A “Divina Dádiva-Dívida” de Celsim (e João Camarero)

(OU: JORNALISTAS TAMBÉM SE EMOCIONAM)

Celsim (voz) e João Camarero (violão sete cordas). Foto: Pablo Saborido/Divulgação
Celsim (voz) e João Camarero (violão sete cordas). Foto: Pablo Saborido/Divulgação

Para quem perdeu ou quer verouvir de novo o Chorinhos e Chorões de domingo passado (18)

“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, nos ensina Caetano Veloso. E entre as dores e as delícias de trabalhar com jornalismo, e particularmente jornalismo cultural, certas coisas me comovem – nem vou me desculpar caso soe piegas, seria o mesmo que pedir desculpas pela sinceridade.

Uma dessas emoções recentes foi ter entrevistado o ator, cantor e  compositor Celsim (que está mudando de nome artístico após 30 anos assinando como Celso Sim), no Chorinhos e Chorões, da Rádio Universidade FM de domingo passado (18), com operação de Marcos Martins – problemas técnicos tiraram a Rádio Timbira do ar naquela manhã, onde o programa atualmente também é transmitido, em cadeia; na ocasião, substituí, a pedido dele mesmo, que teve uma viagem a trabalho, Ricarte Almeida Santos, titular absoluto do programa, há mais de 30 anos, a quem agradeço a preferência e confiança de sempre.

Admiro e acompanho como posso a trajetória de Celsim desde o final da década de 1990, quando comprei um exemplar usado de “Pedra Bruta” (que tenho até hoje), disco de Jorge Mautner gravado na Áustria entre 1991 e 1992, ano em que foi lançado, que marcava a estreia de Celsim. De lá para cá, foram vários discos, cada qual com sua particularidade, sempre aliando sua voz, uma das mais belas que já ouvimos no Brasil, a repertórios impecáveis.

O mais recente, mote da presença de Celsim no dominical Chorinhos e Chorões, é “Divina Dádiva-Dívida” (Selo Circus, 2022), que ele divide com João Camarero (violão sete cordas), inspirado tributo a Elizeth Cardoso (1920-1990), álbum que começou a ser gestado durante a pandemia de covid-19.

Em pouco mais de uma hora de programa – sorry, Paulo Pellegrini –, Celsim falou sobre a mudança de nome artístico, as parcerias com Camarero e Arthur Nestrovski, as importâncias de Elizeth Cardoso e João Gilberto em sua formação, a paixão por Batatinha (a cujo repertório dedicou “O Amor Entrou Como Um Raio”, de 2017), entre outros, destacando a síntese por trás do conceito traduzido no título de seu mais novo álbum: divina é Elizeth e o Brasil é a dádiva-dívida, tudo isso cerzido por um amor ao Brasil, que, afinal de contas, nos une, força-motriz de seu fazer artístico e de meu fazer jornalístico.

Para quem perdeu (ou quer verouvir de novo) o programa, assista a seguir.

De bônus, uma playlist com o repertório que eu planejava tocar (algumas acabaram ficando de fora, dado o limite de tempo).

Outro bônus é o Radiola Timbira do mesmo domingo, que também abro lembrando a entrevista de mais cedo, tocando faixas de “O Herói das Estrelas e A Anja Astronauta” (Selo Sesc, 2022), que Celsim dedica ao repertório de Jorge Mautner.

Quem sabe faz a hora

[release]

Marconi Rezende e convidados realizam show em prol da democracia

“Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, se tornou um hino contra a ditadura militar brasileira inaugurada pelo golpe de 1964. O clássico é lembrado até hoje em momentos de enfrentamento, por exemplo, greves de trabalhadores reivindicando direitos.

A canção dá título ao show que Marconi Rezende e convidados apresentam – “em prol da democracia”, frisa o artista anfitrião –, na próxima sexta-feira (30 de setembro), às 21h, no Soul Lounge (Av. Litorânea).

O show terá repertório autoral e clássicos da música popular brasileira, com especial atenção às chamadas canções de protesto, numa tomada de posição coletiva, pública e, sobretudo, musical.

Além de Marconi Rezende, sobem ao palco Emanuelle Paz, Joãozinho Ribeiro, Josias Sobrinho, Luciana Pinheiro, Milla Camões, Tássia Campos e Tutuca.

O cenário de autoritarismo e violência no Brasil de 2022 é bastante parecido com o da ditadura. E é contra essa barbárie que estes artistas irão cantar.

O couvert artístico custa apenas 20 reais e pode ser pago antecipadamente pelo pix (98) 99111-9493.

Divulgação

“Marte um” e um inédito protagonismo negro no cinema brasileiro

Eunice (Camilla Damião) e Deivinho (Cícero Lucas) em cena de “Marte um”. Frame. Reprodução

Sob a égide do governo neofascista de Jair Bolsonaro (embora isso não comece exatamente com ele), vivemos um período em que a ignorância (vizinha da maldade, como já cantava a Legião Urbana) é cultivada, incentivada e orgulhosamente exibida. É um período em que mais que não ser racista é necessário ser antirracista, embora a mente escravagista de boa parte dos brasileiros se encontre hoje respaldada por exemplos e instituições do governo federal e, por isso mesmo, mais que nunca é preciso combater esse tipo de ideia.

Em “Marte um”, o nome do miliciano que tomou de assalto o Palácio do Planalto, embalado por uma sórdida rede de mentiras com que se elegeu e governa, é a primeira coisa que ouvimos. Mas a eleição e o desgoverno do ex-capitão servem somente para localizar temporalmente os acontecimentos desta ficção que tende ao documentário. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência, os dizeres clássicos que alertam os espectadores a cada filme, traduzem o Brasil real, com sua máscara de cordialidade disfarçando o racismo veladamente vigente ainda.

A opção primeira do diretor e roteirista (negro) Gabriel Martins salta aos olhos, para racistas e antirracistas: a negritude tem protagonismo inédito no cinema nacional, com quase a totalidade do elenco do filme formada por negros, numa inversão da equação costumeira: quantos filmes e novelas já não assistimos (e nos acostumamos) em que negros e negras não passavam de subalternos entre a cozinha e, no máximo, o volante?

Tércia (Rejane Faria) e Wellington (Carlos Francisco) em cena de “Marte um”. Frame. Reprodução

A trama habilmente costurada se desenrola em situações corriqueiras, que poderiam acontecer na casa ou na vizinhança do resenhista, do/a leitor/a, em qualquer lugar do Brasil, a partir de uma típica família de classe média brasileira, formada por um casal heterossexual (Wellington, zelador de um condomínio de luxo, frequentador do Alcoólicos Anônimos, vivido por Carlos Francisco, e a diarista Tércia, personagem de Rejane Faria), pais de uma estudante de direito (a lésbica Eunice, interpretada por Camilla Damião, que, num gesto de afirmação, decide sair de casa e ir morar com a namorada) e um garoto (Deivinho, por Cícero Lucas), que joga bola de óculos, projetando o sonho do pai, enquanto o dele mesmo é tornar-se astrofísico – de onde vem o título do filme.

Longe de qualquer panfletarismo, “Marte um” é agradável de se ver, um dos grandes lançamentos cinematográficos brasileiros deste início de século, daqueles filmes em que o espectador não percebe o tempo passar, e sobretudo brasileiríssimo (no que isso tem de bom e ruim), entre traquinagens infantis, fanatismo por futebol (o ex-jogador uruguaio Sorín faz uma ponta, interpretando a si mesmo), churrasco e cerveja em festa de aniversário no quintal, os dilemas típicos de quem está deixando a adolescência e entrando na idade adulta, o fosso que separa a elite de seus serventes e a dificuldade do brasileiro médio em empatar as contas ao final do mês.

Detratores do cinema nacional e operadores da guerra ideológica travada pelo bolsonarismo no pouquíssimo que restou da estrutura voltada ao cinema e à cultura em geral, num governo que destruiu estruturas como o Ministério da Cultura (e sucateou a Ancine até não poder mais), devem torcer-lhe o nariz, pois o filme é de afirmação: da população negra enquanto sujeitos de direitos, das possibilidades que dignidade e cidadania garantem a estes mesmos sujeitos e da transformação social realizada pelas políticas de cotas, algo negado somente por cínicos, mal-intencionados em geral e gente intelectualmente desonesta que acredita que reconhecer isto signifique perder privilégios.

Gabriel Martins convida à reflexão ao cavoucar o dedo na ferida. “Marte um” levou o prêmio de melhor filme no júri popular do Festival de Gramado e é o primeiro filme dirigido por um cineasta negro a ser escolhido para representar o Brasil no Oscar.

“Marte um”. Cartaz. Reprodução

Serviço – O filme será exibido na sessão de abertura do 45º. Festival Guarnicê de Cinema, hoje (23), às 19h, no Teatro Sesc Napoleão Ewerton (Condomínio Fecomércio, Av. dos Holandeses, s/nº., Calhau). Os ingressos, gratuitos, podem ser retirados na bilheteria do teatro, sujeito à lotação do local.

Veja a programação completa do evento.

Jair já vai tarde

Foto: Zema Ribeiro

Jair Bolsonaro (PL) se elegeu e governou com mentiras. Conspurcou o Evangelho de Jesus Cristo segundo São João como slogan de campanha em 2018: conhecereis a verdade e a verdade vos libertará, repetia aos quatro ventos, mas uma vez no cargo, colocou seus crimes (e os dos filhos) sob sigilo de 100 anos.

Um dos traços do fascismo é acusar o outro do que você mesmo faz. Em 2018 Bolsonaro disse que o Brasil se tornaria uma Venezuela caso o vencedor do pleito fosse seu oponente, Fernando Haddad (PT), alçado à cabeça de chapa após a ilegítima prisão de Luís Inácio Lula da Silva (PT, que então liderava todas as pesquisas de intenção de voto), orquestrada pelo juiz parcial Sérgio Moro, em conluio com procuradores e a acusação. Mentira tem perna curta. E nariz comprido.

Em 2022, com o país de volta ao mapa da fome, o neofascista disse que é mentira que alguém passa fome no Brasil, que não se vê ninguém pedindo pão. O cruel Jair Bolsonaro vive em uma bolha, uma realidade paralela em que só se acredita no que querem ele e seus fanáticos seguidores.

Caminho e dirijo todos os dias pelas ruas da cidade em que moro e independentemente da rota e do tamanho do percurso, nunca antes na história deste país eu tinha visto as faixas de pedestres nos semáforos loteadas entre flanelinhas, malabares, imigrantes e famélicos em geral. A propósito, a foto que abre-ilustra este texto foi feita ontem, pouco depois de meio-dia, no Renascença, em São Luís.

A despeito de tudo isso, Bolsonaro manteve-se no poder, a peso de ouro, apesar da falta de decoro, das mentiras diuturnas e dos não poucos crimes cometidos em quase quatro anos de mandato. É asqueroso, canalha, cínico, covarde, deselegante, grosseiro, hipócrita, perverso, vil, “o impostor que com o posto não condiz”, como diz a letra da recém-lançada “Hino ao inominável”, de Carlos Rennó (com música de Chico Brown e Pedro Luís, gravada por 30 intérpretes antifascistas).

Presidente em férias permanentes, Bolsonaro parece enfim fazer seu último passeio pago com dinheiro público: foi passar e nos fazer passar vergonha à vista, no débito, no crédito (sob o sigilo do cartão corporativo) e no pix (que ele continua mentindo ter inventado) no funeral da rainha da Inglaterra e na ONU, transformados em palanques e comícios, com suas habituais mentiras e a claque de ignorantes a lhe bater palmas e gritar “mito!”.

Ainda bem que o pesadelo está chegando ao fim. Já não era sem tempo.

Rede Mandioca: agricultura familiar ganha força e cresce Maranhão adentro

Representantes de grupos e comunidades ao fim do encontro em São Luís, no último dia 28 de maio. Fotos: Acervo Cáritas Brasileira Regional Maranhão. Divulgação

Encontro realizado no último dia 28 de maio em São Luís reuniu representantes de grupos e comunidades filiados, avaliou o período de pandemia e focou na expansão da articulação

Representantes de 26 comunidades e grupos produtivos filiados à Rede Mandioca reuniram-se no último dia 28 de maio na Casa das Irmãs da Misericórdia (Rua Boa Esperança, 142, Cantinho do Céu), em São Luís. Os grupos são beneficiários do Fundo de Crédito Rotativo Solidário da Rede Mandioca, articulação assessorada pela Cáritas Brasileira Regional Maranhão, com apoio da Fundação Interamericana (IAF, na sigla em inglês). A atividade contou também com a presença do professor Marcelo Carneiro, do departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), e de estudantes de uma pesquisa interinstitucional coordenada por ele em parceria com a Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) junto a agricultores familiares.

Na análise de conjuntura que realizou durante o encontro, Carneiro destacou uma série de retrocessos a partir da deposição de Dilma Rousseff em 2016 e comparou o quadro atual com a luta camponesa pela terra na década de 1980, um dos períodos mais sangrentos no campo brasileiro, embora o Maranhão seja o estado com o maior número de assentamentos da reforma agrária; por outro lado, o Brasil voltou ao mapa da fome.

“Existe uma grande lacuna de estudos sobre a cultura da mandioca e uma visão muito preconceituosa, como se a agricultura familiar maranhense plantasse mandioca como há 40 anos. A pesquisa nasce dessa preocupação, de a gente ter uma visão mais atualizada sobre as formas como os agricultores têm trabalhado, não só a produção, mas o beneficiamento e a comercialização. O segundo aspecto é que o Maranhão é um estado muito diverso e a mandioca é a atividade por excelência da agricultura camponesa. Mas ela se articula de forma diferente no sul do Maranhão, na Baixada, nos Lençóis, nos Cocais, e como a Rede Mandioca tem essa capilaridade, a gente entrou em contato com a coordenação da Rede e da Cáritas, e apresentamos para um edital da Fapema [a Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão]. É uma pesquisa interinstitucional, UEMA, UFMA São Luís e UFMA Bacabal. A gente tinha a previsão de iniciar antes da pandemia. Quando a pandemia aconteceu, como essa pesquisa implica o deslocamento para cerca de 25 municípios em todo o estado, com entrevistas, aplicação de questionários, fotografias, ela não podia ser feita no contexto da pandemia. A Fapema foi sensível e aprovou a prorrogação, então estamos retomando agora os contatos para desenvolver essa pesquisa. A gente fez uma primeira versão do questionário com a coordenação da Rede Mandioca. A gente perguntou: o que vocês querem saber sobre os produtores? Porque tem uma dimensão da pesquisa do ponto de vista mais sociológico, mas a coordenação colocou uma série de questões importantes do ponto de vista de conhecer os diferentes grupos, conhecer os obstáculos, os desafios que eles enfrentam; com a pandemia, nós vamos voltar para rediscutir esse questionário; talvez surja aí um capítulo referente a impactos da covid”, explicou Marcelo Carneiro.

“Agora mesmo está se discutindo a questão dos fundos rotativos, a coordenação da Rede vai ter um conjunto de informações sobre os grupos que ela apoia, que inclusive pode ajudar na negociação no desenvolvimento de políticas públicas. Por exemplo: o Governo do Estado abriu mais de 100 restaurantes populares, mas esses restaurantes populares adquirem produtos da agricultura familiar? Um dado do censo agropecuário de 2017 que chamou muito a atenção é o seguinte: a agricultura familiar aumentou muito o gasto dela em relação, por exemplo, a energia elétrica. Se a gente notar que isso é um custo grande para os produtores, pode se pensar em algum tipo de política pública que ajude nesse custo. Nós queremos saber também sobre variedades de mandioca, irrigação, que também implica num custo com eletricidade. Enfim, tem uma série de informações, que uma vez a gente de posse delas, pode municiar a Rede para que ela possa negociar políticas públicas, discutir com diferentes agentes do Estado para potencializar essa produção”, continuou.

O clima era de retomada: mesmo que os grupos, em geral, não tenham interrompido a produção, momentos como o daquele sábado haviam acontecido muito raramente ao longo dos últimos dois anos, quando a pandemia de covid-19 impediu a realização de reuniões presenciais. Foram avaliados temas como as sequelas sociais da pandemia, para além das mais de 660 mil vidas perdidas para o coronavírus até aqui, a carestia, o avanço do latifúndio, o recrudescimento da pistolagem, o aumento dos índices de consumo de entorpecentes, a grilagem de terras, o envenenamento das águas e do solo, a perda de direitos, o avanço do armamento e dos índices de trabalho escravo.

“Esses dois anos de pandemia não foram fáceis. Foram dois anos de muitas dificuldades, até por que as pessoas não tinham como se envolver um com o outro. Para nós que trabalhamos na agricultura ficou muito difícil. A gente não podia se juntar para trabalhar, para desenvolver nossas atividades. Mas nós tivemos a graça de ter o projeto da IAF, com o projeto a gente foi se sustentando. A gente nem esperava que a pandemia fosse acontecer, mas a gente tinha alguma coisa em nossas roças, em nossos quintais. Mesmo assim a dificuldade aumentou: quem estava no interior tinha alguma coisa para comer, mas quem estava na periferia da cidade passou muita necessidade, muita gente com fome mesmo, sem roupa para vestir, sem casa para morar”, comentou a lavradora Maria Pereira de Sousa Filha Coelho, 53 anos, de Vargem Grande. Maria integra a Coopervag [a Cooperativa Agroextrativista dos Pequenos Produtores Rurais de Vargem Grande], que acessou um recurso de 10 mil reais para a compra de congeladores para o armazenamento de polpas de frutas e já reembolsou o valor, que, uma vez devolvido ao fundo, beneficia outros grupos e comunidades.

“A Rede Mandioca foi uma oportunidade única. Ela chegou para ampliar nossa comunidade. Nessa fase de pandemia a gente não parou a produção de farinha, através da casa de farinha que foi implantada na comunidade. A gente vende no povoado, no município e também já vendemos para o Pará, Goiás e Tocantins, a partir de nosso ingresso na Rede Mandioca. Isso já é uma visibilidade graças à ação da Rede. Antes a gente fazia cinco sacos [de 50 quilos] por dia, quando era manual, e hoje, com a casa de farinha, a gente passou a fazer 25 sacos por dia”, comenta o agricultor familiar Vando da Silva da Costa, de 28 anos, do Assentamento Alegre, no município de Riachão, sobre o crescimento da produção a partir do apoio e assessoria da Rede Mandioca.

“A Rede Mandioca, nesse período de pandemia, foi uma estratégia fundamental para que os grupos vinculados e apoiados por ela, através dessas iniciativas, atravessassem a pandemia em uma circunstância de maior segurança alimentar, com oportunidade de uma renda extra pela comercialização do excedente. Esse é o papel que a Rede Mandioca tem cumprido na vida desses agricultores, com essas estratégias que estamos criando de forma coletiva, com o fundo de crédito solidário, a pesquisa sobre o perfil socioeconômico, a distribuição gratuita de embalagens para melhorar a apresentação da produção para comercialização do excedente. A Rede Mandioca continua se ampliando, chegando a novas regiões, espalhando suas experiências, o que tem sido fundamental nesse momento quase pós-pandêmico, numa perspectiva de segurança alimentar, trabalho e renda, mas também nesse momento que o Maranhão atravessa tantos conflitos agrários. É fundamental definir e ressaltar a relevância desse papel da agricultura familiar, da permanência desses homens e dessas mulheres no campo, diante do avanço do agronegócio no Maranhão, dos conflitos agrários, assassinatos voltando com força, então a Rede Mandioca se apresenta como essa alternativa”, enumera Lena Machado, assessora da Cáritas Brasileira Regional Maranhão.

Os 26 grupos apoiados pelo Fundo de Crédito Rotativo Solidário acessam um crédito de entre três e 10 mil reais, e devolvem esse recurso ao fundo corrigido com um acréscimo de 4,5%, com carência de seis meses a um ano e meio, dependendo da atividade produtiva – um comitê gestor eleito entre os próprios membros dos grupos define as regras quanto a valores, prazos e carências. Tais regras, inclusive, foram atualizadas neste último encontro, em uma verdadeira lição de democracia, inclusão, participação e solidariedade.

Todos os grupos que acessam o fundo são filiados à Rede Mandioca, sendo signatários de sua carta de princípios, o que envolve produção de base agroecológica e fundada na economia popular solidária, além de formação, intercâmbios, feiras, venda direta, parcerias e projetos.

Atualmente a Rede Mandioca participou de um projeto nacional composto por 17 redes, com 28 grupos inscritos nesta iniciativa, que incluiu formações, intercâmbios, estudos de viabilidade econômica, logística e comunicação. Através do projeto Redes de Comercialização Solidária, executado pela Cáritas Nacional, foram disponibilizadas embalagens plásticas que favorecerão uma melhor apresentação na comercialização de produtos da agricultura familiar, como farinha de mandioca, mesocarpo de babaçu e polpas de frutas, entre outros.

Área de fruticultura irrigada no Assentamento Nova Descoberta, em São Raimundo das Mangabeiras
Casa de beneficiamento de mandioca no Povoado Mirindiba, em Codó
Comunidade do Assentamento Alegre, em Riachão, no mutirão do beneficiamento da mandioca na casa de farinha
Plantio consorciado na comunidade Riacho do Mel, em Vargem Grande
Representantes de grupos e comunidades transportando as embalagens plásticas recebidas

Single “Agô” antecipa “Karawara”, novo disco de Rommel

[release]

Faixa chega às plataformas de streaming 3 de setembro; álbum sai em novembro

O cantor e compositor Rommel. Foto: divulgação

No próximo dia 3 de setembro (sexta-feira), chega a todas as plataformas de streaming a música “Agô”, primeiro single (pré-save aqui) de “Karawara”, álbum que o cantor e compositor Rommel lança em novembro, pela gravadora Biscoito Fino. O videoclipe de “Agô” será lançado no dia seguinte (4 de setembro, sábado) e no dia 5 de setembro será disponibilizado o mini-documentário “Agô – Até o sopro derradeiro”.

Composta por Rommel, em parceria com Enrico Lima e Orlando Macedo, “Agô” é um ijexá, ritmo pelo qual o artista sempre foi apaixonado. A música passeia pela cultura afro-brasileira, em diálogo com a sonoridade dos terreiros das religiões de matriz africana.

“Pedindo a paz de Oxalá/ dizendo agô aos Orixás/ Agô/ Levando flores para ofertar/ e as pegadas vão pro mar/ Amor”, diz um trecho da letra, que também reforça a importância da arte como uma forma de resistência, o que se manifesta em outras faixas de “Karawara”.

O videoclipe de “Agô” foi rodado no Rio de Janeiro, com a presença de Aline Valentim, professora de danças afro-brasileiras, e é dedicado ao centenário de Mercedes Baptista, bailarina e coreógrafa brasileira, pioneira no combate ao racismo.

“Karawara” tem canções em português, inglês e francês e conta com a participação de músicos do Brasil e do Canadá, onde o maranhense Rommel mora atualmente.

Em “Agô”, Rommel (voz e violão) é acompanhado por Carlos Bala (bateria), André Galamba (baixo e guitarra), Vovô Saramanda (percussão), David Ryshpan (teclado), Parrô Mello (saxofone), Márcio Oliveira (trompete), Debson Silva (trombone), Jordan Zalis e Pryia Shah (backing vocals).

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Leia a letra:

“Agô” (Rommel Ribeiro/ Enrico Lima/ Orlando Macedo)

Ijexá repica e retumba no fim da tarde
Um sonho que passa e o tempo corre ligeiro
Levada que arde ao sol da eternidade
Subindo a ladeira até o sopro derradeiro

Ijexá repica e retumba no fim da tarde
Um sonho que passa e o tempo corre ligeiro
Levada que arde ao sol da eterna Arte
Subindo a ladeira até o sopro derradeiro

Pedindo a paz de Oxalá
Dizendo agô aos Orixás
Agô
Levando flores para ofertar
E as pegadas vão pro mar
Amor

Didê, agô, didê
Didê, agô, didê
Agô
Didê, agô, didê
Didê, agô, didê
Agô

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Assista ao teaser:

SERVIÇO

O quê: lançamento do single e videoclipe “Agô” e mini-documentário “Agô – Até o sopro derradeiro”
Quem: o cantor e compositor Rommel
Quando: dias 3 (single), 4 (videoclipe) e 5 de setembro (mini-documentário)
Onde: nas plataformas digitais
Quanto: grátis

Pena capital ao genocida

Em memória dos mais de 255 mil brasileiros vítimas da covid-19 e da irresponsabilidade do presidente genocida de extrema-direita Jair Bolsonaro

“O que é roubar um banco comparado a fundar um banco?”
Bertolt Brecht

“Se números frios não tocam a gente/ espero que nomes consigam tocar”
Bráulio Bessa/ Chico César

Uma estaca cravada no prepúcio
ainda é pouco pra este genocida.
Se a facada não lhe tirou a vida
é preciso tirar-lhe já o poder.
Quantos ainda precisarão morrer
no Brasil, hoje sinônimo de desgraça?
Bolsonaro, vá embora e leve a sua raça!
Meu povo não aguenta mais sofrer.

Uma corda em volta de seu pescoço,
um patíbulo, um grito desumano:
será que ao morrer faria o gesto insano
da arminha e elogio a torturador?
Quero que Bolsonaro saiba o que é dor
pra que enfim, acabe de vez a nossa.
Que o Brasil volte a ser o país da bossa,
do samba, do carnaval e não mais do horror.

Um tiro no meio de sua testa
distanciando seus olhos de facínora
sem empatia, cujo significado ele ignora.
Haverá quem chore por este desgraçado?
Milhares de corações dilacerados
pelas mortes de pais, mães, filhos e avós.
Precisamos, e logo, desatar os nós
da cilada em que nos meteu seu gado.

Cínicos, uns dizem “eu não sabia”.
Não foi falta de aviso, digo e repito.
Todos sabíamos no que daria falso mito
em lugar que deve ser ocupado por gente,
não por falso herói nada eloquente.
Faltará borracha pra apagar tamanho erro
e aqui e acolá ainda se ouve o berro
do gado que aplaude quem fode a gente.

Impeachment é nada e cadeia é pouco:
Bolsonaro merece passagem só de ida
para sofrer por toda eterna vida
em companhia de ídolos como Hitler e Ustra.
Nem no inferno o diabo quer esses filhos da puta
que tanto mal fizeram à humanidade.
Nem na lata de lixo da história lhes cabe.
Contra suas fake news, eis a verdade absoluta.

“Dente por dente” e a podridão dos poderosos

Juliano Cazarré em cena de Dente por dente. Divulgação

Uma sequência de assassinatos com as mesmas características é o mote do suspense “Dente por dente” [Brasil, 2021, 85 minutos], dirigido por Júlio Taubkin e Pedro Arantes: após a morte todas as vítimas têm seus dentes extraídos de forma brutal. O curioso é que o serial killer por detrás dos assassinatos não some com os cadáveres – a extração das arcadas dentárias poderia servir para sua não identificação.

Juliano Cazarré interpreta Ademar, o guariteiro-sócio de uma empresa terceirizada que presta serviços de segurança privada a uma grande construtora. Numa atmosfera pesadelar, ele acaba fazendo às vezes de detetive, ao descobrir a primeira vítima – enquanto mortes não param de acontecer: seu sócio Teixeira (Paulo Tiefenthaler), esposo de Joana (Paolla Oliveira), filha de Valadares (Aderbal Freire Filho), um delegado corrupto que tem que fingir que investiga o assassinato do próprio genro. O filme exige do espectador a montagem de uma intrincada teia de corrupção e traições, deixando algumas pontas em aberto – o roteiro de Arthur Warren com colaboração de Michel Laub não entrega tudo de bandeja.

A trama é pano de fundo para expor e debater uma triste realidade brasileira: o conluio entre os poderosos – os que são donos do dinheiro e os que ocupam cargos em qualquer escalão, prontos a abocanhar sua parte em esquemas fraudulentos ou mesmo para tentar passar a perna nos próprios pares e abocanhar tudo sozinho. No fim das contas é um filme sobre ganância e a consequente falta de escrúpulos dela advinda, escancarando a falta de ética que permeia as relações político-empresariais no Brasil.

Para ver sair do papel seus novos megaempreendimentos imobiliários de alto padrão, a indústria da construção civil não aceita empecilhos: pouco se importa com quem estava antes e há quanto tempo em determinado terreno, afinal, famílias inteiras de gente pobre não podem ser obstáculo ao surgimento de novos blocos de apartamentos luxuosos com suas áreas de lazer gentrificadas e suas varandas gourmet. Ao menos até a insurgência dos que estão na Encruzilhada.

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Veja o trailer:

A política do luto e da merda

TEXTO E ILUSTRAÇÃO: CESAR TEIXEIRA*

Agora que o Menino Jesus de barro foi despejado dos presépios natalinos pelo Ano Novo, o Brasil se benze para continuar aguentando um inquilino indesejável, modelado em bosta, que já pensa em se recandidatar em 2022 sem ter realizado qualquer gesto democrático como “presidente”. Ao contrário, abusou dos seus dotes de malfeitor para cometer inúmeros crimes que continuam impunes e vão ficando por isso mesmo.

Bolsonaro elogiou um torturador em pleno Congresso Nacional e persiste debochando de pessoas torturadas durante a ditadura civil-militar deflagrada em 1964, enquanto chora a derrota do seu “amigo” Donald Trump (ex-presidente do país que apoiou o golpe) e lança farpas contra a China, maior parceiro comercial do Brasil.

O falso Messias, vale repetir, elegeu-se à custa de milícias digitais, de acordos partidários espúrios e de uma facada de mentira, fora a contribuição dos patos e bonecos infláveis da Fiesp, com digitais do Tio Sam – mesmas armas que patrocinaram o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Lula. Não era à toa que se esmerava em aparecer na imprensa mundial ao lado de Trump em jantares e reuniões politicamente inúteis para o Brasil

Todavia, Bolsonaro não almejava ser apenas Presidente da República. Esse cargo ele abandonou antes mesmo de assumi-lo. Seu sonho de infância é tornar-se um Duce ou Führer latino-americano, ou pelo menos um caudilho meia-sola, mantendo como bunker o Gabinete do Ódio, que pode mudar de endereço e possui franquias em todo o País. Na pressa de alcançar a glória, feriu pelas costas a Constituição Federal, participando de atos que fazem apologia à ditadura e interferindo politicamente na Polícia Federal para proteger a família.

No início da pandemia pelo Covid-19 buscou privilegiar a elite empresarial e expor trabalhadores ao risco de contágio. Depois teve a cara de pau de “receitar” cloroquina (não recomendada pela Anvisa) no tratamento dos infectados. Regozija-se em transformar o luto em política de Estado, indiferente à saúde pública e ao “direito à vida”, expressão maior inscrita na Carta Magna, no Código Civil Brasileiro e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário.

O “presidente” chegou a indispor empresários e escalafobéticos fogueteiros contra o STF, visando aumentar a pressão sobre governadores e prefeitos para afrouxarem o isolamento e o lockdown. Cometeu crime de responsabilidade previsto na Lei nº 1.079/50 (Lei do Impeachment), de acordo com o Art. 4º, ao atentar contra a Constituição Federal e especialmente contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, bem como a segurança interna do país (incisos III e IV).

É crime a “propaganda pública de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social”, conforme o Art. 22 da Lei de Segurança Nacional, ironicamente criada para enquadrar opositores do governo.

Bolsonaro estimulou a invasão da Amazônia por garimpeiros e madeireiros, minimizando o desmatamento e os grandes incêndios; desmontou os mecanismos institucionais de defesa da floresta, além de desprezar o apoio internacional. Uma verdadeira tabelinha com seu infralegal ministro Ricardo Salles, que propõe “deixar passar a boiada”, sem qualquer respeito por seus habitantes indígenas e ribeirinhos, muito menos pela fauna e pela flora. Trata-se de crimes previstos na Lei 9.605 (artigos de 29 a 53), da legislação ambiental.

Aqueles que o elegeram, tal como os ratos do Congresso empenhados no “toma lá, da cá” antes repudiado pelo “presidente”, também são cúmplices das suas caneladas, sem falar na caterva de magistrados coniventes. Por último, no calor da guerra ideológica dos imunizantes, o Messias tem influenciado negativamente a população, espalhando a lorota de que a vacina chinesa contém microchips que podem controlar a mente e transformar a pessoa num jacaré.

Declara repetidamente que não vai se vacinar. Nem precisaria. Bolsonaro já é um camaleão, sobretudo das palavras e dos atos – com todo respeito aos animais da família chamaeleonidae da ordem squamata. O sujeito é capaz de instantaneamente mudar o tom de suas bravatas toda vez que está chegando ao fundo da latrina política em que se meteu.

Enfim, Bolsonaro se assemelha a um produto falsificado por contrabandistas e estelionatários. Não serve como presidente, como capitão e muito menos como jogador de futebol, já que ele só faz gol contra o povo brasileiro, apontando arminha, na ânsia de proteger a prole criminosa com suas asas de galinha pelada. Pelo seu incompatível “histórico de atleta”, certamente não pulou as sete ondinhas de merda do Ano Novo.

*Cesar Teixeira é jornalista e compositor maranhense

O palco do impeachment

CESAR TEIXEIRA*

Charge de Edgar Vasques. Reprodução
Charge de Edgar Vasques. Reprodução

 

Três batidas. A plateia se espreme no cercado de alumínio, devorando chocolates Kopenhagen, enquanto ele desce ao centro do palco imaginário. Jair Bolsonaro, no papel de presidente, não possui nem mesmo um rascunho de programa de governo. Apenas um texto sinistro e mal ensaiado para minar a democracia brasileira. Trata-se de um ator medíocre, que utiliza redes sociais para divulgar fake news e provocar desordem, enquanto literalmente empurra sua gestão com a barriga – o que nos faz lembrar a célebre facada.

Seu truque é uma indigitada transparência. A plateia aplaude, sabendo que ele é padrinho das milícias cariocas; estimula o crime ambiental e o extermínio de indígenas; torce pelo coronavírus; troca ministros de acordo com interesses pessoais, de parentes e amigos, obedecendo a critérios “técnicos” e “sem viés ideológico”, entre outros crimes. Ocupar cargo no governo é como assinar a própria demissão, se os caprichos do presidente forem ignorados. Logo surge um dublê fardado para tapar o buraco.

Isso nos remete à mise en scène do senador Auro de Moura Andrade (PSD), dirigindo a sessão do Congresso Nacional em 2 de abril de 1964, quando declara vaga a Presidência da República, argumentando que João Goulart havia abandonado o governo e o território nacional, quando na realidade se encontrava no Brasil. Era a senha para oficializar o golpe já deflagrado, logo após o presidente anunciar as Reformas de Base, que para a extrema direita seriam um avanço do comunismo no País. Jango foi obrigado a exilar-se no Uruguai e o governo foi ocupado pelos militares até a reconquista de uma tímida democracia em 1985.

Trinta e cinco anos depois, um ex-capitão do Exército Brasileiro toma posse como presidente da República, mas voluntariamente não assume o cargo, já que desobedece ao compromisso de “manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”, conforme o Art. 78 da Carta Magna. O Messias exilou-se em algum lugar do seu cérebro avariado, de onde pretende dar um golpe no seu próprio governo e ressuscitar generais de pijama, abafando a “conspiração comunista” que acredita estar infiltrada na ciência, na educação e, sobretudo, na cultura.

Para impedir que o réptil ensaie romper a transparência do ovo é preciso que a Câmara Federal autorize com urgência o impeachment reivindicado por partidos políticos, entidades civis e movimentos sociais. Ainda há democratas no Congresso, apesar da sua estrutura bichada, de um lado pelo BBB, como são conhecidas as bancadas da bala, do boi e da Bíblia; do outro pelo Centrão, que reacendeu o “toma lá, dá cá” antes repudiado pelo presidente. Quem tem medo do impeachment?

A pusilanimidade do Legislativo pode despertar a esquerda e as organizações de direitos humanos. Mesmo que as mobilizações de rua estejam limitadas pela pandemia, a união de forças numa rede nacional e até internacional poderá fazer o Congresso votar o impeachment. O confronto será inevitável. Bolsonaro confia nos velhos oficiais e amigos mercenários. Mas será que as Forças Armadas, que são instituições do Estado, topam pagar um mico por conta de um governo estelionatário?

Falta pouco para baixar a cortina desta comédia de mau gosto. Talvez a plateia do cercadinho, espalhada pelo País, ainda reaja com gritos histéricos e slogans fascistas em seus cartazes quando o entijucado ator ouvir sua última deixa, e se retirar para as coxias. Trocando em miúdos, Jair Bolsonaro não passa de um personagem fictício, criado pela direita ultraconservadora e genocida. Sendo assim, o cargo de presidente já pode ser considerado tecnicamente vago. E ponto final.

*Cesar Teixeira é jornalista e compositor

Num país sem memória a ficção refaz a história

Legalidade, de Zeca Brito e Léo Garcia, terá estreia nacional hoje (20), às 19h, no Teatro Alcione Nazaré (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, Praia Grande) na programação (gratuita) do Festival Guarnicê de Cinema. A estreia mundial aconteceu em abril, no Festival Latino de Chicago, nos Estados Unidos.

O filme costura, a partir de um triângulo amoroso fictício, uma narrativa que remonta ao episódio histórico com que Leonel Brizola, no fim das contas, conseguiu adiar em cerca de três anos o golpe militar de 1964, que acabou por jogar o Brasil numa ditadura militar por 21 anos.

Homem de vícios antigos conversou com exclusividade com os diretores e com Sapiran Brito, pai de Zeca, um dos atores que interpreta Brizola, personagem central na trama.

Léo Garcia, Sapiran Brito e Zeca Brito. Foto: Juliana Costa

Como é que foi a receptividade do filme no festival de Chicago?
Zeca Brito – Surpreendente. Incrível como um filme que conta uma história brasileira pode ser universal e pode encontrar reverberações em outras culturas, outras visões de mundo. Chicago é uma cidade muito cosmopolita, então o público que assistiu o filme era de americanos e estrangeiros, pessoas que foram morar nos Estados Unidos, mas que vêm de outras histórias geopolíticas, por exemplo, do Oriente Médio, ou da própria América Latina, a gente pode conversar com uruguaios, com argentinos que residem em Chicago e por conta de ser um festival latino foram assistir o filme, e todos dizem a mesma coisa: algo muito parecido aconteceu em meu país. Que é o reflexo de como o mundo se movimenta, de como os interesses [acentua os dois primeiros “e”, imitando o sotaque de Brizola], de que o Leonel Brizola falava são reais, e é um pouco o que o filme tenta estabelecer. O filme se passa em 1961 e é sobre esse ambiente de guerra fria, onde Estados Unidos e União Soviética e distintas vontades políticas dominavam o mundo e muito daquilo que a gente vivia como história, como processo histórico era influenciado por esses interesses externos. Em Chicago foi muito interessante como isso passou pela percepção do público, essa identificação de como a história se repete, de como a história é parecida. Por outro lado, foi uma questão também que me surpreendeu, eu tava contando pro Léo esses dias, a gente vem, a gente fala muito no filme sobre o aspecto histórico, os personagens históricos. Mas o público mais desinformado da história do Brasil, que é grande parte do público norte-americano, não sabe nada do que aconteceu aqui, primeiro por que nossa cinematografia não chega lá, segundo por que não há muito interesse dos Estados Unidos de olhar para outras culturas, por que já trabalha a sua também como um produto, foi a questão do romance. É um filme que tem um romance que costura a narrativa histórica e esse romance tocou no coração do público e isso também me surpreendeu.

O diretor Zeca Brito. Foto: Juliana Costa
O diretor Zeca Brito. Foto: Juliana Costa

Por que a opção de estrear aqui?
ZB – Interessante. Acho que o Festival Guarnicê é um festival com uma história muito bonita, diferente de outros festivais, sem querer fazer uma crítica específica, ele não é um festival monárquico, de um dono, de uma empresa, ele é um festival que se liga muito com a comunidade civil organizada, partindo de uma universidade [o festival é promovido pelo Departamento de Assuntos Culturais da Universidade Federal do Maranhão], há 42 anos. Isso no Brasil é muito bonito e importante de ser celebrado nesse momento histórico. A função do cinema tem que ser essa, se aproximar da sociedade civil, cumprir um papel também educativo, falar mensagens importantes, provocar discussões, aproximar nossa memória histórica e também do tempo contemporâneo do que está acontecendo no mundo, mas da nossa realidade cultural, trazer esses debates pra sociedade. Esse festival, nesse sentido, já é muito sério, por estar ligado, a uma instituição do saber. E segundo, a gente vive um momento político, não foi à toa que a gente escolheu Chicago, que é uma cidade ligada à causa operária, aos direitos trabalhistas, e é uma cidade que recentemente elegeu uma mulher, negra, LGBT, prefeita [Lori Lightfoot]. De alguma maneira isso pontua que a gente está num território que tem espaço para as discussões que a gente está propondo no nosso filme e acho que o mesmo se revela no tempo contemporâneo com o Flávio Dino, que é uma referência para um pensamento aberto, de como deve ser a construção da cidadania, do encontro humano, principalmente partindo da luta contra as desigualdades sociais. A gente tem que trabalhar também essa questão de como a sociedade se traduz politicamente. Estar num território com um pensamento tão aberto a questões da história, questões que nosso filme trata, questões da sociologia que nosso filme trata, isso a gente vê publicamente que há uma sinalização de política pública mesmo, que vem a calhar com o que a gente está querendo discutir.
Léo Garcia – A gente começou a escrever essa história em 2007, 2008, mais ou menos, e naquela época era impensável falar em ditadura militar. Tu encontrava dois ou três malucos, mas era algo “ah, já passou”, e aí quando a gente está lançando o filme pairam no ar nuvens cinzentas e o filme ganha outra importância, tem, digamos, outra virtude, que é lembrar um passado recente, que as pessoas já esqueceram, o que foi a ditadura militar. Apesar de o filme se passar antes da ditadura, o Brizola já estava combatendo um princípio de golpe, ali em 1961. Ele consegue, mas depois em 1964, infelizmente…

O diretor Léo Garcia. Foto: Juliana Costa
O diretor Léo Garcia. Foto: Juliana Costa

Dá até pra dizer que o golpe foi adiado por essa ação.
LG – Foi, com certeza!
Sapiran Brito – O golpe era contra ele. Ele tava na rua, tava na boca do povo, “cunhado não é parente, Brizola presidente!”, não tinha outro. Era o grande nome entre os progressistas, não tinha outro. Estava praticamente eleito pelo povo. Pelas ações, pelas atitudes, pelo momento. A CIA [Agência Central de Inteligência do governo americano, na sigla em inglês] tentou, não conseguiu a primeira vez, mas na segunda… por detrás de tudo sempre está a CIA. Sempre estão os interesses norte-americanos, através da CIA, que me desculpe a expressão, mas costumeiramente compra os nossos deputados. Costumeiramente. Ele conseguiu segurar o golpe, conseguiu evitar o golpe, mas terminou o mandato como governador, foi ser deputado, e não tinha os meios físicos e materiais e o poder que tinha como governador para tentar deter os golpistas de 1964. Por que infelizmente o nosso país é construído de golpe em golpe. Agora tivemos o golpe branco contra a presidenta Dilma e tivemos um complô da mídia e do parlamento contra o presidente Lula, nada mais que outro golpe branco. E de golpe em golpe nós vamos. E Leonel de Moura Brizola significa o anti-golpe, a voz da resistência, a voz do progressismo, a voz daqueles políticos corretos que ainda resistem. Cinco por cento, mas ainda temos, na classe política, uns cinco por cento de homens retos, honestos e verdadeiramente brasileiros, sem nacionalismo, sem xenofobia, questão de amar o Brasil. Quero lembrar só uma coisa: Brizola não era um gaúcho. Darcy Ribeiro escreveu uma bela crônica sobre o Brizola, dizia “Brizola, um filho do povo brasileiro”, por que ele era preocupadíssimo e envolvido com toda a questão. Um grande problema nacional é o problema da dominação do Brasil. O Brasil é dominado. E nós sabemos por quem. Dominado pelo capital, que se organiza basicamente em Wall Street. E o Brizola representa essa voz de rebeldia contra isso. O Brizola, que foi tachado de comunista, não tinha nada de comunista. O Brizola era um progressista, um socialista embrionário. Tanto que a Internacional Socialista o elegeu vice-presidente, ele não sendo presidente do país. E esse cargo, em memória dele, ainda está na mão do partido dele, o PDT, hoje representado pelo Carlos Lupe. O PDT tem cadeira na Internacional Socialista, mesmo o Brizola não sendo declaradamente um socialista, mas era um socialista, por que era um progressista e um nacionalista sem xenofobia.

O ator Sapiran Brito. Foto: Juliana Costa
O ator Sapiran Brito. Foto: Juliana Costa

O que significou para o senhor interpretar o Brizola no filme?
SB – Ah, uma grande emoção. Primeiro que eu vi o negócio nascendo, pelas mãozinhas deles, pelas cabecinhas deles [aponta para Léo e Zeca]. Aí quando eles notaram que eu tinha alguma semelhança com o velho, que eu conhecia muito, por ser amigo dele, de frequentar a casa, falar ao telefone, abraçar e conversar com ele com intimidade em diversas ocasiões, eu ajudei a construir o que o Léo e o Zeca roteirizaram. E que fique claro o seguinte: eu não estou no filme por que sou filho do Zeca [risos] ou amigo do Léo, é que eles viram uma semelhança com o Brizola, que eu não posso negar: é uma espécie de osmose, de tanto eu gostar, eu acabei ficando parecido com o velho e tento pensar e agir como ele, por que eu também sou político. Além de artista, ator, diretor de teatro, eu também sou político. Me honra, sobremaneira, representar, mesmo eles me dando pouco espaço [risos], mas é simbólico honrar a memória do velho. E é uma satisfação saber da oportunidade do lançamento desse filme. Eles não previram, eles não têm bola de cristal, nenhum dos dois é Nostradamus, mas parecia que estavam prevendo: “ah, vamos lançar durante o outro golpe”. E estamos aqui honrando a memória de Leonel Brizola.

É curioso que o filme anterior de vocês é sobre Tarso de Castro [A vida extra-ordinária de Tarso de Castro], que é outro combatente da ditadura e também um brizolista.
ZB – E que estava na Legalidade.
LG – De certa forma influenciou um pouco o roteiro do Legalidade. Ele não só estava na Legalidade, como ele foi, a gente conta no filme, um episódio, uns 20 dias antes da Legalidade, o Brizola conheceu o Che Guevara em Punta del Este, um encontro da OEA [Organização dos Estados Americanos] e o Tarso cobriu isso. Várias coisas acabaram se mesclando, a gente estava rodando o Tarso e acabando de escrever o roteiro.
ZB – Quando a gente terminou de filmar o Tarso e foi filmar o Legalidade, o que acontece é que eu acho que tanto personagens que são personagens do filme do Tarso inspiraram personagens do Legalidade. O Flávio Tavares, o Carlos Bastos, pessoas que estão no filme do Tarso de Castro e que são a síntese do Tom e do Luís Carlos, que são os personagens fictícios que a gente criou. São muitos personagens reais, a gente fez uma pesquisa, até interessante, tu vai assistir o filme e vai ver, a gente colocou nos créditos finais todos os livros que a gente pesquisou para criar essa história de ficção. Ela é toda costurada por episódios reais, mas cabe a cada um de nós ir a fundo para ver a veracidade daquela coisa no sentido de que a costura é poética. É uma obra poética, como se fosse o [poeta grego] Hesíodo estar contando a guerra e não estar falando da guerra como ela é, mas está se baseando em fatos que aconteciam e que aconteceram para poder sintetizar de forma poética a guerra. O que a gente fez no Legalidade foi isso. A gente leu muito sobre tudo o que havia sido produzido em termos de pesquisa científica, da academia, e bibliografia, livros sobre episódios históricos, depois entrevistamos autores, o Juremir Machado, o Flávio Tavares, mas primeiro a gente partiu do livro deles, mas entrevistamos, e entrevistamos familiares, amigos, o Carlos Araújo, que inspira nosso personagem comunista, mas vai acabar sendo trabalhista. O próprio [Luís Carlos] Prestes foi ser presidente de honra do PDT, tem essa costura histórica e a gente coloca esses elementos no filme. Tem o personagem trabalhista, que é o Brizola, tem o personagem comunista, que é o Luís Carlos, como essas ideologias vão se encontrar com o campo oposto, que é alguém que está corrompendo a constituição. Alguns deputados, no campo do poder legislativo, e alguns militares, o chefe da Marinha, o chefe da Aeronáutica, que não queriam permitir o Jango [João Goulart] voltar ao Brasil e assumir a presidência, porém, aí é interessante como a história é complexa, a Legalidade só foi possível com a adesão do Terceiro Exército, que era a maior força militar brasileira: 120 mil homens, que estavam no Rio Grande do Sul. Brizola foi tão persuasivo, conseguiu levar tão profundamente a mensagem, mobilizar a população civil, que aqueles soldados que estavam no Rio Grande do Sul aderem à Legalidade, rebelando-se à ordem inclusive de bombardear o Palácio [Piratini, sede do governo gaúcho], que partiu de Brasília, então acontece esse contragolpe. Aí o Jango vem, aí o que acontece: a coisa estava tão inflamada que era mais conveniente que o Jango viesse pra apaziguar, por que o Brizola ia sim subir e tomar o poder. Aí o Tancredo [Neves] vai até Punta del Este, faz uma negociata básica, histórica, e resolve, para que não haja derramamento de sangue, “vamos estabelecer um pacto de silêncio você volta e assume o parlamentarismo, não fala nada, não faz discurso, fica quietinho, acalma o Brizola, silencia o Brizola, a gente vai silenciar o Exército lá em cima, Aeronáutica, Marinha”… Nisso os navios de guerra já estavam no porto do Rio Grande, toda a frota aérea já estava mobilizada para bombardear o Rio Grande do Sul e acontece esse acordo de paz, que foi um desfecho, pro Brizola foi um pouco frustrante, mas um ano depois, através de um plebiscito, se reconstitui a democracia, que dura dois anos e acaba com o golpe, em 1964.
LG – É legal por que tem todo esse aspecto político, mas nosso roteiro tem camadas. Uma pessoa que, digamos, não tem nenhum conhecimento de história pode assistir o filme e vai acabar desfrutando pelo menos da história de amor, vai entender o enredo, vai saber que existiu esse momento tão importante da história. Eu acho que tem essa virtude o roteiro que a gente trabalhou. Quando essa história começou, em 2007, mais ou menos, eu e Zeca bem jovens, Zeca estava acabando o primeiro longa dele, O guri, eu ainda não tinha nem um longa filmado, e o Zeca veio com essa história: “ah, o meu pai sempre falou que a Legalidade renderia um filme”, eu nem conhecia o Sapiran, nem lembrava da Legalidade, eu tinha estudado no colégio, assim [estala os dedos] talvez numa tarde… aí eu comecei: que Legalidade é essa? Li um livro e falei: “cara, rende um filme, vamos escrever?”. “Vamos!” E começou, naquela época a gente tinha o sonho de lançar em 2011, nos 50 anos da Legalidade. Ledo engano. Cinema no Brasil nada é tão fácil. Um dia eu quero convidar o Zeca pra fazer umas quatro, cinco horas, pra gente mostrar nosso roteiro desde o início. Do primeiro argumento o tanto que mudou, a gente foi enxugando personagens, mudando, tinha um circo, quatro irmãos viraram dois. Um roteiro tinha um diálogo de 15 páginas entre dois palhaços, eu falei: “Zeca, não sei se a gente vai ter tempo pra isso” [risos], queríamos fazer uma coisa mais [o cineasta italiano Federico] Fellini, mas enfim, a gente foi se acertando.
ZB – Esteticamente é um filme bem atemporal. Interessante o fato de a gente ter achado que ele deveria ter sido lançado em 2011 e não conseguimos, só filmamos em 2017 e estamos lançando agora em 2019, mas a construção do roteiro, apesar de se passar em 1961, é um filme que joga com a história, com o fato de ter essa construção poética, personagens fictícios. De algum momento essa história já aconteceu em outros momentos antes, aconteceu depois. A gente diz: é a prévia de 1964, depois 1964 aconteceu mesmo. Mas pode ter acontecido agora, em 2016.
SB – Já tinha acontecido antes, com Getúlio [Vargas].
ZB – E esteticamente ele flerta com o melodrama, tenta buscar essa raiz brasileira, que às vezes o cinema olha com certo preconceito, essa matriz que vem da televisão, da telenovela, como elemento estético, para se trabalhar a história, ela se relaciona muito com a história, no sentido de que a história brasileira é um pouco uma telenovela. A narrativa histórica. Às vezes a realidade é tão engenhosa, que parece surpreender, daqui a pouco cai o avião do desembargador, do primeiro ministro, coisas que não existem no Brasil, mas estão aí toda hora.
LG – Alguém viu um corte do filme e falou: “não, os militares nunca iam fazer isso”, mas está ali, foi assim que aconteceu.
ZB – Exatamente. É por isso que a gente bota todos os elementos históricos sem citar, mas lá no final, para que essas pessoas tenham o trabalho de ler esses livros.
SB – Enfrentamos um grande problema: é um país sem memória. Todos nós enfrentamos, jornalistas, todos nós. Ninguém lembra o que aconteceu há cinco anos. Não vai lembrar o que aconteceu há 50. Não tem a mínima informação. O filme contribui pra isso. Não chega a ser um filme histórico, mas pode chamar a atenção para que a juventude desperte para esse tema e vai encontrar outras histórias de muitos e muitos golpes que esse país sofre.

Essa abordagem de algum modo é curiosa por que a gente vive a era das fake news, que ao fim e ao cabo foram responsáveis pela eleição de Bolsonaro. E vocês viram o jogo ao contar um capítulo da história do Brasil através de uma ficção, o que é uma solução supercriativa.
ZB – É uma coisa que está aí desde que o mundo é mundo, que se chama romance histórico. Quem não leu O tempo e o vento [do gaúcho Érico Veríssimo] ou E o vento levou… [da norte-americana Margaret Mitchell]. Ambos são romances históricos que viraram filmes e que contam uma história. A história do Rio Grande do Sul foi contada em O tempo e o vento, a história da guerra de secessão nos Estados Unidos foi contada em E o vento levou… Estou dando dois exemplos, mas poderiam ser outros.
LG – Ao fazer isso a gente altera alguns detalhes, a gente cria personagens fictícios que fazem coisas importantes, mas isso é normal de qualquer dramaturgia.
ZB – A dramaturgia histórica é assim. É a síntese da história. A gente tem a responsabilidade de esperar 50 anos do episódio, poder ler todos os livros, poder comparar as perspectivas históricas, poder colocar diferentes pontos de vista em cena. Por isso é um romance. A gente tem a visão dos Estados Unidos, a visão da CIA, que parte de uma jornalista do Washington Post, de alguma maneira…
LG – Olha o spoiler… [risos].
ZB – A gente não tem o personagem real por que a CIA não revelou esses documentos, mas hoje a gente sabe que a CIA espionava o Brizola.
SB – Já revelou.
ZB – Já, mas a gente não sabe quem era o espião, a gente tem o relatório.
SB – Daqui a 50 anos vamos saber.
ZB – Daqui a 50 anos vamos saber, talvez. Mas a questão é que depois do Che Guevara o Brizola era o homem mais vigiado na América Latina. Como é que a gente vai construir isso historicamente? A gente tem essa informação, mas tem que ser através de personagens fictícios, a própria questão da Legalidade, como a gente tem muitos personagens reais, você precisa sintetizar cinco personagens reais em um personagem fictício. O que aconteceu é real. Essa que é a questão do Legalidade. Você tem compromissos históricos com personagens históricos. Tudo que o Brizola diz no filme são falas do Brizola durante a vida que estão ali na boca dele. Claro, tem uma ou outra cena de intimidade que a gente consultou a família: “isso aqui ele falaria dessa maneira?”. “Ah, sim”. É uma síntese de um discurso, colocado de uma maneira mais coloquial, mais íntima, como ele falava com a esposa, coisas assim. Mas os personagens históricos, os discursos do Brizola são os discursos que ele fez na época. Então tem essa costura entre personagens históricos com discurso histórico real e uma construção poética que é o lirismo da dramaturgia clássica que está aí desde a Grécia antiga.
SB – Uma coisa a ser ressaltada na ação do Brizola é que foi a primeira vez no mundo que alguém usou a comunicação para organizar um levante. Nos dias que correm é a maior barbada, mas naquele tempo, o grande veículo era o rádio. Tevê não tava ainda em cadeia, não tinha as afiliadas, tevê era uma coisa muito incipiente ainda. Ele foi o cara que despertou pra comunicação, pra fazer um levante através da comunicação, quando ele criou a Rede da Legalidade, que começou lá no porão [do Palácio Piratini], depois foi pra Goiás, Paraná, foi crescendo, crescendo, só não entrou em São Paulo, mas no resto do país se formou a Rede da Legalidade. Então, esse fator, o tino desse cara, de se dar conta do uso da mídia, da comunicação, a seu favor, a favor da sua ideia, do seu projeto, é fundamental, pouca gente observa isso.
ZB – É muito interessante. Ele tinha o dom da oratória. Toda sexta-feira ele falava num programa de rádio, ele se comunicava quatro, cinco horas, as pessoas às vezes dormiam, de tanto que ele falava, dormiam, acordavam e ele tava falando.
SB – Que nem o Fidel [Castro] e o Mao [Tsé Tung].
ZB – Quando ele se dá conta de que tinha um golpe em curso ele escreve um comunicado e manda pra todas as rádios. Aí acontece um fato, que era sintomático do golpe, que o exército imediatamente manda fechar todas as rádios que haviam lido o manifesto, em que ele dizia: “Jango está na China, está sendo impedido, temos que nos mobilizar para que seja respeitada a constituição”. As rádios são fechadas, a única que não é fechada é a Rádio Guaíba, por que era um pouco mais conservadora, de alguma maneira tinha uma outra visão política, não aceitou ler o manifesto, não foi fechada. No dia seguinte ele confisca o transmissor da Rádio Guaíba, traz pro palácio e transforma a secretaria de comunicação na secretaria de segurança, digamos assim. Ele bota todo aparato da brigada militar a serviço do resguardo da comunicação. Resguardar a torre da Ilha da Pintada, transforma o palácio num grande forte de comunicação, onde ele bota os transmissores na rua pro povo que tava na frente ouvir o discurso dele, começa a discursar, discursar, produção artística, poesia, jogral, em torno disso, os dias vão passando e só discurso não dá, [o ator Paulo César] Pereio, [a poeta] Lara de Lemos, fazem o Hino da Legalidade, aquilo começa a ser tocado ininterruptamente.
LG – Vai mobilizando todo o Brasil, “olha não vamos deixar ter esse golpe”.
ZB – Mobiliza a sociedade civil inteira no sentido de dizer: “o que temos aqui?”. “A brigada militar”. “Quantos contingentes?”. “Tantos”. “Isso aqui não dá nada”. “O que a gente tem?”. “O povo na rua”. “Quantas mil pessoas estão na rua?”. “As pessoas precisam se armar”. Aí ele estabelece um jogo de guerra civil pela constituição. Quem tem arma pega sua arma e vem pra rua. Ninguém tinha tanta arma, ele pega todas as armas de estoque do palácio e distribui pra sociedade civil. Vai na Taurus, pega todo estoque de armas da Taurus, a Taurus que hoje tá com as ações lá em cima, distribui pra população todas as armas e “nós vamos enfrentar o exército brasileiro, vai ser brasileiro contra brasileiro, por que a gente tem que preservar a única coisa que a gente tem que é o voto democrático popular”. Jango Goulart havia sido eleito com mais votos que Jânio Quadros, numa época que as eleições eram separadas, vice e presidente.
SB – Não podia ser mais legítimo.
ZB – Só que na verdade isso tudo era um jogo de cena, as armas do palácio não tinham balas, as balas eram da revolução de 30, estavam todas estragadas. Ele vai jogando com o limite, pra ver o que ia acontecer, e tentando segurar, segurar, segurar, pro Jango voltar e o Jango não vinha.
LG – Não tinha informação direito de onde é que ele tava, tava em Nova York, ele vinha a conta-gotas, parava em Lima…
ZB – Até começar a guerra eles não precisam saber que elas não atiram [risos].
LG – Triste pensar que tem uma avenida em Porto Alegre chamada Castelo Branco. Fizeram uma votação, vereadores conseguiram mudar pra Legalidade. Aí quiseram mudar, “não, por que tem uma pracinha chamada Legalidade”. Aí virou avenida da Legalidade e da Democracia. Agora, em tempos [de] Bolsonaro voltou a se chamar Castelo Branco.

Sério?
LG – Agora vamos recomeçar, pra voltar a ser Legalidade, é sintomático, não?
ZB – Se a gente quer lutar, tem que lutar por educação, no Brasil hoje.
SB – O Castelo era o menos golpista deles. O Castelo saiu do Ceará pra detonar o golpe, o AI-5 do Costa [e Silva], por que o compromisso moral do Castelo com a nação era da eleição em dois anos. Ele saiu, teve que sair, passou pro Costa e Silva e o Costa e Silva deu um golpe dentro do golpe. E ele decolou e caíram o avião dele.

A personagem da Cléo Pires é jornalista.
SB – É uma espiã disfarçada.
ZB – Spoiler!
SB – Apaga, apaga [risos]. Quem sabe ele não é um espião da CIA? [gargalhadas].

Ou pelo menos da Abin [risos]. Recentemente houve esse episódio do The Intercept vazando as conversas do Sérgio Moro. Queria saber a opinião de vocês sobre a importância do jornalismo e da liberdade de imprensa no mundo e principalmente no Brasil sob a égide de Bolsonaro.
LG – Estou aguardando o episódio de hoje da Vaza Jato.
SB – O filme deles sobre o Tarso reflete muito bem isso. O Tarso sempre disse que não tínhamos uma imprensa livre, é uma imprensa submissa, uma mídia submissa, infelizmente. Claro, tem CartaCapital, tem Caros Amigos, tem umas revistas, uns jornais que não estão no topo do consumo, que são as vozes resistentes. Agora os demais? [Fala com desdém:] Folha, Estadão, O Globo, Rede Globo, Record, tudo isso está a serviço do capital. O jornalista de um desses órgãos que quiser ser libertário, da grande mídia, que quiser falar a verdade, está desempregado. Não só desempregado como o chefe liga pras outras redações e diz: “não contrata fulano, que ele complica”. Nosso jornalismo, infelizmente, está amordaçado. O que salva agora? As redes sociais, as agências independentes.
LG – Pro bem e pro mal. Hoje em dia as pessoas recebem notícias pelo celular e ninguém quer saber se é verdade, se não é. Mas fake news passa.
SB – Passa. O cara vai quebrar tanto a cara dando mancada, que uma hora ele vai procurar uma fonte confiável. E existem fontes confiáveis. A própria grande mídia agora está ficando responsável [risos], está sentindo a concorrência. Desde o tempo do [Assis] Chateaubriand que a grande mídia é golpista, que derruba, se apropria, e manda no presidente.
LG – A gente aborda, no próprio Legalidade, não só a Cléo Pires é uma brasileira que mora em Washington. A gente tem um triângulo amoroso, são dois irmãos, um deles trabalha no [jornal] Última Hora. Todo envolvimento dos jornalistas naquela época na Legalidade é fundamental. Eles fazem parte do plano do Brizola, era um jornalismo muito mais ativista, digamos.
ZB – Tem duas questões, fazendo relação com The Intercept. Primeiro, a questão da investigação e dessa responsabilidade que o jornalismo brasileiro talvez precise retomar, de depender menos do release, das notícias prontas, mas de ir atrás não só da visão oficial. Até no filme isso é engraçado, por que de alguma maneira os meios de comunicação de nosso filme estão a serviço do Brizola, eles são a voz do Brizola, a voz de uma liderança, mas de uma liderança que eles conheciam intimamente. Isso é uma questão. Ele não tinha como governante, esse distanciamento que os governantes costumam ter da imprensa. O Brizola tomava café todos os dias com os jornalistas para falar sobre o que estava acontecendo, chamava, não se negava a responder nenhuma pergunta, não era uma pessoa que fugiria de uma pergunta. Ele sabia a importância da imprensa para se manter ligado ao povo, ele tinha essa relação com o povo. “A grande massa, as pessoas que estão muito distantes, todos precisam saber do que estou fazendo”, pra ser cobrado também. Ele dava a cara a tapa, deu grandes exemplos em vida pra poder fazer as coisas que fez. Ele fez a reforma agrária, mas ele doou uma fazenda que ele tinha, foi a primeira fazenda, que ele doa, da família. Mas ele soube jogar, no episódio da Legalidade, com a imprensa como um elemento de guerra.
LG – Isso o Brizola jovem, por que o Brizola mais velho, depois…
ZB – Vai comprar briga com a imprensa.
LG – E o fato de o Brizola ter brigado com a Globo significou que ele nunca foi presidente do Brasil. O exílio também fez muito mal pra ele.

Como é que vocês têm acompanhado esse ataque sistemático às artes, à cultura e ao pensamento pelo governo Bolsonaro?
SB – É o que se esperava dum fascista. Não pode esperar do fascismo outra coisa a não ser isso. O [ministro da propaganda da Alemanha nazista Joseph] Goebells, o número um do [Adolph] Hitler, dizia: “quando eu ouço a palavra cultura tenho vontade de sacar da pistola”. Indiretamente, eles odeiam, eles também têm vontade de sacar a pistola e matar todos os artistas, por que o artista é rebelde, o artista fala, o artista é independente, além do quê a cultura e a arte servem para o esclarecimento do povo, e eles não querem, querem o povo burro.
LG – Ignorante como eles.
SB – Eles não têm carinho nenhum, têm profundo desprezo pela cultura. E é aí que está o nosso papel: resistirmos. Por que isso passa. Essa onda de fascismo, de direitismo, existe em todo o mundo, não é só no Brasil, eles estão surfando na onda, a direita botou as garras de fora e está tendo seu momento. Até por culpa da esquerda, vamos aprofundar, que fracassou em muitas coisas. Acontece que a hora é deles, não é a nossa hora, não é a hora dos progressistas, não é a hora dos esquerdistas. Nesse momento nós temos que resistir, aguentar, por que muda, claro que muda, não sei se vai durar 10 ou 20 anos. Mas de repente alguém pode cair do cavalo.
LG – Vale falar que o filme é em memória de nosso ator, que acabou falecendo, infelizmente, que interpreta o Brizola, o Leonardo Machado.
SB – Foi o último trabalho dele.
ZB – O Léo é o protagonista, junto com o Sapiran ele faz o Brizola, a maior parte do filme ele conduz a trama, é um grande ator do Rio Grande do Sul, deixa um legado importante. Todos os diretores dos últimos 20 anos em algum momento trabalharam com ele. Não chegou a ver o filme pronto, viu um corte, enfrentou um câncer e nos deixou precocemente. Mas fez o filme com uma entrega absoluta, com paixão, buscou o papel, a gente estava buscando um ator, estávamos caindo no canto da sereia de que para chamar público tínhamos que ter atores do eixo Rio-São Paulo, em grande evidência na televisão.
LG – Mas tu tinha uma pulguinha, queria um Brizola gaúcho.
ZB – É, num primeiro momento a gente achava. Mas ele buscou o papel, me procurou, chegou ao teste caracterizado, era mais forte do que o próprio filme a vontade dele de fazer o filme. Fez lindamente, conduz o filme com uma baita responsabilidade, as falas reais do Brizola, teve um processo de caracterização, mudou o cabelo, colocou lente de contato, engordou um pouco para fazer o filme, é um ator muito completo, tanto pelo aspecto físico, disposto a transformações, quanto pela parte de equipamento vocal, tinha uma voz muito bonita, muito volume, pros discursos do Brizola isso foi muito importante, uma capacidade também de ser muito generoso, conviveu muito com o Sapiran, foi pra Bagé, fez um laboratório de um mês antes, saiu um pouco da cidade, para buscar essa raiz do Brizola, que era um homem rural, um colono, um homem do campo. Foi conviver com o Sapiran para os dois criarem o mesmo personagem. O filme, agora que eu falei esse negócio do campo, tem uma outra questão importante que a gente foi buscar: o filme se passa todo em Porto Alegre, mas estabelece um relação histórica com São Borja, com a raiz desse trabalhismo brasileiro que nasce com Getúlio Vargas num território que é Brasil mas que tem como origem de colonização a cultura espanhola, a figura do caudilho, e principalmente a questão da justiça social que fez parte da utopia jesuítica guarani. São Borja é uma cidade que nasce da colonização espanhola jesuítica, e foi o grande centro da justiça, os tribunais guaranis aconteciam em São Borja. Em 1680 já existia a ideia de reforma agrária, de divisão igualitária da terra, isso vai estar no subconsciente do Getúlio, do Brizola, e o filme tenta também flertar com esse passado espanhol que fez o Rio Grande do Sul, que está nas missões, tem um elemento do nosso filme que é inspirado no Darcy Ribeiro, antropólogo, que está na região das missões, em São Miguel das Missões, trabalhando com os indígenas, e vai pra Porto Alegre, mobilizado pela Legalidade, também mostrando essa mobilização que o Brizola fez no interior do estado. Então, pra falar um pouco das raízes do Brasil, que passa pelo elemento indígena, pelo elemento negro, pelo elemento português e pelo elemento espanhol, também no caso do Rio Grande do Sul.

Foi todo rodado em Porto Alegre?
ZB – O filme teve locações em São Miguel das Missões, também em Torres, mas representando Punta del Este, mas a história em si se passa em Porto Alegre.

No começo da entrevista você fez um elogio ao Guarnicê. Nesta edição foi inaugurada uma mostra chamada Cinema Político. O que você achou da iniciativa?
ZB – Eu achei fantástico, o festival tem que ter um compromisso com a sociedade. A gente vive um momento no Brasil onde as instituições, onde o próprio sistema político, como a sociedade vê a política, precisa ser discutido, pensado, a gente precisa repactuar com a sociedade, com a política. Há hoje uma ojeriza, um preconceito muito grande do cidadão com a classe política, por conta do desgaste da corrupção, que é real e que é histórico. A gente esteve no Museu de Arte Sacra hoje à tarde e há uma frase de Padre [Antonio] Vieira, numa de suas pregações, falando de como a corrupção está presente e é genuína do ser humano e é preciso combatê-la, não é questão apenas de ser brasileira, ela existe em toda parte, mas de alguma maneira no Brasil, por conta de nosso processo histórico, a mancha da corrupção se tornou maior do que a vontade civilizatória de fazer política por parte do cidadão. A gente precisa reaproximar o cidadão da política. A sociedade, no seu mais alto grau de caminhar, de pacto social, precisa da política, precisa da participação política. Mas não necessariamente da figura do grande líder, e é essa que é a questão que o Brizola entende, que aquilo tudo só seria possível envolvendo todos os cidadãos e fazendo com que as pessoas se apropriassem daquela causa, lessem a constituição, entendessem por que estavam lutando por aquilo. Como artista a gente também tem um compromisso de aproximar a política da discussão cidadã. A política é estrutural na sociedade, voltamos pra Grécia antiga. Há sociedades que conseguiram avançar, inclusive pra que a gente pudesse ter um processo civilizatório que deu origem ao renascimento, que deu origem à modernidade, ela se baseia na política.
SB – Há um preconceito contra a política em essência. Quando tem um festival que abre uma janela importante para um filme político, é importante, é um avanço. O Guarnicê tem conteúdo, tem pensamento, é um festival de pensamento. O festival que ele [aponta para Zeca] é coordenador tem isso também. É arte, mas é arte para pensar.

Qual é o festival que você coordena?
ZB – Tanto eu quanto Léo, de alguma maneira nós criamos janelas para poder propagar a arte cinematográfica brasileira, mas também refletir sobre nossas áreas, eu na minha atuação na faixa de fronteira e o Léo como roteirista. O Léo criou em Porto Alegre, o Frapa, o Festival do Roteiro Audiovisual, que é hoje um dos maiores, acho que é o maior da América Latina, e eu criei em Bagé e Livramento o Festival de Cinema da Fronteira, que já tem 11 edições. Ano que vem eu não vou participar, vou assistir. Mas fui o idealizador. O Frapa está chegando à sétima edição.

Qual a previsão de estreia do Legalidade no circuito exibidor?
ZB – Dia 12 de setembro ele vai estrear no Brasil. [Distribuição da] Boulevard Filmes, que distribuiu o Tarso também, distribuiu o Glauco do Brasil, meu outro filme.

Como vocês avaliam o atual momento do cinema brasileiro em que filmes como Bacurau, de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dorneles, e Marighela, de Wagner Moura, têm concorridas estreias internacionais, com ampla repercussão, mas não estreiam no Brasil?
LG – Eu acho que o Bacurau vai acabar estreando. O Marighela tá complicado, eu estou lendo, está complicado, a distribuidora ficou com medo da repercussão. O Marighela é diretamente contra o Bolsonaro. Eu não vi o Bacurau, mas imagino que seja uma coisa não tão direta, é óbvio que o discurso está ali, mas uma pessoa tosca não vai se sentir agredido, como o Bolsonaro, diferente do Marighela, que é um cara que combateu a ditadura. Eu acho que o Bacurau vai entrar em cartaz, deve entrar bem, espero que faça um bom público.
ZB – Eu acho que ambos os filmes escolheram estrear em festivais estrangeiros, é uma política que os realizadores brasileiros têm tido, não agora, mas há muitos anos, por que muitos desses festivais exigem que seja première mundial. Estreiam fora por que não têm espaço no Brasil? Não é verdade. Estreou fora por que os realizadores brasileiros preferem estrear fora, criar expectativas, ganhar prêmios fora, e depois estrear nos festivais nacionais. Acho difícil que ambos os filmes, de realizadores de prestígio, com os elencos que têm não sejam selecionados em festivais brasileiros. Provavelmente a gente vai ver agora no segundo semestre, os dois filmes em Gramado, Brasília, em algum desses festivais, Rio, São Paulo, eles vão estar nesses festivais. A questão do lançamento comercial, hoje no Brasil, tem dois caminhos: ou é investimento de uma grande distribuidora, e aí isso não é uma questão de perseguição política, é uma questão de capital. A gente vê que o capital pode, por exemplo, como a Netflix, lançar um filme sobre o impeachment da Dilma, por que o capital não tem esquerda nem direita, ele vende pra esquerda e pra direita.
LG – A Netflix fez O mecanismo [de José Padilha].
ZB – A mesma Netflix que fez O mecanismo faz Democracia em vertigem [de Petra Costa]. Então o capital é um grande balaio, que tem uma oferta que é o comunismo, o neoliberalismo, está tudo ali em oferta. O outro mecanismo é o Fundo Setorial do Audiovisual. O Legalidade é um filme financiado pelo Fundo Setorial do Audiovisual, o Marighela também. O Fundo Setorial do Audiovisual, na medida em que você aprova o financiamento da realização, a distribuição é suporte automático. Se eu quiser recorrer, eu posso ter recursos do mesmo fundo pra distribuir o filme.
LG – Até o ano passado. Agora tá tudo meio turvo.
ZB – Qualquer filme que está sendo lançado esse ano comercialmente teve que fazer esse processo ano passado. Imagino que qualquer filme que tenha optado pelo Fundo Setorial do Audiovisual ele terá o lançamento, imagino, garantido. A sociedade civil organizada que lutou pelo Fundo Setorial do Audiovisual, que lutou pela transparência, pela governança de um fundo que é gerido por um banco público, aliás, o BRDE foi criado pelo Brizola [risos]. O que existe é uma dominação estrangeira das salas. Vingadores estreou em 800 salas. Há um preconceito contra o cinema nacional, isso existe e isso o Bolsonaro está fazendo questão de acentuar, é uma questão que a gente já vêm lutando há muitos anos e é função nossa, como imprensa, como artistas, formar público, lutar contra essa dominação estrangeira.

Serviço

Divulgação
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As ruas do mundo como escola

Retrato: Zema Ribeiro

 

Vini de Vici literalmente corre o chapéu. Ele está se apresentando semanalmente às quartas-feiras, entre 18h30 e 20h, no calçadão em frente ao Cafofo da Tia Dica, no Beco da Alfândega, Praia Grande. Seu cachê é o que consegue catar no chapéu defronte a si e o dinheiro que consegue vendendo seu primeiro cd, de que desenhou capa, contracapa e selo.

A arte que ilustra a capa de seu primeiro disco. Reprodução

Conheci-o por acaso: estava sentado na calçada oposta à em que ele se preparava para ocupar, quando seus acordes ao violão chamaram minha atenção e de Tião Carvalho, que eu entrevistava na ocasião. O repertório era fino e brasileiríssimo: peças de Baden Powell, Zequinha de Abreu, Ernesto Nazareth, Cartola, Tom Jobim, Vinicius de Moraes.

Comprei o disco para puxar conversa e conseguir o contato. Americano de Minnesota, Vincent James DeRasmi tem 37 anos, é filho de músico e roda o mundo tocando na rua. “Eu não vou tocar na rua para sempre”, diz como que para si mesmo durante a entrevista, embora considere a rua uma escola.

Trabalhou em restaurantes, bares, construção, sindicato, “construindo palcos, em teatros, fiz qualquer coisa para apoiar minha música”, revela.

O artista é um incansável e obstinado pesquisador, procurando sempre beber da fonte. É literalmente uma enciclopédia ambulante das sonoridades do mundo, um viciado em descobrir o novo. Uma semana depois de nosso primeiro encontro, ele conversou com exclusividade com Homem de vícios antigos.

Retrato: Zema Ribeiro

Teu nome tem origem italiana?
Na verdade meu nome é Vincent. Esse nome vem de um dito em latim, “veni, vidi, vici”, que significa “vim, vi e venci”. É um jogo de palavras, por que o apelido de Vincent é Vini. Eu tentei pegar Vini Vidi Vici, mas alguém já pegou, então Vini de Vici.

Você é natural dos Estados Unidos. De onde, de que região?
O meio oeste. Tipo, Minnesota, um estado bem ao norte, fronteira com o Canadá. O Rio Mississipi começa lá.

Então você tem um sangue meio blueseiro?
Meu pai toca trompete, ele viajou pela Europa e todos os Estados Unidos, fazendo blues, jazz, folk, Joseph DeRasmi. Ele começou a obter um nível de sucesso e eu vi que era possível viajar o mundo com música. Ele não é como famoso, mas por um momento viveu de música. Por isso eu comecei a seguir meu caminho, a dedicar minha vida à música.

Você já passou por outros países? Pergunto por que teu disco tem 12 faixas e tem muito essa temática de viagem. Fala um pouco dos lugares por onde você já passou e se foi sempre a música que te levou a esses lugares.
Sim. A primeira viagem eu fiz em 2010 e fui à Espanha. Eu sou roqueiro e tive grupo de heavy metal por muitos anos. Rock, heavy metal, funk, groove. Cansei. Ter uma banda é como estar casado com quatro outras pessoas, é complicado. Tenho saudades, mas enfim, cansei de tudo isso. Fui à Espanha para estudar flamenco, pegar as técnicas do violão. Essa foi a minha primeira viagem e abriu minha mente. Para verdadeiramente aprender uma música você tem que ir à fonte. Qualquer país, qualquer região onde tem qualquer ritmo que você queira aprender. Depois disso minha mente começou a virar, fui à Costa Rica, conheci algumas pessoas viajando por muito tempo e abriu ainda mais minha mente sobre viajar, tocando na rua, nos restaurantes. Em qualquer lugar que eu tocar, a gente apoia [as pessoas apoiam]. Aprendi isso com outros amigos que conheci no Peru, tenho muitos amigos no Peru. Eu aprendi a trabalhar com a música, como artista da rua. Depois do Peru eu fui ao Equador, Colômbia, toda América Central, Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, Guatemala, El Salvador, Belize, México. Então voltei a meu país e vendi tudo o que tinha para pagar dívidas e voltei ao Peru para seguir ao sul. Passei por Bolívia, Argentina, Chile, Paraguai, Brasil, Uruguai, voltei à Argentina e estou aqui. Mas todo tempo estudando os ritmos do lugar. Quando estava na Bolívia, eu toquei música boliviana nos mercados. Para pegar o ritmo do povo da terra onde estava no momento.

Dá para dizer que musicalmente você procura se adaptar à cultura local? Por exemplo, você nunca fez música americana fora dos Estados Unidos, música espanhola fora da Espanha?
Sim, eu fiz. Muita gente fala, como aqui no Brasil, “você poderia ganhar muita grana tocando música americana”. Pode ser assim, mas eu não viajei tão longe para tocar a música que já toquei lá. Pode ser um caminho um pouco mais difícil, mas eu quero tocar, como agora estou no Maranhão, tentei pegar alguns bois, Papete, eu não posso aprender tudo, mas eu creio no repertório, na viagem do som. Se tem uma hora e posso tocar música do México até aqui, essa é a minha ideia, por isso eu fiz a arte [do cd] com o mapa do mundo.

O que me chamou a atenção te ouvindo tocar semana passada foi justamente o repertório. Eu ouvi cerca de meia hora em que você passeou por Zequinha de Abreu, Cartola, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Baden Powell, Ernesto Nazareth. E agora, você já até antecipou uma pergunta que eu tinha, que era se você já conhecia os compositores do Maranhão e você falou de Papete, que tinha algumas composições, mas era mais intérprete e percussionista. Você conhece o trabalho de outros artistas daqui?
Eu vim aqui para encontrar um amigo que conheci no Rio de Janeiro, tocamos juntos, ele toca um pandeiro na linha rap, se chama Pensativo do Pandeiro, é o nome artístico dele. Tocamos bastante aqui também, temos uma química muito boa quando tocamos, nem sempre dá. Através dele conheci [a obra de] Papete, alguns bois, como “se não existisse o sol” [cantarola]. Eu fiz a minha própria versão, por que em boi não há violão. Vários ritmos, como o coco em Pernambuco, não há violão, a salsa, na Colômbia, não há violão. Vários ritmos eu tenho que criar uma versão no violão, por que esse é meu instrumento, para adaptar a melodia.

No disco você toca vários instrumentos, mas o violão é teu instrumento principal.
[Além de violão] Eu toco berimbau no disco e um pouco de pandeiro na faixa oito [Renew]. Meu mestre de capoeira, que conheci no Rio de Janeiro, mestre do samba também, ele falou que se eu precisasse de ajuda com a percussão… Ele se chama Mestre Duda Pirata.

Esse é teu primeiro disco?
Sim, é o volume um. Está disponível no spotify, é possível fazer o download em todas as plataformas digitais. O volume dois já está pronto, mas vou divulgar apenas em novembro.

Está gravado? Vai prensar e distribuir como um cd físico ou só digital?
Desse disco eu fiz mil cópias, é mais barato se você imprime mais. Cd ainda faz parte da indústria musical, mas a maior parte das pessoas, eu incluído, nem tem máquina de [tocar] cd mais. Notebook nem tem mais entrada pra cd. Volume dois, por enquanto, não tenho tanta grana, faz seis anos que estou viajando, vou divulgar primeiro digital, só na internet.

São Luís é mais uma parada, já tem uma pretensão de outro ponto?
O Brasil tem muita riqueza, é enorme, é incrível como muda o som em qualquer lugar. Eu vi tambor de crioula uma vez e chega aqui tem quase todo dia, se procurar, vai encontrar, pelo menos em junho, no São João. Para mim foi uma bomba cultural. Tenho vontade de ir ao Pará, terra do carimbó, quero conhecer mais o Norte, o Amazonas, os ritmos indígenas. Quando estive em Pernambuco fiquei numa tribo, os Xucuru, no sertão, lá eles só tocam maracá, cantam, batem palmas. Maracá está atrás, não sei todo o ritmo, mas coco, capoeira, boi, o maracá é um instrumento muito forte. Estou procurando as raízes da música, do folclore. Meu interesse vem dos indígenas e da África.

Se a gente tentasse definir esse teu interesse, essa tua busca permanente por um som novo, pelas raízes, a gente poderia dizer que você está sempre em busca de um aprendizado, uma busca eterna por um aprendizado?
É quase um vício, aprender algo novo, como a alimentação, minha alma, minha mente, minha arte também. Eu tenho um som que vem de dentro, componho, você viu no meu cd, e não penso “eu vou compor uma música como baião, vou compor um samba”. Sai. Aprendendo vários ritmos assim, o som que sai de mim fica mais eclético, por causa das coisas que estou absorvendo em meu caminho. Eu gosto.

No teu disco a gente percebe uma inclinação para a música instrumental, mas há faixas cantadas e em vários idiomas. É um pouco também uma maneira de demonstrar esse acúmulo, essas passagens por várias regiões do mundo?
No Volume um eu fiz um grande trilogia, The trip, El viaje, A viagem, essas três últimas músicas do cd são a primeira trilogia que eu compus para violão. Eu coloquei a maioria das minhas músicas como instrumental, mas às vezes nem precisa letra, às vezes a melodia tocada fala sem precisar cantar alguma coisa.

No volume um você gravou o Odeon, de Ernesto Nazareth. Por que essa escolha?
Eu lembro a primeira vez que ouvi essa música, era uma festa, o Mimo, um festival que passa por Olinda, Rio, cidade patrimonial de Paraty, eu estava lá por um tempo e uma banda tocou isso. Eu fiquei cativado. De repente eu saí do Brasil, voltei, conheci vários amigos, estudei numa escola de chorinho no Rio, chama Escola Portátil, voltei ao Brasil para ir lá para pegar um semestre para aprender a tocar chorinho, aprender a estrutura e tudo isso. Estudei Odeon. Para mim Odeon é como o Brasil. Eu sinto, é uma música bem complexa, harmonia, melodia descomunal. Essa música para mim tem muito sentido, por isso a escolha e nunca cansei dela.

Você falou em um ponto da conversa que cada lugar que você chega você procura se aprofundar na música daquele lugar, nas raízes. Você falou dos indígenas aqui, na porção africana da música brasileira. Como é que surge o teu interesse por música brasileira?
A bossa nova, o Brasil está mais conhecido por bossa nova. Eu canto chorinho, eu canto jazz. Chorinho, para mim, é quase tipo o jazz brasileiro, tem outra estrutura. Por isso eu viajo. Se não há muitas músicas que você nunca vai conhecer. Eu estava para aprender, pegar o suingue do samba não é tão fácil para o gringo, para aprender, conheci [a obra de] Baden Powell na Argentina, um amigo tinha o disco, e pensei: eu tenho que estudá-lo. Peguei partituras, eu não gosto muito de partituras, mas é uma boa maneira para tocar exatamente o que ele está tocando. Ouvindo, lendo a partitura, para entrar na cabeça dele. Baden Powell foi o primeiro violonista brasileiro em que tentei entrar na cabeça. De qualquer músico eu pretendo entrar na cabeça, pegar o jeito que ele está pensando.

Além destes nomes que a gente já citou e que eu te ouvi tocando semana passada, que outros nomes da música brasileira te chamam a atenção?
Caramba! Aqui no Nordeste Luiz Gonzaga, Dominguinhos, ainda não toco tanto, tipo forró, baião. Jackson do Pandeiro eu gosto da cadência. Ele é tipo hip hop, antes do rap ele já estava fazendo isso, como ele canta. Gosto como ele toca baião, forró, mas ele também toca samba, é quase uma ponte entre os dois ritmos. Ele é um grande nome para mim, uma grande figura. Mas também, por exemplo, em Pernambuco há tantos mestres de coco, maracatu. Eu tenho muita vontade de voltar por Pernambuco. Só estive lá dois meses.

Você está há quanto tempo em São Luís?
Só um mês. Pouco tempo.

A rua é uma escola?
Sim. Faço cinco anos tocando na rua. Uma bomba pode explodir a meu lado [enquanto eu estiver] tocando e vou seguir tocando. Sempre há distração, crianças, gente gritando. É uma escola.

Você falou há pouco, particularmente do samba, e da dificuldade da ginga do samba para o gringo, mas semana passada eu percebi a desenvoltura com que você faz o repertório brasileiro. Você consegue se adaptar, na minha avaliação. Como você se sente, um gringo fazendo música brasileira, mas fazendo como um nativo?
Tenho sorte, conheci muitos mestres, ainda estudo muito. Fico muitas horas praticando. É uma das melhores coisas que me ajudam, foi meu mestre Duda Pirata, lá no Rio. É um mestre do samba, sempre toca em rodas de samba, me deu um grande braço, “vai pra roda, pra brincar com a gente”. Comecei a tocar com a galera, duas vezes por semana. Às vezes o violonista não chegou, eles só falam o tom, “dó maior” e “tchec, tchec, tchec” [imita o som da batida do violão]. É uma galera sambista que viaja o mundo tocando samba.

A língua foi uma barreira, é uma barreira?
Ainda é um pouco, no início foi bem complicado. Não tanto. As pessoas querem ajudar você. Tem que estudar também, eu estudei muito. Com a tecnologia há várias maneiras para melhorar seu idioma. Música eu estudo muito, a música brasileira ajuda a pegar o sotaque, embora eu ainda tenha o sotaque forte, está melhorando.

Você falou que não vai tocar na rua para sempre. Onde é que o Vini quer chegar?
No palco. Teatros, mas quero seguir fazendo o que estou fazendo, viajando, estudando e aprendendo, como tocar na rua, na América Latina, em todos os países, do México até aqui. Não sei se esse estilo de vida vai dar certo do outro lado do mundo. Mesmo aqui é uma luta, eu não ganho muito dinheiro. Mas quero chegar ao palco. Tem que escolher o caminho do coração e este é meu caminho do coração. Não vou voltar a minha vida como era antes no meu país. Sou músico agora e vou fazer qualquer coisa para seguir esse caminho.

O amor vencerá na luta de classes

Lua em sagitário. Cartaz. Reprodução
Lua em sagitário. Cartaz. Reprodução

Coprodução Brasil-Argentina, Lua em sagitário [romance, 2016, 100 min.], de Márcia Paraíso, é um comovente road movie adolescente. Embora não seja sua pretensão, a ficção ajuda a compreender o conturbado momento político que o país atravessa, em que ódio e preconceito jorram ad infinitum, sobretudo em redes sociais, mas não só.

Na pacata Princesa, em Santa Catarina, fronteira com a Argentina, praticamente nada acontece, e nem sinal de celular e acesso à internet são fáceis, o que é motivo de tédio para grande parte dos adolescentes que habitam o município.

Ana (Manuela Campagna, melhor atriz no Festival de Avanca, em Portugal, em 2016), uma delas, tem por diversão frequentar A Caverna, misto de sebo e lan house de um argentino apelidado LP (Jean Pierre Noher), por motivos óbvios. Ela se inscreve em um concurso de vídeos feitos no celular para disputar um par de passaportes para o Psicodália, um famoso festival de música psicodélica no Brasil – aliás, a trilha sonora de Lua em sagitário é um espetáculo à parte: Boogarins, Black Drawing Chalks, Repolho, Novo Código Genétigo, Charly Garcia, Skrotes (não confundir com Strokes), Jhonny Hooker, Serguei, Tulipa Ruiz, Niño Elefante e Zé Pinto, entre outros.

N’A Caverna, ela, filha de um comerciante local, a quem ajuda fazendo entregas em sua bicicleta, conhece Murilo (Fagundes Emanuel), assentado do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra que toca bateria em uma banda e também fez um vídeo para concorrer aos ingressos para o Psicodália.

O pai de Ana (Chico Caprario) é uma caricatura da classe média que repete ad nauseam o discurso de clichês e preconceitos da big old midia sobre o MST. É nessa luta de classes que aflora a paixão proibida dos adolescentes, que viverão sua primeira aventura a bordo de uma velha moto rumo à capital catarinense, para ver o festival – quem ganha a promoção é Lara (Clara Ferrari), que presenteia o casal com o prêmio.

Em meio à aventura, Ana e Murilo hospedam-se na casa de Jones e Ula, interpretados respectivamente por Serguei e Elke Maravilha, esta em seu último papel no cinema.

O romance é feliz ao abordar a realidade de acampamentos e assentamentos do MST e o debate sobre a reforma agrária no Brasil, quase sempre escamoteada pela falta de vontade da classe política em geral e pelo comportamento agressivo de gente como o pai de Ana, mais comum fora da ficção do que se imagina.

Em determinada altura, ao serem destratados por um casal de playboys, Murilo desabafa: “a gente vive uma luta de classes, pensar diferente disso é pura ilusão. Sem terra é pobre e a elite da sociedade brasileira tem horror, tem raiva, tem nojo mesmo. Pessoas como aquela guria não pensam, ela só vomita o que ouve do pai, do avô. Eles podem não ter mais nada, podem estar tudo fodido, ter perdido tudo, mas vão continuar pensando como elite, por gerações e gerações”. A feição de Ana, raivosa pelo ocorrido, muda, ao murmurar em resposta um “eu te amo”.

É um filme de final feliz quase óbvio, mas deixar de vê-lo por isso ou por divergir ideologicamente do MST – ou, de resto, da esquerda –, é deixar de se emocionar com uma bela e bem contada história de amor. Eu ia escrever adolescente, mas o amor não tem idade. E vence a luta de classes.

Serviço

Lua em sagitário está em cartaz até o dia 14 (quarta-feira) no Cine Praia Grande (Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, Praia Grande), com sessões às 16h40 e 18h30. Os ingressos custam R$ 16,00 (com meia entrada para os casos previstos em lei e para todos às segundas-feiras).

Veja o trailer/making of:

Stédile critica governo de Dilma Rousseff mas defende sua permanência

Bem humorado e otimista, sua postura reafirma a coerência do MST, que em 2009 defendeu a manutenção de Jackson Lago no governo do Maranhão

Jonas Borges e João Pedro Stédile, representantes do MST estadual e nacional, no auditório da Faculdade de Arquitetura da Uema. Foto: ZR (8/4/2016)
Jonas Borges e João Pedro Stédile, representantes do MST estadual e nacional, no auditório da Faculdade de Arquitetura da Uema. Foto: ZR (8/4/2016)

O coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST) João Pedro Stédile esteve ontem (8) em São Luís. Pela manhã a liderança cumpriu agenda no Palácio dos Leões, onde foi recebido pelo governador do Maranhão Flávio Dino e diversos secretários de Estado. Em pauta a execução do programa de alfabetização Sim, Eu Posso, em oito dos 30 municípios de menor índice de desenvolvimento humano (IDH) do Maranhão, pelo MST, através de parceria com a Universidade Estadual do Maranhão (Uema) e as secretarias de Estado da Educação (Seduc) e dos Direitos Humanos e Participação Popular (Sedihpop).

À noite, Stédile participou de atividade da Frente Brasil Popular no auditório da Faculdade de Arquitetura da Uema (Rua da Estrela, Praia Grande). A FBP é um coletivo de militantes e organizações sociais, entre as quais o MST e a Via Campesina, que tem se manifestado contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT).

Em evento intitulado “Análise de conjuntura: os rumos do Brasil frente a crise política atual”, Stédile falou para um auditório completamente lotado, refletindo sobre o atual momento político vivido no país e tentando traçar alguns cenários possíveis.

“A massa trabalhadora ainda não percebeu os riscos que corre com um eventual impeachment. O que os apoiadores e financiadores do golpe querem é a redução de direitos trabalhistas. Até agora, só fomos para a rua nós, militantes. No dia em que os 120 milhões de trabalhadores do Brasil saírem às ruas vai faltar rua”, comentou.

Ele, no entanto, não poupa críticas ao governo Dilma. “Vimos uma inércia em relação à reforma agrária e à titulação de territórios quilombolas. Agora que ela assinou uns poucos decretos, o que é uma merreca”.

Stédile defendeu a reestatização da Vale: “se não por qualquer outro motivo, pelo crime ambiental em Mariana. Mataram pessoas e mataram um rio de mais de 700 quilômetros. Isso tudo é impagável”, defendeu.

O intelectual orgânico do MST, um dos maiores em atividade no Brasil, pregou ainda outra relação do homem com o meio ambiente e o consumo. “Nós da esquerda costumamos culpar o Alckmin pela falta de água em São Paulo, por que é mais cômodo. É claro que ele tem sua parcela de culpa, como representante do grande capital, mas o problema foi a morte das nascentes. Pode chover o quanto chover em São Paulo, o problema não se resolverá. E por que mataram as nascentes? Para dar lugar aos monocultivos de cana de açúcar e eucalipto”.

Stédile reconheceu avanços sociais conquistados nos governos do PT, ainda insuficientes. “O Minha casa, minha vida precisaria de muito mais unidades habitacionais por ano para resolver o déficit acumulado. No ensino superior, seis milhões disputam pouco mais de um milhão de vagas em instituições públicas e privadas. E os cinco milhões que sobram? Eu digo para eles se juntarem ao Levante Popular da Juventude e irem para as ruas. Mas eles não me ouvem”, disse para aplausos e risos da plateia.

A grande mídia também não foi poupada por Stédile, principalmente a Rede Globo. “São os porta-vozes dos interesses dos que querem tomar o poder e, uma vez lá, reimplantar o neoliberalismo, a retirada de direitos dos trabalhadores e de recursos públicos para a saúde e a educação no Brasil, inclusive o petróleo, última riqueza coletiva do país”.

“É preciso defender o mandato de Dilma Rousseff e, uma vez mantida no cargo, ela precisa refazer o governo. Compor um ministério de notáveis, gente que tenha entendimento dos assuntos e seja reconhecida e respeitada pela sociedade. Ir mais para a esquerda”, apostou.

Stédile lamentou ainda o assassinato de trabalhadores sem terra no Paraná. “O Paraná é governado pelo PSDB. É uma amostra do que vem por aí. Passando o impeachment o ministro do desenvolvimento agrário será o Raul Jungman [PPS/PE]”, arriscou um prognóstico referindo-se ao hoje deputado federal. Presidente do Ibama no governo de Fernando Henrique Cardoso, Jungmann foi descoberto ano passado mantendo simultaneamente dois mandatos: não deixou a câmara municipal do Recife para assumir a vaga na Câmara dos Deputados, em Brasília/DF.

Com diversos atos previstos em várias cidades do país, ele previu ainda que a próxima será uma semana histórica para o futuro do Brasil.

A postura crítica de Stédile, intelectual menos conhecido do que deveria, em geral tachado de “guerrilheiro” e “terrorista” pela velha mídia que critica, reafirma a coerência do MST que representa: em 2009, quando da cassação do governador do Maranhão Jackson Lago, através de um golpe judiciário, os sem terra estavam na linha de frente na defesa do mandato conquistado legitimamente através do voto popular.

“A história se repete como tragédia ou como farsa”, como dizia um intelectual que também lhe serve de inspiração, mais barbudo que ele.

Os franco-sambas

Pas à pas. Capa. Reprodução
Pas à pas. Capa. Reprodução

A dupla francesa Aurélie & Verioca lançou, ano passado, seu segundo disco, o ótimo Pas à Pas, em que apresentam temas instrumentais e cantados, em francês e português, com sonoridade brasileiríssima: estão lá o choro, o samba e a bossa nova.

Gravado entre a França e o Brasil, o álbum é recheado de participações especiais daqui e de lá: [a flautista] Cléa Thomasset, Flor de Abacate [grupo formado por Marcos Flávio (trombone), Rubim do Bandolim, Silvio Carlos (violão sete cordas), Dudu Braga (cavaquinho) e Oszenclever Camargo (percussão)], [a cantora e compositora] Joyce Moreno, [o violonista] Luís Filipe de Lima, [o violonista e bandolinista] Marco Ruviaro, [o baterista e violoncelista] Médéric Bourgue, [o cavaquinista] Osman Martins, [o percussionista] Stéphane Edouard, [o violonista] Swami Jr., [o saxofonista] Thomas Vahle e [o percussionista] Zé Luis Nascimento.

Além de músicas autorais, o disco traz composições de nomes como Joyce Moreno [Chocolate for (h)all, versão delas para For hall], Swami Jr. [Le temps d’un samba, versão delas para O tempo de um samba] e Egberto Gismonti [À la dérive, versão delas para Loro].

Em abril elas voltam ao Brasil para uma turnê, o que fazem regularmente desde 2012. Já estão agendadas duas apresentações no Rio de Janeiro: dia 28 de abril, no Vinicius Bar (Rua Vinicius de Moraes, 39, Ipanema), com repertório mais voltado à bossa nova; e dia 30 de abril, na Casa das Artes da Ilha de Paquetá (Praça de São Roque, 31, Paquetá). Elas demonstram interesse em passar também por Brasília, Goiânia e São Luís – atenção, produtores! –, onde o público mais afeito a choro já ouviu faixas de seu disco mais recente no Chorinhos e Chorões de Ricarte Almeida Santos.

Aurélie Tyszblat (voz e letras) e Verioca Lherm (violão, voz, cavaquinho, percussões vocais e músicas) conversaram por e-mail (em português) com o Homem de vícios antigos.

Verioca (de óculos) e Aurélie. Foto: José Feijó
Verioca (de óculos) e Aurélie. Foto: José Feijó

 

Está anunciada uma turnê de vocês pelo Brasil que pode passar por São Luís. O que está fechado e o que está faltando?
Aurélie – Estamos fazendo uma turnê por ano no Brasil desde 2012. Até o ano passado, essa turnê passava por Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Para 2016, o nosso desejo é tentar atingir outros espaços. Pensamos em Goiânia, Brasília e São Luís do Maranhão, por que as nossas produtoras têm conexões nesses estados. A nossa experiência mostra que a maioria dos shows dessas turnês é fechada entre um e dois meses antes do início da temporada. Temos já dois shows marcados no Rio e ainda algumas semanas para completar a temporada.

Vocês são francesas. Como se conheceram? Algum parentesco? E como se apaixonaram pela música brasileira?
Verioca – Eu nasci perto de Clermont-Ferrand, no centro da França, e moro em Montpellier, no sul da França perto do mar, há mais de 10 anos. Não tenho nenhuma ligação familiar com o Brasil. Eu toco música brasileira há 30 anos, então essa música é mais que uma inspiração para mim, ela virou a minha música! Primeiro foi quando estudei violão clássico no conservatório. Tinha estudado algumas obras de [Heitor] Villa-Lobos, [Tom] Jobim, e logo depois eu descobri a pianista e cantora [maranhense] Tânia Maria. Foi como uma revelação: eu soube imediatamente que era este tipo de música que eu queria tocar. Desde esse tempo eu comecei a estudar e nunca parei. Hoje, além do meu violão de seis e da minha voz, eu toco percussões – surdo, pandeiro, tantan, repinique, alfaia, tamborim etc. –, cavaquinho, violão sete cordas. Como multi-instrumentista, eu toco em vários grupos de música na França. A maioria são grupos de música brasileira – o grupo Madrugada, que faz samba, Choro Sorrindo, que toca choro, Guaraná Samba, que toca música afro-brasileira, Onda Maracatu, que toca maracatu –, mas também com cantoras de canções francesas, Marie Busato, ou grupos de crianças, Les P’tits Loups du Jazz.

Aurélie – Eu nasci em Paris e moro lá desde sempre. O meu avô do lado do meu pai era da Polônia e a minha mãe nasceu na Argélia. Do meu lado também não tem nenhuma ligação com o Brasil na minha família. Quem sabe numa outra vida éramos formigas brasileiras… ou bem-te-vi talvez… Eu ouvi o meu primeiro disco de música brasileira quando tinha 14 anos de idade. Era um disco de Chico Buarque e a gravação ao vivo de Vinícius [de Moraes] com Toquinho e Maria Creuza, En La Fusa [gravado na boate homônima em Buenos Aires]. Depois comecei a cantar a música de [o pianista] Michel Legrand e standards de jazz. Mas nas partituras do Real Book, queria sempre cantar os temas brasileiros. Foi anos depois, em 2003, que encontrei um professor muito querido, Eduardo Lopes, que mora na França e faz oficinas sobre a música brasileira. Foi graças a ele que desenvolvi a minha paixão pela música brasileira de uma forma muito profunda, longe dos clichês. Comecei a minha vida profissional trabalhando com cinema, primeiro com produção e logo depois como roteirista. Eu queria contar histórias e acho que é exatamente o que eu quero fazer no palco hoje.

Verioca – Nós nos cruzamos pela primeira vez em 2002 numa oficina de jazz que eu estava dando. Depois a Aurélie me contatou em 2007 para me propor de montarmos juntas um repertório de versões de [o violonista] Guinga e [o compositor] Aldir Blanc. Eu só podia aceitar, pois admiro desde sempre o trabalho deles. Nós preparamos então umas vinte músicas e começamos a viajar com o show.

Aurélie – A Verioca tinha acabado de abrir o show da Tânia Maria no Olympia de Paris e eu fiquei muito fã do trabalho dela. Eu escutei os seus dois primeiros cds sem parar durante um certo tempo, antes de pensar em propor minhas letras. O começo da parceria na composição é mais recente, do final de 2009.

É interessante vocês falarem nesta distância de clichês. Em seu novo disco, por exemplo, vemos, entre os compositores, os nomes de Joyce Moreno e Egberto Gismonti, entre outros, além do nome dela e de Swami Jr. entre as muitas participações especiais. Gostaria que vocês comentassem um pouco o processo de realização deste disco.
Aurélie – Temos uma relação específica com cada músico que participou do nosso disco. Vamos começar com a Joyce. Ela conhece o trabalho solo da Verioca há mais de 15 anos, pois a empresária dela à época, Beth Bessa, que é agora a nossa produtora no Rio, tinha oferecido os dois primeiros discos dela. Ela já tinha gostado muito. Finalmente, nos encontramos no Rio em 2010 durante uma oficina sobre a música brasileira conduzida por meu professor Eduardo Lopes. Cantamos Essa mulher para ela e ela gostou. Uma amizade nasceu assim. E quando escrevi essa letra na música instrumental dela, For hall, pedi a autorização e ela me deu na hora. Ela fala fluentemente francês e aceitou o convite para participar do disco com a maior simplicidade e alegria. Ano passado foi uma alegria poder convidá-la no palco do Sesc Tijuca, onde tocamos uma das músicas mais recentes dela, chamada Claude et Maurice, em homenagem a Claude Debussy e Maurice Ravel. Com Gismonti foi diferente. Quando escrevi a letra do Loro e quando a Verioca chegou a um arranjo interessante, consegui o e-mail dele e pedi a autorização de mostrar essa versão. Ele demorou um pouco para me responder, mas quando respondeu, nos acolheu com uma generosidade incrível. Ele tinha “estudado” o nosso trabalho com muito carinho e nos deu sugestões e opiniões que vão ficar para sempre nos nossos corações. Com Swami Jr. foi um pouco do mesmo jeito, a gente tinha um amigo em comum, o [cantor] Marcelo Preto, que já tinha gravado no nosso primeiro disco [Além des nuages, 2011]. E quando eu fiz a versão de O tempo de um samba ele aceitou de nos encontrar para ouvi-la. Na época não sabia que ele falava francês, pois tinha morado em Paris alguns anos. De lá ele topou gravar na música dele e ficou lindo! É interessante notar que tanto a Joyce quanto Gismonti e Swami Jr. falam francês muito bem. Só pra dizer que essa ponte franco-brasileira funciona nos dois sentidos. Os outros convidados do disco são amigos que a gente escolheu com muito carinho para participar de tal faixa. Pode parecer esquisito, mas a gente gosta de apresentar músicos brasileiros que não se conhecem. Foi assim que o Luís Filipe de Lima faz um duo com Osman Martins no cavaquinho. Os dois nunca se encontraram – Osman mora na Bélgica há anos e Luís Filipe é radicado no Rio –, mas a musicalidade deles juntos é impressionante. Flor de Abacate que toca no Pas à pas são [nossos] amigos desde 2012, a primeira turnê que fizemos em Minas. Temos uma admiração muito grande pelo trabalho deles juntos e separados também. O irmão de Dudu e Ramon Braga até gravou uma música nossa no primeiro disco dele, Reconciliação. Mas também tem participações de músicos daqui: o Médéric Bourgue no cello é um dos raros músicos daqui que conhece bem a música brasileira e a suas síncopas tão particulares. Ele também toca bateria, mas tem um som lindo no cello. A Cléa Thomasset é uma amiga de longa data que tem uma relação muito forte com o Brasil, dedica a sua música ao chorinho. Ela faz parte da boemia de Paris, do que falamos em Naquele bar [faixa de Pas à pás]. O Marco Ruviaro é amigo dela, chorão de primeira, compositor, bandolinista e toca até clarinete muito bem! No total, levou um ano de produção para finalizar o disco, gravando no Rio, Belo Horizonte, São Paulo, mas também Paris, Bretanha. Pode parecer muito, mas é o tempo que precisamos para amadurecer cada música. Deveria dizer cada compasso de cada música [risos]. E também a vantagem de não ter gravadora. Como independente, podemos ter o tempo que precisamos. Basta ficar focadas. Vou acrescentar aqui que, como trabalhei com produtora de cinema na minha primeira experiência profissional, sei mexer nessa burocracia chata. Não é a minha praia como vocês falam, mas tem que fazer para poder viabilizar os nossos sonhos…

Pas à pas é um disco bilíngue. Mesmo quando cantando em francês, as músicas compostas por vocês, é um disco que soa brasileiríssimo. Quais os principais canais de fruição de música brasileira para vocês? Discos chegam ao mercado, vocês importam, baixam, ou um pouco de tudo isso?
Verioca – Comecei a me interessar por música brasileira nos anos 1980. Nesta época não tinha internet! Então eu sempre procurava discos de vinil. Tenho mais de 600 LPs de música brasileira e mais de 500 CDs, viajava no Brasil quando eu podia para caçar as pérolas que podia achar. Também assistia, sempre que possível, os brasileiros que tocavam na França, como por exemplo Les étoiles, com [os cantores] Rolando Faria e Luiz Antônio, ou Tânia Maria, que vem de São Luís do Maranhão, ou [a cantora e violinista] Mônica Passos. Nas minhas viagens, procurava partituras e voltava na França para estudar.

Aurélie – Hoje é mais fácil. Facebook é uma ferramenta que pode ser muito ruim, mas que é, sem dúvida, uma fonte incrível para descobrir novos talentos. Essa semana descobri o grupo vocal Ordinarius [formado pelos cantores André Miranda, Augusto Ordine, Letícia Carvalho, Luiza Sales, Maíra Martins e Marcelo Saboya] e me encantei! Mas cada vez que viajamos, a nossa mala volta cheia de discos novos. Pois o que é incrível no Brasil é que, apesar das dificuldades que têm os músicos bons para ter visibilidade na grande mídia, tem sempre novos compositores, intérpretes, talentos que surgem.

Vocês falaram na paixão inicial pela obra de Villa-Lobos. São Luís do Maranhão, de onde escrevo, é a terra de Turíbio Santos, um dos maiores divulgadores da obra de Villa mundo afora, já tendo morado na França, gravado diversos discos aí e vencido alguns concursos de violão. Vocês conhecem seu trabalho?
Verioca – Eu conheço Turíbio Santos, sim! O [violonista] Roland Dyens foi o meu professor e com certeza, quem estuda violão clássico conhece Turíbio Santos.

Aurélie – Não conhecia, mas gostei muito.

Foi a música brasileira que levou-as a aprender português?
Aurélie – Sim, foi por causa, ou seja, graças a música que a gente começou a estudar a língua portuguesa. Antes de me interessar nessa música, nunca tinha achado letras tão poéticas, tão ricas e com uma poesia do dia a dia que ajuda a viver.

Verioca – Eu também aprendi o português viajando para o Brasil e através das letras, mas também dos gibis do Zé Carioca. Por esse motivo o meu português é mais coloquial.

Sua nova turnê brasileira deve ser focada no Pas à pas, mas passar também pelo primeiro disco e outras afetividades, digamos assim. O que o público brasileiro das cidades por onde vocês passarão pode esperar de Aurélie e Verioca no palco?
Aurélie – A turnê oficial de lançamento de Pas à pas foi feita ano passado. Mas para muitas pessoas, esse disco ainda é novidade! Então pretendemos continuar a divulgar esse trabalho. Porém, como sempre, costumamos viajar com muitas coisas diferentes no nosso repertório. Temos por exemplo um repertório dedicado ao choro cantado, com obras de Ernesto Nazareth, Pixinguinha, Jacob do Bandolim… São letras um pouco esquecidas que gostamos de resgatar, e também algumas surpresas em francês. Também, nesta temporada, faremos no Rio um show de homenagem a bossa nova, no Vinicius Bar, em Ipanema. Na França, apresentamos esse ano um show com um escritor francês, Jean-Paul Delfino, que inclusive viajou à São Luis em novembro de 2015, e que escreveu há alguns anos um livro sobre a bossa nova. Com ele, o nosso show mistura histórias ligadas a bossa nova e músicas de Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Baden Powell que têm versões em Francês. Além disso tudo, gostamos sempre de homenagear os compositores que alimentaram a nossa identidade franco-brasileira: Guinga, Eduardo Gudin, Joyce Moreno e Egberto Gismonti fazem parte desse grupo. Mas o que eu posso dizer é que, independentemente do repertório, procuramos sempre fazer um show que mistura emoções, contando histórias, anedotas que nos levam também do lado da infância, da saudade e da joie de vivre. Isso tudo para que o nosso show vire um momento de encontro autêntico com o público.

Já é possível falar em disco novo? Se sim, o que vocês estão preparando?
Aurélie – Para o próximo disco temos ideais. Mas são apenas desejos que não podemos comentar ainda. Como eu já falei para você, produzir o Pas à pas foi um processo demorado e exigente de um ano de produção, sem falar dos inúmeros meses que a gente levou para escrever e selecionar o repertório. Então acho que ele merece uma vida longa  e vamos fazer tudo para defendê-lo no palco durante mais um tempo.

Vejam o clipe de Pas à pas: