O choro de Rui Mário na emocionante primeira noite de Lençóis Jazz e Blues Festival 2025

Rui Mário e seu Quarteto, na abertura do Lençóis Jazz e Blues Festival 2025, ontem (21), no Teatro Sesc Napoleão Ewerton - foto: Zema Ribeiro
Rui Mário e seu Quarteto, na abertura do Lençóis Jazz e Blues Festival 2025, ontem (21), no Teatro Sesc Napoleão Ewerton – foto: Zema Ribeiro

Rui Mário chorou no palco. Pura emoção. Como a que fez sentir o público presente. Era a primeira vez dele ali, em um show solo, ele geralmente visto como músico acompanhante e diretor musical de um monte de artistas, como ele mesmo lembrou.

Ao lado de sua sanfona, seu nome figura em fichas técnicas de álbuns como “Shopping Brazil” (2004), de Cesar Teixeira, “Dente de ouro” (2005), de Josias Sobrinho, e “Olho de boi” (2009), de Gildomar Marinho, para citar poucos.

Acompanhado do irmão Tião Lima (zabumba) e do sobrinho Vinícius Lima (triângulo e pandeiro), o núcleo pé de serra de seu quarteto, mais o groove dos ensandecidos Dedé Valença (baixo) e Marcones Pinto (guitarra), Rui Mário (sanfona) fez um show vibrante, dançante (pena estarmos sentados nas poltronas de um teatro em vez de “numa sala de reboco” ou numa praça da cidade), num passeio entre os guarda-chuvas que se convencionaram chamar forró e jazz.

A base do repertório desfilado pelo quinteto foi o álbum “Baião de doido”, que Rui Mário lançou este ano. Começaram pela faixa-título e desafilaram um rosário de referências e reverências que passou por Seu Raimundinho (pai do sanfoneiro e patriarca de uma família de músicos, sei lá quantos trios de forró pé de serra é possível formar ao longo dos galhos de sua árvore genealógica) — “Frevo pro Seu Raimundinho” —, pela filha Maria Eduarda (muitos familiares do músico na plateia) — “Xote desencabulado” — e pelo colega de instrumento Eliézio — “Meu nobre Eliésio” —, outra figura fácil em fichas técnicas de discos da música popular brasileira produzida no Maranhão, ídolo e amigo “que vivia lá em casa, chegava às cinco da manhã, aí está meu pai que não me deixa mentir; aprendi muita coisa com ele”, lembrou Rui Mário.

A emoção de Rui Mário não era jogo de cena para conquistar plateia. Suas lágrimas, no entanto, não se confundiam com timidez: no papel de frontman, o artista estava à vontade, evocando um Jimi Hendrix (1942-1970) na desenvoltura: certamente o americano tocaria daquele jeito se tivesse nascido no Nordeste brasileiro e fosse sanfoneiro em vez de guitarrista. O maranhense só não usou os dentes para fazer soar seu fole.

No bloco dedicado a Hermeto Pascoal (1936-2025), homenageado da edição 2025 do Lençóis Jazz e Blues Festival, Rui Mário equilibrou-se entre a conhecidíssima “Bebê”, em inspirado arranjo, e uma menos óbvia, e tão interessante quanto, “Suíte Norte Sul Leste Oeste”.

“Eu sempre quis dizer isso”, Rui Mário agora ria, enquanto agradecia à produção do festival e anunciava sua saideira, incitando o público a pedir mais uma. “E agora, que não tem no repertório?”. Acompanhado apenas dos parentes, formando um dos trios de forró pé de serra possíveis na árvore genealógica de Seu Raimundinho, antes da foto de costas para o público, atacaram o “Toque de pife”, de Dominguinhos (1941-2013), outra referência fundamental para qualquer sanfoneiro. E a apresentação de ontem foi mais um atestado de que Rui Mário não é um sanfoneiro qualquer.

A noite de abertura da edição 2025 do Lençóis Jazz e Blues Festival aconteceu ontem (21) no Teatro Sesc Napoleão Ewerton. O primeiro show da noite foi do Tiago Fernandes Trio — ele ao violão sete cordas, mais Valdico Monteiro (percussão) e Victtor Sant’anna (bandolim) —, que se apresentou no hall do Condomínio Fecomércio, recepcionando o público. Um show sóbrio e elegante, que incluiu temas como “Canto de Ossanha” (Baden Powell e Vinícius de Moraes), “Samba do avião” (Tom Jobim) e “Boi de Catirina” (Ronaldo Mota).

A noite foi encerrada pelo Mark Lambert Trio, num passeio por rock, jazz e blues, entre temas de nomes como Al Green e Ray Charles (1930-2004), entre outros. O líder, cantor e guitarrista radicado há oito anos em São Paulo, conquistou a plateia de cara, quando se apresentou, brincando: “eu sou norte-americano, ninguém é perfeito”.

Ladeado por Glécio Nascimento (baixo) e Max Sallum (bateria), o uso de pedais de efeitos pelo guitarrista e pelo baixista — a quem Lambert se referiu muitas vezes ao longo da apresentação — faziam o power trio soar por vezes como a eletrônica dos alemães do Kraftwerk. Dançamos sentados.

A programação — inteiramente gratuita — do Lençóis Jazz e Blues Festival 2025 continua sexta-feira (24), às 20h, na Concha Acústica Reinaldo Faray (Lagoa da Jansen). As atrações são o bandolinista Wendell de La Salles, o Jayr Torres Quarteto e o mineiro Beto Guedes.

A etapa Barreirinhas acontece na Avenida Beira-Rio, dias 31 de outubro e 1º. de novembro, também a partir das 20h; na primeira noite por lá as atrações são Luciana Pinheiro, Vanessa Moreno e Arismar do Espírito Santo e Morgana Moreno; na noite de encerramento se apresentam o Jota P Quarteto, Alice Caymmi e os americanos JJ Thames & Prado Brothers Band.

A força do longevo Quinteto Violado, atualmente um sexteto, a rigor

O Quinteto Violado no palco do Teatro Sesc Napoleão Ewerton, ontem (15) - foto: Zema Ribeiro
O Quinteto Violado no palco do Teatro Sesc Napoleão Ewerton, ontem (15) – foto: Zema Ribeiro

Ver o Quinteto Violado ao vivo no palco é confirmar o que atestou Gilberto Gil há mais de 50 anos: eles fazem o free nordestino, abreviando e aludindo ao free jazz, a sonoridade encorpada do grupo com liberdade total para a improvisação e para aglutinar elementos da música popular, da música erudita e de folguedos da região nordestina, celebrada pelos seis músicos no espetáculo “Sertão”, apresentado ontem (15), em São Luís, no Teatro Sesc Napoleão Ewerton.

Não, você não leu errado (como um deles disse, ontem, durante o show: vocês não estão vendo errado): com o reforço do violeiro Waleson Queiros, um “viola heroe”, o Quinteto Violado é, atualmente, um sexteto, o que só reforça o groove de seu free.

Em entrevista exclusiva a este repórter, Marcelo Melo, voz e violão firmes aos 79 anos, ressaltou a disciplina como elemento fundamental para eles terem chegado onde chegaram. O cantor, compositor e violonista é o único remanescente da formação original, com o grupo tendo chegado aos 54 anos de estrada — há 10 não vinham à São Luís.

O grupo se completa com Dudu Alves (voz e teclado), Deri Santana (flauta), Sandro Lins (baixo) e Roberto Medeiros (voz e bateria). Em determinados pontos do espetáculo todos têm a oportunidade de exibir seu virtuosismo aos instrumentos. No bis, quase uma jam session, o improviso uniu temas que foram de “Baião” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) a “O trenzinho do caipira” (Heitor Villa-Lobos, Ferreira Gullar e Edu Lobo).

Elegantemente vestidos em roupas cujos tecidos bordados fazem referência ao gibão de couro tornado famoso por Lampião (1898-1938) e Luiz Gonzaga (1912-1989), os músicos estavam super à vontade no palco, entre o repertório, causos, histórias da trajetória e um depoimento gravado do segundo destacando a importância do Quinteto Violado para a música brasileira (o que também tinha me antecipado Marcelo Melo).

Além de Gonzaga — “Asa branca” (parceria com Humberto Teixeira), “A volta da Asa branca” (parceria com Zé Dantas) e “Acauã” (de Zé Dantas, sozinho) —, o repertório trouxe temas autorais — “Vaquejada” (Toinho Alves, Marcelo Melo e Luciano Pimentel), “Palavra acesa” (José Chagas e Fernando Filizola) —, além de nomes como Gilberto Gil — “Lamento sertanejo” (parceria com Dominguinhos) —, Milton Nascimento — “Notícias do Brasil (Os pássaros trazem”, parceria com Fernando Brant —, Alceu Valença — “Morena tropicana” (parceria com Vicente Barreto) —, e Paulo Diniz — “Pingos de amor” (parceria com Odibar) —, entre outros. A última antes do bis foi “Leão do Norte” (Lenine e Paulo César Pinheiro), uma espécie de síntese da nordestinidade.

Merece destaque também a menção ao paraibano Geraldo Vandré, cuja importância Marcelo Melo destacou, lembrando do encontro com o conterrâneo na França, quando ajudou-o a gravar “Das terras de benvirá” (1973), seu último álbum. “A ditadura militar não gostava de suas músicas e ele, como muitos intelectuais, foi obrigado a se exilar”, lembrou, para ouvir gritos de “sem anistia!” da plateia, e depois cantar “Pra não dizer que não falei as flores (Caminhando)” e “Disparada” (parceria com Théo de Barros).

Um espetáculo impecável que dá conta de reafirmar a importância da região Nordeste para a música e a cultura brasileiras, propósito de “Sertão” (que vai virar o próximo álbum do grupo), além da força do groove do free nordestino do Quinteto Violado. Vida longa!

O poder da música

O grupo SaGrama se apresentou sábado (27) em São Luís. Foto: Zema Ribeiro

Originalmente formado para um trabalho de uma disciplina no Conservatório de Música de Pernambuco, o SaGrama está há 28 anos em atividade e passou pela primeira vez por São Luís do Maranhão no último fim de semana.

Sérgio Campelo (flautas, arranjos e direção artística), Ingrid Guerra (flautas), Crisóstomo Santos (clarinete e clarone), Cláudio Moura (viola nordestina, violão, arranjos e codireção), Aristide Rosa (violão), João Pimenta (contrabaixo acústico), Antônio Barreto (marimba, vibrafone e percussão), Tarcísio Resende (percussão), Dannielly Yohanna (percussão) e Isaac Souza (percussão) fizeram duas apresentações impecáveis sábado passado (27) no Teatro Sesc Napoleão Ewerton.

A circulação que trouxe o SaGrama até a ilha, patrocinada pelo Instituto Cultural Vale, através da Lei Federal de Incentivo à Cultura, estava programada para 2020, mas foi adiada pela pandemia de covid-19. O grupo tornou-se nacionalmente conhecido ao assinar a trilha sonora de “O Auto da Compadecida”, filme/série de Guel Arraes baseado na obra de Ariano Suassuna (1927-2014).

Equilibrando-se na linha tênue entre música clássica e música popular, o grupo passeou por diversas fases de sua trajetória – sua discografia já inclui 10 álbuns, em apresentações marcadas pelo passeio por sua obra autoral, em que destacam-se as criações de Sérgio Campelo e Cláudio Moura, e de nomes como Dimas Sedícias (1930-2001) e Luiz Gonzaga (1912-1989).

A música do SaGrama tem uma carga dramatúrgica, com as notas musicais (que explicam a origem do nome do grupo) desenhando paisagens e evocando imagens e memórias. Quem ou/viu ao vivo a execução das peças da trilha sonora de “O Auto da Compadecida”, por exemplo, lembrou de cenas e personagens deste clássico do cinema nacional.

Mas a capacidade que o grupo tem de despertar a imaginação de seu público tem um quê de magia. Dois momentos da apresentação são ótimos exemplos disso. A suíte “Aspectos de Uma Feira” (Dimas Sedícias), que em três movimentos (“Alba”, “Ceguinha Jesuína” e “Maria, Maria, Mariá”) evoca o amanhecer em que uma feira vai se configurando no interior nordestino, com o barulho típico dos vendedores chamando a atenção para seus produtos (momento em que todos os integrantes do SaGrama cantam seus pregões), uma cega que canta pedindo esmolas (brilhantemente interpretada pela flautista Ingrid Guerra, com Cláudio Moura e Dannielly Yohanna depositando-lhe a caridade em sua cuia) e o ambiente dos repentistas e artistas de rua. E o “Boi Babá” (Dimas Sedícias), que além de demonstrar que o bumba meu boi está presente em outros lugares além do Maranhão, acompanha seu ciclo de nascimento, morte e ressurreição, no canto/aboio do percussionista Tarcísio Resende.

Antes da execução de “Boi Babá”, Campelo elogiou a beleza do bumba meu boi maranhense, falou da alegria de ter assistido à manifestação durante a passagem pela cidade e anunciou que o grupo cometeria a ousadia de tocar um boi em pleno Maranhão – o repertório do grupo passeou por cirandas, guerreiros, cocos, maracatus, baiões e frevos. Ao final da música, perguntou, modesto, para gargalhadas e aplausos da plateia: “presta?”.

Do repertório, é possível destacar ainda temas como “Eh! Luanda” (Capiba [1904-1997]) – um raro maracatu, de 1952, do compositor, mais conhecido por seus frevos – e “Palhaço Embriagado” (Sérgio Campelo), ambas do primeiro disco do grupo, lançado em 1998, além de “Mundo do Lua”, um pot-pourri que costura sucessos de Luiz Gonzaga, e “Vassourinhas” (Matias da Rocha/ Joana Batista Ramos), já no bis, encerrando a apresentação em alto astral, clima de carnaval e deixando um gosto de quero mais no público presente.

Na maior parte do espetáculo, manter-se sentado era um exercício difícil: aqui e acolá o espectador era transportado aos ciclos carnavalesco e junino pernambucanos, numa demonstração inequívoca do poder da música do SaGrama. Em setembro a circulação chega a Belém do Pará.

SaGrama celebra 25 anos (+2) com circulação musical e pedagógica

O grupo SaGrama. Foto: divulgação

[release]

Grupo pernambucano chega à São Luís este mês, com oficina e espetáculo musical em duas sessões

O grupo pernambucano SaGrama, um dos mais importantes da música instrumental brasileira em atividade, chega à São Luís nos próximos dias 26 e 27 de maio, em circulação originalmente programada para 2020 – quando completou 25 anos de atividade –, interrompida pela pandemia de covid-19.

A circulação inclui espetáculos musicais e atividade formativa, e é patrocinada pelo Instituto Cultural Vale, com incentivo do Ministério da Cultura (MinC), através da Lei Federal de Incentivo à Cultura, e apoio do Sesc Maranhão, Rádio Universidade e Rádio Timbira. A realização é da Atos Produções, Ministério da Cultura e Governo Federal – União e Reconstrução.

História – O SaGrama surgiu em 1995, por iniciativa do flautista e professor Sérgio Campelo, no Conservatório Pernambucano de Música. O grupo se equilibra na linha tênue entre a música erudita e a música popular, valorizando as tradições culturais nordestinas.

Em 1998 o grupo gravou a trilha sonora original da série/filme “O Auto da Compadecida”, de Guel Arraes, baseada na obra de Ariano Suassuna (1927-2014), veiculada pela Rede Globo. O SaGrama realizou diversas outras trilhas sonoras, dividiu palcos no Brasil e no exterior, com artistas como Alceu Valença, Antonio Nóbrega, Maestro Spok, Silvério Pessoa, Quinteto Violado e Elba Ramalho – cujo cd/dvd “Cordas, Gonzaga e Afins” (produzido por Sérgio Campelo e Tostão Queiroga), de 2015, venceu o 27º. Prêmio da Música Brasileira nas categorias melhor álbum e melhor cantora no ano seguinte e foi indicado ao Grammy latino na categoria Música de raízes em 2017.

Formação – O grupo tem 10 cds lançados, sendo o mais recente “Na Trilha de Uma Missão” (2022), com o cantor Gonzaga Leal, com canções baseadas na pesquisas das Missões Folclóricas (1938) do escritor e musicólogo Mário de Andrade (1893-1945). Atualmente o grupo é formado por Sérgio Campelo (flautas, arranjos e direção artística), Ingrid Guerra (flautas), Crisóstomo Santos (clarinete e clarone), Cláudio Moura (viola nordestina, violão, arranjos e codireção), Aristide Rosa (violão), João Pimenta (contrabaixo acústico), Antônio Barreto (marimba, vibrafone e percussão), Tarcísio Resende (percussão), Dannielly Yohanna (percussão) e Isaac Souza (percussão).

Programação em São Luís – Dia 26 de maio (sexta-feira), das 15h às 18h, o percussionista Tarcísio Resende ministra a oficina “O mundo da percussão reciclável”, no novo prédio do Curso de Música da Universidade Estadual do Maranhão (Uema, Rua da Palma, 316, Praia Grande).

Dia 27 (sábado), é a vez de o SaGrama fazer duas apresentações musicais, no Teatro Sesc Napoleão Ewerton (Condomínio Fecomércio, Av. dos Holandeses, qd. 24, s/nº, Jardim Renascença II): às 16h e às 20h. A primeira sessão é exclusiva para escolas públicas e instituições que trabalhem a inclusão social através da cultura; a segunda, aberta ao público, com o ingresso sendo trocado por um livro (para doação a bibliotecas comunitárias), a partir de duas horas antes do início do espetáculo.

Após a primeira sessão, integrantes do grupo conversam sobre ritmos nordestinos com a plateia (professores e alunos de escolas públicas e instituições que trabalhem com inclusão social através da música), permitindo um maior mergulho do público na obra do SaGrama e nos diversos ritmos tocados pelo grupo. Serão abordados ainda a trajetória, as fontes de referência e a diversidade e riqueza dos ritmos musicais do Nordeste brasileiro. A conversa é, obviamente, ilustrada musicalmente, para identificação e assimilação dos referidos ritmos – o encontro foi pensado como contrapartida social do projeto.

Serviço – SaGrama em São Luís

O quê: Oficina “O mundo da percussão reciclável”
Quem: Tarcísio Resende, percussionista do SaGrama
Quando: 26 de maio (sexta), das 15h às 18h
Onde: novo prédio do Curso de Música da Universidade Estadual do Maranhão (Uema, Rua da Palma, 316, Praia Grande).
Quanto: grátis

O quê: apresentações musicais
Quem: SaGrama
Quando: 27 de maio (sábado), às 16h e 20h
Onde: Teatro Sesc Napoleão Ewerton (Av. dos Holandeses, qd. 24, s/nº, Jardim Renascença II)
Quanto: primeira sessão gratuita (para escolas públicas e instituições que trabalhem a inclusão social através da cultura); segunda sessão, troca de ingresso por um livro (para doação a bibliotecas comunitárias) a partir de duas horas antes do início do espetáculo.

Patrocínio: Instituto Cultural Vale, com incentivo do Ministério da Cultura (MinC), através da Lei Federal de Incentivo à Cultura
Apoio: Sesc Maranhão, Rádio Universidade e Rádio Timbira
Realização: Atos Produções, Ministério da Cultura e Governo Federal – União e Reconstrução.

*

Ouça “Na Trilha de Uma Missão”, de SaGrama e Gonzaga Leal:

“Marte um” e um inédito protagonismo negro no cinema brasileiro

Eunice (Camilla Damião) e Deivinho (Cícero Lucas) em cena de “Marte um”. Frame. Reprodução

Sob a égide do governo neofascista de Jair Bolsonaro (embora isso não comece exatamente com ele), vivemos um período em que a ignorância (vizinha da maldade, como já cantava a Legião Urbana) é cultivada, incentivada e orgulhosamente exibida. É um período em que mais que não ser racista é necessário ser antirracista, embora a mente escravagista de boa parte dos brasileiros se encontre hoje respaldada por exemplos e instituições do governo federal e, por isso mesmo, mais que nunca é preciso combater esse tipo de ideia.

Em “Marte um”, o nome do miliciano que tomou de assalto o Palácio do Planalto, embalado por uma sórdida rede de mentiras com que se elegeu e governa, é a primeira coisa que ouvimos. Mas a eleição e o desgoverno do ex-capitão servem somente para localizar temporalmente os acontecimentos desta ficção que tende ao documentário. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência, os dizeres clássicos que alertam os espectadores a cada filme, traduzem o Brasil real, com sua máscara de cordialidade disfarçando o racismo veladamente vigente ainda.

A opção primeira do diretor e roteirista (negro) Gabriel Martins salta aos olhos, para racistas e antirracistas: a negritude tem protagonismo inédito no cinema nacional, com quase a totalidade do elenco do filme formada por negros, numa inversão da equação costumeira: quantos filmes e novelas já não assistimos (e nos acostumamos) em que negros e negras não passavam de subalternos entre a cozinha e, no máximo, o volante?

Tércia (Rejane Faria) e Wellington (Carlos Francisco) em cena de “Marte um”. Frame. Reprodução

A trama habilmente costurada se desenrola em situações corriqueiras, que poderiam acontecer na casa ou na vizinhança do resenhista, do/a leitor/a, em qualquer lugar do Brasil, a partir de uma típica família de classe média brasileira, formada por um casal heterossexual (Wellington, zelador de um condomínio de luxo, frequentador do Alcoólicos Anônimos, vivido por Carlos Francisco, e a diarista Tércia, personagem de Rejane Faria), pais de uma estudante de direito (a lésbica Eunice, interpretada por Camilla Damião, que, num gesto de afirmação, decide sair de casa e ir morar com a namorada) e um garoto (Deivinho, por Cícero Lucas), que joga bola de óculos, projetando o sonho do pai, enquanto o dele mesmo é tornar-se astrofísico – de onde vem o título do filme.

Longe de qualquer panfletarismo, “Marte um” é agradável de se ver, um dos grandes lançamentos cinematográficos brasileiros deste início de século, daqueles filmes em que o espectador não percebe o tempo passar, e sobretudo brasileiríssimo (no que isso tem de bom e ruim), entre traquinagens infantis, fanatismo por futebol (o ex-jogador uruguaio Sorín faz uma ponta, interpretando a si mesmo), churrasco e cerveja em festa de aniversário no quintal, os dilemas típicos de quem está deixando a adolescência e entrando na idade adulta, o fosso que separa a elite de seus serventes e a dificuldade do brasileiro médio em empatar as contas ao final do mês.

Detratores do cinema nacional e operadores da guerra ideológica travada pelo bolsonarismo no pouquíssimo que restou da estrutura voltada ao cinema e à cultura em geral, num governo que destruiu estruturas como o Ministério da Cultura (e sucateou a Ancine até não poder mais), devem torcer-lhe o nariz, pois o filme é de afirmação: da população negra enquanto sujeitos de direitos, das possibilidades que dignidade e cidadania garantem a estes mesmos sujeitos e da transformação social realizada pelas políticas de cotas, algo negado somente por cínicos, mal-intencionados em geral e gente intelectualmente desonesta que acredita que reconhecer isto signifique perder privilégios.

Gabriel Martins convida à reflexão ao cavoucar o dedo na ferida. “Marte um” levou o prêmio de melhor filme no júri popular do Festival de Gramado e é o primeiro filme dirigido por um cineasta negro a ser escolhido para representar o Brasil no Oscar.

“Marte um”. Cartaz. Reprodução

Serviço – O filme será exibido na sessão de abertura do 45º. Festival Guarnicê de Cinema, hoje (23), às 19h, no Teatro Sesc Napoleão Ewerton (Condomínio Fecomércio, Av. dos Holandeses, s/nº., Calhau). Os ingressos, gratuitos, podem ser retirados na bilheteria do teatro, sujeito à lotação do local.

Veja a programação completa do evento.

O racismo nosso de cada dia

Foto: Adeloya Magnoni. Divulgação
Foto: Adeloya Magnoni. Divulgação

​O título é um spoiler: Traga-me a cabeça de Lima Barreto trata realmente disso. A peça foi apresentada ontem (22), no Teatro ​​Sesc Napoleão Ewerton (Condomínio Fecomércio, Av. dos Holandeses, Jd. Renascença II), integrando a programação do projeto Palco Giratório.

Interpretado por Hilton Cobra, o monólogo da carioca Cia. dos Comuns, livremente baseado nos livros Diário íntimo e Cemitério dos vivos, obras póstumas de Lima Barreto, simula um julgamento do escritor pelo I Congresso Brasileiro de Eugenia, realizado em São Paulo, em 1935, pela Sociedade Brasileira de Eugenia, fundada por Renato Kehl, um racista que se supunha cientista. O ator em cena dialoga com áudios e textos projetados na tela, remontando falas do citado congresso e trechos de seus anais.

Ainda não se haviam completado 50 anos da abolição da escravidão no Brasil e as teses fundamentais do evento eram notoriamente racistas: defendiam abertamente a eliminação da população negra, quer pelo cruzamento de brasileiros com europeus (brancos), quer pela eliminação física de “degenerados” e “desgraçados”, para repetir aqui termos então usados.

Afonso Henriques de Lima Barreto, nascido exatos sete anos antes da abolição da escravidão no Brasil, autor de clássicos da literatura brasileira, entre os quais Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), Triste fim de Policarpo Quaresma (1911), Os bruzundangas (1923) e Clara dos Anjos (1948), era pobre, preto, louco e alcoólatra.

A peça contrasta o horror do racismo infelizmente ainda vigente com a força da negritude que ousou contrariar as previsões da época, de que em 70 anos já não existiriam negros no Brasil, opiniões saídas das mentes e bocas, tidas por eles mesmos como superiores, de gente como Monteiro Lobato e Nina Rodrigues.

Um trunfo da montagem é certa desconexão cronológica: Lima Barreto, falecido em 1922, é julgado num evento de 1935 e chega a narrar a morte do próprio pai, ocorrida três dias depois da sua, o que permite também à dramaturgia trazer para dentro da cena o racismo bolsonarista, destilado pelo presidente da república e por seus fiéis e ferozes seguidores e eleitores (os ainda não arrependidos). É triste, cruel e preocupante saber que somos governados por alguém que apoia, se não todas, a maioria absoluta das teses daquele deplorável evento.

Apesar da tragicidade, há um quê de comédia, por exemplo na fina ironia com que Machado de Assis é tratado: “certamente minha obra seria outra se em vez de álcool eu me nutrisse de chá de camomila”, diz Lima Barreto a certa altura. “E eu estaria batendo papo às cinco da tarde com o inacreditavelmente imortal Merval Pereira”, ironiza.

O jornalista e o presidente da república não são os únicos contemporâneos lembrados no texto. Para comprovar que o racismo no Brasil de 2019 é o mesmo de 1935, o Lima Barreto da Cia. dos Comuns lembra Marielle Franco e Anderson Gomes, além de crianças assassinadas pela necropolítica de Wilson Witzel. É a população negra e pobre que continua a ser exterminada cotidianamente. “Anotem o que estou lhes dizendo: Conceição Evaristo jamais chegará à Academia Brasileira de Letras”, vaticina.

Em vida e obra, em 1935 ou 2019, Lima Barreto (ainda) tem razão. Infelizmente.

As armas dos poetas

Foto: Zema Ribeiro

 

Se você é daqueles que acha poesia falada um troço chato, hermético, para iniciados, e ao ouvir a palavra sarau imagina gente com aqueles trejeitos forçados a dar ênfase neste ou naquele verso ao recitá-los, esqueça. Ou melhor, conheça o grupo Tatamirô de Poesia.

De Macapá/AP eles trouxeram à São Luís, na programação do 12º. Sesc Amazônia das Artes, o espetáculo Palavr(arma)dura, apresentado ontem (13), no Teatro Sesc Napoleão Ewerton. O trio se revela aos poucos, como a escrever verso a verso o longo poema sonoro em que a plateia mergulhará ao longo da apresentação.

Antes de entrarem, um por um, em cena, a parafernália no palco já chama a atenção. Por exemplo o meio manequim sobre o qual se sustenta um laptop. Seu figurino (assinado por Paulo e Ilce Rocha) evoca nossas raízes ancestrais africanas. Tudo faz sentido.

Suas vozes se misturam a instrumentos musicais inusitados, percussão eletrônica, bases eletrônicas, guitarra e efeitos. Há jogos de cena, recursos teatrais, mas eles mesmos afirmaram, em rápido bate-papo ao fim do espetáculo: ninguém ali é ator. Tudo está a serviço da palavra.

Palavras fortes, o repertório, entre autoral e de poemas clássicos, de forte conteúdo político, passam por Waly Salomão, Paulo Leminski, Matsuo Bashô, Alice Ruiz, Vladimir Maiakovski e muitos outros. A costura dos textos lembra mártires contemporâneos como Dorothy Stang e Marielle Franco. Presentes!

Herbert Emanuel e Adriana Abreu revezam-se entre vozes e instrumentos musicais diversos. Thamires Werneck sopra instrumentos nada convencionais, o didgeridoo e o morsing, de cano e madeira, espécies de grandes berrantes, numa sonoridade que evoca o Uakti – a instrumentista é o terço mineiro do grupo.

Entre loops, ruídos e sobreposições de vozes, eles dão o seu recado, vestidos de poesia, os versos as únicas armas dos poetas. E que armas potentes, ao menos para aqueles que estão dispostos a serem atingidos.

Serviço

Hoje (14), no Buriteco Café (Rua Portugal, Praia Grande), acontecem os recitais Mormaço – de Elizeu Braga (RO) – e Miolo de pote – de Lília Diniz (MA), às 18h30 e 19h30, respectivamente. Entrada franca. Programação completa no site do Sesc/MA.

Um teatro na contramão

 

Fotos: Ascom/Sesc/MA

Alvíssaras! Em concorrida solenidade o Sesc inaugurou ontem (7) o mais novo equipamento cultural de São Luís, como apregoou a campanha publicitária pendurada em outdoors e traseiras de ônibus: o Teatro Sesc Napoleão Ewerton, localizado no Condomínio Fecomércio/Sesc/Senac (Av. dos Holandeses).

Mais importante ainda: sua completa acessibilidade. Um bom percentual dos 245 lugares do teatro é reservada a pessoas obesas e há oito espaços para cadeiras de rodas, rampas de acesso, piso tátil e banheiro adaptado. Tudo o que foi apresentado ontem contou com tradução simultânea em libras e audiodescrição: das falas das autoridades do assim chamado Sistema S às apresentações musicais da Orquestra Filarmônica Sesc Musicar e da cantora Flávia Bittencourt – que, acompanhada do músico Carlos André (sanfona e bases eletrônicas), apresentou uma espécie de redução de Eletrobatuque, show que lançará em dvd em breve –, às intervenções teatrais, que homenagearam o falecido ex-presidente da Fecomércio que batiza o lugar e nomes como a atriz Apolônia Pinto e a escritora Maria Firmina dos Reis, entre outros.

Entre as autoridades presentes, os secretários municipais Marlon Botão (Cultura) e Socorro Araújo (Turismo) somaram-se a representantes da classe artística maranhense e servidores do Sesc – sobretudo de seu Departamento de Cultura – para prestigiar a inauguração, numa demonstração da importância que tem o Serviço Social do Comércio no fazer cultural do Brasil, configurando-se no mais importante organismo não estatal do país na área. Não à toa é comum ouvirmos referências ao Sesc de São Paulo, por exemplo, capitaneado pelo gigante Danilo Santos de Miranda, como uma espécie de “ministério da Cultura paralelo”.

“A Cultura no Sesc se caracteriza como ferramenta democrática de difusão de conhecimento possibilitando a educação transformadora da sociedade, por meio de projetos e ações voltados para as áreas de biblioteca, música, dança, teatro, circo, audiovisual, artes visuais e literatura objetivando a formação de seus diversos públicos”, diz um trecho da Apresentação, em folder distribuído aos presentes, ontem.

Há muito para se comemorar com a inauguração do Teatro Sesc Napoleão Ewerton, em São Luís. Inclusive pelo momento em que acontece, quando as ações culturais empreendidas pelo Sesc estão sob ameaça do governo federal recém-eleito – que nutre pouco ou nenhum apreço por diversas palavras(-chave) do parágrafo anterior –, sobre o que o próprio Miranda se manifestou em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo.

Só os projetos institucionais da entidade certamente já garantiriam ocupação qualificada do espaço inaugurado ontem, mas a pauta será aberta a agentes culturais em geral, observando-se os princípios que regem as ações do Sesc: atendimento a seu público prioritário (trabalhadores dos setores de comércio, serviços e turismo), mas não só, gratuidade ou ingressos a preços populares, entre outros.

Por falar em programação, ela já começa intensa: amanhã (9), às 18h30 a Klinger Trindade Cia./AM apresenta o espetáculo Pneumático [classificação indicativa: livre; duração: 60 minutos]; dia 10 (sábado), às 16h30, a Companhia Cambalhotas apresenta Os Saltimbancos [livre; 60 minutos], esta última integrando a programação da 13ª. Aldeia Sesc Guajajara de Artes.

Algo a ser comemorado não apenas por São Luís e seus artistas, que ganham um novo espaço, na contramão do que se desenha para o Brasil, com a dilapidação de instituições – o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro e a ventilada extinção do Ministério da Cultura, para ficarmos em apenas dois exemplos –, a inauguração do Teatro Sesc Napoleão Ewerton reafirma a importância e dá a real dimensão do quão imprescindível é o Sesc para a cultura brasileira.