“Marte um” e um inédito protagonismo negro no cinema brasileiro

Eunice (Camilla Damião) e Deivinho (Cícero Lucas) em cena de “Marte um”. Frame. Reprodução

Sob a égide do governo neofascista de Jair Bolsonaro (embora isso não comece exatamente com ele), vivemos um período em que a ignorância (vizinha da maldade, como já cantava a Legião Urbana) é cultivada, incentivada e orgulhosamente exibida. É um período em que mais que não ser racista é necessário ser antirracista, embora a mente escravagista de boa parte dos brasileiros se encontre hoje respaldada por exemplos e instituições do governo federal e, por isso mesmo, mais que nunca é preciso combater esse tipo de ideia.

Em “Marte um”, o nome do miliciano que tomou de assalto o Palácio do Planalto, embalado por uma sórdida rede de mentiras com que se elegeu e governa, é a primeira coisa que ouvimos. Mas a eleição e o desgoverno do ex-capitão servem somente para localizar temporalmente os acontecimentos desta ficção que tende ao documentário. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência, os dizeres clássicos que alertam os espectadores a cada filme, traduzem o Brasil real, com sua máscara de cordialidade disfarçando o racismo veladamente vigente ainda.

A opção primeira do diretor e roteirista (negro) Gabriel Martins salta aos olhos, para racistas e antirracistas: a negritude tem protagonismo inédito no cinema nacional, com quase a totalidade do elenco do filme formada por negros, numa inversão da equação costumeira: quantos filmes e novelas já não assistimos (e nos acostumamos) em que negros e negras não passavam de subalternos entre a cozinha e, no máximo, o volante?

Tércia (Rejane Faria) e Wellington (Carlos Francisco) em cena de “Marte um”. Frame. Reprodução

A trama habilmente costurada se desenrola em situações corriqueiras, que poderiam acontecer na casa ou na vizinhança do resenhista, do/a leitor/a, em qualquer lugar do Brasil, a partir de uma típica família de classe média brasileira, formada por um casal heterossexual (Wellington, zelador de um condomínio de luxo, frequentador do Alcoólicos Anônimos, vivido por Carlos Francisco, e a diarista Tércia, personagem de Rejane Faria), pais de uma estudante de direito (a lésbica Eunice, interpretada por Camilla Damião, que, num gesto de afirmação, decide sair de casa e ir morar com a namorada) e um garoto (Deivinho, por Cícero Lucas), que joga bola de óculos, projetando o sonho do pai, enquanto o dele mesmo é tornar-se astrofísico – de onde vem o título do filme.

Longe de qualquer panfletarismo, “Marte um” é agradável de se ver, um dos grandes lançamentos cinematográficos brasileiros deste início de século, daqueles filmes em que o espectador não percebe o tempo passar, e sobretudo brasileiríssimo (no que isso tem de bom e ruim), entre traquinagens infantis, fanatismo por futebol (o ex-jogador uruguaio Sorín faz uma ponta, interpretando a si mesmo), churrasco e cerveja em festa de aniversário no quintal, os dilemas típicos de quem está deixando a adolescência e entrando na idade adulta, o fosso que separa a elite de seus serventes e a dificuldade do brasileiro médio em empatar as contas ao final do mês.

Detratores do cinema nacional e operadores da guerra ideológica travada pelo bolsonarismo no pouquíssimo que restou da estrutura voltada ao cinema e à cultura em geral, num governo que destruiu estruturas como o Ministério da Cultura (e sucateou a Ancine até não poder mais), devem torcer-lhe o nariz, pois o filme é de afirmação: da população negra enquanto sujeitos de direitos, das possibilidades que dignidade e cidadania garantem a estes mesmos sujeitos e da transformação social realizada pelas políticas de cotas, algo negado somente por cínicos, mal-intencionados em geral e gente intelectualmente desonesta que acredita que reconhecer isto signifique perder privilégios.

Gabriel Martins convida à reflexão ao cavoucar o dedo na ferida. “Marte um” levou o prêmio de melhor filme no júri popular do Festival de Gramado e é o primeiro filme dirigido por um cineasta negro a ser escolhido para representar o Brasil no Oscar.

“Marte um”. Cartaz. Reprodução

Serviço – O filme será exibido na sessão de abertura do 45º. Festival Guarnicê de Cinema, hoje (23), às 19h, no Teatro Sesc Napoleão Ewerton (Condomínio Fecomércio, Av. dos Holandeses, s/nº., Calhau). Os ingressos, gratuitos, podem ser retirados na bilheteria do teatro, sujeito à lotação do local.

Veja a programação completa do evento.

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