Retrospectiva 2022

Balaio Cultural. Aos sábados, das 13h às 15h, na Rádio Timbira AM, com Gisa Franco e este blogueiro: Assis Medeiros, Almeida Marcus, Carlos Rennó, Bárbara Eugênia, Fred Zeroquatro (Mundo Livre S/A), Celso Borges, Carlos Careqa, Pedro Santos, Celia Catunda, Kiko Mistrorigo, Wado, Caetano Brasil, Carolinaa Sanches (Caburé Canela), Jaime Alem, Max Alvim, Fernando Salem, Otto, Angélica Freitas, Vitor Ramil, Péricles Cavalcanti, Gab Lara, Fi Bueno, Héloa, Ubiratã Trindade, Rodrigo Maranhão, Tatá Aeroplano, Maurício Pereira, Xico Sá, Simone Leitão, Luís Filipe de Lima, Pedro Luís, Yuri Queiroga, Zeca Baleiro, Vinícius Cantuária, Cláudio Lima, João Donato, Fernando Abreu, Lívia Mattos, Márcio Vasconcelos, João Cavalcanti, Cesar Teixeira, Rubi, Roberta Campos, Paulinho Moska, Thales Cavalcanti, Hélio Flanders (Vanguart), Lívia Nestrovski, Henrique Eisenmann, Arthur Nestrovski, Carlos Malta, Russo Passapusso, Patrícia Ahmaral, Otávio Rodrigues (Doctor Reggae), Zé Geraldo, Francis Rosa, Ligiana Costa, Bel Carvalho, José Miguel Wisnik, Erasmo Dibell (sábado que vem, 24) e BiD (31 de dezembro). Em 2023 tem muito mais!

Wado, lírico e político

Precariado. Capa. Reprodução

 

Um dos pilares da identidade musical brasileira, o samba é elemento central em Precariado [2018], disco novo do catarinense radicado alagoano Wado, o 10º. álbum de sua carreira, com 11 faixas inéditas, sucessor de Ivete [2016], disco em que flertava com a axé music. Não que seja um disco de samba, pura e simplesmente, ou que o samba lhe caiba como rótulo.

Mas samba com a pegada moderna e flerte com a eletrônica que pauta há algum tempo a sonoridade de Wado, que junta pontas de fi(li)ações que vão de Dorival Caymmi e Novos Baianos a Radiohead e Michael Jackson, entre outros, no campo da música.

No campo político, a principal referência é Noam Chomsky, filósofo e linguista norte-americano de cuja obra Wado pesca o título do disco: segundo o teórico, “precariado”, soma de precário e proletariado, é aquilo produzido no terceiro mundo com mão de obra barata dos trabalhadores em condições precárias para o consumo nos países desenvolvidos, algo evocado há 20 anos por Tom Zé – outra fi(li)ação do novelo de Wado –, em Com defeito de fabricação [1998].

Wado continua afiado e antenado, suas músicas combinando a dança e a reflexão, lírico e político. “É no raso que as águas se agitam”, diz a letra de Correntes comprimidas, com um violão puxado à bossa. “O esgoto deixou a grama verdinha/ apesar de sua podridão”, ironiza em A grama do esgoto, que abre o disco.

Precariado é disco agregador, que soma participações especiais – Kassin (em A grama do esgoto), Peartree e Tuyo (em Janelas), Baleia (em Bailar dos barcos), Morfina (em Roupa), Momo (em Tudo salta e Correntes comprimidas), Figueroas (em Quem dera) e Teago Oliveira (em Onda permanente) – a músicos que já estão na estrada com Wado há bastante tempo: Vitor Peixoto (guitarra, violão de nylon e voz), Dinho Zampier (teclados e voz), Igor Peixoto (baixo, guitarras, voz, violão e 909) e Rodrigo Sarmento “Peixe” (bateria, percussão e 909).

Com 17 anos de carreira, iniciada com O manifesto da arte periférica [2001], o Precariado de Wado mantém a sofisticação que marca seus trabalhos. O disco está disponível para download no site do artista, como toda sua discografia.

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Ouça Precariado:

Zeca, Baileiro

Há tempos digo e reafirmo: Zeca Baleiro é o maior trabalhador da música popular brasileira em atividade. Só este ano, já lançou o cd Era domingo, o dvd A viagem da família Zoró e o livro Quem tem medo de Curupira? [Companhia das Letrinhas, 2016, 80 p.; leia um trecho] – os dois últimos, respectivamente, videoclipes animados para 11 das 28 faixas do disco Zoró – Bichos esquisitos, que lançou há dois anos, e um livro com o texto da peça escrita para o grupo ludovicense de teatro amador Ganzola, no longínquo 1988, quando sequer tinha se mudado para São Paulo ou gravado seu disco de estreia [Por onde andará Stephen Fry?, 1997]. De temática infantil, dvd e livro foram lançados neste mês das crianças.

Justo no dia das crianças (12 de outubro) estreou, no Canal Brasil, sua mais nova empreitada: o programa Baile do Baleiro, que transita entre apresentações do maranhense com artistas convidados interpretando músicas autorais (dos convidados, no caso) ou alheias e os bastidores, em que aparecem o clima descontraído dos ensaios, os encontros de Zeca com as visitas e ligeiras entrevistas que ele faz com os mesmos, sobre suas referências e memórias musicais (e) afetivas.

O programa de tevê enquadra um formato de show que Baleiro apresenta há mais de uma década – quando passou pelo Maranhão teve como convidada a sambista Patativa, de quem ele viria a produzir Ninguém é melhor do que eu, seu disco de estreia.

Sem preconceito de estilo ou faixa etária participaram do primeiro programa a cantora Blubell e o soulman Hyldon, que fizeram bonito em músicas como o tango Bandido, dela, e as clássicas As dores do mundo e Na rua, na chuva, na fazenda (Casinha de sapê), ambas dele. Com ela, Baleiro dividiu Mamãe passou açúcar em mim (Wilson Simonal) – sozinho, ele abriu o programa com Segura esse samba, ogunhé (Osvaldo Nunes).

Cantadas sozinhas ou em dueto com o anfitrião, as músicas acabam convertendo-se em, além de festa, uma espécie de almanaque da música dançante (com inteligência) brasileira, a partir da revisitação a baús particulares e à grande tradição da canção popular, para usarmos termo parecido à justificativa da academia sueca em premiar Bob Dylan com o Nobel de Literatura – prêmio festejado tanto por Zeca Baleiro quanto pelo modesto repórter que ora lhes comenta seu novo programa.

Baile do Baleiro vai ao ar às quartas-feiras às 21h (horário de Brasília; hora local: 20h), com reprises aos sábados às 16h30 (no horário de verão) e às terças às 12h30 (idem). O segundo episódio, no próximo dia 19, terá como convidado Odair José. Em outros episódios Baleiro receberá ainda Edy Star, Guilherme Arantes, Jurema, Luiz Ayrão, Maria Alcina, Wado e Zizi Possi.

Veja o teaser do programa:

O axé político de Wado

Ivete. Capa. Reprodução
Ivete. Capa. Reprodução

 

Artista catarinense/alagoano remonta às origens do axé em Ivete, seu nono disco, recém lançado. Ele conversou com o blogue

Alagoano nascido em Santa Catarina Wado acaba de lançar o nono disco de sua carreira, descontada uma coletânea. O título, fina e ousada ironia, Ivete [independente, 2016]. Sim, uma homenagem a Ivete Sangalo, musa do axé, gênero a que o álbum presta uma espécie de tributo – ligeiro, o disco todo não tem 25 minutos.

São 15 anos de carreira desde a estreia com O manifesto da arte periférica [2001]. Ouvintes mais atentos – os que lhe acompanham a trajetória desde sempre – encontrarão links entre Ivete e Atlântico negro [2009], no som, na estética e no forte componente político dos álbuns – aliás, todos os álbuns de Wado estão disponíveis para download gratuito e legal em seu site.

Alabama (Wado e Thiago Silva), com seu “sangue nas folhas, sangue na raiz”, primeira música de trabalho do disco novo, remete ao açoite e linchamentos denunciados pelos versos de Abel Meeropol (sob o pseudônimo de Lewis Allan) em Strange fruit [1939] – o “fruto estranho” de que se apropria a letra, entre outros versos – gravada por, entre outras, Billie Holyday.

Acompanhado por Vitor Peixoto (guitarra e voz), Rodrigo Peixe (bateria), Dinho Zampier (teclado e programações), Bruno Rodrigues (contrabaixo), China Cunha (percussão) e Luciano Brandão (percussão), o axé de Wado (guitarra e voz) não soa estranho, isto é, não soa alheio ao conjunto de sua obra. Quer dizer: é axé, mas continua sendo Wado. Não tem “tira o pé do chão” ou “mexe a bunda para lá ou para cá”.

O axé de Wado, mesmo homenageando Ivete Sangalo no título do disco, remonta às origens do gênero, e seu tom de denúncia social, sobretudo contra o racismo e de exaltação à negritude, logo desvirtuado pela indústria, que fabricou ídolos tão descartáveis quanto despolitizados.

Em meio às 10 faixas do disco, releituras do hit Jesus é palestino (Carlinhos Brown, Gerônimo Santana e Alain Tavares), citada em meio a Terra santa (Jesus é palestino) (Wado, Junior Almeida e Dinho Zampier), Filhos de Gandhi, homenagem de Gilberto Gil ao bloco baiano de carnaval homônimo, e Um passo à frente (Moreno Veloso e Quito Ribeiro). As guitarras em profusão, desde o segundo inicial de Alabama, remetem ao Armandinho dos primeiros álbuns solo do também baiano Moraes Moreira, outra influência confessa.

Também desfilam parcerias por Ivete: Thiago Silva (Alabama e Sexo), Zeca Baleiro (em Mistério e Nós), Momo e Marcelo Camelo (em Você não vem, autores também de Samba de amor, sem Wado) e Beto Bryto (em Amanheceu). Sobre o disco, Wado conversou com exclusividade com Homem de vícios antigos.

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Foto: Alzir Lima/HollyShot

Wado, você foi um dos primeiros artistas, de qualquer geração, a disponibilizar seus discos para download gratuito, logo no lançamento. O que te levou a esta postura e a mantê-la?
Acho que a música tem de chegar nas pessoas. Acho que até agora há pouco, antes das plataformas de streaming, essa era a melhor forma de chegar nas pessoas. Dinheiro ganhamos nos shows.

Como surgiu a ideia de um disco sobre o universo do axé?
É uma coisa que faz parte da minha formação, ouvi muito isso em Maceió no meio dos anos oitenta. É meio que um axe utópico de dentro da minha cabeça, adoro a estética, os temas.

E o título, Ivete?
Ele é um lance bem humorado mas respeitoso. É como se fosse uma tentativa de ser ela, sabendo que não chegaremos nunca lá. Como é um disco de axé e ela é um ícone, achei divertido e corajoso o título.

Sua música não soa nem pretende fácil como o axé, digamos, comercial. Reside aí uma fina ironia. É de propósito?
Acho que é verdadeiro em tentar ser, mas, também, verdadeiro em ser consonante com as minhas coisas. Ele é axé respeitando o gênero e sou eu também.

O repertório tem um forte componente político, inclusive nas regravações de Jesus é palestino e Filhos de Gandhi, meio que como uma volta às origens do axé. O gênero foi desvirtuado pela indústria?
Acho que nos anos noventa ele foi pra uma coisa super pop, mas a cultura é assim volátil. É bom que seja, mas o nosso foi bastante inspirado no início do gênero.

Outra referência citada no texto que apresenta o disco em teu site são os primeiros discos solo de Moraes Moreira. Terá o axé nascido ali?
Eu também fico pensando isso. O Moraes é um mestre da música festiva do Brasil e nesse primeiro disco solo dele já tinha Armandinho na guitarra baiana.

É um disco de axé, mas é um disco de Wado, no sentido de isso poder ser percebido, de cara, na primeira audição do disco. Alabama, primeira música de trabalho, remete a Strange fruit, retomando o elo do gênero predominantemente baiano com questões raciais e sociais. De algum modo, se lembrarmos Atlântico negro, mas não só, o axé e a política sempre estiveram presentes em teu trabalho, não é?
Sim, você pegou bem. Esse é meio que um desdobramento do disco Atlântico negro.

Quanto dessa preocupação social deriva do fato de você ser jornalista?
Deve ter isso sim embutido, nós somos esponjas, né?

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Ouça Alabama:

Vão Wadeá!

Taí a capa de Samba 808, “o disco inexistente” que Wado acaba de botar na roda. O que signfiica dizer: acaba de disponibilizar em seu site para download. Prática do artista, um dos mais instigantes de nosso tempo: todos os discos dele podem ser baixados em sua página na internet.

Quem me avisou do “lançamento” foi, novamente, a leitoratenta Thayane, que me guiou ao Scream & Yell, que colou lá o pdf que está na pasta de download do disco. “Estar em selo/gravadora servia para distribuição e para dar visibilidade, visibilidade gravadora não tem dado e distribuição… Os caminhos na internet têm resolvido isso melhor” é das coisas que o alagoano nascido em Santa Catarina diz, no texto (leiam-no completo no Scream & Yell ou depois de baixar Samba 808).

O disco roda enquanto escrevo isso, que não é uma crítica, resenha ou coisa que o valha. É, como também disse Wado no citado texto/pdf: “Lançar ao mesmo tempo para o público e mídia foi nossa ideia, dando brechas para sorte e subvertendo as antigas prioridades do sistema de distribuição, que tinha como pré-requisito a aceitação da mídia e espaços comprados para a divulgação”.

Eu, que há tempos já não sei se sou público ou se sou mídia, se sou ambas as coisas ou se sou nada, a única certeza que tenho é que não sou pago, ao menos não para blogar, não poderia deixar de compartilhar o disco, e antes a informação, com os poucos-mas-fieis leitores deste modesto blogue. E digo: Wado é dos raros artistas que eu recomendaria acá mesmo sem ter ouvido o lançamento, confiando na qualidade e no nível de seus trabalhos anteriores, exatamente o que faço agora.

Bem, o disco acabou antes de eu terminar de escrever o post, é hora de apertar novamente o play, deixa eu ir lá. “De ser o Samba 808 tocado com uma máquina velha reutilizada” será meu caso? Queimei um cd-r e estou ouvindo-o e reouvindo-o num cd-player convencional. Play it again!