A VILA DOS SONETOS

Um dos projetos em que ora estou envolvido é o lançamento das Obras Completas de J. M. Cunha Santos. Como bem disse Luiz Pedro na orelha de “Odisséia dos Pivetes”, “Cunha é um dos Santos de minha devoção”. Grande poeta, amigo e ídolo. Transcrevo abaixo um capítulo de “Paquito, o Anjo Doido”, livro cuja leitura me impressiona até hoje. E para sempre. De doido, aquele anjo não tem nada. (Talvez nós tenhamos, poeta! Um abraço! E um brinde, claro!).

(como a mensagem é grande para os padrões do uol, quebrei em vários posts…)

Fiquem com Cunha!

 

A VILA DOS SONETOS

 

A Vila dos Sonetos é um lugar onde só cabe a morte, onde as pessoas gostariam de viver para sempre, tentando deter o que quer que já tenha tido um ar bonito, ou de amor. Aqui, a humanidade conclui o destino do verso; sofre sim, e vive disso, porque disso, de sentimentos retidos, de paixões quase siderais, constroem a angústia e a solidão responsáveis pela beleza de tudo que fazem. Paquito, sozinho, dentro do espaço, sente que poderia mudar o movimento dos planetas, sente-se alçado ao desejo supremo de ir além dos seus próprios desejos, em busca de não sabe o quê e, assim, deixa demorar suas lágrimas no céu, fazendo com os olhos, chover no mundo. Num repente começa a sentir coisas incompreensíveis, saudade… mas de quê?, angústia, paixões violentas, instantâneas e solidão. Ao invés de lágrimas, chora luz. Lá embaixo está a Vila dos Sonetos.

Uma cidade simples. Desce e, de pronto, nota o silêncio a sua volta. Dirige-se às pessoas tentando falar-lhes, fazendo perguntas, mas elas nada dizem, olham-no apenas e continuam paradas, os olhos fixos em nada que interesse. Alguma coisa lhe morde o peito: “de tão reprimidas, a maioria das pessoas já não sabe mais pensar e os poucos que pensam não conseguem concluir e os raros que concluem, já não podem decidir”.

Ele caminha, precisa encontrar os poetas desta terra por julgar que aos poetas, qualquer que seja a situação, sempre resta alguma coisa para dizer, embora doa. E, Paquito, a primeira pessoa que encontra e pode falar é um homem aos gritos, rolando pelo chão de um para outro lado, parecendo, claramente, sentir uma dor profunda, muito aguda. Seus olhos são vermelhos, sua pele intimamente pálida e Paquito parece compreender o que ele sente. Ao ver o anjo o homem pára e contempla. Paquito lhe indaga:

– O que sente, por que chora tanto e se contorce todo?

O homem responde em voz gutural:

DESCONHECIDO

 

Se é de dente, se é física ou d’alma

se é íngua, se é fígado, mazela

se é falta de paz, se é de calma

se é cancro, é ânsia, ou berinjela

 

se é saudade, é ressaca, ou é azia,

pólio, tifo, arteriosclerose,

desespero, venérea, distonia,

congestão, estupor, tuberculose

 

não direi, é voraz, vil, deprimente,

sanguessuga tenaz, aqui-ausente

se não sei, ou melhor, se não pressinto

 

o que faz esta dor mais inclemente

é senti-la assim tão profundamente

e, por fim, não saber o que é que eu sinto.

 

Depois de algum silêncio o homem voltou a gritar delirantemente. Paquito deixou-o ali mesmo, para encontrar, adiante, uma igreja de muitos séculos. Nela, um homem cantava seu soneto de amor preferido, falando para uma multidão de surdos-mudos:

TROCADILHO

 

A calçada da igreja, ela sabe

nosso sono cortado por assaltos

no furor da pobreza com que eu babe

desde o baixo-leblon até os altos

 

Desta ilha que fica sem seu olho

esquerdo, que são tu e algumas aves

a catar flor e febre enquanto encolho

 

e teus dedos desenham miseráveis

ou aprendem meus cancros sem motejo

ou suportam a querer, como querias

o etílico bafo do meu beijo

 

não vais ver São Luís por tantos dias

que se tu não vês as coisas que eu vejo

não vês tu que eu vejo só o que tu vias.

 

É neste lugar estranho, em meio a poetas que sabem dizer coisas tão bonitas, tão tristes e tão bonitas, que o anjo se sente quase desmaiar. Em frente, encontra o cemitério onde a única inscrição é uma imensa placa de bronze que parece convidar as pessoas a morarem no Campo Santo. Nesta placa, um soneto faz Paquito pensar como é maravilhoso este lugar. Escreveu assim o autor desconhecido:

CAMPO SANTO

 

De morte e vida falo com enfado

mesmo co’os lábios roxos deste vinho

porque um morto já quedou, parado,

enquanto um vivo se move sozinho.

 

Ora, são elas quase a mesma cousa

infanticídio lúgubre de gralhas

esfinges prévias, ínfimas mortalhas

de um urubu que em nosso corpo pousa.

 

Mas mesmo tendo esta semelhança

mais perecível a vida nos alcança

porque sem foices faz sua ferida.

 

Temes morrer? Por que? é a melhor sorte

o sofrimento que lhes causa a morte

nem chega aos pés do que me causa a vida.

 

Na saída de uma viela escura, Paquito depara com um poeta que parecia ter ficado louco. Enlouquecera porque, inclusive, jamais aceitara qualquer relação com uma mulher, mas também não era homossexual. Na verdade, toda sua vida fora dedicada a contemplar a lua. Apenas a ela amara e somente a ela fizera seus poemas, a mais nada nem a ninguém. E era assim, cantando que fazia valer a sua

DISCUSSÃO CIENTÍFICA

 

O homem nunca alcançou a lua

é minha amante, amor deste poeta,

houve um engano, ou é mentira sua

é minha musa e sideral esteta.

 

Tentaram, sim, roubar da serenata,

a moça rubra cujo coração

é do amante uma medida exata

e é do poeta uma fugaz paixão.

 

Mas se é destino, que destino reste

eu lá da lua vi pelo oeste

toda ciência evolando em aços

 

oh, não duvides, todo mal é este

quando eles vinham com os seus foguetes

eu fui embora com a lua nos braços!

 

E foi assim, ressentido com a imagem impossível deste amante que Paquito resolveu dar-se por vencido por tanta beleza. Naquela terra, onde poucos sabiam pensar, em meio a um povo mudo e estático, perdido entre os olhos mais esquisitos do mundo, olhos que não afirmavam nem negavam nada, o anjo ainda pôde ouvir o amante da lua chorar.

Paquito foi à prisão e lá deparou com um estranho personagem de três cabeças que tinham o mesmo rosto e, no entanto, expressões diferentes. A primeira era uma expressão triste, profundamente triste; a segunda tinha olhos ávidos de um alguém querendo saber tudo, mas revoltado consigo mesmo, com a obrigação de mentir e enganar a população para satisfazer os poderosos; a terceira era a expressão carregada de um homem entendido em leis. Ao ver o anjo, o homem pôs-se a girar em sua volta:

TRIPÉ

 

Do que quis ser, meu pai, sou quase nada

um bacharel em briga com a norma

um jornalista com as tintas paradas

e um poeta sem sonhos nem forma

 

Porque advogar pelos exploradores

ser jornalista escondendo os fatos

ou um poeta esbagaçando flores

é iniqüidade, é xila e desacato

 

São três denúncias que de mim enfronho

neste papel de luz de eternidade

qual mosqueteiro em céus enfadonhos

 

um advogado cujas leis deponho

um jornalista escondendo a verdade

e um poeta a sufocar seus sonhos.

 

Naquela mesma prisão, um lugar sujo e bolorento, cheirando a mofo e a medo, ocupada por celas imundas, sem banheiros, e onde os presos faziam suas necessidades físicas no mesmo lugar em que comiam, quando a fome não lhes obrigava a comer essas necessidades, Paquito encontrou um homem que fora preso por crime sexual. E ele falava sozinho e sempre a mesma coisa, como se para uma mulher que ninguém via, só ele, alisando-lhe os cabelos imaginários, beijando-lhe a boca impossível:

FLORES BRANCAS

 

Quanto mais eu desejo a flor que escondes

no jardim de cabelos desta praia

mais enfias a flor não sei por onde

mais oprimes a flor dentro da saia

 

Mais escondes a flor que eu desejo

e nem queres também, tu, flor de homem

ah! se unimos nossas flores num só beijo

serão só duas flores que se comem

 

Dá-me a flor, não reflete, dá-me agora

quer nas praças, escolas, cines, bondes

dá-me a flor, sem moral, dá-me sem pejo

 

que não entendo a razão dessa demora

quanto mais eu desejo a flor que escondes

mais escondes a flor que eu desejo.

 

Na cela seguinte um jovem preso por bigamia, por sua vez, imaginava duas mulheres em sua cela:

DE UM MODO ANTIGO

 

Ter um só coração é um defeito

para quem dois amores quer amar

como posso esconder em um só peito

dois divisos amores a queimar

 

Ter um só coração indefinido

dedicado, assim, a dois amores

é agir como um beija-flor perdido

a sugar, num só tempo, duas flores

 

é talvez a intriga mais singela

não sei mesmo, amor, qual a mais bela

entre as duas, por qual devo decidir

 

que só uma verdade me cancela:

se estou contigo, sofro de amor por ela

se estou com ela, sofro de amor por ti.

 

À frente é um homem que ri, gargalha, sentado em sua cela, como se fosse um trono e Paquito indaga-lhe como pode demonstrar tanta felicidade sabendo-se encarcerado pelo resto da vida:

INVERSÃO

 

Lentas fagulhas do céu encarnado

meu desespero não é fantasia

eu vejo a noite só enquanto é dia

eu falo apenas quando estou calado

 

Meu ideal sustenta-se de agruras

minha ternura é feita de pancadas

eu desço apenas quando subo escadas

e fico alegre em frente às amarguras

 

E mais que em mim eu penso no que faço

só me iludo com a realidade

se não me mudo a vida passo a passo

 

só me disperso diante do embaraço

e enquanto olho, cego, esta cidade

morro de rir, enquanto me desgraço.

 

Ao deixar a prisão Paquito vai pensando no poder dos corações tresloucados da Vila, presa de uma imensa vontade de libertar aquela gente, de uni-los em torno de sua luta pela inauguração de um novo homem. Lembra os pintores carcomidos, seus sonhos molhados de tinta, a perenidade de suas artes. Sobe os morros da cidade, volta a passar no cemitério, na igreja e pergunta a si mesmo que lugar é aquele, a Vila dos Sonetos, que momento exato da vida está vivendo, qual o século, que dia e, enquanto se prepara para regressar a Mirna, uma voz cheia de ecos, vinda não sabe de onde, lhe afirma:

Aqui, onde o instante soou

e a dor nos glorifica

não sei a hora e o meu coração fica

sem saber onde o tempo parou

 

Febril instante que a vida vasou

minuto estranho meu, depois de todos,

os minutos a pastar no lodo

hora nenhuma que o tempo marcou

 

A voz humana tudo eletrizou

n’algum relógio, alguma história braba.

Essa é a hora em que tudo passou?

 

Não sei ao certo – me sentenciou –

mas é aqui, oh! vil, que o tempo acaba

nesse instante o Nunca começou!

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