Crônica de uma reinauguração

João Neto (flauta), Zeca do Cavaco, Gabriela Flor (pandeiro) e João Eudes (violão sete cordas): o Choro da Tralha da ocasião - foto: Otávio Costa
João Neto (flauta), Zeca do Cavaco, Gabriela Flor (pandeiro) e João Eudes (violão sete cordas): o Choro da Tralha da ocasião – foto: Otávio Costa
O dj Joaquim Zion - foto: Zema Ribeiro
O dj Joaquim Zion – foto: Zema Ribeiro
Não é todo dia que a gente é fotografado entre dois Otávios, dois irmãos: o blogueiro entre Costa e Rodrigues - foto: Elizeu Cardoso
Não é todo dia que a gente é fotografado entre dois Otávios, dois irmãos: o blogueiro entre Costa e Rodrigues – foto: Elizeu Cardoso
Papo de radialista: Otávio Rodrigues e Ricarte Almeida Santos, dois dos professores que tive fora da sala de aula - foto: Otávio Costa
Papo de radialista: Otávio Rodrigues e Ricarte Almeida Santos, dois dos professores que tive fora da sala de aula – foto: Zema Ribeiro
Papo de compositor: Nosly e Elizeu Cardoso - foto: Zema Ribeiro
Papo de compositor: Nosly e Elizeu Cardoso – foto: Zema Ribeiro
Papo de compositor: Elizeu Cardoso e Luciana Simões - foto: Zema Ribeiro
Papo de compositor: Elizeu Cardoso e Luciana Simões – foto: Zema Ribeiro

Quando a Feira da Tralha foi inaugurada no ponto em que hoje funciona o Butiquim do Carlos, no Edifício Colonial (Rua Godofredo Viana, Centro), saudei a abertura do sebo em um texto que trazia alvíssaras no título.

Moema de Castro Alvim (1942-2014), proprietária do Papiros do Egito, primeiro sebo que frequentei na vida, ainda criança, já era falecida, mas lembro sempre da inequação com que ela cantou a pedra: como é que enquanto se abrem novas faculdades, livrarias se fecham? A conta realmente não batia. Não bate.

Rato de sebo é expressão que bem me classifica. Depois de Moema não parei mais: Riba do Poeme-se, Chico Discos, Educare, Sebo nas Canelas, Bonanza e Ruy até a Feira da Tralha, são endereços que frequento/ei com certa assiduidade e a inauguração ou reinauguração de um espaço desses sempre será motivo de minha atenção e entusiasmo.

À época do “x com o Teatro Arthur Azevedo” (como eu ensinava o endereço da Feira da Tralha aos neófitos) a Tralha (como carinhosamente os amigos abreviam o nome do estabelecimento) acabou virando um point para além do garimpo de preciosidades que nos leva aos sebos da vida. Logo Riba e Marly trocaram a cerveja para consumo próprio no fim do expediente, em uma geladeira pequena, por cerveja para os fregueses que também queriam aplacar o calor e molhar a palavra quando a tarde caía entre o Colonial e o Mestrado em Direito.

Abraços, afetos, sorrisos, boa prosa e boa música (inclusive a que Gildomar Marinho dedicou-lhe, gravada com a adesão de Rodger Rogério), sem esquecer da matéria principal do lugar, a coisa cresceu e logo a Tralha alugou um segundo ponto e o sebo incorporou a dimensão do bar ao negócio. Preenchia uma lacuna da qual sempre me ressenti: não é possível que as pessoas saindo de um espetáculo no Arthur Azevedo precisem ir para longe para aquela resenha (não no sentido surrado hoje atribuído ao verbete). Com a Tralha era possível o after a alguns passos, comentando o show, a peça e o que mais desse na telha.

Mas não parou por aí: Gabriela Flor (pandeiro), Gustavo Belan (cavaquinho), João Eudes (violão sete cordas), João Neto (flauta) e Ronaldo Rodrigues (bandolim) começaram a fazer rodas de choro na Godofredo Viana, animando os domingos. Logo ganharam o apropriado nome de Choro da Tralha e o grupo ganhou vida própria e segue junto até hoje (Temporariamente sem Ronaldo, que foi cursar doutorado em Pernambuco). Ensaios de blocos de carnaval, lançamentos de livros (alô, Josoaldo Lima Rêgo!) e até mesmo este repórter, arremedo de DJ, que animou algumas noites e ali conheceu a esposa, com a ajuda de Marly, que não a conhecia: “não sei, cliente nova”, respondeu quando perguntei quem era. Mas depois me ajudou a achar o caminho das pedras. Ou melhor: dos paralelepípedos.

Certa vez, Otávio Rodrigues, o Doctor Reggae, ainda morando em São Paulo, veio à ilha gravar sua participação em algum projeto e nos encontramos por lá. Tião Carvalho, de passagem pela ilha, se juntou a nós, “papo e som dentro da noite”, ave, Belchior (1946-2017)!, e esta é também uma entre tantas memórias do lugar.

Quando a Feira da Tralha foi inaugurada no antigo endereço, um erro na confecção de uma faixa acabou se tornando o slogan do lugar: “ambiente livre de bolsomilho” trazia um neologismo que avisava do antifascismo dos proprietários e da preferência por cervejas puro malte. Mas a simpatia de Marly e do comunista Ribamarx (reparem no apelido) é tanta que até mesmo bolsonaristas conseguiam se infiltrar: certa vez, num episódio conhecido como Cavalo de Tróia, com direito a meme, Elizeu Cardoso pagou o pato de ter que aturar um em sua mesa, à certa altura de uma farra movimentada, a única ainda com um lugar desocupado.

Otávio Costa, ao ver o novo slogan em um banner, protestou, de pilhéria: “não gostei! Como assim, nada mais?”, disse, referindo-se a frase sob o nome do estabelecimento: “amigos, livros, discos e nada mais”. Ponderei que era apenas um trecho de “Casa no campo”, de Tavito e Zé Rodrix, e ele riu, conformado, como concordando que fosse qual fosse o slogan, não diminuiria a contenteza geral pela reinauguração do espaço.

Veio a pandemia de covid-19, cujos abalos em quaisquer aspectos todos lembramos, entre isolamento social, mortes e o negacionismo do desgoverno então vigente. Sem ter como pagar o aluguel dos pontos, a Tralha fechou e passou a operar online, vendendo principalmente elepês através de redes sociais e aplicativos de mensagens.

O negócio ia dando certo mas faltava calor humano. Os órfãos da Tralha, em cuja filiação me incluo, sempre reclamavam a volta do espaço físico, agregando sebo e bar. Antes à tarde do que nunca, como diria o conhecido reclame de motel.

E eis que sábado passado, não por acaso um dia 13, a Tralha reabriu. Está funcionando em um simpático ponto na Escadaria da Rua do Giz (o antigo Entrenós, ao lado do Restaurante do Senac), na Praia Grande. O Choro da Tralha, com inspiradas canjas de Nosly (que acertadamente incluiu “Pedrada”, de Chico César, em seu repertório) e Zeca do Cavaco (que quando eu cheguei me disse que já tinha cantado mas que ia voltar e cantar algo que eu gostava e mandou “Flanelinha de avião”, de Cesar Teixeira), e os DJs Seba e Joaquim Zion garantiram a trilha perfeita, à altura que uma reinauguração desse porte pedia.

Reencontrei muita gente querida: o ex-craque da seleção de Santa Tereza do Paruá Ricarte Almeida Santos e Danielle Assunção, Luciana Simões (que saiu com um raro Nonato e Seu Conjunto nas mãos), Chico Neis (que arrematou um Milton Carlos [1954-1976] antes de mim), Eduardo Júlio, Samme Sraya, Rosana, Rosinha, Adler São Luís e os Otávios, Rodrigues e Costa; com o último voltei a falar na Discoteca do Veterinário, uma ideia de programa de rádio que alia sua paixão e profissão, mas nunca deixou o campo das ideias. Até aqui.

Dividir a mesa com Elizeu é garantia de boas risadas e eu já fui rindo desde o Uber em que ele me apanhou em casa.

Seria praticamente impossível escrever um texto jornalístico sobre esta fênix, afinal de contas o repórter estava lá não como tal, mas como amigo do estabelecimento e dos proprietários e assíduo frequentador. Quero apenas registrar a alegria de poder voltar a frequentar a Feira da Tralha e desejar sucesso e vida longa. Um brinde! E mais uma, por favor!

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