser, tu olha, tu aprende”, eu ia por fora, eu ia na Liberdade, eu ia nos encontros que tinha no Reviver [o bairro da Praia Grande], eu participei dos primeiros Pungar, encontros de tambor de crioula, Leonardo [mestre de tambor de crioula] ainda vivo. Então a gente ia por esse caminho, observando, conversando com Zé Olhinho [mestre de bumba meu boi].
E no cenário nacional? Qual é o nome que chama tua atenção? [Marcos] Suzano, que hoje é meu amigo, Celsinho Silva, meu amigo também, fiz oficinas com eles, saí daqui, peguei meu ônibus, fui bater em Teresina, oficina com Suzano. Na linha do pandeiro eu digo que tenho umas cinco influências: Jorginho do Pandeiro, Celsinho Silva, Marcos Suzano, Bira Presidente [pandeirista do grupo Fundo de Quintal] e Jackson do Pandeiro. Fora também o estilo de tocar de pandeiro diferente aqui, do pessoal do Fuzileiros da Fuzarca [bloco carnavalesco da Madre Deus]. E influência assim que eu tenho da percussão geral, eu gosto muito do Gustavo di Dalva, que toca com Gilberto Gil, Leonardo Reis, são os grandes nomes de percussão mais ou menos nesse jeito que eu gosto de tocar. Por que tem várias linhas: tem o cara que é do axé, tem o cara que é do forró…
A gente sabe que a percussão é um mundo. Na falta de instrumentos, até numa mesa dessa aqui você vai fazer música. Em que instrumento você se sente mais à vontade? O que eu sinto mais à vontade são os instrumentos de percussão maranhense, por essa vivência toda que eu tive durante esses 15 anos lá dentro da Companhia [Barrica], eu colhi muito. Os próprios músicos, o próprio Zé Pretinho, o pessoal lá de frente da percussão, eles dizem que eu fui o único que soube pegar de lá e botar em outro lugar. Os instrumentos daqui, o pandeiro de couro, que eu estudei mais, e os instrumentos também de samba, que vem do tempo em que eu tocava cavaquinho.
Quais seriam esses instrumentos maranhenses? Zabumba, tamborito, pandeirão, tambor de crioula – a parelha, eu toco todos três –, vindo pro lado do carnaval, contratempo, retinta, particularmente todo instrumento maranhense eu toco. A própria caixa do divino, que é um instrumento tocado por mulheres, lá no Barrica quem tocava era eu.
Além de Barrica e Bicho Terra de que outros grupos você já participou? Quando eu saí, que eu decidi me profissionalizar, eu já toquei com quase tudo que é grupo de São Luís.
Mas como integrante? Como integrante praticamente só lá. Toquei em grupos de samba: toquei no Retoque, desde a época do cavaquinho eu tirava mais festa. Eu tava nesse processo: cavaquinho, percussão, nessa briga. Ou eu escolhia um ou outro. Podia chegar num ponto que eu não seria melhor em nenhum, eu seria mediano nos dois. Então eu decidi estudar.
E grupo de choro? Choro foi o seguinte: quando eu entrei na Escola eu vi o [Instrumental] Pixinguinha tocando e eu sempre me interessei. E eu tinha comigo que eu não sabia tocar pandeiro. Aí eu vi aquilo e disse: vou aprender isso aí. Comecei a estudar e o primeiro grupo de choro, formado, bonitinho, foi o Chorando Calado. Na época em que eu entrei, éramos eu, Jordani [percussão], Tiago [Souza,sax e clarinete], Wendell [Cosme,cavaquinho e bandolim] e João [Eudes, violão]. Depois Jordani saiu, ficamos só nós quatro.
Qual a importância do Chorando Calado pra você? A gente é uma família, nós quatro. Quatro irmãos. Através de muito estudo, muita repetição, ensaio, a gente conseguiu essa abertura no meio dos grupos grandes que já existiam aqui, de chorões. A gente recebeu, como éramos da Escola, muito apoio do Pixinguinha, a maioria eram nossos professores, botavam a gente pra tocar nos eventos lá. Às vezes a gente sabia só 10 músicas. Hoje quando a gente se junta, é só olhar um pro outro.
Mas o Chorando Calado nunca mais fez apresentações como Chorando Calado. O que está faltando? Tiago! Nós chegamos a botar outros, [os flautistas] Lee Fan, [João] Neto, até Zezé [Alves, Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 9 de junho de 2013], mas a gente decidiu não usar mais o nome. Até por que teve a história do Clube do Choro [Recebe] dar um tempo. Eu tenho esperança que volte, foi uma escola pra gente na época. Um projeto de suma importância, na época era o nosso palco. Ali que a gente começou a fazer nosso trabalho, a ter novidades no repertório.
Fora o Chorando Calado, você integrou outros grupos de choro? Eu já toquei com o Pixinguinha, um tempo em que o Nonatinho se afastou. Já toquei nOs Cinco Companheiros, com Osmar do Trombone [Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 23 de junho de 2013]. Essa vivência [no Clube do Choro Recebe] fez com que eu tivesse o prazer de hoje já ter tocado com praticamente todos os grupos de choro daqui.
Daqui a pouco quando você terminar essa entrevista, vai participar da gravação de um dvd [o show Justiça de Paz e Pão, em que servidores do Tribunal Regional do Trabalho no Maranhão interpretaram obras de compositores maranhenses]. De que discos você já participou? Já, bastante discos. [O compositor Luiz] Bulcão, [a cantora] Teresa Cantu, cds e dvds. Várias bases de bumba meu boi. [O cantor] Mano Borges é um trabalho constante, uma das pessoas que na época em que fui tentar me profissionalizar foram pessoas que me deram apoio, começaram a me injetar nas coisas, Oberdan [Oliveira, guitarrista], Antonio Paiva [contrabaixista]. Outra influência de que lembrei agora, que eu tive na infância, bastante grande, foi a Casinha da Roça. Eu cresci naquilo ali.
A gente percebe essa vivência, essa tua natureza da cultura popular do Maranhão em tua base percussiva. Como você percebe a relação da percussão da cultura popular do Maranhão com a prática do choro? É possível fazer esse encontro? Você acha interessante? É possível, é bastante interessante, até por que essa questão do ritmo maranhense não é valorizado pelo maranhense, mas quando a gente viaja, que dá uma volta por outros ares, é o diferencial. É o que tu chega, é o que tu mostra, e o pessoal fica de boca aberta.
Cabe no choro? Cabe. Inclusive a gente lá no Chorando Calado botava muito boi, bloco misturado com choro. Cabe. É uma célula a mais. O choro em si é um gênero, então ele agrega um monte de ritmos. Eu sou um admirador da cultura popular do Maranhão. Meu set up tem um monte de instrumentos de fora, mas tem os instrumentos daqui pelo meio. Eu não me esqueço de onde eu vim. O Barrica, pra mim, foi uma escola. Quando eu viajava, eu sempre ia conversar com músicos, ia atrás de informação, sempre fui bastante curioso.
O que é o choro para você? Tanto quanto é o bumba boi é uma influência musical muito grande. É visto com preconceito, como música de velho, mas na verdade é uma música muito difícil. Eu digo pra meus alunos: todos os que vão pra linha do choro se tornam bons músicos. Os compositores de choro são grandes mestres da música. O choro não tem música feia. Até as mais atuais, a qualidade é lá em cima.
Com toda essa vivência já demonstrada na seara da cultura popular, você se considera um chorão? Considero. Até meus amigos dizem que quando vai pro lado do choro eu sou meio ranzinza. Eles, “não, Wanderson, é por que tu é chorão” [risos]. Eu me considero. Eu ouço choro todo dia: Zé da Velha, Silvério Pontes, Tira-Poeira, Época de Ouro, Zé Nogueira. Eu escuto tudo, os tradicionais, os modernos. As músicas de choro que eu mais gosto vêm daquele tempo que eu tocava cavaco: gosto muito de Naquele Tempo, de Pixinguinha, Minhas mãos, meu cavaquinho, de Waldir [Azevedo]. É essa linha que eu gosto mesmo de escutar, de sentar pra escutar.
Você tocou no disco inédito de Joãozinho Ribeiro [Milhões de Uns, disco de estreia do compositor, gravado ao vivo no Teatro Arthur Azevedo, em novembro de 2012]. O que significou para você? Você vê o quanto o trabalho do maranhense é esquecido. Ali eram só composições antigas, só que totalmente atuais. Tem muita música ali que eu nem sonhava em tocar, são atuais, podem tocar em qualquer lugar. Foi uma experiência muito boa, os músicos, todo mundo voltado pro show. Eu já escutava muito [a música] Milhões de Uns, quando eu me vi naquele local tocando, era uma coisa que eu almejava fazer e hoje eu faço parte. Pessoas com quem eu nem sonhava tocar.
Sobre o show de lançamento de Lá, terceiro disco de Bruno Batista, ontem (30), no Teatro Arthur Azevedo
Foto: Maristela Sena
Pareceu descortesia, mas era intimidade, entrosamento. Primeiro entre ambos, e imediatamente entre eles e a plateia.
Bruno Batista subiu ao palco acompanhado da paulista Dandara Modesto sem apresentá-la de imediato. Atacaram de Batalhão de rosas, inédita dele, um belo bumba meu pop (ou pop meu boi).
O cenário, assinado por Cláudio Lima com base no caprichado projeto gráfico de Lá [2013], do piauiense Antonio Amaral, levava o público a se sentir à vontade, em casa, neste lugar musical que é o disco e ontem era Lá mesmo no Teatro Arthur Azevedo.
O compositor parece menos inibido no palco e está cantando melhor – não tivesse citado uma virose que lhe acometeu, não sem um quê de charme no aviso, nem se teria percebido a dificuldade para exercer o ofício no palco.
O repertório de Lá não foi tocado na íntegra, mas o show foi além, reinventando faixas de Eu não sei sofrer em inglês [2011], o disco anterior, e do próprio Lá: disco é disco, show é show.
Reinventar é a palavra certa: em participação especial, como de praxe em shows de Bruno Batista em São Luís, Claudio Lima deu a exata carga dramática necessária à interpretação de Do abraço. Dandara Modesto tornou o tango Tarantino, meu amor um rock abolerado. E arrepiou o público ao inserir uma tribo de índio em Rosa dos ventos, para citarmos duas que cantou sozinha.
Ao fim foi às lágrimas e quem viu sabe que não era jogo de cena. Elogiou o trabalho do parceiro de disco e palco, o incentivo, agradeceu o convite e revelou: “estou muito feliz em estar aqui. Antes de conhecer o Bruno eu já tinha uma vontade enorme de cantar neste teatro”. Ela ainda substituiu à altura Tulipa Ruiz – que divide os vocais com Bruno Batista na gravação do disco anterior – em Nossa paz.
Bruno Batista é uma espécie de ponte: se traz para o Maranhão a modernidade cosmopolita da São Paulo que hoje lhe abriga, leva para Lá os elementos de nossa cultura popular que acabam por influenciar seu fazer musical. Prova disso é que os músicos que o acompanharam e à Dandara Modesto no show de lançamento do disco estão bastante à vontade em bumba boi e tribo de índio e noutras influências confessas ma(i)s sutis.
E que banda! Ele trouxe à Ilha quase o time inteiro que lhe acompanhou no disco: Chico Valle (percussão), Guilherme Kastrup (bateria e percussão), André Bedurê (contrabaixo e guitarra), Rovilson Pascoal (guitarra, violão e cavaquinho) e Ricardo Prado (guitarra e piano).
Em Lá, o disco, Dandara Modesto canta em cinco faixas. No show demonstrou conhecimento do repertório inteiro de Bruno Batista, incluindo a inédita que apresentou e as músicas do disco anterior: As cigarras e Hilda Regina, além das já citadas. Sobre anjos e arraias ele cantou só, juntando-se à banda ao violão, que tocou em boa parte do show.
O casamento musical de Bruno Batista e Dandara Modesto é terreno fértil para a música brasileira: reafirma a força poética do compositor e revela o imenso talento de intérprete da cantora. Fosse eles não vacilava: um disco dela produzido (e composto, ao menos em parte) por ele já começa a tardar.
Eu queria revelar isso sem soar desrespeitoso com todos os outros instrumentistas que já entrevistamos e com aqueles que ainda entrevistaremos.
Turíbio Santos, violonista maranhense de consolidada carreira internacional, estaria em São Luís para um concerto por ocasião das comemorações de aniversário da cidade. Tocou com João Pedro Borges, 7 de setembro, véspera do aniversário, na Praça Maria Aragão, cartão postal da lavra de Niemeyer, no centro da Ilha.
Feita completamente sem recursos (os chororrepórteres tiram do bolso a gasolina e a cerveja e das famílias o tempo) a série não podia perder a oportunidade de entrevistar um dos maiores violonistas do mundo em todos os tempos.
Levei meu exemplar de Mentiras… ou não?, livro do músico, para catar o autógrafo. Saí de lá também com uma coletânea com que ele presenteou a chororreportagem. No show, ao procurá-lo para adquirir outros discos, comprei uns e ganhei mais outros e Turíbio esbanjou simpatia e elogiou o projeto e sua equipe, destacando a importância da Chorografia para a música, o jornalismo, a história do Maranhão.
Confesso que emudeci.
No sofá da sala da casa de João Pedro Borges, onde Turíbio estava hospedado, Ricarte conduziu quase a íntegra da entrevista. Arrisquei umas poucas perguntas. Rivanio, depois, quando comentei esse nervosismo diante do mestre, revelou: “é, vendo a cara de vocês dois, pareciam crianças com brinquedo novo”.
Revelado isso, à entrevista, pois.
[O Imparcial, 29 de setembro de 2013]
Maior responsável pela divulgação da obra de Heitor Villa-Lobos no mundo e um dos mais importantes violonistas brasileiros em todos os tempos, Turíbio Santos é o 16º. entrevistado da série Chorografia do Maranhão
Um dia um aluno perguntou-lhe desconfiado: “Professor, o senhor tem discos gravados?” “Devo ter gravado uns 25”, respondeu. “Mas, professor, eu não encontro nenhum disco seu nas lojas”, o aluno insistiu. Turíbio Santos também se aborrecia com aquilo e a história é ele mesmo quem conta na Abertura de Mentiras… ou não? – uma quase autobiografia [Jorge Zahar, 103 p.], livro que publicou em 2002. Adiante, no mesmo texto, o violonista se surpreenderia: estava errado o número, até responder ao aluno curioso ele já tinha lançado 35 discos. No final do livro uma discografia apresenta 54 títulos.
O músico esteve em São Luís por ocasião das festividades de 401 anos de São Luís, quando se apresentou ao lado de João Pedro Borges [Chorografia do Maranhão, O Imparcial, 14 de abril de 2013] na Praça Maria Aragão – a casa de Sinhô, onde Turíbio se hospedou, abrigou a entrevista. Vez por outra o anfitrião rememorava nomes e datas, num luxuoso auxílio à chororreportagem. Esta, aproveitando sua passagem pela Ilha, também lhe perguntou: quantos discos? O 16º. entrevistado da Chorografia do Maranhão não sabia dizer ao certo: 68 ou 70, ficou de conferir. Turíbio Santos parecia estar preparado para a conversa, em que os chororrepórteres pareciam ser apenas figurantes: suas falas, longos depoimentos, dispensavam quaisquer perguntas.
Se Heitor Villa-Lobos foi um dos fundadores da moderna música brasileira, unindo erudito e popular, Turíbio Santos é certamente o principal responsável pela divulgação mundo afora da obra do genial maestro – que ele conheceu pessoalmente. Um dos mais importantes violonistas brasileiros de todos os tempos, Turíbio Soares Santos nasceu em 7 de março de 1943, na Rua Pereira Rego (hoje Craveiros, continuação de São Pantaleão), no centro da capital maranhense. Filho da assistente social e psicanalista Neide Lobato Soares Santos e do administrador – “um burocrata” – Turíbio Soares Santos, cantor e violonista diletante – “um seresteiro” –, de quem herdou a paixão pelo violão e pela música.
Além de músico você tem outra profissão? Não. Quer dizer, eu tive várias ocupações, mas não profissão. Profissão minha, quando eu preencho profissão, profissão é músico. Mas eu dirigi o Museu Villa-Lobos durante 24 anos, fui professor da UFRJ durante 33 anos, morei fora do Brasil durante 20 anos, onde fui professor também, além de concertista, mas tudo sempre ligado à música.
Quando você percebeu que ia viver de música? Ainda criança? Como é que foi a entrada nesse universo? É o seguinte: a paixão pela música provavelmente foi inoculada por meu pai. Meu pai era aquele que domingo de manhã ouvia um programa de música brasileira, não sei em que rádio, provavelmente na Rádio Nacional, não sei também o nome do programa, mas seria tipo Hora da Saudade ou Serestas do Brasil. Algumas vezes ele ouvia ópera também dentro de casa. Ele tocava violão e cantava muito bem, era seresteiro. Antes de eu nascer, aqui no Maranhão, meu pai já tinha discos de [os violonistas] Andrés Segovia e Dilermando Reis. Quer dizer, aquilo fazia parte da casa, aquele som, o som do violão. A paixão pela música começou pelo som do violão, isso com certeza absoluta. Você vai guardando, no teu inconsciente tem uma gaveta onde você vai guardando alguns valores misteriosos que você só descobre aos 70 anos [gargalhada]. É pena, né? Mas se você descobrisse aos 10 anos acabava a mágica. Pelo menos alguma coisa você leva de bom fazendo 70 anos [risos], você descobre que esse som tava na gaveta desde aquela época.
Quando você começou a aprender a tocar, a mexer no violão? Nós nos mudamos pro Rio quando eu tinha três anos e meio. No Rio de Janeiro, quando eu tinha mais ou menos 10 anos, minhas duas irmãs mais velhas começaram a estudar violão. Elas já tocavam violão. Meu pai foi casado duas vezes, as duas irmãs do primeiro casamento, Lilá e Conceição, já cantavam e tocavam violão, influenciadas pelo pai. Arrumaram um professor chamado Molina. Isso é muito engraçado. Esse Molina era mecânico da aviação, boêmio. Eu ficava na moita, olhando as aulas, depois pegava o violão. Eu já tinha 12 anos e já tinha brincado muito com o violão. O Molina veio para a aula, eu fingi que estava tendo a primeira aula, ele dava as coisas e eu pram [imita o som das cordas do violão com a boca], matava de primeira [gargalhada]. Ele ficou impressionado e eu, moita. Terminou a aula, ele disse para minha mãe, “esse garoto é impressionante, eu ensino as coisas parece que ele já sabe”. E eu, moita, fiz o show até o final [risos]. Depois o Molina nunca mais apareceu lá em casa [gargalhada]. Aí elas foram estudar com o Chiquinho, um cara engraçadíssimo, aquele professor famoso, em Copacabana, o violão sempre debaixo do braço, careca. Ele tinha dois filhinhos pequenos, foi aluno de Dilermando Reis. Ele tinha competência no acompanhamento, no solo, tinha muito bom gosto, tinha um som parecido com o Dilermando, já familiar para mim por causa de meu pai. A aula dele era uma bagunça de tal ordem, que uma cena ficou para sempre na minha memória: eu tocando, e o Chiquinho de repente diz: “ô, Luzia, tira esses meninos daqui!” Eu levantei para ver o que estava acontecendo, aquela careca luzidia, os meninos tinham empurrado uma boia, ele estava dando aula com aquela boia enfiada na cabeça [risos]. O Chiquinho era muito divertido, mas tive pouco tempo aula com ele, uns três meses, aí eu galopei na aula, comecei a tocar coisas que nem ele tocava, saí à toda velocidade. Nessa época meu pai me levou pra ver um filme de Andrés Segovia, na embaixada americana. Eu tava com 12 anos. O filme eram vários artistas e aquelas duas aparições de Segóvia, tocando uma Sonatina de [o compositor espanhol Federico Moreno] Torroba e Variações sobre um tema de Mozart, de [o violonista espanhol Fernando] Sor, ficaram tão impregnadas na minha cabeça, foi um choque, um impacto tão alucinante, que eu nunca mais vi esse filme. Fui revê-lo 30 anos depois, já em vídeo, mas parecia que eu o tinha visto há cinco minutos, de tal maneira ele tinha entrado na cabeça. Essa noite para mim foi importantíssima. Quem fez aquilo foi a Associação Brasileira de Violão. Nessa noite estavam presentes [o violonista] Antonio Rebello, que viria a ser meu professor, [o compositor] Hermínio Bello de Carvalho, que foi quem me mostrou o mundo da música popular, e [o violonista] Jodacil Damasceno, que me mostrou o mundo da música clássica. Através de Hermínio eu conheci todos os grandes músicos, os grandes, grandes mesmo: Jacob do Bandolim, Pixinguinha. O Antonio Rebello me marcou muito como cidadão. Eu era ávido, com um ano e meio eu já estava correndo atrás da passagem de [o violonista uruguaio Oscar] Cáceres pelo Rio. Ele veio uma vez, depois veio outra, sempre a ABV. Esse capítulo é importante por que naquela época havia muita atividade voluntária na música. Eu sinto muita falta disso, sinto que houve uma perda e nós estamos ganhando de volta esse espírito. O que aconteceu? Eu vi mais tarde, na evolução da profissão, acabei dando meu primeiro concerto, por causa da dona Lilah Lisboa, na SCAM, Sociedade de Cultura Artística Maranhense.
Isso era que ano? Já foi em 1962. Ainda em 1962 eu fui tocar meu segundo concerto na SCAV, Sociedade de Cultura Artística de Vitória. Olha que interessante: a partir de 1964 houve uma coisa estatizante, onde as secretarias de cultura entraram e praticamente acabaram com essas sociedades. Por que virou aquela coisa estatal, de governo, “o governo vai fazer”. E o governo não fez droga nenhuma, só fez asfixiar e não colocou nada de volta. Agora acho que nós aprendemos muito com essa lição e há várias coisas renascendo, com a colaboração também de governos, com a colaboração estatal, mas não naquele sentido de vir de cima pra baixo, hoje todo mundo quer participar. Eu já tava de olho grande na profissão, não de ser violonista, mas eu queria saber o que era esse negócio de ser concertista. Eu peguei um ônibus e fui atrás do Oscar Cáceres. Eu ia pro DOPS [o Departamento da Ordem Política e Social, órgão repressor da ditadura militar brasileira], ficava esperando, aquela coisa do serviço público, o passaporte estava ali, “não, você volta amanhã”, amanhã “volta amanhã”, passei uma semana, o cara viu que eu não ia desistir, me deu o passaporte e eu, com a autorização de meu pai, me mandei de ônibus para o Paraguai. Até Montevidéu e de lá conviver com o Cáceres. Na época eu arrumei uma namorada no Rio Grande do Sul, então parava em Porto Alegre [risos]. Depois as coisas simplificaram mais ainda, que eu arrumei uma namorada em Montevidéu, a irmã do Cáceres [risos]. Ele vivia em condições muito modestas, já tinha estado na Europa, não deu certo. Eu pensei: bom, isso é o pior que pode acontecer? Então vai dar pra eu ser violonista. Ele toca o dia inteiro, tem os alunos dele, a mulher era pianista. Fiquei muito amigo deles. O Cáceres foi um professor que nunca me deu uma aula formal. Ele me deu todas as aulas possíveis me deixando estar perto dele. E eu era chato pra burro, eu era furão. Eu dizia pra ele, quando ele estava aqui no Rio, “eu posso ir ao seu hotel te olhar estudar?” Ele ficava sem graça, queria dizer não e eu chegava. Ele pensava, “puxa, lá vem aquele pentelho!”, eu sentava lá e ficava vendo-o estudar [risos]. Isso ele só me disse anos depois: “como você enchia o saco!” [risos]. Foram acontecendo as coisas no Rio. Um dia o Hermínio me levou pra fazer uma conferência, eu, Jodacil Damasceno, lá no MEC, pra Arminda Villa-Lobos. Ela me viu tocando, a Mindinha, uma pessoa fantástica. Outra pessoa que entrou na minha vida… ela me ouviu tocando e pediu para eu ir ao Museu. Conversando, ela disse “eu queria que você fizesse o primeiro disco do Museu”. Eu pensei que ela queria que eu gravasse um 78 rotações. “Eu quero que você grave os 12 estudos [para violão]”. Nove meses depois estava feito.
Esse disco foi o teu primeiro disco? E também o teu primeiro contato com a obra de Villa-Lobos ou já existia? Primeiro disco [O contato com a obra de Villa-Lobos], já existia há muito tempo. Logo, logo, quando eu vi Segovia, por conta própria pegava os Estudos, estudei com Cáceres, Rebello. Eu gravei esse disco e propus à gravadora fazer um disco com Cáceres: “você não quer gravar um disco com a gente?” e o dono da gravadora, a Caravelle, topou. Cáceres veio, fizemos um concerto no Rio, eu já estava com dois discos, agora eu tenho que pensar sério nessa brincadeira. Aí pensaram sério por mim e deram o golpe de Estado. O último dia que eu fui à universidade [Turíbio cursava Arquitetura] foi o dia 31 de março de 1964 [quando teve início a ditadura militar brasileira]. Não volto mais aqui, não vou perder meu tempo. Fiquei indignado, horrorizado. Eu procurei me informar qual era o grande concurso de violão que existia fora do Brasil. Aí eu descobri o concurso da Rádio e Televisão Francesa, a RTF, e me inscrevi nesse concurso. Eu fui pedir uma passagem no Itamaraty, era o Vasco Mariz [autor de Heitor Villa-Lobos, compositor brasileiro, de 1948] que estava no serviço de relações exteriores, ele pediu os documentos para ver que eu tinha sido classificado entre os cinco finalistas. Ele me deu a passagem ida e volta, eu fui e ganhei o concurso.
Você ficou quanto tempo em Paris? Fiquei 10 anos. Ao todo 20 anos, por que os outros 10 anos eu estava no Rio, mas a minha sede continuava lá.
Lá em Paris entre aulas e concertos, sempre. Aí começou toda uma mecânica. A rádio de um lado funcionando, o disquinho da Catedral e do Choros, o disco da Maria Aparecida [discos iniciais de Turíbio Santos], algumas conferências e recitais nas Juventudes Musicais Francesas. Aí um dia me telefona um cara da [gravadora] Musidisc Europe. “Olha só, a gente fez um levantamento aqui e o Richard Anthony gravou o Concierto de Aranjuez numa versão popular, Aranjuez, mon amour, vendeu milhões. Se a gente fizer com um jovem violonista desconhecido, a gente pode vender pelo menos uns 10 mil discos a preço popular. Então a gente pensou em você. A proposta é: a gente paga mil dólares a você, mas do outro lado do disco você grava o que você quiser, desde que seja espanhol” Aí ele perguntou: “você já tocou com orquestra?”, eu disse: “lógico!”, nunca tinha tocado [risos]. “Toca o Concierto de Aranjuez?”, “Todo dia” [risos]. Aí eu fiquei pensando, deve ser daqui a seis meses. “Ótimo, tá fechado, 15 de janeiro você grava”. Era 15 de dezembro. Cheguei em casa era o Concierto de Aranjuez pra o quarteirão inteiro se mudar, noite e dia. Pra completar eu tinha decidido que ia trazer o Cáceres pra Paris. Olha o círculo que se armou. Eu tinha um atelier d’artiste, era uma sala desse tamanho, um quartinho e a cozinha. Eles vieram, 30 de dezembro. Minha mulher, a Sandra, ficou doida, coitadinha. No dia em que eu fui gravar eu tinha febre de 40 graus. Gravamos o concerto, o regente não era grande coisa, a orquestra também não era grande coisa, mas não era uma vergonha. O disco vendeu 300 mil. A porta do mercado discográfico abriu pra mim. A Erato, a maior companhia de música clássica de lá, me ligou perguntando se eu queria gravar um disco de música espanhola pra Erato. Eu falei que não. “Como?” “Não, eu quero gravar pra Erato os 12 Estudos de Villa-Lobos”. “Mas Villa-Lobos não tem mercado aqui, você está novo”. “Ou isso ou nada”. Decisões fantásticas que você toma na vida. Vendeu feito batatinha. Os caras se empolgaram, “agora o segundo disco, agora é música espanhola, não é?” Eu falei “não, ainda não. Agora eu peguei o gostinho, eu quero fazer o Concerto para Violão e Orquestra, o Sexteto Místico e a Suíte Popular Brasileira”. “Mas é um investimento isso”. “Ué, não vendemos bem? Custa você arriscar?”. Meti o pé outra vez e outra vez arrebentamos a boca do balão. Botei o Cáceres dentro dessa editora, ele gravou discos solos, briguei com o produtor Roberto Vidal, que estava ganhando royalties escondido, eu não sabia, e em 18 anos gravei 18 discos para eles. Depois que a carreira pegou o embalo é que fui descobrir onde eu estava metido.
Sua carreira parece que chegou num momento em que cansou. É o primeiro capítulo desse livro [aponta para o exemplar de Mentiras… ou não? que autografou para um dos chororrepórteres]. Eu nunca tive intenção de ficar lá. Chegou um momento em que a gente [ele e Sandra Santos, sua esposa] pensou no que ia fazer. O primeiro filho, Ricardo, nasceu lá em 1970; depois nasceu uma menina, a Manuela, em 1972. Em 74 a gente decidiu: voltar para o Brasil. Por que a garotada vai pra escola no Brasil, pra saber como é o país. Se botar na escola aqui, nunca mais a gente volta. As facilidades sociais eram espetaculares. Esse conforto todo material de lá a gente preferiu trocar pela espontaneidade do Brasil, a alegria de poder criar no Brasil. Eu fiz algumas aventuras lá, algumas delas muito importantes. Eu comecei a ver o repertório do violão e descobri que tinha peça original de [ocompositor] Darius Milhaud que não tava gravada, tinha peça de [ocompositor] Henri Sauguet que nunca tinha sido tocada. Eu fui bater na Erato, depois de ter feito os discos que eles queriam, “vamos fazer um disco de música francesa”. “Não vamos fazer nada, você é louco!” Dessa vez eles tinham razão: o disco foi um fiasco comercial [risos]. Mas virou cult, foi um sucesso artístico que dura até hoje. Até no Brasil, de vez em quando tem um garoto que manda me pedir música.
Foto: Rivanio Almeida Santos
Voltando para o Brasil, você foi direto para a universidade? Como foi o retorno? O retorno ao Brasil ocorreu da seguinte maneira: em 1974 voltamos ao Brasil. 10 anos de França, dois filhos. E agora? Eu não avisei ninguém na Europa. Disse, no máximo: meu endereço por uns tempos passa a ser esse. Eu estava indo para Japão, Canadá, Estados Unidos, Austrália, Alemanha, não podia interromper esse movimento, tinha muita companhia, muito empresário envolvido. Mantive o movimento lá fora e as viagens começaram a doer na alma. Eu saía e passava 40 dias fora, voltava, passava 15 dias com as crianças na praia. Aquilo foi doendo na alma. Fiquei de 74 até 84 fazendo esse tipo de loucura. Em 1980 eu tive uma ruptura interna terrível. Eu estava desesperado, foi o único momento da minha vida em que pensei em suicídio. Eu fiquei entocado e aconteceu uma coisa maravilhosa. O Guilherme Figueiredo estava como presidente da Funarj [a então Fundação de Artes do Rio de Janeiro] e teve um grande entrevero entre ele e a direção da Sala Cecília Meireles. Um dia ele me liga e diz “Turíbio, eu preciso de sua ajuda. Você não pode falar com seus amigos compositores, quem pode assumir a direção?”. Eu consultei, ninguém podia. Ele me convidou. “Mas eu viajo direto”. “Eu te dou autorização para viajar, eu posso fazer isso”. Eu assumi detestando. Um dia aconteceu uma coisa: “ué, ele tá aí? Ele não vive viajando?”. A primeira universidade que me convidou para abrir a classe de violão foi a UFRJ, do outro lado da rua. Ao mesmo tempo o Guilherme também soube da história e o [professor] Luiz Paulo Sampaio veio da Unirio perguntando se eu não queria abrir também lá. “Olha, pessoal, é o seguinte, a ideia me fascina completamente, eu estou até aqui com esse negócio de viagem. Só que não pode ser assim de repente. Eu agora vou freando as coisas devagarzinho até conseguir sair com elegância de uma série de compromissos”, havia compromissos assumidos até três anos na frente.
Você falou detalhadamente de alguns discos feitos na Europa e na volta ao Brasil saíram dois discos, um pouco depois, que eu considero muito importantes: Valsas e Choros [1979] e Choros do Brasil [1977], de que participaram [os violonistas] João Pedro Borges e Raphael Rabello. Como foi o contato com Raphael? Qual era a data, João Pedro, em que a gente saiu pelo Brasil fazendo o Seis e Meia? [“76, 77”, responde João Pedro]. Nessa época eu tava procurando um violão sete cordas. Aí liguei pro Hermínio: “Você conhece algum bamba?” “Tem um garoto que tá começando, vou mandar aí pra tua casa”. Abri a porta tinha um molequinho, gorducho, sério pra burro, não ria nem por decreto. Sentei, “pega o violão aí”, ele destroçou o violão, e eu, “caramba, você é um ET!” [risos]. Mas não ria, seríssimo: Raphael Rabello. Aí nós saímos pra turnê com ele: João Pedro, Raphael, Jonas no cavaquinho, [a cantora] Alaíde Costa, [o flautista e clarinetista] Copinha e Chaplin na percussão. Percorremos o Brasil todo, João Pedro era o carrasco do Raphael. Ele acompanhava muito e João Pedro dizia: “você tem que solar, dominar como solista”. As pessoas viam a precocidade do Raphael, já ganhando dinheiro, acompanhando todo mundo. Tanto batemos que mais tarde quando ele encontrou Radamés [Gnattali, pianista e maestro], ele tava lendo bem música, conhecia o outro lado da música, não ficava só preso no acompanhamento, que ele fazia muito bem.
E como era sua relação com Radamés? Ótima! Eu conheci Radamés, mais uma vez, por causa do Hermínio. O Radamés fez uma série de estudos e o número 1 é dedicado a mim e eu nunca toquei. Aí um dia ele me telefonou, “ô, Turíbio, você nunca tocou o meu estudo? Que negócio é esse?”. “Ô, Radamés, eu gosto muito dos estudos, acho eles lindos, mas cada estudo é a cara do violonista que você dedicou, mas não é a sua cara. Eu ouvi os discos com Edu da Gaita, com seu sexteto, esse é o Radamés! Por que você não faz um negócio Radamés para o violão? Samba, bossa nova, choro…” “Deixa que eu vou fazer”. 15 dias depois tava pronto. Aí eu gravei pra Erato, publiquei na coleção Turíbio Santos, da [editora] Max Eschig, e fiz a estreia, meu circuito era Londres, Paris e trouxe tudo isso pra ele. Ele ficou felicíssimo. Chama-se Brasilianas 13, com bossa nova, samba bossa nova, a valsa e o choro e era a cara do Radamés. Aí ele ligou: “Vamos fazer outros?” [risos]. Fez outra e eu disse, “Radamés, está faltando uma literatura do Nordeste para violão”, aí ele fez uma pequena suíte com toada, frevo. Foi a última música que ele fez. Ele não morreu logo em seguida, mas foi a última música que ele conseguiu escrever e trabalhar.
Você saiu muito cedo do Maranhão, aos três anos e pouco de idade. Como é a relação com a terra natal? Fortíssima! Eu saí com três anos, mas meu pai vinha todas as férias, eu sempre vinha com ele. A Rua das Hortas eram só parentes e amigos. Infelizmente a maioria morreu.
De alguma forma isso influenciou tua música? Quando Fernando Bicudo estava dirigindo o teatro [Arthur Azevedo], ele me chamou para uma semana de reestreia e sugeriu: “por que você não compõe alguma coisa?”. Aí eu compus uma suíte chamada Teatro do Maranhão, que virou disco e depois virou concerto para violão e orquestra.
Teus discos hoje estão quase todos esgotados. O que se acha é para download na internet. O disco de violão, como todos os cds, eles fazem uma tiragem. Botam mil no mercado. A cabeça dos caras é o seguinte: se os mil venderem em uma semana, eles fazem mais mil. Mas se durar um mês eles não fazem mais. É uma loucura! Na Europa não se usava esse critério pavoroso de lucro, de ganância a qualquer preço. Ontem eu toquei na Academia Brasileira de Letras e tinham seis discos meus à venda. As companhias são tremendamente predadoras.
Como é a sua relação com tecnologia? É boa, eu acho a tecnologia ótima, contanto que ela não interfira na coisa interior que eu tenho. Que ela sirva!
Então você é a favor do download? Eu não compraria um disco meu hoje, tá tudo no youtube, com imagem, com tudo [risos]. Não tem como ser contra. A produção não consegue ser protegida defronte dessa máquina. Ela nivela por baixo. Havia uma seleção, bem ou mal, eu passei por várias seleções até chegar a fazer esses discos todos. De repente, esses discos todos sumiram. Hoje em dia qualquer garoto faz o seu disco em casa e bota na internet. É uma coisa aproximativa, com o som mais ou menos, e bota no youtube, é terra de ninguém. Eu mesmo, quando quero pesquisar alguma coisa a meu respeito, eu vou no youtube direto. É mais rápido eu achar lá do que na minha estante.
Uma das primeiras ocorrências é a execução do Choros nº. 1 [Heitor Villa-Lobos] com você e a Orquestra de Violões. Ah, é. Aquela é muito forte!
Falando em Villa-Lobos, como foi seu contato pessoal com ele? Eu só tive um contato com Villa-Lobos. Mas não podia ser melhor do que foi. Eu fiquei três horas sentado numa mesa com ele, ele falando da música dele para violão e da carreira dele toda. Foi em 1958, um ano antes dele morrer, no antigo Conservatório de Canto Orfeônico, no Rio. Na mesa estavam sentados Arminda Villa-Lobos, ele e Julieta, irmã da Arminda, e do lado de cá estavam Ademar Nóbrega, que veio a ser um biógrafo dele, eu e mais uma outra pessoa. Eu fui parar ali, com 15 anos de idade, por que havia um programa de rádio chamado Violão de ontem e de hoje, feito pelo Hermínio e pelo Jodacil, e eles não podiam ir. O Hermínio, como sempre visionário e memorialista, disse: “anota tudo o que ele disser, mesmo que você ache que não seja importante, um dia vai ser”. E eu fiz exatamente isso. Ele falou três horas, mostrou música, mostrou disco de Segóvia. Isso eu transformei num livrinho chamado Villa-Lobos e o violão, editado pelo Museu Villa-Lobos, com a revisão da própria Arminda, que estava lá.
Cantora esbanjou talento e simpatia, em comunhão com público que lotou o Teatro Arthur Azevedo
Fotosca: Zema Ribeiro
ZEMA RIBEIRO* ESPECIAL PARA O ALTERNATIVO
Tulipa Ruiz voltou à São Luís para um show no Teatro Arthur Azevedo, completamente lotado, terça-feira (13), pelo projeto MPB Petrobrás. A apresentação encerrava uma pequena turnê da cantora e compositora por diversas capitais do Nordeste.
A abertura ficou por conta da cantora Ticiana Valente, acompanhada pelo marido, Rodrigo Valente, ao teclado. Desfilou um repertório mais que óbvio: Carinhoso (Pixinguinha e João de Barro), Gente Humilde (Chico Buarque, Garoto e Vinicius de Moraes), Proposta (Roberto Carlos e Erasmo Carlos), Olha (Roberto Carlos), Gostoso demais (Dominguinhos e Nando Cordel), Brincar de viver (John Lucien e Guilherme Arantes) e Sá Marina (Tibério Gaspar e Antonio Adolfo) – as seis primeiras do repertório de Maria Bethânia.
No quinto número convidou a plateia – “quem sabe canta comigo essa música” –, na sexta dançou, dedicou sua apresentação a um sobrinho que estava nascendo – “quero que ele já venha ouvindo música boa” – e agradeceu a dedicação do marido – “meu companheiro de todas as horas”. Faltou pesquisa para garantir alguma liga com o show principal.
Tulipa subiu ao palco escoltada por Márcio Arantes (contrabaixo), Caio Lopes (bateria), Gustavo Ruiz (guitarra) e Luiz Chagas (guitarra), seu pai, ex-Isca de Polícia, mítica banda que acompanhou Itamar Assumpção.
Com dois discos lançados, Efêmera (2010) e Tudo tanto (2012), Tulipa não demorou a conquistar um seleto e fiel público no Brasil. É artista “nova”, talentosa, completa: desenhou a capa de seu disco de estreia, é compositora e cantora afinada, rara, dramática, de recursos extraordinários. Feito aquele craque que faz o que quer com a bola, colocando-a onde quer, ela faz o que quer com a voz, chegando – e fazendo a plateia chegar – a lugares nunca imaginados.
Tulipa canta para se/nos divertir: no palco sua entrega é total, tornando-se o personagem-título de uma música sua do primeiro disco: “Pedrinho parece comigo/ mas bem resolvido com sua nudez”. No palco Tulipa é livre feito um passarinho ou qualquer mortal comum sob o chuveiro – não à toa, a determinada altura do show, enrolou a toalha com que enxugava o suor nos cabelos e continuou fazendo o que sabe.
Profunda conhecedora do repertório, a maioria absoluta da plateia vibrava a cada introdução, cantando junto e aplaudindo freneticamente os agudos de Tulipa. Artista e seu público estavam em perfeita comunhão, num repertório que mesclou músicas de seus dois discos à inédita Megalomania (disponível para download em seu site), pedida em coro por boa parte dos presentes, séria candidata a hit com os dois pés no Pará do carimbó.
Para delírio da plateia não faltaram É, Ok (parceria com Gustavo Ruiz), Quando eu achar (idem), Pedrinho, Like this (com Ilhan Ersahin), Víbora (com Criolo, Caio Lopes, Gustavo Ruiz e Luiz Chagas), A ordem das árvores, Sushi (parceria com Luiz Chagas), Às vezes (Luiz Chagas), a única música do set não assinada por ela, Só sei dançar com você e Cada voz, não necessariamente nessa ordem e certamente com algum lapso do repórter que não fez anotações. No bis, Tulipa mandou ver Efêmera e repetiu a É com que abriu o show.
Esbanjando simpatia, Tulipa revelou-se emocionada em estar ali, elogiou a beleza do Teatro Arthur Azevedo, e brincou dizendo que ensaiaria uma ária para cantar quando voltasse – e soltou um agudo, para diversão de todos, inclusive de si mesma. A depender da empolgação e satisfação das quase 700 almas que a prestigiaram anteontem, esta noite não demorará a chegar.
Show de lançamento de Lá, seu terceiro disco de carreira, acontece dia 30 no Teatro Arthur Azevedo
Maranhense nascido em Pernambuco, hoje radicado em São Paulo depois da infância no Piauí e uma temporada carioca, talvez a geografia de Bruno Batista aponte os caminhos que o levaram a Lá [2013, R$ 25,00 em média], seu terceiro disco.
Lá é uma prova de que é possível fazer música pop, escancaradamente radiofônica, sem apelar para o fácil – considerando utopicamente o dial um território livre do “jabá”. Bruno Batista reprocessa, embora nem tudo seja percebido de imediato, maracatu, bumba meu boi, samba (que eletrifica, com o auxílio luxuoso de nomes de uma interessante cena paulista) e a canção de festival – com Rosa dos ventos, que fecha o disco, foi vencedor do Viva 400, em São Luís, em 2012; na ocasião a música foi interpretada por Cláudio Lima, seu parceiro de outras temporadas.
O artista mostra-se um compositor de fôlego – assina sozinho letra e música das 11 faixas do disco, o que já acontecia em Bruno Batista [2004] e Eu não sei sofrer em inglês [2011]. É um de nossos mais interessantes criadores, reprocessando influências dos locais por onde passou, sem soar óbvio nem negar a importância, para sua obra, de, entre outros, Naeno [compositor piauiense, seu tio], Tom Zé [há sutil citação de Solidão na faixa-título] e do cinema [o título original de Brilho eterno de uma mente sem lembranças é citado em Rosa dos Ventos], entre outras.
Incêndio, que abre o disco, avisa, de cara: “fiz das chamas o meu protetor/ pois jamais vai temer a fogueira/ quem nasceu pra ser tambor”. A faixa-título é um primor: o riff inicial avisa que é impossível esta música passar despercebida por qualquer ouvinte e logo se alia a uma poética sublime e um refrão chiclete, cujo resultado é um dos grandes momentos desta sua década de carreira, para figurar ao lado de Bonita e Tarantino, meu amor [faixas do disco anterior]: “Lá onde as bailarinas não têm medo/ lá onde a beleza dá no chão/ e os fantasmas dormem cedo/ (depois do ladrão)/ (…)/ Onde as dores são de areia/ e as sereias cantam nuas/ onde a chuva se penteia/ quando vai cair na rua/ (…)/ Lá onde a escuridão termina/ onde o açúcar tem mais gosto/ e a saudade é uma menina/ com os traços do teu rosto”.
Outra preciosidade é o samba elétrico Pois, Zé, dor de cotovelo que evoca o mestre maior do gênero, Lupicínio Rodrigues, à sua altura: “Agora que você foi embora/ quitei o flat com a penhora/ do teu amor que só me deu azar/ com garantia a toda prova/ comprei uma lua nova/ pra me iluminar/ Cortei o choro, o sal e o analista/ menos metal e mais sambista/ sigo outra pista e levo fé/ Pois Zé/ vivo a alegria a toda hora/ agora que você foi embora/ pra nunca mais/ se Deus quiser!”.
Também merecem destaque o belo projeto gráfico assinado pelo piauiense Antonio Amaral e o time de músicos escalado por Bruno Batista: André Bedurê (contrabaixo), Dandara Modesto (voz e vocais), Guilherme Kastrup (bateria e percussão), Ricardo Prado (contrabaixo e rhodes), Rodrigo Campos (guitarra e cavaquinho) e Rovilson Pascoal (guitarra), entre outros.
“Diga o que disser/ nada muda a maré de direção” [versos de Pois, Zé]: com Lá Bruno Batista (com)firma-se como um grande compositor, antenado ao moderno, sem perder o vínculo com suas tradições, com conteúdo, sem soar hermético.
Show – Lá será lançado em São Luís no próximo dia 30 de maio (sexta-feira), às 20h30min, em show no Teatro Arthur Azevedo (Rua do Sol, Centro). Os ingressos custam R$ 30,00 (plateia e frisa) e R$ 20,00 (camarote, balcão e galeria) e estão à venda no Bar do Léo (Vinhais), Livraria Poeme-se (Praia Grande), O Imparcial (Renascença) e bilheteria do TAA.
A cantora em sua entrada triunfal, inusitada e colorida
A lua cheia já enfeitava o céu quando a cantora surgiu ao longe, sentada numa carroça, batizada de Mironga de Madá (alusão a Mironga, de Paulo César Pinheiro, e Bisavó Madalena, parceria dele com Wilson das Neves, músicas do repertório do disco de estreia). O condutor do veículo, que percorreu a lateral da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, guiava o jumento a pé. Dali ela acenava aos fãs, que aguardavam sua subida ao palco após a apresentação do Cantinho do Choro, misto de grupo e projeto que vem ocupando já há algum tempo a praça Gonçalves Dias nos fins de tarde de sábado.
Por detrás do palco, todo enfeitado e florido como a carroça, a bela paisagem da Ponte do São Francisco por sobre a maré cheia e o outro lado da capital, a São Luís vertical, a cidade nova. Um amigo me perguntou quem estava bancando a festa. A vontade de fazer música, de formar plateias, de fazer a arte circular. Em termos de patrocínio, respondi-lhe, os bolsos da cantora e do marido, que assinava a direção geral do espetáculo.
Festejos na Praça, o show, ficou no fogo cruzado entre um evento gospel realizado na praça vizinha, a Maria Aragão, e os olhares enfezados dos convidados de um casamento que teria lugar dali a pouco na Igreja defronte – talvez reclamassem da falta de vagas no estacionamento, já que o espetáculo musical em si não atrapalharia padre, noivos e convidados.
Uma plateia expressiva formou-se para ver o espetáculo. Sem um centavo de patrocínio, seja do poder público ou da iniciativa privada, penso que os objetivos foram alcançados e era possível ver a alegria estampada nos rostos dos que deixavam a praça após conferir o resultado.
A cantora já havia afirmado que o lugar de seu show é na rua, é na praça. “Eu ficava incomodada, no Teatro [Arthur Azevedo, onde lançou o disco Festejos em shows 7 e 8 de março passado], de dançar sozinha, vendo as pessoas ali sentadinhas. Eu quero ver o povo dançando junto”, declarou. E viu. E gostou. E vai repetir a dose. Outras praças serão ocupadas ao longo de 2014, antes de ela partir para a turnê nacional, que incluirá o Rio de Janeiro em que o disco foi gravado e outras capitais.
Nas próximas paradas de Festejos na Praça espera-se que o poder público dialogue melhor, entre si e com a Igreja, quando necessário: em logradouros vizinhos não deve haver competição entre eventos, nem para que um atrapalhe o outro, nem para que os frequentadores de outro achem o seu mais importante que o um. Assim se constrói a tal diversidade cultural que adoramos arrotar por aí ao salientar as belezas e vantagens de nossa terra.
O show? Crianças e senhoras se divertiram dançando em frente ao palco, Alexandra Nicolas, escoltada por uma superbanda, mesclou músicas de seu disco de estreia a experimentos, coisas que gosta de ouvir e cantar, talvez (certamente?) já testando repertório para seu próximo disco. Destaque para a participação especial da filha Monique, no trava-língua Coco (Paulo César Pinheiro).
Se você, caro leitor, cara leitora, esteve na praça sábado passado (18), não pense em abandonar a turnê da cantora pela capital: os shows só serão iguais entre si no quesito qualidade. Paisagem, repertório e emoção, cada um, cada um. Quem não esteve, fique ligado: em breve divulgaremos a rota da Mironga de Madá, que carrega em si a própria festa.
“Ela era meio mãe, e dizia “tu vai estudar viola e tu vai estudar piano”, ela era quem dizia”. A afirmação é do flautista Zezé Alves, em seu depoimento à Chorografia do Maranhão [O Imparcial, 9 de junho de 2013]. O professor de música refere-se a Olga Mohana, ex-diretora da Escola de Música do Estado do Maranhão (EMEM).
A lembrança de Zezé traduz o carinho com que a professora, falecida hoje (6), era tratada por seus pares. Olga Mohana chegou a estudar canto na Universidade Federal da Bahia (UFBA), na década de 1950, mas seguindo os conselhos da mãe, que costumava dizer que “canto lírico não dá futuro pra ninguém no Maranhão”, foi parar na Faculdade de Serviço Social (da hoje Universidade Federal do Maranhão – UFMA), onde graduou-se em 1964, chegando a dar aulas e coordenar do Departamento de Serviço Social. Em paralelo, a paixão pela música: dava aulas de canto na EMEM.
Olga era irmã do padre João Mohana, outro nome fundamental para a música do Maranhão. Ela deixou um disco gravado, em que canta acompanhada da pianista cearense Mércia Pinto, professora da EMEM no período em que foi diretora (o governo biônico de João Castelo, entre 1979 e 1982). Também data deste período a gravação, ao vivo no Teatro Arthur Azevedo, do importante Missa de Antonio Rayol.
Olga Mohana tinha 80 anos e viveu os últimos dois com a saúde bastante debilitada, em decorrência de um AVC. Estava internada desde a última segunda-feira (4), na UDI, onde faleceu na manhã de hoje. O velório acontece a partir do meio dia na sala 4 da Pax União (Rua Grande, Diamante, próximo à Caixa d’Água). O sepultamento se dará às 17h, no Cemitério do Gavião (Madre Deus).
O blogue agradece as informações de Cândida Mohana e José Antonio (parentes da saudosa Olga, com quem conversei por telefone), Joel Jacintho (jornalista que me deu a notícia, via facebook) e Luiz Alexandre Raposo, por este perfil da professora no site da Academia Vianense de Letras (donde roubei informações e a foto que ilustra este post).
O projeto BR-135 encerrou em grande estilo sua temporada 2013. Ontem (17), o Teatro Arthur Azevedo completamente lotado foi palco de uma justa e merecida homenagem ao compositor João do Vale, o maranhense do século XX, que teria completado 80 anos no último 11 de outubro.
A casa certamente registrou um dos melhores públicos desta temporada, esta uma das marcas do projeto pilotado por Alê Muniz e Luciana Simões: por onde passa, o BR-135 leva um bom público.
Outra marca é justamente o diálogo permanente entre gerações, basta ver qualquer lista de convidados para cada edição do projeto, cujo saldo até aqui é positivo.
Nascido em Cururupu e radicado há mais de 30 anos em São Paulo, o cantor, compositor, instrumentista, ator e dançarino Tião Carvalho encarnou o homenageado: seguiu o emocionado roteiro de Andréa Oliveira – biógrafa de João do Vale – e cantou Minha história, Peba na pimenta, O canto da ema e A voz do povo.
O mestre de cerimônias tinha convidados. O roteiro musical fechou-se com Pé do lajeiro e De Teresina a São Luís, interpretadas por Djalma Chaves, Uricuri e Estrela miúda, por Milla Camões, Pisa na fulô e Na asa do vento, por Santacruz, e Carcará e Coroné Antonio Bento, pela banda Vinil do Avesso. Este texto talvez pareça burocrático. O show não o foi, fluindo espontaneamente, o entrosamento dos músicos, os convidados à vontade no palco, Tião Carvalho entre cantor e contador de causos, lembrando diversas passagens da vida e obra de João do Vale.
Se parece óbvia a seleção do repertório, privilegiando músicas por demais conhecidas do pedreirense, não o foram os arranjos, transformando xotes em reggaes – caso das interpretações de Santacruz – e rockificando o voo do Carcará.
Em geral não houve estranhamentos. Milla Camões, por exemplo, botou a plateia para cantar junto em Estrela miúda. A banda, um espetáculo à parte: Alisson Rodrigues (saxofone), Daniel Miranda (trombone), Hugo Carafunim (trompete), João Paulo (contrabaixo), João Simas (guitarra), Nataniel Assumpção (bateria) e Rui Mário (sanfona e teclado). Da plateia às galerias era possível ver, aqui e ali, entre sentados e em pé, muita gente arriscando uns passos, acompanhando a energia irradiada do palco.
O final apoteótico reuniu a todos – mais os anfitriões Alê Muniz (que havia subido ao palco para uma participação especial ao violão em Carcará) e Luciana Simões, além de membros da equipe de produção. Foram aproximadamente 1h30min de um show que deixa saudades – inclusive uma saudade temporária do projeto, que volta ano que vem, nos trazendo coisa boa, sabem Deus, Alê e Lu o quê.
Alê Muniz e Luciana Simões, o casal Criolina, foram bastante aplaudidos, sobretudo nas redes sociais – o que inclui este blogueiro –, pela aparição, competente e emocionante, sábado passado (12), no Som Brasil dedicado ao público infantil na Rede Globo.
Mas esta dupla merece aplausos por muito mais. Já há algum tempo eles capitaneiam, por exemplo, o projeto BR-135, iniciativa louvável, entre outras, por duas razões: primeiro, o fomento a uma cena autoral e de qualidade, a organização de artistas e o botar pra fazer, acabando com aquele chororô de “falta palco”, “ninguém me apoia”, “não tem plateia” etc., que por vezes acomete parte de nossa dita classe artística, sobretudo no campo musical – que contraditoriamente é o mais apoiado, se compararmos, por exemplo, com o povo do teatro ou das artes plásticas, para ficarmos em poucos exemplos, mas esta é outra discussão e este post não tem este objetivo; segundo, pela reverência ao que vem antes desta cena que o BR-135 – e o Criolina – ajuda(m) a consolidar.
Acertadíssimos os tributos já realizados aos 35 anos do disco Bandeira de Aço, o primeiro em maio passado no Teatro Arthur Azevedo, o segundo no último 6 de outubro, na Praça Nauro Machado, no encerramento da 7ª. Feira do Livro de São Luís (FeliS). E agora me vêm com essa: uma merecidíssima – perdoem aí os superlativos – homenagem ao nada menos que genial João do Vale, que teria completado 80 anos – e eu achando que seriam 79, gracias Andréa Oliveira, Benedita Freire e Wilson Marques! – no último 11 de outubro.
João do Vale 80 anos será o último show do BR-135 em 2013. O espetáculo acontecerá nesta quinta-feira (17), às 21h, no Teatro Arthur Azevedo, com a seguinte seleção escalada para atacar com o repertório do autor de Carcará e tantas outras pérolas: Tião Carvalho, Djalma Chaves, Milla Camões, Santacruz e a banda Vinil do Avesso. O primeiro, que em 2006 dedicou o álbum Tião Canta João [Por do Som] ao repertório do pedreirense, será o mestre de cerimônias. Os ingressos poderão ser trocados na bilheteria do teatro, na data do show, a partir das 14h, por um quilo de alimento não perecível.
Painel na Vila Palmeira batiza de João do Vale Tião Carvalho
Louvo a iniciativa. Eleito o maranhense do século XX entre o fim daquele e o início deste, João merece a lembrança e certamente aprovaria a homenagem. Ajuda a reparar erros como o do muro do Parque Folclórico da Vila Palmeira, órgão vinculado à Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão (Secma), onde se vê uma foto de Tião Carvalho e lê-se João do Vale logo abaixo. Ambos são artistas negros, nascidos no interior do Maranhão – Tião é de Cururupu – e inegavelmente talentosos. As semelhanças são muitas, mas nada que justifique o vacilo da oficialidade.
Original desde o batismo, o BR-135 pega emprestado o nome de nossa única via de entrada e saída por terra da Ilha. Que o casal Criolina continue trilhando-a e ajudando a construir outras pontes musicais.
Apresentações têm início nesta quinta-feira (5), em Imperatriz e vão até o dia 13, em São Luís. Turnê passará ainda por Brasília, Belém e Teresina
Josias Sobrinho e Chico Saldanha estão de malas prontas. Na bagagem, seus talentos. Acompanhados de Fleming Bastos (bateria), Jeca Jekovsky (percussão), Marcão (violão e guitarra), Mauro Travincas (contrabaixo), Robertinho Chinês (bandolim e cavaquinho), Rui Mário (sanfona e direção musical), a dupla leva o Circuito Dobrado Ressonante de Música a cinco cidades: Imperatriz (quinta-feira, 5, às 21h, no Teatro Ferreira Gullar, com participações especiais de Gildomar Marinho e Zeca Tocantins), Brasília (sexta-feira, 6, às 20h, no Teatro Silvio Barbatto – Sesc, com participação especial de Nilson Lima), Belém (terça-feira, 10, às 21h, no Teatro Waldemar Henrique, com participação especial de Ronaldo Silva), Teresina (quarta-feira, 11, às 21h, no Tempero de Iracema, com participação especial de Roraima) e São Luís (sexta-feira, 13, às 21h, no Teatro Arthur Azevedo, com participação especial do duo Criolina).
Os ingressos para todas as apresentações devem ser trocados nas respectivas bilheterias por um quilo de alimento não perecível.
No repertório, além de clássicos de suas lavras, a exemplo de Engenho de Flores e Dente de Ouro, de Josias, e Itamirim e Linha Puída, de Saldanha, comparecem também temas de Cesar Teixeira (Botequim), Sérgio Habibe (Ponteira), Zeca Baleiro (Boi de Haxixe) e Chagas (Se não existisse o sol), entre outras, além de obras autorais dos convidados especiais.
Abaixo, um texto que escrevi a pedido de Josias (não sei onde foi e/ou será usado, mas partilho acá com os poucos mas fieis leitores).
DOIS BARDOS NA ESTRADA
Os lagos da Baixada se encontram com os rios do Munim e atravessam o Estreito dos Mosquitos, inundando a Ilha capital, e de lá transbordam do Maranhão para o mundo.
“Eu quero ver a serpente acordar!”, gritaria outro compositor, certamente influenciado pelo transbordar, que não assusta por se tratar de música e talento, de Josias Sobrinho e Chico Saldanha.
Os meninos de Cajari e Rosário, há muito ludovicenses, dois dos mais extraordinários compositores de nossa música popular, que ainda precisam ser mais e mais conhecidos por aqui e lá fora.
Seus talentos inundarão plateias em Imperatriz, Brasília/DF, Belém/PA, Teresina/PI e São Luís, durante a pequena e ligeira turnê de Dobrado Ressonante, espetáculo que apresentam juntos já há algum tempo. Espécie de desdobramento de São três léguas, outros bois e muito mais, mítico show em que iniciaram a parceria (no palco), há cerca de 15 anos.
As histórias são muitas e o cofo de música é fundo e pesado. A estrada é longa e os amantes da boa música devem embarcar com estes meninos, senhores artistas!
Sobre show da turnê do Prêmio da Música Brasileira, ontem (18), no TAA, com Adriana Calcanhotto, Alexandra Nicolas, João Bosco, Roberta Sá, Zé Renato e Zélia Duncan
No tom do Tom, a música brasileira em comunhão
Um show como o apresentado ontem (18) no Teatro Arthur Azevedo, da turnê da 24ª. edição do Prêmio da Música Brasileira, não tem como não ser burocrático. No seguinte aspecto: um bom punhado de cantores e cantoras, juntos, celebrando a obra de um compositor, no caso, o “maestro soberano”, como bem compôs Chico Buarque, seu parceiro.
Digo isso por conhecer razoavelmente os trabalhos dos artistas que se apresentaram em São Luís ontem, Adriana Calcanhotto, Zé Renato, Roberta Sá, Alexandra Nicolas, Zélia Duncan e João Bosco, pela ordem de entrada no palco, e saber que, Tom Jobim, o homenageado desta edição, mesmo sendo uma referência fundamental em seus trabalhos, está em suas obras, mas não de maneira direta.
A meia dúzia conhece, admira e se inspira no legado jobiniano, embora não haja (ou haja poucas), por exemplo, regravações de Tom Jobim em seus discos (a estreia de João Bosco em disco foi divida com ele, em 1972, em disco brinde dO Pasquim, mas o então estreante interpretava Agnus sei, parceria sua com Aldir Blanc). Não que isso prejudique o show, embora lhes ajudassem os teleprompteres e o repertório óbvio. Ok, é difícil falar em “lado b” em se tratando de Jobim: Chega de saudade (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), Garota de Ipanema (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), Luiza (Tom Jobim), Águas de Março, (Tom Jobim), Lígia (Tom Jobim), Insensatez (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), Eu sei que vou te amar (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), Estrada do sol (Tom Jobim e Dolores Duran), Eu te amo (Tom Jobim e Chico Buarque) e Dindi (Tom Jobim e Aloysio de Oliveira), entre outras.
É claro que cada artista ensaiou e passou som acompanhado da superbanda que tinha como maestro Jacques Morelenbaum (violoncelo e arranjos), mas, fora o elemento surpresa, tudo transcorre dentro do esperado (e não estou falando em possíveis falhas técnicas, pois estas não foram convidadas ontem). Isto é, o mestre de cerimônias, o ator Murilo Rosa, chama ao palco a primeira artista, que sobe ao palco e desfila suas quatro músicas, depois volta o ator, que chama o próximo, que canta mais quatro músicas e assim sucessivamente.
Há momentos sublimes, seja por exemplo a participação de Zé Renato, de longe a melhor, em minha modesta opinião, seja quando a banda investia no solo de algum músico, todos extremamente hábeis, dando vazão à porção jazz bossa-novista.
Convidada local, Alexandra Nicolas interpretou Wave (Tom Jobim), demonstrando maturidade: cantou, dançou e circulou com graça entre os músicos esbanjando simpatia, em pé de igualdade com os demais. Vale (sem trocadilhos) o registro, já que ela não foi acometida de qualquer possível nervosismo (ou, se foi, bem soube disfarçá-lo) por, de repente, estar diante de artistas de sua admiração, consagrados nacionalmente etc.
Ainda sobre Alexandra Nicolas, cabem destacar dois pontos: o meio vácuo em que lhe deixou Murilo Rosa, provavelmente por desconhecimento ou despreparo, já que aos demais artistas reservou um cumprimento, incluindo, por vezes, beijos nas mãos das damas, e o sambalançar na medida (Roberta Sá, por exemplo, exagerou ao tentar sacudir o vestido, embora tenha sido simpática ao cumprimentar São Luís).
Exceção feita a vídeos exibidos na abertura, também não houve grandes falações sobre a Vale, que promove o evento (com dinheiro público, captado através da Lei de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura) que circulará por algumas cidades brasileiras, sobretudo em áreas afetadas por sua atividade mineradora milionária devastadora.
Momento de rara beleza e descontração foi o dueto de João Bosco e Zé Renato, quase ao fim do espetáculo, em Tereza da Praia (Tom Jobim e Billy Blanco), uma das canções mais graciosas da história da música brasileira. O show terminou com todos juntos, incluindo o neste momento dispensável Murilo Rosa, cantando Se todos fossem iguais a você (Tom Jobim e Vinicius de Moraes). Certamente não se referiam à porção nada pequena do público que não assistiu o espetáculo, preferindo passá-lo inteiro filmando ou fotografando com seus ipads, tablets, iphones, smartphones e que tais.